RESUMO
Objetivo: O presente artigo tem por objetivo analisar os riscos da cultura do cancelamento no ambiente virtual ao direito à liberdade e aos direitos de personalidade, identificar de que forma a utilização de algoritmos para a predição dos usuários e a criação de bolhas sociais virtuais com viés discriminatório contribui o cancelamento.
Metodologia: Utiliza o método hipotético-dedutivo e parte da hipótese de que as bolhas virtuais e câmaras de eco fortalecem e expandem discursos de cancelamento e esses discursos violam os direitos de personalidade e a dignidade humana, logo, não podem ser considerados como manifestações de cidadania e liberdade de expressão. Como técnica de investigação, utiliza a revisão bibliográfica em artigos, livros, físicos e eletrônicos, nas bases de dados nacionais e em fontes secundárias como a análise documental em jornais e notícias.
Resultados: A cultura do cancelamento é uma prática que se manifesta na intolerância às visões opostas, que é amplificada pelas bolhas sociais virtuais pelas câmaras de eco, que atinge a vida online e offline. O discurso de cancelamento representa riscos aos direitos de personalidade e dignidade humana e rompe com a noção de liberdade. Devese criar políticas públicas de educação para a cidadania digital, que estimulem a pluralidade e a liberdade de expressão, sem a violação a direitos fundamentais.
Contribuições: A contribuição que se espera com a pesquisa é a relação entre a cultura do cancelamento diante das bolhas sociais virtuais, da desinformação e da predição algorítmica e os riscos que esses fenômenos representam à liberdade e aos direitos de personalidade.
Palavras-chave: Direitos de personalidade, cultura do cancelamento, liberdade, dignidade humana.
ABSTRACT
Objective: This article aims to analyze the risks of the culture of cancellation in the virtual environment to the right to freedom and personality rights, to identify how algorithms are used to predict users and the creation of virtual social bubbles with a discriminatory bias cancellation contributes.
Methodology: It uses the hypothetical-deductive method, and starts from the hypothesis that virtual bubbles and echo chambers strengthen and expand cancellation discourses and that these discourses violate personality rights and human dignity, therefore, they cannot be considered as manifestations of citizenship and freedom of expression. As a research technique, it uses literature review in articles, books, physical and electronic, in national databases, and secondary sources such as documental analysis in newspapers and news.
Results: Cancel culture is a practice that manifests itself in intolerance to opposing views, which is amplified by virtual social bubbles and echo chambers, and which affects life online and offline. The cancellation speech poses risks to personality rights and human dignity, and breaks with the notion of freedom. Public education policies for digital citizenship must be created, which encourage plurality and freedom of expression, without violating fundamental rights.
Contributions: The contribution that is expected from the research is the relationship between the culture of cancellation in the face of virtual social bubbles, disinformation and algorithmic prediction and the risks that these phenomena pose to freedom and personality rights.
Keywords: Personality rights, cancellation culture, freedom, human dignity.
RESUMEN
Objetivo: Este artículo tiene como objetivo analizar los riesgos de la cultura de la cancelación en el entorno virtual para el derecho a la libertad y los derechos de la personalidad, identificar cómo se utilizan los algoritmos para predecir usuarios y contribuye la creación de burbujas sociales virtuales con un sesgo discriminatorio de cancelación.
Metodología: Utiliza el método hipotético-deductivo, y parte de la hipótesis de que las burbujas virtuales y las cámaras de eco fortalecen y expanden los discursos de cancelación y que estos discursos vulneran los derechos de la personalidad y la dignidad humana, por lo que no pueden ser considerados como manifestaciones de ciudadanía y libertad de expresión. Como técnica de investigación utiliza la revisión bibliográfica en artículos, libros, físicos y electrónicos, en bases de datos nacionales, y fuentes secundarias como el análisis documental en periódicos y noticias.
Resultados: La cultura de cancelación es una práctica que se manifiesta en la intolerancia a puntos de vista opuestos, que se amplifica con burbujas sociales virtuales y cámaras de eco, y que afecta la vida en línea y fuera de línea. El discurso de cancelación plantea riesgos para los derechos de la personalidad y la dignidad humana, y rompe con la noción de libertad. Se deben crear políticas públicas de educación para la ciudadanía digital, que fomenten la pluralidad y la libertad de expresión, sin vulnerar los derechos fundamentales.
Contribuciones: La aportación que se espera de la investigación es la relación entre la cultura de la cancelación frente a las burbujas sociales virtuales, la desinformación y la predicción algorítmica y los riesgos que estos fenómenos suponen para la libertad y los derechos de la personalidad.
Palabras clave: Derechos de la personalidade, cultura de cancelación, libertad, dignidad humana.
Artigo
ALGORITMOS PREDITIVOS, BOLHAS SOCIAIS E CÂMARAS DE ECO VIRTUAIS NA CULTURA DO CANCELAMENTO E OS RISCOS AOS DIREITOS DE PERSONALIDADE E À LIBERDADE HUMANA
PREDICTIVE ALGORITHMS, SOCIAL BUBBLES AND VIRTUAL ECO CAMERAS IN THE CULTURE OF CANCELLATION AND THE RISKS TO PERSONALITY RIGHTS AND HUMAN FREEDOM
ALGORITMOS PREDICTIVOS, BURBUJAS SOCIALES Y CÁMARAS ECO VIRTUALES EN LA CULTURA DE LA CANCELACIÓN Y LOS RIESGOS A LOS DERECHOS DE LA PERSONALIDAD Y LA LIBERTAD HUMANA
Recepção: 03 Novembro 2021
Aprovação: 03 Agosto 2022
As novas tecnologias têm impactado de forma cada vez mais intensa a sociedade e os seus setores como a economia e política, e adentrado na vida dos sujeitos e em seus relacionamentos. Nesse sentido, o advento das redes sociais revolucionou o modo como os seres humanos se comunicam. Por meio das redes sociais, os usuários podem cometer ilícitos, propagar mensagens de conteúdo prejudicial e violar direitos fundamentais de outros usuários.
Embora essa problematização não seja essencialmente nova, tornou-se mais complexa e potencializada devido aos algoritmos preditivos e às bolhas virtuais sociais e câmaras de eco que incentivam diálogos de ódio e discriminação, o que traz à tona a discussão acerca da cultura do cancelamento. Esse fenômeno tem trazido consigo riscos a diversos direitos fundamentais, gerando danos em larga escala, em velocidade nunca antes imaginada, com poucos limites, o que tem levado a doutrina a interpretar o Direito à luz das mudanças tecnológicas para resguardar a pessoa humana e os seus direitos.
