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DESENVOLVIMENTO ORIENTADO POR MISSÕES SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA BRASILEIRA
MISSION-ORIENTED DEVELOPMENT FROM THE PERSPECTIVE OF THE BRAZILIAN ECONOMIC CONSTITUTION
DESARROLLO ORIENTADO A LA MISIÓN DESDE LA PERSPECTIVA DE LA CONSTITUCIÓN ECONÓMICA BRASILEÑA
DESENVOLVIMENTO ORIENTADO POR MISSÕES SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA BRASILEIRA
Revista Opinião Jurídica, vol. 21, núm. 36, pp. 32-54, 2023
Centro Universitário Christus
Recepção: 03 Novembro 2021
Aprovação: 28 Julho 2022
RESUMO
Objetivo: O artigo procura identificar quais seriam os pressupostos institucionais para a construção de um novo modelo de desenvolvimento que seja compatível com o discurso normativo da Constituição Econômica à luz de sua ideologia constitucionalmente adotada.
Metodologia: A pesquisa, de natureza documental, seguiu o método analítico substancial a partir do referencial teórico da “ideologia constitucionalmente adotada”, desenvolvida pelo pioneiro do Direito Econômico brasileiro, Professor Washington Peluso Albino de Souza.
Resultados: Conclui-se pela possibilidade de compatibilizar o modelo neoestruturalista das missões aos ditames da Constituição Econômica brasileira, dentro de um projeto novo-desenvolvimentista, considerando a pluralidade ideológica do texto constitucional e as alternativas para o desenvolvimento nacional.
Contribuições: O modelo neoestruturalista orientado por missões apresenta-se como uma efetiva alternativa ao modelo neoliberal de austeridade para o desenvolvimento nacional, com foco na distribuição de renda e nos investimentos sociais, de forma a melhorar a vida da população brasileira, sendo totalmente compatível com os ditames constitucionais de planejamento, desenvolvimento, pluralismo produtivo e universalização da dignidade humana.
Palavras-chave: Constituição econômica+ desenvolvimento+ neoestruturalismo das missões.
ABSTRACT
Objective: The article seeks to identify what would be the institutional assumptions for the construction of a new development model that is compatible with the normative discourse of the Economic Constitution considering its constitutionally adopted ideology.
Methodology: The documentary research followed the substantial analytical method based on the theoretical framework of the "constitutionally adopted ideology", developed by the pioneer of Brazilian Economic Law, Professor Washington Peluso Albino de Souza.
Results: It is concluded that the neostructuralist model of missions can be reconciled with the dictates of the Brazilian Economic Constitution, within a new developmental project, considering the ideological plurality of the constitutional text and the alternatives for national development.
Contributions: The mission-oriented neostructuralist model presents itself as an effective alternative to the neoliberal austerity model for national development, with a focus on income distribution and social investments, in order to improve the lives of the Brazilian population, being fully compatible with the constitutional dictates of planning, development, productive pluralism and the universalization of human dignity.
Keywords: Economic constitution, development, mission neostructuralism.
RESUMEN
Objetivo: El artículo busca identificar los presupuestos institucionales para la construcción de un nuevo modelo de desarrollo compatible con el discurso normativo de la Constitución Económica a la luz de su ideología constitucionalmente adoptada.
Metodología: La investigación, de carácter documental, siguió el método analítico sustancial basado en el marco teórico de la “ideología constitucionalmente adoptada”, desarrollado por el pionero del Derecho Económico brasileño, el profesor Washington Peluso Albino de Souza.
Resultados: Se concluye que el modelo neoestructuralista de misiones puede conciliarse con los dictados de la Constitución Económica Brasileña, dentro de un nuevo proyecto de desarrollo, considerando la pluralidad ideológica del texto constitucional y las alternativas de desarrollo nacional.
Aportes: El modelo neoestructuralista orientado a la misión se presenta como una alternativa efectiva al modelo de austeridad neoliberal para el desarrollo nacional, con un enfoque en la distribución del ingreso y las inversiones sociales, con el fin de mejorar la vida de la población brasileña, siendo plenamente compatible con el marco constitucional. dictados de planificación, desarrollo, pluralismo productivo y universalización de la dignidad humana.
Palabras clave: Constitución económica, desarrollo, neoestructuralismo de misiones.
1 INTRODUÇÃO
A crise econômico-social associada à pandemia da Covid-19 não deve ser analisada de forma isolada e vinculada apenas às medidas restritivas adotadas pelos governos federal, estadual e municipal, no Brasil, nos anos de 2020 e 2021. Ela foi agravada pela adoção de medidas de política econômica anteriores de forte viés ideológico neoliberal, que procuraram “reduzir” acentuadamente o papel do Estado na economia. Tais medidas se aprofundaram a partir dos anos 1990, sob os preceitos do Consenso de Washington, por meio de uma estreita coalizão neoliberal formada especialmente por rentistas, que determinaram a mudança institucional para o Estado regulador. Assim, foi interrompida a “bonança” decorrente dos exuberantes “anos dourados do capitalismo” (compreendido entre o pós-Segunda Guerra e o final dos anos 1970), coincidente com o período desenvolvimentista, com forte participação do Estado na economia, por meio da ação do “Estado keynesiano do bem-estar”, atuando como planejador ou mesmo produtor direto de bens e serviços.
