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O TRABALHO DOMÉSTICO COMO ESSENCIAL NA PANDEMIA DA COVID-19 EM MINAS GERAIS E A AMPLIAÇÃO DA VULNERABILIDADE JURÍDICA DAS TRABALHADORAS
DOMESTIC WORK AS ESSENTIAL IN THE PANDEMIC OF COVID-19 IN MINAS GERAIS AND THE EXPANSION OF THE LEGAL VULNERABILITY OF WORKERS
EL TRABAJO DOMÉSTICO COMO ESENCIAL EN LA PANDEMIA DE COVID-19 EN MINAS GERAIS Y LA EXPANSIÓN DE LA VULNERABILIDAD LEGAL DE LOS TRABAJADORES
O TRABALHO DOMÉSTICO COMO ESSENCIAL NA PANDEMIA DA COVID-19 EM MINAS GERAIS E A AMPLIAÇÃO DA VULNERABILIDADE JURÍDICA DAS TRABALHADORAS
Revista Opinião Jurídica, vol. 21, núm. 36, pp. 85-116, 2023
Centro Universitário Christus
Recepção: 16 Dezembro 2021
Aprovação: 29 Julho 2022
RESUMO
Contextualização: Historicamente, o trabalho doméstico é relegado a uma posição inferior frente às demais profissões, acarretando a invisibilidade e vulnerabilidade da categoria, que, de forma morosa, conquistou seus direitos fundamentais e trabalhistas.
Objetivo: Analisar até que ponto determinar o serviço doméstico como essencial reforça a vulnerabilidade da categoria na pandemia da Covid-19 em Minas Gerais.
Método: Trata-se de um estudo exploratório e qualitativo, em que serão utilizados os procedimentos técnicos de pesquisa bibliográfica e documental e o método de abordagem dedutivo, assim juntamente à realização de pesquisa de campo para validação da proposição teórica.
Resultados e contribuições: A vulnerabilidade dos trabalhadores domésticos se acentuou com a chegada da pandemia da Covid-19, crise sanitária sem precedentes, em que seu trabalho foi considerado serviço essencial pelo decreto que instituiu a “Onda Roxa” no estado de Minas Gerais. Com a imposição de decretos governamentais, muitos trabalhadores foram realocados para o home office, outros tiveram suas atividades suspensas, isto é, muitas profissões contaram com medidas sanitárias protetivas, entretanto o trabalho doméstico permaneceu intocável durante a pandemia, mantida a sua invisibilidade no cenário laborativo e social. Com isso, houve o recrudescimento da vulnerabilidade da categoria das trabalhadoras domésticas, que não tiveram o reconhecimento social devido e tampouco qualquer tutela estatal específica, estando, como quase sempre estiveram, relegadas à própria sorte.
Conclusão: Concluiu-se que a medida normativa de fixar o serviço doméstico como essencial serviu, na prática, para reforçar a vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas em Minas Gerais, com o recrudescimento das desigualdades econômicas e sociais, além de adoecimento de várias trabalhadoras da categoria em razão do trabalho.
Palavras-chave: Vulnerabilidade+ serviço doméstico+ pandemia Covid-19.
ABSTRACT
Contextualization: Historically, domestic work is reduced to a lower position compared to other professions, resulting in the invisibility and vulnerability of the category, which slowly conquered its fundamental and labor rights.
Objective: To analyze the extent to which determining domestic service as essential reinforces the vulnerability of the category in the Covid-19 pandemic in Minas Gerais.
Method: This is an exploratory and qualitative study, in which technical procedures of bibliographic and documentary research and the deductive approach method will be used, as well as field research to validate the theoretical proposition.
Results and contributions: The vulnerability of domestic workers was accentuated with the arrival of the Covid-19 pandemic, an unprecedented health crisis, in which their work was considered an essential service by the decree that instituted the “Onda Roxa” in the state of Minas Gerais. With the imposition of government decrees, many workers were relocated to the home office, others had their activities suspended, that is, many professions had protective sanitary measures, but housework remained untouched during the pandemic, maintaining its invisibility in the labor scenario and social. With this, there was an increase in the vulnerability of the category of domestic workers who, even though they were part of the work group, did not have due social recognition or any specific state tutelage, being, as they almost always were, relegated to their own fate.