Cumpre fazer uma distinção nesse momento. Os discursos de ódio tendem a ser direcionados contra minorias e grupos vulneráveis, negando a efetividade de direitos fundamentais desses grupos, como discursos de racismo, transfobia, LGBT+fobia, dentre outros. Deve-se esclarecer que essa conduta de propagação de ódio, aversão e diminuição desses grupos em vulnerabilidade é totalmente reprovável. A ideia de cancelamento que se discute neste texto e as suas repercussões não é esta. Como será visto, embora a origem do discurso cancelador tenha sido uma reação aos discursos de ódio propagados contra a efetivação de direitos de minorias, na atualidade, tornou-se um mecanismo de polarização social, discriminação, irracionalidade, sob o fundamento da liberdade de expressão, cujas problemáticas serão traçadas neste texto.
Assim, esta pesquisa tem por objetivo analisar os riscos da cultura do cancelamento existente no ambiente virtual aos direitos de personalidade e à liberdade. No primeiro tópico será analisada a utilização de algoritmos para a predição dos usuários e a criação de bolhas sociais virtuais com viés discriminatório. Já no segundo tópico, será investigada a denominada “cultura do cancelamento”, demarcada pela exclusão social virtual, pelos discursos de ódio e pela polarização social. No terceiro e último tópico, serão discutidos os riscos, as ameaças e as violações que a cultura do cancelamento representa ao direito à liberdade e aos direitos de personalidade.
Para tanto, utiliza-se o método de abordagem hipotético-dedutivo, por meio do qual se partirá de uma hipótese formulada na condição de resposta provisória ao problema apresentado, submetendo-a a uma análise de falseamento, de modo a acolhê-la ou rejeitá-la. A hipótese é de que, no ambiente virtual, as bolhas virtuais sociais, que são criadas pelos algoritmos preditivos, fortalecem e expandem discursos de cancelamento e de exclusão e que esses discursos violam direitos de personalidade e, em última análise, a própria dignidade humana, por isso, não podem ser consideradas como manifestações de cidadania nem de liberdade de expressão. Como técnica de investigação, utiliza-se a revisão bibliográfica nacional e internacional em artigos, livros, físicos e eletrônicos, nas bases de dados nacionais, e fontes secundárias como a análise documental em jornais e notícias.
Esta pesquisa se justifica pelo avanço crescente das tecnologias e de discurso de ódio propagados no ambiente virtual, pela ameaça e pela violação aos direitos de personalidade, tendo em vista que a vulnerabilidade das pessoas se torna mais evidente diante das tecnologias. Assim, como forma de preservar os direitos de personalidade, é imprescindível refletir sobre esses temas a fim de que se encontrem caminhos para solução a esse problema social tão complexo.
Ao final, apontam-se possíveis soluções que, assegurando o desenvolvimento das tecnologias, atenuem os discursos de exclusão e de cancelamento que ameaçam os direitos da personalidade e a liberdade humana.
A inteligência artificial permite o desenvolvimento de algoritmos inteligentes, que aprendem com a própria experiência e passam a selecionar autonomamente as variáveis que considera mais adequadas a determinado usuário nas redes. É nesse contexto que surgem os algoritmos preditivos que têm como consequência a criação de bolhas sociais virtuais e as câmaras de eco, que ditam as pautas em discussão na sociedade contemporânea.
Com o avanço das tecnologias das redes sociais, os dados pessoais disponibilizados nas redes tornaram-se a matéria-prima para a predição dos algoritmos e a criação das chamadas bolhas sociais virtuais e câmaras de eco virtuais. Um documentário televisivo da Netflix, denominado “O Dilema das Redes”, apresentou de forma clara como os dados são utilizados pelos algoritmos para condução do comportamento humano, o aumento dos discursos de ódio e da polarização de ideias, que, por efeito, criam bolhas virtuais e câmaras de eco (O DILEMA..., 2020).
A partir da existência de conexões algorítmicas com base em interesses comuns entre os usuários, gerando identificação e pertencimento, Martino (2014, p. 58) elucida que ocorre a formação de diversos grupos que trocam informações e ideias “gerando não apenas uma interação entre os participantes no sentido de compartilhar conhecimentos, mas também o engajamento em questões políticas, sociais e culturais.” A esse fenômeno se dá o nome de bolhas sociais.
Conforme os usuários vão expondo seus pontos de vista e tornando públicos seus posicionamentos, surgem as bolhas sociais, que dizem respeito à criação de pequenos círculos de discussão e acesso à informação, em que os participantes têm o mesmo posicionamento. Esses círculos são marcados pelo fenômeno da padronização social, que é uma consequência da captação de dados e do avanço nos algoritmos (PELLIZZARI; BARRETO JUNIOR, 2019).
A partir dos dados compartilhados pelo usuário nas redes e das interações com as publicações desses usuários em determinada linha de raciocínio, uma variedade de conteúdos diferentes é reduzida a informações de uma única fonte de interesse e cria as chamadas “bolhas sociais”, em que os usuários têm contato com outros perfis que compartilham das mesmas opiniões e posicionamentos que os seus.1
Os algoritmos das redes sociais analisam as preferências dos usuários e configuram os feeds de notícias das redes, de forma a não mostrar outros pontos de vista ou conteúdos, contrários ao interesse do usuário. Isso também acontece com os sites de busca de notícias, que tendem a mostrar primeiro os links de sites que já foram visitados pelo usuário anteriormente. Majoritariamente, o usuário irá consumir, sempre da mesma fonte de notícias.
Desse modo, as bolhas sociais são consequência dos “efeitos dos algoritmos das aplicações tecnológicas (redes sociais, mecanismos de busca e toda espécie de direcionamento de informações aos usuários da internet)” e representam “espécie de confinamento informático ao qual são submetidos os usuários de ferramentas on-line” (PELLIZZARI; BARRETO JUNIOR, 2019, p. 58).
Existem também as câmaras de eco, em que o usuário, preso em suas próprias convicções e deixando de questioná-las, perpetua as ideias e os posicionamentos que lhe são próprios, com um “eco” nas redes. Segundo Jasny, Waggle e Fisher (2015, p. 1), as câmaras de eco podem ser descritas como “uma formação na rede social que transforma o modo no qual a informação é transmitida e interpretada pelos atores”. A informação ou posicionamento sobre determinado conteúdo sofre um “eco”, ou seja, repete-se, constantemente, nas redes sociais aquilo que o usuário já acredita e compartilha. Esse eco age com um viés confirmatório daquele conteúdo ou posicionamento.
Como esclarecido por Pariser (2012), os mecanismos de busca e as redes sociais utilizam algoritmos que mantêm os internautas dentro das bolhas, e esses ambientes são considerados câmaras perfeitas para gerar infinitos ecos de informações e vieses de opinião.