Ocorre que o modelo neoliberal de regulação, implementado, no Brasil, nas últimas décadas e substancialmente transformado no modelo neoliberal de austeridade, a partir da segunda metade da década de 2010, resultou em décadas de crescimento econômico medíocre, forte agravamento da desigualdade econômico-social e foi incapaz de apresentar soluções concretas para os problemas decorrentes da pandemia da Covid-19 e para o dilemas estruturais do Brasil. Constata-se, nesses momentos de tensão, que o mercado não apresenta soluções para crises, não conduz a um desenvolvimento sustentável e necessita do apoio, da ação e da direção do Estado. A famosa “mão-invisível”, se existente, não é mais aclamada pelos agentes econômicos privados. Portanto, é imperativo que a academia busque alternativas para uma reconstrução nacional conjugada com o novo projeto de desenvolvimento nacional, a partir da participação estatal e do planejamento, de forma a permitir um modelo equilibrado, em que o desenvolvimento não corresponda a um mero crescimento modernizante, atendendo logicamente aos comandos constitucionais de erradicação da pobreza e à redução das desigualdades sociais e regionais.
Busca-se, com a pesquisa, responder às seguintes questões: quais são os pressupostos institucionais para a construção de um novo modelo de desenvolvimento? Em que medida é possível construir um novo modelo de desenvolvimento que seja compatível com o discurso normativo da Constituição Econômica à luz de sua ideologia constitucionalmente adotada?
Para tanto, analisa-se o modelo de desenvolvimento orientado por missões, ideia discutida internacionalmente, entre outros autores, pela economista italiana Mariana Mazzucato, Professora de Economia da Inovação na University College London, no Reino Unido, e, no Brasil, por pesquisadores, como os economistas Pedro Rossi e Ester Dweck, que propõem uma nova forma de orientação das políticas públicas voltadas para a resolução de problemas da sociedade brasileira, por meio da transformação das estruturas produtivas a partir de “missões” socioeconômicas previamente definidas. Trata-se de uma proposta de análise do tema do desenvolvimento e das políticas públicas desenvolvimentistas, com forte viés social, sob a ótica da Constituição Econômica, em uma perspectiva de alternativa ao modelo neoliberal de austeridade implementado no Brasil, na segunda metade da última década, sobretudo com Emenda Constitucional n. 95/2016.
Para atingir seu objetivo, o presente trabalho desenvolve-se em três partes, além desta introdução e das considerações finais. Inicialmente, apresenta-se a metodologia adotada a partir dos ensinamentos do Prof. Washington Peluso Albino de Souza para efetuarmos a análise jurídica dos fatos econômicos, considerando a “ideologia constitucionalmente adotada” da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988; na sequência, extrai-se o conceito de desenvolvimento e sua adequação ao texto e ao conteúdo de nossa Constituição Econômica; no último tópico, apresenta-se o modelo neoestruturalista de desenvolvimento orientado por missões e avalia-se a adequação do modelo dentro de um projeto novo-desenvolvimentista. Dessa forma, mostra-se compatibilizar o modelo neoestruturalista das missões aos ditames da Constituição Econômica brasileira, considerando a pluralidade ideológica do texto constitucional e as alternativas para o desenvolvimento nacional.
A pesquisa, de natureza documental, seguiu o método analítico substancial a partir do referencial teórico da “ideologia constitucionalmente adotada”, desenvolvida pelo pioneiro do Direito Econômico brasileiro, Professor Washington Peluso Albino de Souza.
2 ANÁLISE JURÍDICA DOS FATOS ECONÔMICOS
Os fatos econômicos, que pertencem originalmente ao campo de estudo das Ciências Econômicas, constituem o núcleo da norma de Direito Econômico (SOUZA, 2017, p. 84). Trata-se de fatos decorrentes de escolhas entre os recursos disponíveis para o atendimento das necessidades humanas, com efeitos em outros bens e fatores (externalidades), considerando tanto a produção quanto a circulação de riquezas1. O tratamento jurídico da política econômica é o objeto do ramo do direito denominado Direito Econômico (SOUZA, 2017, p. 23)2. Para a devida regulação e interpretação jurídica dos fatos econômicos, é imprescindível a consideração da realidade econômica e sua estrutura, que possui dinâmica própria e deve ser observada para a compreensão do jurista. Apenas por meio de um método que respeite as particularidades da ciência econômica, bem como a correlação com o sistema político, é possível o diálogo entre tais sistemas sociais e as influências recíprocas, de forma a transformar as estruturas econômico-sociais e atingir os objetivos constitucionais.
Utiliza-se, no artigo, o método analítico substancial, adotado pelo Professor Washington Peluso Albino de Souza, que se apresenta como o método mais adequado para analisar os fatos econômicos dentro de uma perspectiva desenvolvimentista, com o objetivo de transformação social e econômica, e adequada aos preceitos de nossa Constituição Econômica. De acordo com o referido método, a análise inicia-se no fato, a partir de sua observação, considerando seu fundamento econômico, de forma a extrair a explicação do fato sob análise, em um processo indutivo; posteriormente, aplicam-se métodos da ciência política, com o ajustamento do fato econômico à ideologia; por fim, a conclusão jurídica é dada pelo processo dedutivo, com base na elaboração de hipóteses possíveis a partir do fato econômico-político já plenamente identificado, em toda a extensão de suas manifestações. De acordo com o autor, o “conhecimento em Direito Econômico, portanto, está baseado na ‘explicação científica dos fatos’, oferecida pela Economia, porém essa explicação só é buscada para ajustar a realidade social à ordem jurídica” (SOUZA, 2017, p. 85). Acrescente-se ao método a análise histórica, que é imprescindível para a compreensão dos fatos econômicos e para a devida normatização econômica dos fatos3.