Conclusion: It was concluded that the normative measure of establishing domestic service as essential served, in practice, to reinforce the vulnerability of the domestic worker in Minas Gerais.
Keywords: Vulnerability, domestic service, Covid-19 pandemic.
RESUMEN
Contextualización: Históricamente, el trabajo doméstico se reduce a una posición más baja en comparación con otras profesiones, resultando en la invisibilidad y vulnerabilidad de la categoría, que poco a poco conquistó sus derechos fundamentales y laborales.
Objetivo: Analizar en qué medida la determinación del servicio doméstico como esencial refuerza la vulnerabilidad de la categoría en la pandemia Covid-19 en Minas Gerais.
Método: Se trata de un estudio exploratorio y cualitativo, en el que se utilizarán procedimientos técnicos de investigación bibliográfica y documental y el método de enfoque deductivo, así como investigación de campo para validar la propuesta teórica.
Resultados y aportes: La vulnerabilidad de las trabajadoras del hogar se acentuó con la llegada de la pandemia Covid-19, una crisis de salud sin precedentes, en la que su labor fue considerada un servicio esencial por el decreto que instituyó la “Onda Roxa” en el estado de Minas. Gerais. Con la imposición de los decretos gubernamentales, muchos trabajadores fueron reubicados en el Ministerio del Interior, a otros se les suspendieron sus actividades, es decir, muchas profesiones contaban con medidas sanitarias protectoras, pero las labores del hogar se mantuvieron intactas durante la pandemia, manteniendo su invisibilidad en el escenario laboral y social. Con ello, se incrementó la vulnerabilidad de la categoría de trabajadoras del hogar que, si bien formaban parte del grupo de trabajo, no tenían el debido reconocimiento social ni ninguna tutela estatal específica, quedando, como casi siempre, relegadas a su propio destino.
Conclusión: Se concluyó que la medida normativa de establecer el servicio doméstico como esencial sirvió, en la práctica, para reforzar la vulnerabilidad de la trabajadora del hogar en Minas Gerais.
Palabras clave: Vulnerabilidade, servicio domestico, pandemia de Covid-19.
1 INTRODUÇÃO
Sob o ponto de vista histórico, a escravidão da mulher negra serviu de base para o serviço doméstico contemporâneo no Brasil, tendo em conta que elas trabalhavam nas casas dos senhores, servindo suas famílias, e suas filhas já cresciam com o mesmo caminho traçado. Diferentemente, como regra geral (que comporta exceções), os homens trabalhavam na lavoura, longe da casa senhorial e sem relação com o que hoje se entende como trabalho doméstico. Com isso, a escravidão moldou o trabalho doméstico, em que, muito embora abolida em 1888, permaneceram os reflexos, de modo que muitas mulheres negras continuaram sendo exploradas para o bem-estar de seus contratantes e familiares. Muito embora tenha havido alteração dos contextos históricos, permaneceram a vulnerabilidade e a invisibilidade daqueles que prestam trabalho doméstico.
Nesse contexto de permanência de vulnerabilidade e invisibilidades dessas trabalhadoras, no dia 17 de março de 2021, todo o Estado de Minas Gerais entrou na “Onda Roxa”, com o objetivo de conter a propagação do coronavírus e tentar frear os inúmeros problemas causados pelo novo coronavírus. A Deliberação nº 130, de 3 de março de 2021, do Comitê Extraordinário Covid-19, foi o documento responsável por estabelecer quais serviços são considerados essenciais no contexto da pandemia, dentre eles, no inciso XXV, os serviços de conservação e limpeza, domésticos e de cuidadores e terapeutas.
Mesmo com os decretos governamentais referentes ao distanciamento social, essa medida protetiva e de saúde pública não alcançou a categoria das trabalhadoras domésticas. Além disso, apesar da redução da oferta de transporte público, as domésticas tiveram que se desdobrar para cumprir suas obrigações a tempo e modo.
Para que se reafirme a importância do tema em debate, no Rio de Janeiro, a primeira morte por Covid-19 registrada foi de uma trabalhadora doméstica que teve contato com seus empregadores que haviam chegado da Itália. Conforme foi amplamente noticiado na imprensa à época, a trabalhadora, pobre, doente e obesa, continuou trabalhando em decorrência do risco do desemprego e de não ter acesso aos benefícios previdenciários que poderiam afastá-la do emprego e consequentemente do contágio.