Dentre as consequências desses fenômenos, destaca-se a pós-verdade, isto é, uma tendência contemporânea, incitada, dentre outros fatores, pelas bolhas sociais, nas quais os fatos objetivos são menos influentes na formação da opinião pública do que os sentimentos e as convicções envolvidas. Zarzalejos (2017, p. 11) explica que a pósverdade “consiste em relativização da verdade, na banalização da objetividade dos dados e na supremacia do discurso emocional”. Os usuários tendem a compartilhar o que concordam e “cancelar” o que discordam, baseados não em fatos concretos ou argumentos racionais, mas em gostos pessoais e discurso emocional.
O segundo efeito desses fenômenos é discutido por Recuero, Bastos e Zago (2015, p. 12), ao constatarem que as pessoas, ao conviverem e discutirem junto com aqueles que são iguais, têm uma tendência de verem reforçadas as suas opiniões e tendem a um extremismo de opiniões e ações. O discurso é repetido com tanta frequência naquela bolha social pelo fenômeno do eco a ponto de gerar a impressão de que todos pensam da mesma forma. O filtro bolha e o eco criam uma ilusão, pois o usuário tem a impressão de que as pessoas em geral estão pensando como ele. Afinal, as postagens de contatos próximos e distantes estão em consonância com sua visão, assim, conclusões erradas da sociedade e dos sujeitos são criadas (FERREIRA; RIOS, 2017, p. 8).
Desse modo, tanto as bolhas virtuais quanto as câmaras de eco “são responsáveis por potencializar e tornar instantâneas a disseminação de notícias e fatos encarados como verdadeiros, sem ao menos serem questionados e analisados.” (BARBOSA; SPECIMILLE, 2020, p. 15).
A arquitetura atual das redes sociais, alicerçada em algoritmos e direcionamento de conteúdo, pode fomentar e inviabilizar a discussão racional e, por consequência, promover a polarização, propiciando o surgimento de discursos canceladores. Esses usuários, quanto mais consomem o conteúdo que lhes aparecem, mais “cancelam” alguém ou algo e mais incentivados são pelas bolhas sociais virtuais e pelos ecos de conteúdo a continuarem com tal atitude.
O linchamento e o cancelamento de pessoas, de certa forma, sempre existiram na história, porém, nos últimos anos, essas práticas foram transferidas para o ambiente virtual, nas redes sociais. Nesse sentido, destaca-se o pensamento de Sibilia (2008), que, alinhado às concepções de Guy Debord sobre a sociedade do espetáculo, revela que a sociedade atual vive centrada no culto à personalidade, que espetaculariza o “eu” por meio das ferramentas comunicacionais digitais.
Surge então a discussão sobre os discursos de ódio e discriminatórios e a cultura de cancelamento, que são propagados nas redes sociais, que se tornaram um anexo da vida social. Esta conduta está incluída na ideia de discurso de ódio, mas entende-se que dela se diferencia, como será visto à frente (BRASILEIRO; AZEVEDO, 2020).
Mesmo não tendo um marco exato de origem, o movimento do cancelamento nas redes sociais teve início em 2017, a partir da mobilização de vítimas de assédio e abuso sexual que denunciaram famosos de Hollywood. O movimento foi marcado nas redes sociais pela hashtag #MeToo (#EuTambém, em português) (SILVA; HONDA, 2020).
A expressão “cultura do cancelamento” foi eleita o termo do ano de 2019 pelo Dicionário Macquarie, que anualmente seleciona expressões que mais caracterizam o comportamento humano naquele ano. O dicionário aponta a cultura do cancelamento como “um termo que captura um aspecto importante do estilo de vida deste ano”. Uma atitude tão persuasiva que ganhou seu próprio nome e se tornou, para o bem ou para o mal, uma força poderosa” (MACQUARIE DICTIONARY, 2019, online).
O fenômeno da cultura do cancelamento consiste em “um acerto público de contas e um pedido de ajustamento de condutas em relação à alguma transgressão social que não passou por um controle adequado nos canais tradicionais.” (RODRIGUES, 2020, online). Essa prática social ganhou maior relevância e foi potencializada com o aumento do uso e propagação da tecnologia para interações humanas, como as redes sociais (CAMILLOTO; URASHIMA, 2020, p. 8).
Para que aconteça um cancelamento, é necessária a presença de um grupo social hegemônico, isto é, um grupo unido de pessoas em torno de uma mesma norma social, de critérios identitários (como cor, etnia, gênero, orientação sexual, posição política) ou unido por critérios circunstanciais que se convergem no movimento de cancelar algo ou alguém (GOMES, 2020, online). De todo modo, “o cancelamento se revela como uma ação na qual há convenções e normas que regem a interação entre seus membros e que servem de referência para avaliar terceiros” (CAMILLOTO; URASHIMA, 2020, p. 8).
Os sujeitos “cancelados” tendem a ser pessoas ou instituições com visibilidade e importância social que se vinculam ou são simpatizantes de determinadas pautas e posições sociais que são consideradas reprováveis pelo grupo majoritário e “cancelador” (CAMILLOTO; URASHIMA, 2020, p. 9).2 Nada obstante, pessoas não notórias também já foram alvo de cancelamento (SANCHES, 2020).
Além da identidade de um grupo social e do sujeito cancelado, há um aspecto moral, pois o cancelamento se materializa como uma resposta à não observância de alguma norma considerada fundamental em determinado grupo, como uma justiça moral que incide reprovando determinada conduta contra-hegemônica. Assim, os “canceladores” partem da premissa de que, com aquela conduta de fastio, estão agindo de forma moralmente superior a quem ou ao que está sendo cancelado, dessa forma, agem para um bem comum (GOMES, 2020).
A expressão “cancelar” revela o objetivo da prática: a partir de um discurso de ódio, busca-se “eliminar” e “tornar sem efeito” o agente do erro ou conduta, tido como reprovável (SILVA; HONDA, 2020, online). O objetivo do cancelamento é retirar a influência do sujeito ou da instituição - cuja conduta é considerada reprovável pelo grupo majoritário -, o que pode acontecer tanto nas redes sociais quanto para além delas (DOUTHAT, 2020). Tal objetivo é alcançado, principalmente, por boicotes ou adoção de medidas disciplinares (ROMANO, 2019; CAMILLOTO; URASHIMA, 2020, p. 9).
Conforme Silva et al. (2011, p. 447-448), esses discursos possuem conteúdo segregacionista, discriminatório dirigido às pessoas que compartilham de alguma característica que as tornam componentes de um grupo e são tidas como inferiores enquanto aquele que emite é considerado superior. Além disso, instiga leitores/ouvintes (nas redes sociais, usuários) a participar do discurso discriminatório, não somente com palavras, mas também com ações.