Também se destaca o forte caráter ideológico nas normas de Direito Econômico. Todavia, na obra de Washington Peluso Albino de Souza, a categoria “ideologia” possui um sentido muito particular. Tais normas devem respeitar o previsto na Constituição, que contempla a relação entre o Estado e a economia, bem como a direção ao intérprete, ao legislador e aos agentes econômicos (REICH, 1985, p. 61). A partir do tratamento constitucional dos fatos econômicos, sua transformação em instituto jurídico-econômico-constitucional, considerando a ordem econômica como a prescrição de um modelo de conduta na política econômica, sua interpretação deve seguir a “ideologia constitucionalmente adotada” no texto constitucional. Clark, Corrêa e Nascimento, disseminando os ensinamentos do Prof. Washington Peluso Albino de Souza, esclarecem o sentido do termo:
Em termos gerais, “ideologia constitucionalmente adotada” refere-se ao processo jurídico-político de conversão de “ideologias econômicas puras” (capitalismo, nacionalismo, socialismo) em uma ordem juridicamente positivada mesclando-as em um único texto a ser aplicado. Trata-se de um mecanismo de juridificação do discurso ideológico construído, no plano econômico-político, pelo Poder Constituinte (CLARK; CORRÊA; NASCIMENTO, 2013, p. 276).
Para os autores, trata-se de um processo hermenêutico “segundo o qual o intérprete, ao analisar a juridicização da política econômica, deve condicionar-se aos fundamentos normativo-axiológicos positivados na Constituição Econômica” (CLARK; CORRÊA; NASCIMENTO, 2013, p. 269). Representa “um argumento jurídicoconstitucional apto a fundamentar a legitimidade das políticas econômicas” (CLARK; CORRÊA; NASCIMENTO, 2013, p. 277). Portanto, a elaboração de atos normativos e a implementação de políticas econômicas somente são legitimadas se adequadas à “ideologia constitucionalmente adotada”, ou seja, se fundamentadas no conjunto de preceitos positivados na Constituição Econômica, que contêm princípios tanto de viés liberal quanto de viés intervencionista e social, sem a predominância de um ou outro. Para Grau (2008, p. 44), a incompatibilidade entre o modelo econômico determinado pela Constituição de 1988, que definiu um modelo econômico de bem-estar, e os programas de governo diversos, consubstancia situação de inconstitucionalidade. Assim sendo, políticas econômicas neoliberais de austeridade, como as implementadas, no Brasil, na última década4, não possuem amparo em nossa Constituição. Escreveram os professores Giovani Clark, Leonardo Alves Corrêa e Samuel Pontes do Nascimento sobre a faceta atual do neoliberalismo, de austeridade:
A principal característica do neoliberalismo de austeridade é a substituição da soberania popular pela soberania dos mercados, ou seja, uma completa reconfiguração dos fins e objetivos estatais, cujas ações e programas passam a se subordinar explicitamente aos interesses de uma plutocracia financeira internacional. Nessa perspectiva, não há espaço para o antigo paradigma nacional-desenvolvimentista ou o neodesenvolvimentismo, pois ao Estado é atribuída a única função de garantir o processo de acumulação do capital financeiro. [...] Em síntese, o neoliberalismo de austeridade – apesar da rejeição e resistência de algumas nações, como a Noruega – consolida-se, nesta segunda década do século XXI, como o paradigma dominante. De fato, na maioria dos países centrais ou periféricos observa-se o fortalecimento do capitalismo financeirizado de oligopólios. Nessa fase do capitalismo, não prevalece a autorregulação, mas sim a intervenção estatal favorável aos “santificados” mercados, com o enfraquecimento do controle social das políticas públicas. É a sociedade e o Estado trilhando rumo ao anarcocapitalismo, que promove o esfacelamento do Estado de Direito e permite o reinado das grandes corporações (CLARK et al., 2018, p. 319-320).
Tais fundamentos normativo-axiológicos positivados na Constituição Econômica dão a robustez e trazem segurança jurídica à ordem econômica. Ainda que se considere a ideologia constitucionalmente adotada como mais abrangente que o simples texto positivado na Constituição Econômica, considerando a possibilidade de sua mutabilidade hermenêutica, tal abertura para novos significados e sentidos não pode ser compreendida como um fator de mutação de seu núcleo, que resultou no texto escrito. A mutação poderia ocorrer na interpretação dos fatos econômicos, não no núcleo da ideologia constitucionalmente adotada. Dar uma característica fugaz à ideologia adotada levaria à fragilidade deste método de trabalho do Direito Econômico, possibilitaria o boicote à pluralidade conquistada no processo constitucional, que resultou no texto de 1988 e aumentaria a insegurança jurídica na análise dos fatos econômicos. Modificações em seu núcleo demandariam uma refundação do Estado brasileiro, com a elaboração de um novo texto constitucional.
3 O DESENVOLVIMENTO SOB A ÓTICA DA CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA DE 1988
Comemorou-se, no ano de 2020, o centenário de nascimento do Professor Celso Furtado, a maior referência para os estruturalistas brasileiros. Furtado (1998, p. 47) nos ensina que, “quando a capacidade criativa do homem se volta para a descoberta de suas potencialidades, e ele se empenha em enriquecer o universo que o gerou, produz-se o que chamamos desenvolvimento”. O conceito de desenvolvimento, para os estruturalistas, está relacionado à mudança na estrutura produtiva da economia, conjuntamente com as sociais, de forma a tornar tal estrutura mais diversificada, mais complexa, mais intensiva tecnologicamente. Tal mudança, entendida na ideia de dinamismo, em uma perspectiva de desequilíbrio positivo do status quo (SOUZA, 2017, p. 419), é também trabalhada pelos pioneiros do Direito Econômico como conteúdo da norma desta disciplina jurídica.
O desenvolvimento nacional é um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, conforme dispõe o inciso II do art. 3º da Constituição Federal de 1988. Com os incisos III (“erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”) e IV (“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”), são objetivos fundamentais de natureza desenvolvimentista, que orientam a formulação das políticas públicas e geram verdadeiros direitos subjetivos para os cidadãos brasileiros. Também consta do preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 a expressa referência à busca pelo desenvolvimento para instituir (e concretizar) um Estado Democrático de Direito (BRASIL, 1988, online).