À vista disso, o presente artigo problematiza: até que ponto determinar o serviço doméstico como essencial reforça a vulnerabilidade da categoria na pandemia da Covid-19 em Minas Gerais? Como hipótese, tem-se que se o serviço doméstico historicamente é vulnerabilizado, invisibilizado e relegado a uma subclasse dentre as profissões, então, em aparente contradição, com a determinação como essencial na pandemia da Covid-19 em Minas Gerais, em especial com a entrada na “Onda Roxa”, é provável que tal medida tenha reforçado a vulnerabilidade da categoria. O presente estudo reconhece e considera para efeito da análise do trabalho doméstico recortes de classe, cor e gênero. No Brasil, preponderantemente o trabalho doméstico é desenvolvido por mulheres negras e pobres, moradoras de regiões periféricas com pouca instrução e acesso à informação. Tais características foram comprovadas na pesquisa de campo desenvolvida no presente estudo.
Trata-se de um estudo exploratório e qualitativo, em que serão utilizados os procedimentos técnicos de pesquisa bibliográfica e documental e o método de abordagem dedutivo. Houve também realização de pesquisa de campo para validação da proposição teórica, por meio da aplicação do questionário de modo virtual, via Google Formulários, dado o período pandêmico e de isolamento social. O estudo contempla os trabalhadores domésticos e não somente os empregados domésticos. A aplicação do questionário foi submetida à análise do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ouro Preto, via Plataforma Brasil (CAAE 48221221.0.0000.5150), com aprovação em parecer 4.845.648 (CEP/UFOP) em 14/7/2021.
A construção teórica se dá com base na doutrina pátria de Direito Privado, em especial do Direito do Trabalho, além da Sociologia do Trabalho. Para que seja possível concretizar o que está proposto, o artigo se estrutura em três itens. No primeiro, haverá o estudo da vulnerabilidade na perspectiva do Direito do Trabalho brasileiro. No segundo, há a compreensão do trabalho doméstico no Brasil, também na perspectiva da vulnerabilidade da mulher negra empregada. No terceiro e último, haverá a análise do serviço doméstico fixado como essencial no contexto da pandemia da Covid-19 no Brasil, mais especificamente em Minas Gerais, sendo tal medida aqui caracterizada como reforço da vulnerabilidade laboral.
Ao final do presente estudo, será possível responder ao problema que norteia a pesquisa, que é saber se a medida normativa de fixar o serviço doméstico como essencial serviu, na prática, para reforçar a vulnerabilidade da trabalhadora em Minas Gerais.
2 A VULNERABILIDADE À LUZ DO DIREITO DO TRABALHO
De início, será feita uma análise da vulnerabilidade à luz do Direito do Trabalho, com o objetivo de introduzir suas definições para o desenvolvimento do tema, não só na necessária perspectiva teórica, mas também, e principalmente, na prática. Desde já, é válido esclarecer que, no presente estudo, será contemplada a proteção da trabalhadora doméstica e não somente da empregada, tendo em vista, sobretudo, a relevância sociojurídica da figura da “diarista”1 no cenário laboral brasileiro.
Sob o ponto de vista histórico, “o Direito do Trabalho se desenvolve [...] sob o prisma da luta de classes, em que o conflito capital e trabalho advindo das fábricas é determinante para o estabelecimento de normas e regras voltadas à proteção do trabalhador [...].” (WYZYKOWSKI, 2019, p. 89). Os conflitos existem desde os primórdios e se prolongam por todos os períodos históricos, não sendo diferente na esfera trabalhista. Muito embora tenha se formado o pensamento de que as lutas que originaram as normas trabalhistas se deram entre os períodos das grandes guerras, “[...] o movimento de proteção da parte mais débil da relação de emprego se inicia antes mesmo das supracitadas guerras mundiais, sendo concomitante ao desenvolvimento do Direito do Trabalho.” (WYZYKOWSKI, 2019, p. 108).