Interessante conceituação é a de Bentes (2020, online), para quem a prática do cancelamento é “uma estratégia que conforme a modulação pode ir de um honesto e necessário debate público até o seu extremo, que é o linchamento e destruição de reputações.” Nesse sentido, o cancelamento tem como origem uma postura positiva, isto é, proativa, de questionamento e afirmação dos direitos de grupos vulneráveis. Segundo Rodrigues (2020, online) “O que se convencionou chamar de cultura do cancelamento é fruto dessas disputas que sempre ocorreram em outros espaços, mas amiúde de cima para baixo.” Esse fenômeno estabeleceu-se primeiro como uma manifestação do conceito de liberdade, de manifestação livre de pensamento, como uma crítica social para se alcançar mudanças.3
É necessário esclarecer uma questão: a diferença entre os discursos de ódio direcionados a grupos vulneráveis e minorias e a ideia de cancelamento. O primeiro fenômeno são discursos que pregam o racismo, a misoginia, o capacitismo, a LGBT+fobia e transfobia, propõe pautas contrárias à efetividade de direitos de grupos vulneráveis e minorias. Não se opõe à ingerência contra essas manifestações antidemocráticas e contrárias aos direitos fundamentais de grupos vulneráveis e minorias. Nessa situação, entende-se que um grupo atacado com essas condutas poderá se posicionar reprovando um comportamento que negue direitos como e pleitear a responsabilização civil e criminal dos sujeitos que propagaram o ódio. Nesses casos, defende-se que a conduta discriminatória e contrária aos direitos fundamentais deve ser sim criticada e censurada, podendo inclusive ensejar responsabilidade civil e penal. Entende-se que o uso consciente das mídias digitais tende a ser um forte aliado no enfrentamento e na prevenção desse tipo de violência (FRANÇA JUNIOR; SANTOS; ALBUQUERQUE, 2021, p. 164).
O tipo de discurso de ódio que aqui se chama de “cancelamento” e se propõe a discutir é outro. A prática do “cancelamento” abordada neste texto é a que ocorre contra indivíduos públicos ou não, que têm opiniões contra hegemônicas sobre determinados temas (SILVA; HONDA, 2020). Esses sujeitos são cancelados no ambiente virtual por grupos de maiorias que possuem um posicionamento contrário. E a prática desses grupos se chama de cancelamento e é o fenômeno que se critica.
Cumpre esclarecer que, embora a gênese “cultura do cancelamento” tenha sido a luta para dar voz às demandas sociais, esse movimento tornou-se uma forma de realização de justiça social, de ataque a sujeitos ou grupos de pessoas que praticam algum ato considerado reprovável pela maioria, um erro socialmente inaceitável. O ato de “cancelar” alguém ou algo tem sido desempenhado, sob a falsa aparência de liberdade de expressão e do livre intercâmbio de ideias (BENTES, 2020).
Ao invés de estimular a conscientização, responsabilização e mudança diante da conduta reprovável, acaba gerando ondas de boicote, disseminação de discursos de ódio ao “infrator”, intolerância e polarização, antecipando a sanção por aquele erro ou conduta reprovável. Cria-se um movimento nas redes sociais de exposição “para que, não somente os usuários deixem de “seguir” a pessoa ou de comprar determinada marca, por exemplo, mas também para que parem de dar visibilidade ao trabalho de alguém ou determinada empresa” (SILVA; HONDA, 2020, online).
Em síntese, a dinâmica do cancelamento é a seguinte: um indivíduo, integrante de um grupo hegemônico, vê algo nas redes (uma ação, manifestação ou acontecimento) que considera em desacordo com as normas do grupo do qual faz parte. Em seguida, uma voz autorizativa, isto é, um membro notório capaz de determinar e reforçar as convenções que regem o grupo acionará sua rede, composta por pessoas que compartilham as mesmas crenças, para expor o ‘infrator’ e/ou constrangê-lo publicamente (GOMES, 2020).4
Dentre os mecanismos utilizados para persuasão e propagação dos discursos cancelados, destacam-se a criação de estereótipos, a seleção exclusiva de fatos favoráveis ao seu ponto de vista, a criação de “inimigos”, o apelo à autoridade e a afirmação e repetição, conforme Silva et al. (2011). Assim, “este discurso, além de expressar, procura aumentar a discriminação.” (SILVA et al., 2011, p. 448).
Como será visto, seus efeitos, na maioria dos casos, prolongam-se para além do ambiente virtual e afrontam diretamente a vida, a dignidade das pessoas vítimas desse discurso. Nesse ponto, destaca-se que a análise desta pesquisa parte do cancelamento nas redes sociais e dos seus efeitos para fora delas, na vida privada dos usuários algo do cancelamento.
Os impactos desse fenômeno na sociedade são diversos, como o julgamento precipitado sem o direito de resposta devido à dinâmica e rapidez das redes sociais, o medo de se expressar e a censura prévia velada nas redes, o estreitamento constante dos limites do que pode ser dito sem ameaças de represália, a diminuição da liberdade, da diversidade de opiniões e pensamentos nas redes, a anulação das opiniões contra majoritárias, a falta de debate aprofundado e técnico, a fragmentação política da sociedade e o ostracismo. É o que se visualiza no exemplo de cancelamento citado por Silva e Honda (2020, online):
Um dos exemplos recentes da cultura do cancelamento nas redes sociais foi ocorrido com uma digital influencer do mundo fitness que, durante a pandemia e o isolamento social, meses após ser diagnosticada e "se curar" do coronavírus, reuniu alguns amigos em sua casa, fazendo publicações da "festinha". A anfitriã foi imediatamente cancelada nas redes sociais, com a consequente perda de diversas parcerias e rescisão de contratos. E apesar do pedido de desculpas e reconhecimento do erro, o cancelamento se manteve, beirando o linchamento virtual e fazendo com que ela desativasse seu perfil em uma de suas redes sociais.
Nesse contexto, observa-se que o "Tribunal da Internet" não realiza seus julgamentos com igualdade ou proporcionalidade. Primeiro, porque deixa-se de discutir ideias e passa-se a discutir pessoas ou empresas. Segundo, porque poucos preferem ouvir, entender e formar uma opinião antes de atacar. Terceiro, porque outras pessoas ou empresas envolvidas em situações análogas, por exemplo, não sofrem sanções na mesma intensidade que as "canceladas". Quarto, porque, no mundo virtual, é muito tênue a linha entre a crítica construtiva e o ataque revestido de ofensas.