Para Grau (2008), o artigo 3º, II, da Constituição Federal de 1988 seria uma norma-objetivo dotada de caráter conformador, que estabelece como objetivo da República Federativa do Brasil garantir o desenvolvimento nacional, determinando as políticas públicas. O autor aponta ainda a unicidade entre os incisos II e III do artigo 3º, ou seja, o desenvolvimento está diretamente relacionado à erradicação da pobreza e à diminuição das desigualdades sociais. Dessa forma, o desenvolvimento pressupõe o atingimento dos demais objetivos constitucionais (erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades), e as políticas públicas desenvolvimentistas devem se pautar não apenas pelo crescimento econômico, mas também pelo crescimento com a redução das desigualdades sociais e regionais. Trata-se de objetivo fundamental da República que ultrapassa as raias do crescimento modernizante. Bercovici (2005, p. 54) leciona que o mero crescimento econômico, sem a transformação estrutural que leva à melhoria das condições de vida da população e à redução das desigualdades sociais, não significa desenvolvimento, mas mera modernização. Para o autor, com fundamento em Celso Furtado, “o conceito de desenvolvimento compreende a ideia de crescimento, superando-a” (BERCOVICI, 2005, p. 54).
Ao definir o desenvolvimento nacional como mudanças produtivas com a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a Constituição fez uma opção político-jurídica da qual os administradores públicos e os intérpretes não podem fugir. Portanto, a execução de políticas públicas desenvolvimentistas é um poder-dever dos entes públicos com vista à transformação estrutural, e não uma mera autorização ou uma opção dos gestores. Não se trata de um mero conceito de desenvolvimento relacionado ao crescimento modernizante, decorrente da simples industrialização, da mera exportação de produtos primários ou da opção pelo mercado. O modelo desenvolvimentista a ser implementado deve levar em consideração o objetivo fundamental determinado pela Constituição, qual seja, a promoção da justiça social e a redução das desigualdades, melhorando a vida das pessoas, ou seja, universalizando a dignidade humana.
O desenvolvimento aparece em diversos outros dispositivos constitucionais, acompanhado de adjetivos, evidenciando sua complexidade: desenvolvimento econômico e social (art. 21, IX; art. 43, § 1º, II; art. 180) socioeconômico (art. 151, I), urbano (art. 21, XX; e art. 182), regional (art. 163, VII) cultural (art. 216, § 3º), científico (art. 218), cultural e socioeconômico (art. 219). Destaca-se que o artigo 219 da Constituição de 1988 eleva o mercado interno a patrimônio nacional, prevê seu incentivo para viabilizar o desenvolvimento nacional, bem como o estímulo à inovação, por meio da implementação de parques e polos tecnológicos, assim como de demais ambientes promotores de inovação. O Prof. Washington Peluso Albino de Souza conceitua, dessa forma, a Constituição Econômica:
A presença de temas econômicos, quer esparsos em artigos isolados por todo o texto das Constituições, quer localizados em um de seus “títulos” ou “capítulos”, vem sendo denominada “Constituição Econômica”. Significa, portanto, que o assunto econômico assume sentido jurídico, ou se “juridiciza”, em grau constitucional. Decorre desse fato a sua institucionalização pela integração na “Ordem Jurídica”, configurando a “Ordem Jurídico-Econômica” (SOUZA, 2017, p. 209).
A Constituição Econômica apresenta, de forma bem clara em seu art. 170, os fundamentos da ordem econômica (valoração do trabalho humano e livre iniciativa), os objetivos (assegurar a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social) e os princípios: (i) soberania nacional; (ii) propriedade privada; (iii) função social da propriedade; (iv) livre concorrência; (v) defesa do consumidor; (vi) defesa do meio ambiente; (vii) redução das desigualdades regionais e sociais; (viii) busca do pleno emprego; (ix) tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte. Verifica-se, portanto, que se trata de princípios de ideologia tanto liberal quanto de viés social, sem a predominância de uma sobre a outra. Destaca-se, também, o pluralismo produtivo (modelo) trazido pela Constituição de 1988, que apresenta outros sistemas que não são considerados pelo mainstream econômico, como o associativismo5 e os sistemas alternativos de vida e produção6 (CLARK; CORRÊA; NASCIMENTO, 2013, p. 289).
Entendemos que, para a evolução do estudo sobre o desenvolvimento, deve-se deixar de lado o clássico preconceito de que o Estado é perdulário e apenas o mercado é empreendedor, em que as inovações sempre partem da iniciativa privada, e o serviço público é ineficiente. Mazzucato (2014), em sua conhecida obra “Estado empreendedor – desmascarando o mito do setor público vs. setor privado”, demonstrou que o Estado não pode ser considerado como um mero facilitador do crescimento econômico, mas sim um parceiro fundamental do setor privado, visto que assume riscos que outros não estariam dispostos a assumir em pesquisas e desenvolvimento, argumento utilizado por John Maynard Keynes, em seu artigo “O fim do laissez-faire” (KEYNES, 1926). Ademais, Mazzucato (2014) aponta a importância e a relevância do Estado na produção da ciência e da tecnologia nas últimas décadas, inclusive no Brasil.
É importante relembrar que a Constituição Econômica também prevê a regulação dos investimentos de capital estrangeiro, a remessa de lucros, o incentivo aos reinvestimentos (art. 172 da CR/1988), além de dispor sobre a exploração direta da atividade econômica pelo Estado “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo” (art. 173, caput, da CR/1988), ou seja, é possível, pela nossa Constituição Econômica, um modelo desenvolvimentista com atuação direta do Estado na economia, e não apenas de forma subsidiária (BERCOVICI, 2015), seja na atuação em área estratégica de interesse coletivo relevante, seja na prestação de serviços públicos (art. 175 da CR/1988), de forma a romper com as nossas estruturas periféricas e neocoloniais. Para tanto, é imprescindível a utilização do instituto do planejamento, disposto no art. 174 da Constituição de 1988, que é determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Trata-se de elemento essencial para o desenvolvimento, com a expressa determinação constitucional de edição de uma lei com as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, bem como para os planos nacionais e regionais de desenvolvimento.