A ideia de vulnerabilidade, de forma implícita, acompanhou a construção do Direito do Trabalho, levando em consideração que as normas trabalhistas foram erguidas por meio da “[...] resistência dos trabalhadores à exploração social e, por extensão, na defesa do direito ao trabalho, [e] se intensificou na medida em que a sociedade produtora de mercadorias foi se consolidando e afirmando seu domínio sobre a vida social.” (FREITAS, 2010, p. 88-89). Além disso, “a ideia de vulnerabilidade [...] relaciona-se com a precarização do trabalho que é inerente ao capitalismo do final do século XX e início do século XXI, que pretende afastar a interferência estatal na relação trabalhista.” (ALVES, 2019, p. 114). Por esse ângulo, Freitas (2010, p. 95) arremata que:
Qualquer que seja a denominação que se conceda a esses seres sociais, o que se constata é que eles se encontram em uma situação de vulnerabilidade social de tal magnitude que a própria concepção de direito ao trabalho, duramente construída mediante lutas sociais levadas a termo nos dois últimos séculos, torna-se secundária diante da luta pela simples sobrevivência diante da barbárie promovida pelo capital.
Entretanto, os conceitos jurídicos de vulnerabilidade no Direito do Trabalho brasileiro ainda são recentes, incipientes e estão em permanente construção. Não é objetivo do presente estudo esgotar a análise dos aspectos históricos atinentes à construção do Direito do Trabalho, mas introduzi-los para alcançar a definição de vulnerabilidade e os fatores que concorreram e se equivaleram para edificação do termo, ao passo que “a relação jurídica trabalhista se desenvolve sob essa premissa, objetivando o Direito do Trabalho equilibrar uma relação jurídica que faticamente se encontra desequilibrada.” (WYZYKOWSKI, 2019, p. 89).
Pode-se dizer que a ampliação da proteção trabalhista foi motivada a partir da hipossuficiência do trabalhador, que não se confunde com vulnerabilidade. A essência da distinção pode ser vista na seguinte constatação: todo trabalhador é hipossuficiente na sua relação com o capital, embora nem todo trabalhador seja vulnerável. A ideia de hipossuficiência não conhece diferenças, enquanto a vulnerabilidade as reconhece e respeita. A hipossuficiência exige atuação estatal, no mínimo, no âmbito da relação de emprego, enquanto a vulnerabilidade não necessariamente fundamenta a intervenção do Estado na criação da norma heterônoma de Direito do Trabalho. A hipossuficiência exige a construção da regra trabalhista, mas não necessariamente será considerada como relevante no momento de sua interpretação ou aplicação. A ideia de vulnerabilidade não necessariamente fundamenta a construção da norma trabalhista, mas deve ser considerada no momento da sua interpretação e aplicação. Mais recentemente, a doutrina brasileira passa a perceber que a vulnerabilidade nas relações de trabalho pode ser vista como fundamento da proteção estatal, como justificativa de uma tutela específica e também como instrumento de alargamento da esfera de incidência do Direito do Trabalho.
No que concerne à vulnerabilidade, em âmbito jurídico mais amplo, Campello, Verbicaro e Maranhão (2020, p. 6) assinalam que seu conceito “surgiu na pósmodernidade, quando se percebeu que a legislação amparava a exploração de grupos mais fracos econômica e socialmente nas relações privadas e, em especial, nas relações consumeristas.” Nessa linha, Marques e Miragem (2014, p. 120) entendem a vulnerabilidade como um estado da pessoa, que é intrínseca ou sobrevém, também podendo ser permanente ou provisória:
A vulnerabilidade é mais um estado da pessoa, um estado inerente de risco ou um sinal de confrontação excessiva de interesses identificado no mercado, é uma situação permanente ou provisória, individual ou coletiva, que fragiliza, enfraquece o sujeito de direitos, desequilibrando a relação.
Para os fins do presente estudo, a vulnerabilidade na perspectiva do Direito do Trabalho é “situação de inferioridade contratual agravada por fatores de risco laboral ou pela condição pessoal do trabalhador, seja ele empregado ou não, que poderá resultar em lesão em sua esfera patrimonial ou existencial.” (ALVES, 2019, p. 120). Na prática, consoante Wyzykowski (2019, p. 93), “para a verificação de uma situação de vulnerabilidade, faz-se necessária a atuação de alguém ou de algo que cause transtornos ou que coloque o sujeito dito vulnerável em situação de fraqueza ou fragilidade.” Nessa perspectiva
Esta fragilidade, permanente ou provisória, individual ou coletiva, enfraquece o sujeito de direitos, colocando-o numa posição desequilibrada na relação jurídica estabelecida. A vulnerabilidade se apresenta, pois, como uma marca particular de pessoas ou grupos, que atinge a liberdade destes em face da inexistência de igualdade. O reconhecimento da vulnerabilidade do empregado seria um mecanismo de se garantir a proteção deste na relação de emprego, em especial diante das transformações supracitadas (WYZYKOWSKI, 2019, p. 123).