Constata-se, assim, que o discurso positivo de crítica social para proteção de direitos de grupos vulneráveis que motivou as primeiras práticas de cancelamento foi invertido a um aspecto negativo (tema de análise deste artigo), que é marcado pelo discurso do ódio, de não aceitação do outro enquanto sujeito de direito e, até mesmo, pela prática de crimes.
É necessário ressaltar, porém, que discordar não é, necessariamente, cancelar. E a discordância é essencial. Em um Estado Democrático de Direito, é imprescindível o enfrentamento de opiniões divergentes, ainda mais de opiniões que se posicionam contrariamente à ampliação de direitos e à abertura de espaços sociais e institucionais às minorias. Nesse sentido, seria válido o ato de “cancelar”, no sentido de não as aceitar e movimentar as redes para conscientizar os sujeitos.5
Porém, essa conduta pode ser direcionada àqueles que se posicionam de forma divergente ao pensamento tradicional, que cometem algum erro ou, até mesmo, aos próprios grupos vulneráveis e minorias que carecem de proteção e ainda sofrem discriminação. Opõe-se ao cancelamento, nesses casos, e aos atos que são executados, pois
[...] além do mero “cancelamento”, os ataques virtuais tornam-se massificados e, por muitas vezes, extrapolam os limites da livre manifestação de pensamento de modo a ensejar, de fato, o linchamento virtual que, mesmo revestido de boa intenção, pode provocar uma propagação de discurso de ódio e ainda, incorrer em crimes como injúria e difamação. Em situações como esta, o “cancelado” [...] não encontra formas de se justificar sobre o ocorrido em tempo de reparar sua imagem [...] A cultura do cancelamento, portanto, que teve origem em um movimento que promovia denúncia e discussão de temas relevantes, hoje em dia acaba acarretando o descarte do debate saudável, impondo, de forma imediata, a sanção ao agente. E ainda que tal movimento tenha maior relevância quando nos referimos a pessoas ou empresas de notoriedade pública, é certo que atinge pessoas anônimas que, a partir de eventual erro ou conduta reprovável, podem ser igualmente "canceladas" por um grupo de amigos, colegas de trabalho, etc. (SILVA; HONDA, 2020, online).
Camilloto e Urashima (2020, p. 4-5) ressaltam que devem ser definidos limites, no debate público, do que pode ser dito sem ameaças de represália, pois não é qualquer discurso crítico que pode ser considerado ilegítimo, sob pena de se inviabilizar a crítica, a evolução social e o pluralismo democrático. Assim, sendo limites para quando se está falando de simples resultado do exercício da liberdade versus represália e cancelamento social que acarreta a violação de direitos.
Os mesmos autores defendem que o cancelamento pode ser considerado uma prática argumentativa quando os envolvidos estabelecem um diálogo racional e afirmam que “É preciso defender argumentativamente aquilo que se pressupõe quando se cancela” (CAMILLOTO; URASHIMA, 2020, p. 20)6. Porém, entende-se que não é possível fazer essa associação entre diálogo racional e cancelamento. A natureza do cancelamento é a exclusão, em outras palavras, a desincorporação, a dessocialização de pessoas, a ausência de diálogo e o linchamento virtual, que tem por consequência inevitável a violação de direitos, fatores que se incompatibilizam com o diálogo racional. Ademais, um diálogo racional significa a existência de posições que, embora contrárias, são racionalmente defendidas, sem atos de boicote virtual, represálias, invasão e condenação de sujeitos e/ou grupos, enfim, todas as demais práticas que são marcadamente atributos da cultura do cancelamento nas redes.
Como visto no tópico anterior, a partir das preferências de conteúdo que consome, e os dados pessoais disponibilizados nas redes, o usuário é apresentado a informações e conteúdos que lhe são convenientes, formando uma bolha social virtual e uma câmara de eco. Esse sujeito passa a ter o contato, apenas, com outros usuários que se interessam pelo mesmo conteúdo, que compartilham das mesmas ideias, dando-lhe a falsa sensação de confirmação de que todos os demais usuários nas redes pensam como ele.
Assim, os discursos polarizadores de ódio, discriminação e de cancelamento tendem a ser mais amplificados, e os efeitos são mais prejudiciais. Então, o grupo “cancelador”, incentivado por sua própria bolha virtual, estigmatiza outros sujeitos, pois assume falsamente, que seus pareceres são universais.
É o exemplo de Emmanuel Cafferty, um trabalhador de San Diego, na Califórnia, nos Estados Unidos, que, na volta para casa após o trabalho, com o braço para fora da caminhonete da empresa, estalava as juntas dos dedos da mão esquerda, o que parecia estar gesticulando o símbolo “OK”, uma alusão ao nazismo. Ao parar em um semáforo, um homem no carro ao lado, tirou uma foto da cena e divulgou em suas redes sociais. A imagem foi interpretada como aceno utilizado por supremacistas brancos e recebeu enorme repercussão nas redes. Cafferty estava sendo “cancelado” e denunciado por racismo nas redes. Horas depois, recebeu uma ligação de seu supervisor que o contou o ocorrido e foi suspenso do trabalho. Poucos dias depois, Cafferty foi demitido (SANCHES, 2020, online).
Tendo em vista que o livre intercâmbio de informação e ideias é a força vital de uma sociedade liberal-democrática, pode-se afirmar que todos os fenômenos gerados por essa prática são diametralmente contrários à democracia. Assim, é possível afirmar que a cultura do cancelamento é antidemocrática e representa um risco à atual sociedade.
Além de risco social, o fenômeno do cancelamento, como será visto, coloca em risco direitos personalíssimos e fundamentais dos sujeitos usuários nas redes sociais. Assim, no próximo tópico, será analisado mais especificamente os riscos, as ameaças e as violações que o cancelamento causa aos direitos de personalidade e à liberdade humana.
Como mencionado no tópico anterior, o ato de “cancelar” alguém nas redes possui repercussões que vão além do ambiente virtual, pois é alimentada uma mobilização de pressão para que os “infratores” sejam responsabilizados também na vida offline.
Explicam Silva e Honda (2020) que o cancelamento costuma ter efeitos imediatos, pois o linchamento tem início tão logo o erro ou conduta tidos como reprováveis são notados e expostos nas redes. Logo, as consequências para a vida civil dos infratores, devido ao rápido compartilhamento de conteúdo e à dinamicidade da internet, ocorre de forma acelerada.
Diversos são os efeitos dessa prática na vida dos usuários cancelados, efeitos estes que representam riscos e podem violar os direitos de personalidade, como a privacidade, a honra, a intimidade, a integridade (física e psíquica) que devido aos ataques e boicotes pessoais, podem ser desrespeitados.