Compete aos formuladores, intérpretes das normas de Direito Econômico e agentes públicos, procurar efetivar os princípios desenvolvimentistas, distributivos e de redução de desigualdades, conforme previstos no artigo 3º da Constituição de 1988, de forma a não permitir que as restrições orçamentárias impostas pelas medidas de austeridade7 e pelos fundamentos de um modelo neoliberal baseado exclusivamente no livre mercado e no fornecimento do capitalismo financeiro bloqueie o desenvolvimento nacional.
A crise fiscal, que justificou a condução das políticas econômicas para medidas de austeridade (AVELÃS NUNES, 2019), foi agravada pela pandemia da Covid-19. O que já era grave piorou, sobretudo no plano sanitário, social e humanitário (SANTOS, 2020). Entretanto, apenas algumas portas de saída ainda podem ser abertas, visto que as outras já se mostraram direcionadas a um beco sem saída. Portanto, cabe à academia apresentar e discutir alternativas desenvolvimentistas sob a ótica da Constituição Econômica.
Ainda que o neoliberal de austeridade tenha se consolidado como o paradigma dominante no Brasil, observam-se movimentos acadêmicos e políticos em sentido oposto, com a apresentação e o debate de novas teorias desenvolvimentistas, que surgem como alternativas a tal modelo de austeridade centrado nas forças dos mercados e na busca do “purismo” dos comandos constitucionais econômicos (LELIS, 2017). Dentre eles, destaca-se o modelo orientado por missões, apresentado por economistas neoestruturalistas, que seguem a clássica formação cepalina (decorrente dos princípios adotados pela CEPAL - Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe).
4 ALTERNATIVAS PARA O DESENVOLVIMENTO: MODELO NEOESTRUTURALISTA ORIENTADO POR MISSÕES
A CEPAL, em comemoração aos seus 70 anos, por meio de seu escritório brasileiro, organizou, no ano de 2018, o seminário “Alternativas para a crise brasileira: aportes de uma nova geração para a mudança estrutural com igualdade”, que posteriormente resultou no livro “Alternativas para o desenvolvimento brasileiro”, coletânea organizada por Marcos Vinicius Chiliatto Leite e publicada pela CEPAL. Os trabalhos trataram do desenvolvimento dentro do conceito neoestruturalista, conjugando o crescimento econômico e as mudanças estruturais para dar a direção do desenvolvimento (DWECK; ROSSI, 2019, p. 98), a partir dos ensinamentos de Celso Furtado:
O que caracteriza o desenvolvimento é o projeto social subjacente. O crescimento econômico, tal qual o conhecemos, funda-se na preservação de privilégios das elites que satisfazem seu afã de modernização. Quando o projeto social dá prioridade à efetiva melhora das condições de vida da maioria da população, o crescimento se metamorfoseia em desenvolvimento. Ora, essa metamorfose não se dá espontaneamente, ela é fruto da realização de um projeto, expressão de uma vontade política (FURTADO, 1984, p. 75).
Dentre as propostas apresentadas pelos “jovens estruturalistas”8, destaca-se a das missões apresentada pelos professores Esther Dweck e Pedro Rossi, que relacionam o desenvolvimento no Brasil com o crescimento e a transformação social9, “com a distribuição de renda e da riqueza, ampliação da oferta pública de bens serviços sociais básicos e a adequação da estrutura produtiva às necessidades econômicas” (DWECK; ROSSI, 2019, p. 98). Para os citados autores, não bastaria o crescimento, sendo necessária também a transformação socioambiental que deve ocorrer concomitantemente com metamorfose da estrutura produtiva brasileira. O modelo de desenvolvimento seria coordenado e parcialmente executado pelo Estado, por meio do Direito Regulamentar Econômico (legislação) e do Direito Institucional Econômico (empresas estatais, por exemplo), atuando sobre os motores que garantiriam o crescimento econômico e o desenvolvimento.
Os autores se basearam em outro estudo elaborado no âmbito do GT de Economia do Projeto Brasil Popular (ROSSI et al., 2018), que contou com a participação de vários pesquisadores10. Para Esther Dweck e Pedro Rossi, o primeiro motor do desenvolvimento é a distribuição de renda, fomentadora do mercado interno de consumo11, impulsionadora da geração de empregos no comércio, induzindo, assim, o investimento privado na ampliação da produção, em um círculo virtuoso de geração de empregos e renda (ROSSI et al., 2018). A distribuição de renda teria um efeito multiplicador, permitindo tanto o crescimento econômico quanto a melhora da qualidade de vida das pessoas.
O exemplo brasileiro dos anos 2000 demonstra o sucesso de tal estratégia, mas também o esgotamento do modelo, que não será sustentável caso não ocorra a modernização da estrutura produtiva com o aumento da produtividade, fato também destacado pelos autores12. Os pesquisadores Dweck e Rossi (2019) propõem também alterar o modelo tributário recessivo de forma a proporcionar efeitos redistributivos e reduzir a desigualdade social. Quanto ao emprego, os citados pesquisadores reconhecem que a qualidade dependeria de uma estrutura produtiva diversificada, que, por sua vez, dependeria da ampliação do grau de complexidade tecnológica. Ainda que o modelo neoestruturalista tenha como eixo principal o mercado interno, eles reconhecem a importância da industrialização de produtos de maior valor adicionado, que contribuem para a construção de cadeias produtivas complexas, de forma a proporcionar o desenvolvimento com igualdade.