Em termos gerais, para D’Aquino (2016, p. 199), vulnerabilidade é uma situação “em que uma das partes é visivelmente mais fraca que a outra, necessitando de uma proteção maior a fim de que, no exercício de seus direitos, a desigualdade seja minimizada.” Dorneles (2013, p. 302) trata da vulnerabilidade do trabalhador, seja ele empregado ou não:
A vulnerabilidade plena do empregado é inquestionável enquanto premissa teórica do sistema normativo juslaboral. A questão é que esta premissa não mais encerra a diversidade dos fatos sociais. Assim como pode haver empregados mais ou menos vulneráveis, há trabalhadores vulneráveis fora da relação de emprego.
Assim, “a noção de vulnerabilidade permite aprofundamento fático e jurídico de acordo com a relação vivenciada pelo trabalhador no momento da entrega de sua prestação laborativa, seja ele empregado ou não” (ALVES, 2019, p. 123), o que será demonstrada adiante ao relacioná-la com o trabalho doméstico e o advento da pandemia da Covid-19.
Em síntese, a vulnerabilidade, embora não seja pressuposto do trabalho doméstico como é a hipossuficiência, pode ter sido recrudescida na categoria em decorrência da Covid-19 no Brasil. A vulnerabilidade é situação de inferioridade contratual agravada por fatores de risco laboral ou pela condição pessoal do trabalhador, seja ele empregado ou não, que poderá resultar em lesão em sua esfera patrimonial ou existencial (ALVES, 2019). A comprovação da premissa será decorrente de análises teórica e prática do trabalho doméstico durante a pandemia de Covid-19 no Brasil.
3 O TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL
Sob o ponto de vista histórico, pode-se dizer que o início do trabalho doméstico no Brasil se dá com o advento da escravidão negra. As famílias de escravos exploradas pelos senhores dividiam-se, como regra geral, entre o trabalho braçal desempenhado pelos homens e o serviço doméstico pelas mulheres. De acordo Alves e Linhares (2019, p. 119), “o trabalho doméstico é, no Brasil, historicamente, herança escravocrata, pois, mesmo com a abolição no ano de 1888, a categoria permaneceu sem regulamentação por muito tempo [...].”
Os escravos eram explorados nos trabalhos braçais, nas lavouras e em outras atividades que requeriam a força para maior produção. Já as mulheres eram exploradas no interior das Casas Grandes, desempenhando os serviços domésticos, o que contemplava limpeza, cozinha, cuidados com as patroas e parte da criação e do zelo com os filhos dos senhores.
Tamis Porfírio, em sua dissertação de Mestrado publicada no livro “A Cor das Empregadas”, trata da invisibilidade racial no debate do trabalho doméstico remunerado, retomando historicamente as suas origens:
Enquanto uma classe de mulheres que passaram por um processo extensivo de desumanização, as negras, que trabalharam a partir do período colonial desempenhando o serviço doméstico das casas e famílias de outrem, são aquelas que sofrem com os estereótipos referentes ao trabalho que praticavam desde que foram compulsoriamente trazidas ao Brasil como escravas. Estereótipos estes construídos a partir de uma concepção e imaginário social racistas e machistas que se desenvolveram desde a colonização portuguesa, bem como de todos os processo animalizadores de seres humanos não europeus que vieram com tal colonização (PORFÍRIO, 2021, p. 48).