Sabe-se que os direitos de personalidade visam a proteger os “[...] bens constituídos por determinados atributos ou qualidades, físicas ou morais, do homem, individualizado pelo ordenamento jurídico.” (SZANIAWSKI, 2005, p. 87). Segundo Borges (2007, p. 20), o objeto desses direitos são as “[...] projeções físicas ou psíquicas da pessoa, ou as suas características mais importantes”. A autora afirma que: “[...] por meio dos direitos da personalidade se protegem a essência da pessoa e suas principais características. Os objetos dos direitos de personalidade são os bens e valores considerados essenciais para o ser humano” (BORGES, 2007, p. 20).
Sobre os riscos aos direitos de personalidade na prática do cancelamento, constata-se o descrito por Silva e Honda (2020, online):
Nota-se que, a partir da constatação de erro ou conduta reprovável por um grupo de pessoas, cria-se um movimento na rede social de exposição para que, não somente os usuários deixem de "seguir" a pessoa ou de comprar determinada marca, por exemplo, mas também para que parem de dar visibilidade ao trabalho de alguém ou determinada empresa. Por meio da onda de ataques aos perfis em redes sociais, os efeitos são sentidos em todos os aspectos: na vida pessoal de pessoas físicas que perdem trabalhos, contratos, patrocínios e até desenvolvem problemas psicoemocionais, bem como na atividade de empresas que deixam de realizar vendas, atender clientes, etc.
Verifica-se que, dessa descrição, o cancelamento pode ocasionar a violação a direitos de personalidade, pois há casos em que as críticas veiculadas nas redes alcançam a vida offline dos sujeitos, atingindo sua vida privada, sua integridade psíquica, sua imagem e honra. Porém, os riscos não se restringem a esses direitos e podem estender-se a outras áreas, como as relações interpessoais e até de trabalho, como o ocorrido com Emmanuel Cafferty que foi demitido de seu emprego devido à repercussão negativa de sua imagem divulgada nas redes e a má reputação que lhe foi atribuída (de racista), ofendendo sua honra, sua imagem e privacidade. Além disso, informações e fatos da vida privada das vítimas podem vir a ser divulgadas nas redes, sem o consentimento do indivíduo ou direito de resposta.
Além do direito à privacidade, o direito à integridade psíquica também pode ser comprometido e violado na prática do cancelamento. Os ataques virtuais, devido aos fatores apresentados no primeiro tópico, tendem a ser massificados e extrapolarem os limites da liberdade de expressão (aspecto que será abordado à frente), podendo provocar a propagação de discursos de repulsa, o que pode abalar a psiquê dos sujeitos alvos da prática, causando-lhes danos morais em virtude do sofrimento vivenciado.
Sobre o julgamento público da presumida transgressão objeto de cancelamento, para Freitas (2017, p. 157), “segue-se uma avalanche de novas publicações que reforçam, reiteram, complementam a primeira e podem culminar em ameaças, insultos e exposição de privacidade”. A autora assevera algumas das possíveis consequências desses atos, como “ostracismo social, demissão, depressão, dentre outras”.
Ademais, o cancelamento poderá ofender a honra subjetiva e objetiva da vítima, sendo possível a responsabilização civil mediante indenização por danos e retratação pública, desde que comprovado o nexo de causalidade entre o dano e a ofensa perpetrada.7 Além disso, há casos em que a ofensa supera a seara cível, adentrando-se na prática dos crimes contra a honra tipificados nos artigos 138 (calúnia), 139 (injúria) e 140 (difamação) do Código Penal brasileiro (BRASIL, 1940). Esses crimes podem vir a ser praticados no ambiente virtual, já que se tratam de ofensas aos atributos morais, intelectuais e físicos das vítimas, que, muitas vezes, são os focos dos insultos direcionados pelo cancelamento virtual.
Portanto, quando há o ato de imputar a alguém a prática de um crime por meio de posts em rede social, havendo uma replicação na internet, e outros usuários compartilham o conteúdo conscientes da falsidade da informação, todos poderão ser considerados coautores da calúnia. Já a difamação consiste em imputar a alguém um fato ofensivo à sua reputação, ainda que o fato seja verídico, e ofende a honra objetiva.
A injúria ocorre quando uma pessoa dirige a outra algo visto como desonroso, que ofende a sua dignidade, e ofende a honra subjetiva, por isso, não é necessário que terceiros tomem conhecimento do fato para que o crime tenha sido praticado (BRASIL, 1940).
Em última análise, os discursos de ódio, aqui representados como o linchamento virtual decorrente do cancelamento, como consequência da prática de crimes contra a honra e a violação a direitos de personalidade como a honra, vida privada e integridade, ferem a dignidade da pessoa humana, elemento fundamental do indivíduo coletivamente considerado, e protegida pelo art. 1º da Constituição vigente de 1988 (SILVA et al., 2011; SOUZA; FACHIN, 2019; SARLET, 2015).8
Kant (2013), ao tratar da dignidade humana, concebe que o ser humano é dotado de valor e não de preço. O que tem preço poderia ser substituído, enquanto aquilo que é superior a qualquer preço, insubstituível, possui dignidade. A pessoa humana, dotada de valor inerente, possui em si mesma, dignidade pelo simples fato de ser pessoa, merecendo, portanto, honra e estima e não podendo sofrer violações a essa dignidade. Segundo Sarlet, para Kant, toda pessoa deve ser considerada como fim em si mesma, não meramente como meio de modo que nenhum ser humano pode ser coisificado ou instrumentalizado (SARLET, 2002, p. 35; 2015, p. 255-256). O princípio da dignidade humana significa a proibição de instrumentalizar a pessoa humana como um objeto, logo, o direito à dignidade humana exige dos destinatários o reconhecimento intersubjetivo como pessoa em termos de reciprocidade de uns cidadãos com os outros.
O dever de respeito ao próximo “está contido na máxima de não degradar qualquer outro ser humano, reduzindo-o a um mero meio para os meus fins (não exigir que outrem descarte a si mesmo para escravizar-se a favor do meu fim)” (SARLET, 2007. p. 371).9 A dignidade humana, sob essa perspectiva, deve ser considerada na relação com outras pessoas, pois gera uma obrigação geral de respeito ao outro10, “[...] retratado num conjunto de direitos e deveres que correspondem à concepção aberta, complexa e heterogênea dos direitos e deveres fundamentais da pessoa humana na sociedade e no Estado contemporâneo [...].” (SARLET, 2007, p. 371).