O segundo motor do desenvolvimento seria os investimentos sociais, por meio da ampliação de gastos com saúde, educação, lazer, cultura, serviços sociais, além de investimentos em mobilidade urbana, habitação e saneamento básico, ou seja, todos os serviços e as ações que melhorariam a qualidade de vida das pessoas, com geração de empregos e distribuição de rendas (ROSSI et al., 2018). Dweck e Rossi (2019) dão ainda especial ênfase aos impactos territoriais dos projetos, para proporcionarem a redução de desigualdades regionais.
O grupo de pesquisadores liderado por Esther Dweck e Pedro Rossi, dentre outros, propõe transformar a estrutura produtiva a partir de missões, temática já discutida especialmente por Mariana Mazzucato13, fixando uma nova forma de elaboração/execução das políticas públicas voltadas para a resolução dos dilemas da sociedade brasileira, com forte viés social e de forma planejada. Rossi e os demais pesquisadores do projeto partem da proposta original da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE) e da inspiração de Celso Furtado, relacionando o desenvolvimento com a transformação produtiva, como forma de resolução de problemas concretos.
Segundo Mazzucato e Penna (2016), políticas mission-oriented seriam aquelas políticas públicas sistêmicas desenvolvidas para atingir metas específicas, “na fronteira do conhecimento”. Portanto, não se trata apenas de uma nova direção das políticas públicas com viés social, mas também de uma conjunção de ações voltadas tanto para a resolução de grandes dilemas nacionais quanto para desenvolver políticas públicas de inovação estratégica, que seriam adaptadas para cada nação, inserindo a “inovação no centro da política de crescimento econômico” e fugindo do modelo “one size fits all”, que direcionou as propostas para os Estados em desenvolvimento nos últimos setenta anos (MAZZUCATO; PENNA, 2016).
A ideia básica do modelo das missões é o planejamento e a execução das políticas públicas para a promoção e a diversificação do setor produtivo a partir de demandas sociais específicas, liderando e/ou promovendo os investimentos em pesquisa e inovação. Ademais, Mazzucato e Penna (2016) destacam a importância da medição dos resultados, a partir da definição das metas e dos objetivos concretos, de forma a permitir ajustes e o controle adequado. Pode-se afirmar, sem chance de erro, que se trata do velho e bom planejamento do mercado interno (art. 219 da CR/1988), previsto no artigo 174 da Constituição de 1988, bem como em outros ditames constitucionais (arts. 21, IX, 25, parágrafo 3º, 165, 182, 187 da CR/1988) a partir dos objetivos constitucionais e princípios da Constituição Econômica.
A proposta de mudança estrutural visa articular a política industrial com as efetivas necessidades das populações, com base nas demandas sociais, ambientais, humanitárias, a partir de agendas setoriais e temáticas, ou de eixos específicos (ROSSI et al., 2018; GADELHA, 2016). Trata-se de uma nova forma de se enxergar a política industrial, por exemplo, a partir da demanda interna, diretamente relacionada com o motor de desenvolvimento denominado “investimento social”, interligando a necessária inovação tecnológica, a modernização produtiva e o atendimento das demandas socioeconômicas.
Alguns eixos de atuação são sugeridos: mobilidade urbana, saneamento básico, tecnologia verde, habitação popular, produção de alimentos, saúde14, educação, desenvolvimento regional (ROSSI et al., 2018), utilizando-se, ainda, da estrutura institucional existente de empresas públicas e demais instituições de excelência tecnológica. Constata-se que todos esses setores possuem encadeamentos produtivos relevantes os quais podem proporcionar os efeitos multiplicadores almejados para se alcançar o crescimento econômico setorial e os avanços significativos na promoção do serviço público e da melhoria na infraestrutura, melhorando a condição de vida da população. Em síntese, busca-se alcançar o desequilíbrio positivo (SOUZA, 2017), ou seja, o desenvolvimento.
4.1 ADEQUAÇÃO DO MODELO DENTRO DE UM PROJETO NOVO-DESENVOLVIMENTISTA
Uma importante questão deve ser respondida: é possível conciliar o modelo neoestruturalista orientado por missões com a teoria novo-desenvolvimentista brasileira?
Segundo Sicsú, Paula e Michel (2007), o novo-desenvolvimentismo tem como base teórica o keynesianismo, em sua visão de crescimento pela demanda, na complementaridade entre Estado e mercado e na teoria neoestruturalista da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), que entende o desenvolvimento como mudança estrutural por meio de transformação produtiva com equidade.
Para seus formuladores, liderados por Bresser-Pereira (2018), a teoria novo-desenvolvimentista defende a coordenação do mercado para tratar do setor competitivo da economia e a intervenção planejada do Estado na economia na condução e na promoção do desenvolvimento, além da coordenação estatal nos setores não competitivos. É uma teoria de equilíbrio entre as duas forças, Estado e mercado, cada qual responsável por sua área de atuação, que não destoa da previsão constitucional. Para tanto, defende a execução de uma política macroeconômica que equilibre os cinco “preços macroeconômicos”: (i) câmbio (competitivo para as indústrias); (ii) taxa de lucro (satisfatória para o investidor); (iii) taxa de juros (baixa para rentistas); (iv) inflação (baixa e controlável); e (v) salários (dignos, com aumentos que acompanhem a produtividade) (BRESSER-PEREIRA, 2018).
Trata-se de uma teoria de matriz keynesiana com base na demanda, a qual afirma que o desenvolvimento somente será alcançado se for garantido o acesso àquela, o que não seria garantido com o câmbio apreciado. Segundo Bresser-Pereira (2018), o câmbio apreciado no longo prazo inviabilizaria todo o setor industrial em nações em desenvolvimento, desestimulando qualquer tentativa de investimento industrial. Com a apreciação cambial, torna-se muito mais barato importar bens manufaturados do que produzir internamente, causando a desindustrialização da nação e a transferência da mão de obra do setor industrial para o setor terciário não qualificado, com perda de renda para a classe média.