Sobre a divisão dos trabalhos, Davis (2016, p. 29-30) discorre que:
É verdade que a vida doméstica tinha uma imensa importância na vida social de escravas e escravos, já que lhes propiciava o único espaço em que podiam vivenciar verdadeiramente suas experiências como seres humanos. Por isso – e porque assim como seus companheiros, também eram trabalhadoras -, as mulheres negras não eram diminuídas por suas funções domésticas, tal como acontecia com as mulheres brancas. Ao contrário dessas, aquelas não podiam ser tratadas como meras “donas de casa”. [...] percebi que a característica especial do trabalho doméstico durante a escravidão, sua centralidade para homens e mulheres na condição de servidão, envolvia afazeres que não eram exclusivamente femininos. [...] Enquanto as mulheres cozinhavam e costuravam, por exemplo, os homens caçavam e cuidavam da horta. [...] Essa divisão sexual do trabalho doméstico não parece ter sido hierárquica: as tarefas dos homens certamente não eram nem superiores nem inferiores ao trabalho realizado pelas mulheres. Ambos eram igualmente necessários. Além disso, ao que tudo indica, a divisão de trabalho entre os sexos nem sempre era rigorosa: às vezes, os homens trabalhavam na cabana e as mulheres podiam cultivar a horta ou mesmo participar da caça. [...] A questão que se destaca na vida doméstica nas senzalas é a da igualdade sexual. O trabalho que escravas e escravos realizavam para si mesmos, e não engrandecimento de seus senhores, era cumprido em termos de igualdade. Nos limites da vida familiar e comunitária, portanto, a população negra conseguia realizar um feito impressionante, transformando a igualdade negativa que emanava da opressão sofrida como escravas e escravos em uma qualidade positiva: o igualitarismo característico de suas relações sociais.
Ocorre que, com a abolição da escravidão, a exploração das mulheres até então escravizadas se transferiu das Casas Grandes para o interior das residências familiares nas fazendas e nos centros urbanos, executando as mesmas tarefas, contudo, teoricamente, sob a nomenclatura de trabalho doméstico livre. Todavia, as condições fáticas de prestação de trabalho não diferiam drasticamente daquilo que viviam as mulheres negras do período escravocrata, sendo certo, obviamente, que distinto era o status jurídico.
Sob uma perspectiva mais ampla, “o Direito do Trabalho surgiu em um contexto em que o mundo em desenvolvimento saía do escravagismo em direção ao trabalho livre.” (D’AQUINO, 2016, p. 183). No entanto, as condições e circunstâncias impostas à época direcionavam as pessoas que foram até então escravizadas para o exercício das mesmas funções que exerciam nas Casas Grandes, tendo em conta que não possuíam instruções para exercer outras atividades. Some-se a isso a cultura patriarcal, em que a liberdade da mulher em buscar o trabalho fora do âmbito das residências ainda era discutível, pois tal prática poderia retirar-lhes “o valor sociopolítico e econômico em ambientes patriarcais” (WERMUTH; NIELSSON, 2021, p. 232).
As descendentes das mulheres que foram escravizadas deixaram de ficar nas senzalas e passaram a instalar-se nos famosos “quartinhos de empregada”, localizados nas residências e nos apartamentos, em sua maioria ao lado do cômodo utilizado como lavanderia, ou nas comunidades e favelas, onde o mínimo existencial lhes é ainda negado. Dito isso, Wermuth e Nielsson (2021, p. 234) acrescentam que: “De fato, a escravidão nos moldou enquanto sociedade. Para além de um sistema econômico, ela foi responsável por formatar condutas, arquitetar espaços urbanos alicerçados na lógica da diferença/exclusão e definir, de modo muito contundente, desigualdades sociais.”
Tal afirmação é ratificada por Buriti e Gomes (2021, p. 117), que sustentam que, “após a abolição da escravidão, o preconceito, estigma, discriminação e exploração das trabalhadoras domésticas constituem práticas que permaneceram no mundo do trabalho”.
Embora tenha se passado tempo substancial após a abolição da escravidão, ainda é possível perceber que, “no país, nos mais diversos âmbitos de trabalho, seja na empresa, na fazenda, no comércio, na indústria, ou na casa, os/as trabalhadores/as não raramente são reduzidos a meros ‘instrumentos’ nas mãos do empregador [...].” (WERMUTH; NIELSSON, 2021, p. 229).
Por um extenso período, o trabalho doméstico foi regulamentado no Brasil pelo Código Civil, de forma genérica, não havendo um tratamento especial para a categoria ou garantia de direitos elementares. Adiante, em 1941, foi promulgado o Decreto Lei 3.078, que buscava a garantia dos direitos dos trabalhadores domésticos, mas, ainda, de modo superficial.