Nesse sentido, questiona-se se a cultura do cancelamento não significaria exatamente converter as pessoas canceladas em “meios” e “instrumentos”, nas redes, em campanhas desencadeadas para promoção do respeito aos direitos dos outros e linchamento virtual? Entende-se, então, que a dignidade humana, também, é violada por esta prática.
Um ponto relevante a ser analisado é a relação do cancelamento com o direito à liberdade. A ideia da liberdade deve ter primazia no Estado Democrático de Direito, segundo a determinação do art. 5º da Constituição Federal de 1988 (CASTRO; NASCIMENTO, 2019, p. 7). A concepção de liberdade manifesta-se em outros direitos como a liberdade de expressão, de pensamento e de opinião, previstos no art. 5º, incisos IV, IX e XIV, e art. 220 do texto constitucional (BRASIL, 1988). É por meio da livre expressão de ideias, pensamentos que o debate público e democrático pode ocorrer, inclusive nas redes sociais. Desse modo, “a liberdade é condição de possibilidade do pluralismo nas sociedades contemporâneas” (CAMILLOTO, 2019, s. p.).
Os “canceladores” propagam discursos de ódio contra pessoas ou sujeitos (os “cancelados”) e se amparam na liberdade, para, justamente, ceifar a liberdade desses grupos, sob o argumento de que sem liberdade de expressão não há democracia. Nesse ponto, vale o questionamento: o cancelamento pode ser considerado uma forma de exercício da liberdade de expressão? Como tal conduta “sinaliza a possibilidade de um grupo de indivíduos se manifestar na esfera pública, produzindo fluxos comunicacionais capazes de influenciar a cultura política” (CAMILLOTO; URASHIMA, 2020, p. 18) e por isso, estaria contido na concepção de cidadania democrática. Em outras palavras, é possível afirmar que o ato de cancelar é um reflexo do exercício da cidadania e liberdade em uma sociedade democrática?
Para responder a esses questionamentos é necessário retornar à análise de como esse fenômeno se manifesta nas redes. Como visto, a conduta de cancelamento é marcada pelo linchamento virtual11, pelo silenciamento de pessoas e/ou grupos, pela invasão e condenação nos perfis do sujeito “cancelado”, pela condenação sem um devido processo legal e sem julgamento formal, pela ausência do direito de resposta, pela devastação pública do discurso e pelo preconceito12. Entende-se que não é possível conceber que tais condutas sejam justificadas por uma concepção de cidadania democrática, de justiça social e de uso moral das redes sociais.
A partir dessas considerações, entende-se não ser possível, no atual Estado Democrático de Direito, regido pela dignidade humana, cujos objetivos fundamentais são a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, aceitar condutas que violem os direitos fundamentais, sem qualquer proporcionalidade, nem mesmo que esses atos sejam considerados válidos e aceitos como exercício democrático de cidadania e de liberdade de expressão.13 Até porque a ideia de cidadania se conecta com a de dignidade humana no sentido de que “a cidadania é um requisito essencial para a efetivação do direito a uma vida digna e deve ser vista como um direito fundamental do ser humano para vida em sociedade, como instrumento de efetivação da democracia.” (SIQUEIRA, 2009, p. 10). Logo, não será toda e qualquer conduta considerada como expressão de cidadania. Qualquer atitude que reverbere na vivência com outros indivíduos na sociedade deverá levar em conta o respeito aos demais direitos fundamentais e à dignidade humana em sua dimensão relacional.
Sobre a associação entre a liberdade de expressão e a ideia de democracia, Alexandre de Moraes descreve questão relevante a essa análise:
A liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e compreende não somente a informações consideradas como inofensivas, indiferentes ou favoráveis, mas também aquelas que possam causar transtornos, resistência, inquietar pessoas, pois a democracia somente existe a partir da consagração do pluralismo de ideia e pensamento, da tolerância de opiniões e do espírito aberto ao diálogo (MORAES, 2006, p. 113).
Em assim sendo, cabe ao Direito o papel de manter a ordem de equilíbrio entre as liberdades coexistentes. Desse modo, cabe à ordem jurídica, e não às redes sociais, o papel de “ordenar, de forma equilibrada, a tutela da liberdade de expressão e comunicação e a proteção dos cidadãos contra violações de seus direitos fundamentais causadas por essa liberdade”, especialmente nos casos em que essas violações ocorrem por intermédio de veículos de comunicação em massa, tal como as redes sociais (FARIAS, 2004, p. 18).
Bobbio (1997, p. 49-51) elucida a noção de liberdade a partir de duas concepções: liberdade negativa e liberdade positiva. A liberdade negativa, também chamada de ausência de impedimento ou constrangimento, significa a possibilidade de o sujeito agir sem ser impedido ou de não agir sem ser obrigado, por outros sujeitos. Em sentido jurídico, “consiste em fazer (ou não fazer) tudo o que as leis, [...] permitem ou não proíbem.” Assim, considera-se que desfruta da liberdade negativa aquele que pode expressar suas próprias opiniões sem incorrer em censura, sem ser impedido. Já a liberdade positiva, chamada de autodeterminação ou autonomia14, corresponde à “possibilidade de orientar seu próprio querer no sentido de uma finalidade, de tomar decisões, sem ser determinado pelo querer dos outros.”
Sob essa perspectiva, o cancelamento também representa uma violação à liberdade negativa, pois impossibilita que o sujeito “cancelado” se expresse nas redes, sem ser impedido por outros, e os “canceladores” o constrangem. Além disso, viola a liberdade positiva, pois impede o exercício da autonomia dos “cancelados”, de orientar suas concepções políticas e sociais, sem ser retaliado pelos demais.
Cabe ao Poder Público a criação de mecanismos e procedimentos ao exercício das liberdades públicas, como a proibição ao discurso de ódio e a definição de limites às liberdades, inclusive no ambiente virtual (SILVA; 2009, p. 79; NAPOLITANO; STROPPA, 2017, p. 319).
Nesse contexto, destaca-se o papel do Poder Judiciário que, lançando mão da ponderação, poderá restringir o direito à liberdade de expressão, não de forma arbitrária. O julgador deverá considerar as condições fáticas e jurídicas, por meio da técnica de ponderação, e atribuir relevância à liberdade de expressão e à dignidade humana dos envolvidos, limitando ou não os direitos fundamentais (DANTAS; GONÇALVES, 2016, p. 99), pois, nesse caso, a liberdade de expressão estaria contrapondo-se a um interesse de maior valor: a dignidade humana. Nesse sentido:
Obviamente que, assim como os demais direitos fundamentais, o exercício da liberdade de expressão não é absoluto, sofrendo restrições perante a análise de compatibilidade e razoabilidade com o conjunto das previsões constitucionais, entre elas a proibição ao racismo e a qualquer forma de preconceito, a proteção à criança e ao adolescente, além da possibilidade de indenização por danos morais e à imagem, consagrando ao ofendido a total reparabilidade em virtude de prejuízos sofridos (MORAES, 2010, online).