A teoria novo-desenvolvimentista propõe o avanço da industrialização de produtos complexos, que pressupõe o investimento em pesquisa e desenvolvimento, transferência de tecnologia, aplicação em educação, ciência e inovação, com resultados a longo prazo. O planejamento e a execução da política industrial estratégica no novo-desenvolvimentismo estão a cargo do Estado, como uma ferramenta complementar das políticas macroeconômicas, inclusive para a exportação, diante das oportunidades internacionais, como, na atualidade, devido às demandas de produtos/bens voltados à saúde e à Covid-19. Acrescentam Davi Augusto Santana de Lelis, Giovani Clark e Leonardo Alves Corrêa sobre o novo-desenvolvimentismo:
Para os novo-desenvolvimentistas, os investimentos públicos (poupança pública) e privados (expectativa da taxa de lucro) dependeriam da coordenação estatal visando a um equilíbrio entre os principais preços da economia. Além disso, o novo-desenvolvimentismo advoga uma política industrial estratégica que promova a inovação tecnológica e sofisticação produtiva com o objetivo de atender ao mercado interno e garantir competitividade internacional. Neste sentido, a taxa de câmbio tem uma função estratégica de retornar com o processo de industrialização ao tornar competitivas as empresas nacionais no mercado global (LELIS et al., 2020, p. 401).
Assim, responde-se à questão colocada no primeiro parágrafo do presente tópico de forma positiva, considerando o novo-desenvolvimentismo como o modelo “que prega a intervenção do Estado, o nacionalismo e a industrialização para o desenvolvimento” (ROSSI, 2014, p. 195).
Ainda que os estruturalistas foquem no mercado interno como eixo do desenvolvimento, tal direção proporcionaria ganhos consideráveis de escala que possibilitariam reduções nos custos marginais de produção e poderiam resultar em maior competitividade, inclusive no mercado externo. Não se pode desprezar a importância do mercado externo para o desenvolvimento sustentável, especialmente considerando-se a importância do setor industrial que desenvolve produtos complexos, bem como o estado da arte mundial, com tecnologia avançada, que paga altos salários aos empregados. Exportação, competitividade, tecnologia industrial e melhores salários são conceitos que não podem ser analisados separadamente quando se trata do tema do desenvolvimento. Um efetivo programa nacional desenvolvimentista proporcionaria a conciliação entre o modelo orientado por missões, com foco inicial no mercado interno, e as exportações, que são uma das importantes preocupações dos neodesenvolvimentistas.
Pedro Rossi e os demais pesquisadores destacam, ainda, a importância da estabilidade macroeconômica para o sucesso da política industrial dentro do conceito estruturalista, com especial foco na estabilidade e na competitividade da taxa de câmbio, na razoabilidade da taxa de juros e no aprimoramento do sistema tributário, de forma a melhorar a competitividade dos produtos nacionais. Eles destacam a importância da conjugação da política industrial e macroeconômica, o que permite enquadrar o modelo orientado por missões dentro do projeto novo-desenvolvimentista brasileiro:
O segundo aspecto relevante se refere à adequação de um modelo distributivo com a diversificação da estrutura produtiva. A ampliação do mercado interno a partir dois motores do crescimento permite a diversificação da estrutura produtiva e a ampliação da escala das empresas, o que pode amenizar a especialização em produtos primários e seus problemas decorrentes conforme apontados na literatura clássica sobre desenvolvimento. No entanto, para que esses efeitos positivos ocorram, o impulso de demanda precisa ser atendido majoritariamente pela produção doméstica. Para isso, é preciso uma combinação de política industrial e macroeconômica, com taxa de juros e de câmbio que permitam a nossos produtores competirem com seus congêneres estrangeiros (ROSSI et al., 2018, p. 28).
Conforme já destacado, o Brasil atual demanda não apenas um projeto planejado de desenvolvimento, mas um projeto emergencial, devido aos reflexos decorrentes da pandemia da COVID-19. A reconstrução nacional demandará esforços que deverão ser conjugados com o novo projeto de desenvolvimento nacional, para evitar, mais uma vez, gastos e investimentos conjuntais, imediatistas e sem programação, que, certamente, resultarão em dispêndios inúteis e projetos que não serão concluídos no futuro.
O modelo de desenvolvimento orientado por missões15, aparentemente, permite a conjunção de um planejamento emergencial com um plano desenvolvimentista. O investimento social dentro de cada eixo delimitado, a partir de um projeto de reconstrução e de desenvolvimento, utilizando a estrutura de empresas públicas, uso de compras governamentais, financiamento de investimentos via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e outras agências de fomento, pesquisas científicas, políticas de desenvolvimento produtivo e tecnológico, demonstra ser um caminho possível e de sucesso. Além de mirar no mercado interno, com foco regional (considerando as desigualdades e especificidades regionais – art. 170, VII, da CR/1988), também pode (e deve) mirar no mercado externo, desenvolvendo produtos com tecnologia avançada. Trata-se de um modelo que deve ser visto com atenção pelos especialistas.
O modelo neoestruturalista orientado por missões pressupõe um efetivo planejamento estatal, em atendimento ao disposto no art. 174 da Constituição de 1988. A articulação das políticas de desenvolvimento (política industrial, investimento público, inovações tecnológicas, infraestrutura, política salarial) demanda um modelo de planejamento do desenvolvimento e tende a resultar na concretude dos objetivos constitucionais (ROSSI, 2014). Trata-se de uma interessante alternativa ao modelo neoliberal de austeridade hoje aplicado em nossa nação, que é basicamente dependente de exportação de produtos agrícolas e recursos naturais, assim como de remuneração do capital financeiro. Aliás, as políticas econômicas de austeridade estão bem distantes de efetivar a democracia econômica e o consequente modelo produtivo plural de nossa Constituição Econômica (CLARK et al., 2020), inclusive quanto às relações de mercado, voltadas ao desenvolvimento endógeno e obviamente estruturadas para a justiça social, e à utilização dos meios de produção vinculados à função social e à preservação do meio ambiente.
Em apertada síntese, o modelo orientado por missões pode se enquadrar naquilo que está sendo denominado de projeto social-desenvolvimentista16, ainda em construção, que parte da teoria novo-desenvolvimentista, mas insere o social como eixo principal do processo desenvolvimentista (ROSSI, 2014, p. 195).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um novo projeto emergencial de reconstrução nacional deve ser conjugado com um novo projeto de desenvolvimento, de forma a permitir um modelo equilibrado, associando o crescimento econômico com a erradicação da pobreza, preservação dos bens ambientais e redução das desigualdades sociais e regionais. Para tanto, recorre-se às evidências históricas que podem indicar caminhos que foram trilhados e que levaram ao fracasso ou ao sucesso, relativos por vezes. Aprender com os erros e acertos cometidos na elaboração das políticas econômicas passadas é o primeiro passo para se encontrar respostas aos dilemas ocasionados pela crise político-econômica pós 2015 e pela crise decorrente pandemia da Covid-19 sobre as finanças públicas, as cadeias produtivas e a sociedade brasileira. O esgotamento do neoliberal de austeridade permite que a academia e os meios políticos e econômicos se abram para o debate de novas teorias desenvolvimentistas que se apresentam, no artigo, como alternativas às políticas econômicas passadas e atuais, sobretudo de austeridade.
O modelo neoestruturalista orientado por missões apresenta-se como uma efetiva alternativa para o desenvolvimento nacional, como foco na distribuição de renda e nos investimentos sociais, de forma a melhorar a vida da população brasileira. Ademais, ele é totalmente compatível com os ditames constitucionais de planejamento, desenvolvimento, pluralismo produtivo e universalização da dignidade humana, como demostrado acima.
O modelo de desenvolvimento necessário para o Brasil deve levar em consideração, obrigatoriamente, a transformação social, como faz o das missões. Não basta pensar exclusivamente no crescimento modernizante, sendo necessário pensar também na ampliação da oferta de serviços públicos de qualidade, serviços sociais básicos, distribuição de renda, com a devida adequação da estrutura produtiva nacional às necessidades da população. Assim, utiliza-se positivamente o mercado interno brasileiro, tanto para atender às demandas sociais quanto para o necessário ganho de escala na produção dos bens, de forma a permitir a transformação da estrutura produtiva, com foco na industrialização de produtos com maior valor agregado e tecnológico (produtos complexos). Para tanto, o modelo demanda mais investimentos em pesquisa e desenvolvimento, em educação, em ciência e em inovação, que necessariamente passam pelo planejamento estatal.
Qual seria o papel do Direito Econômico nesse novo modelo novo-desenvolvimentista?
O desenvolvimento encontra-se em uma área de interseção entre os sistemas político, jurídico e econômico. Entretanto, ainda que fortemente influenciado pelo sistema político, as normas jurídicas que regulam o comportamento dos agentes, tanto públicos quanto privados, fazem parte da disciplina Direito Econômico. Portanto, a definição da política econômica e a definição do rumo que a nação tomará passa por essa disciplina jurídica. Uma vez traduzido em norma jurídica, cabe ao intérprete minimizar os conflitos entre os sistemas político, jurídico e econômico, a partir da ideologia constitucionalmente adotada, para evitar os bloqueios institucionais que podem violar a efetividade da Constituição Econômica de 1988.
O projeto novo-desenvolvimentista pressupõe um fortalecimento do Direito Regulamentar Econômico, com a revisão de medidas de cunho estritamente fiscais, como a flexibilização do teto dos gastos e as outras medidas de austeridade fiscal, e o desenvolvimento, de forma efetiva, do instituto do planejamento de forma global, incluído agropecuária, serviços, indústria, tecnologia, meio ambiente, educação, saúde etc. Trata-se de elemento essencial do desenvolvimento, com sua efetiva utilização conforme determina a Constituição de 1988, de forma a permitir o planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, com os planos nacionais e regionais. O planejamento contemplaria uma análise crítica de um importante instrumento público: as políticas industriais complementares. O direcionamento das políticas públicas, o fomento de pesquisas aplicadas às demandas sociais, as compras públicas, o crédito direcionado, o investimento público, os financiamentos do BNDES, as políticas de conteúdo local e as demais políticas industriais e tecnológicas são temas do Direito Regulamentar Econômico, na perspectiva do novo-desenvolvimentismo, que deverão ser enfrentados no primeiro momento de implantação do novo modelo.
O Direito Institucional Econômico também seria fortalecido no modelo, por meio da atuação do BNDES, do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal, como executores de políticas públicas e agentes de financiamento, assim como outras empresas estatais (Petrobras, Embrapa etc.) e entidades públicas detentoras de tecnologia, universidades e centros de pesquisa, no desenvolvimento de projetos voltados às “missões”. Ademais, tais entidades públicas, sobretudo as estatais, possuem a capacidade de realização ao produzir e destruir bens, serviços, insumos, tecnologias, atuando, assim, como motores ou locomotivas dos setores produtivos privados e da justiça socioambiental, não deixando, portanto, o Estado frágil e dependente no exercício de suas missões constitucionais, mas capaz de limitar/barrar os abusos de poder econômico privado e suas políticas inversas.
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NOTA
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