Verifica-se, então, que nenhum direito é absoluto, e a Constituição Federal de 1988 garante a proteção de todos os direitos fundamentais de forma ampla, devendo cada caso ser considerado individualmente. Além disso, nos casos em que a discussão adentrar ao Judiciário, este deverá conduzir com proporcionalidade e aferir em que situações os usuários na rede possuem ou não a liberdade irrestrita nas redes sociais, sem, conduto, ocasionar a censura, porém preservando, naquela situação fática, outros direitos fundamentais de maior interesse (DANTAS; GONÇALVES, 2016, p. 111).
Ressalta-se que a atuação judicial sobre os limites da liberdade de expressão deve seguir algum método sofisticado de solução de conflitos de direitos fundamentais, por exemplo, a ponderação a partir do caso concreto, conforme prescrito pelo Supremo
Tribunal Federal e pela doutrina (HARTMANN, 2020).15
Além de limites à liberdade, devem ser estabelecidos limites ao uso da internet. Nesse sentido, o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) estabelece, no art. 2º, caput, que “a disciplina no uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão”. A lei também determina as regras em que essa liberdade pode ser limitada: em respeito aos “direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais”. Assim, a liberdade de expressão, offline e online, está sujeita a restrições para a garantia de demais direitos fundamentais de terceiros. (BRASIL, 2014).
Desse modo, pode-se afirmar que os discursos de cancelamento não são manifestações da cidadania democrática e exercício da liberdade de expressão, pois violam direitos fundamentais de terceiros, e que existem limites (como o respeito aos direitos humanos, o livre desenvolvimento e exercício dos direitos de personalidade, o exercício da cidadania digital, dentre outros) estabelecidos ao exercício da liberdade de expressão, tanto por aqueles que praticam um contrário às normas sociais, ou reprovável (e que realmente o seja, pois viola a direitos fundamentais de grupos vulneráveis e minorias), quanto aos próprios canceladores que, incentivados pelas bolhas sociais e câmaras de eco, “ganham força” nas redes para o linchamento virtual de pessoas que se manifestam nas redes.
Como visto, a cultura do cancelamento é uma prática que se manifesta na intolerância a visões opostas, que é amplificada pelas bolhas sociais virtuais e pelas câmaras de eco. O cancelamento atinge tanto a vida online quanto a vida offline de seus alvos. Desse modo, conclui-se que discurso de cancelamento representa riscos, viola os direitos de personalidade e a dignidade da pessoa humana e rompe a noção de liberdade.
As premissas democráticas exigem um ideal de tolerância entre particulares enquanto participantes do debate público. Nesse sentido, questiona-se se é possível ser tolerante com o intolerante? Entende-se que, se há violação a direitos fundamentais, como direito de personalidade, não é possível tolerar os discursos de cancelamento, pois estão em direção contrária à liberdade de expressão e, em última análise, violam a dignidade humana.
A partir dessa perspectiva, o Direito tem sido constantemente desafiado pelas interações ocorridas no ambiente virtual, especialmente quando se trata de conteúdos destinados à propagação de ódio. No atual cenário, faz-se imprescindível assegurar fiscalização e punição aos grupos que se utilizem de discursos de ódio, por meio das redes sociais e outras tecnologias, de maneira ilegal, para ofender direitos de personalidade, como a privacidade, intimidade, honra, integridade, imagem e autonomia, dentre outros. Deve-se ressaltar que não se defende o retrocesso das tecnologias. Em verdade, acredita-se que o avanço tecnológico é imprescindível para a evolução da sociedade. Contudo, o desenvolvimento e o uso dessa tecnologia devem ser equilibrados, a fim de assegurar a proteção da liberdade, soberania humana, autonomia psíquica, e a tutela dos direitos de personalidade, bem como a proteção à ordem democrática.
Entende-se, nesse primeiro momento, que, em uma sociedade democrática, não há lugar para discordâncias que possam configurar algum grau de intolerância, isto é, quando a conduta intolerante for a violação a direitos de personalidade, a direitos fundamentais e à dignidade humana. Assim, não se nega a necessidade de construção de narrativas críticas, nem se busca impedir a construção de debates sobre mecanismos para promover inclusão e igualdade de grupos específicos. Ao contrário, tais debates são necessários e, por isso, devem ser racionais, democráticos e respeitar os direitos fundamentais como a liberdade e os direitos de personalidade dos cidadãos. O que se problematiza e se entende como incompatíveis ao Estado Democrático são as práticas de linchamento virtual, intolerantes, que personalizam a discussão, tornam o debate irracional, atingem a pessoa em si e geram repercussões negativas que superam a vida online e atingem a vida privada dos indivíduos, o desenvolvimento da personalidade e a dignidade da pessoa humana.
Logo, não se deve perder de vista o foco na luta para mitigar os efeitos que a cultura do cancelamento veio combater, em seu início: o apagamento histórico das vozes marginalizadas, as altas taxas de feminicídio, os assassinatos de pessoas LGBT+, o racismo, o encarceramento em massa, a seletividade do sistema de justiça criminal, a disparidades de acesso à saúde, à educação e ao trabalho e temas relacionados a esse contexto. A luta pela efetivação dos direitos fundamentais e direitos de personalidade de grupos vulneráveis, deverá ser prioridade nos discursos políticos e das redes, porém, sem a prática de atos de cancelamento de nenhuma natureza e por nenhum dos grupos.
Infere-se que o caminho é a criação de políticas públicas de educação para a cidadania digital e tolerância, que estimulem a pluralidade e a liberdade de expressão, sem a violação a direitos fundamentais e desestimulem os discursos vazios de grupos (canceladores) que, na superfície, defendem a pluralidade e diversidade de pontos de vista na esfera pública, contudo não promovem, efetivamente, a ampliação do círculo de indivíduos com direito à voz no seio da sociedade e acabam por violar direitos fundamentais outros grupos, que são cancelados. Para tais casos, entende-se que a atuação judicial deverá seguir algum método de solução de conflitos fundamentais, como a proporcionalidade, razoabilidade ou ponderação a partir do caso concreto.
Quanto à contribuição dos autores, informamos que os autores, em conjunto, delimitaram o tema e definiram i problema de pesquisa e objetivos. A autora AESFV escreveu o artigo a partir das bibliografias coletadas e realizou a formatação nas normas da Revista Opinião Jurídica. O autor DPS, orientador, conduziu a metodologia e realizou a revisão final e acréscimos ao texto.