Em 1943, há o advento da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que, infelizmente, por imposições da elite da época, não contemplou proteção aos trabalhadores domésticos e rurais, maioria da classe trabalhadora de então, com exclusão expressa em seu artigo 7º. Mais tarde, em 1972, houve a aprovação da Lei 5.859 daquele ano que regulamentou o trabalho doméstico no Brasil, mas conferiu poucos direitos à categoria se comparado com as demais profissões tuteladas pela CLT. Em 1988, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil, esperava-se um grande salto no que diz respeito à garantia de direitos às trabalhadoras domésticas, todavia, mais uma vez, a exclusão e a discriminação foram a tônica.
A Constituição da República, em seu artigo 7º, elencou uma série de direitos e garantias aos trabalhadores urbanos e rurais, sendo estabelecidos, à época, 34 (trinta e quatro) incisos. Apesar disso, o parágrafo único do artigo 7º da Constituição da República estabeleceu quais direitos dos elencados no caput os trabalhadores domésticos teriam direito, sendo somente 9 (nove) dos 34 (trinta e quatro) lá elencados. A partir de então, pela luta política, difícil, muitas vezes desorganizada e insuficiente, a categoria buscou a justa equiparação com os demais trabalhadores brasileiros. Com a Lei 11.324/2006, houve pequeno avanço normativo, longe ainda, entretanto, do patamar alcançado para as demais categorias de trabalhadores urbanos e rurais no país.
Somente na última década, após o disposto na Emenda Constitucional n. 72/2013, finalmente houve a ampliação dos direitos estabelecidos para as empregadas domésticas, nos termos do disposto na Lei Complementar n. 150/2015, diploma normativo amplamente criticado pelas elites mais conservadoras e obtusas do país, que insistiam em manter a categoria como uma classe não só subalterna como também invisibilizada e discriminada juridicamente.
Em síntese, quanto aos aspectos históricos da legislação Delgado (2018, p. 448) arremata que:
A categoria doméstica não recebeu qualquer proteção jurídica do Direito do Trabalho em sua fase clássica de institucionalização desse campo jurídico (1930, em diante). Por décadas permaneceu excluída de qualquer cidadania trabalhista, previdenciária e institucional. De fato, a CLT excluiu, expressamente, os empregados domésticos do âmbito de suas normas protetivas (art. 7º, “a”). A categoria permaneceu, assim, por extenso período, em constrangedor limbo jurídico, sem direito sequer a salário mínimo e reconhecimento previdenciário de tempo de serviço. Um antigo diploma fez referência a esses trabalhadores (Decreto-Lei n. 3.078, de 1941), com fito de lhes atribuir determinados direitos. Porém impôs, expressamente, para sua efetiva vigência, a necessidade de regulamentação inferior- a qual jamais foi procedida.
A morosidade das conquistas trabalhistas da categoria é fruto de uma discriminação estrutural advinda do período escravocrata, inferiorizando-se o serviço doméstico, não lhe conferindo o devido reconhecimento, o que também é constatado por Buriti e Gomes (2021, p. 117), que afirmam que “essa discriminação é identificada na regulamentação tardia do trabalho doméstico no Brasil”. Concomitantemente, Alves e Linhares (2019) compreendem que o período em que a categoria esteve desamparada com pouco ou nenhum direito e garantia conduziu para uma vulnerabilidade jurídica que acabou estacionando e perdurando ao longo dos anos, o que influenciou diretamente para a lentidão da garantia de seus direitos.
Sob esse prisma, Buriti e Gomes (2021, p. 114) complementam que:
Ironicamente, as mesmas características que contribuem para a vulnerabilidade do trabalho doméstico foram usadas como motivos para que o Direito do Trabalho, tanto no âmbito internacional, quanto nacional, excluísse as trabalhadoras domésticas da proteção legal garantida a trabalhadores em fábricas, lojas, escritórios.
Juridicamente, hoje, no Brasil, após a edição da Lei Complementar 150/2015, caracteriza-se o emprego doméstico a partir da confluência concomitante de 8 elementos fático-jurídicos, ou pressupostos, ou requisitos: trabalho prestado à pessoa física ou família, em ambiente residencial, sem exploração econômica do trabalho, com continuidade (mais de 2 vezes por semana) e presentes ainda trabalho prestado por pessoa física, com pessoalidade, onerosidade e subordinação jurídica. Presentes os requisitos e ausente a continuidade, haverá a caracterização da figura social e economicamente relevante da trabalhadora doméstica diarista, que infelizmente ainda não tem direitos trabalhistas.
Diante do exposto até aqui, constata-se que é quase impossível falar de trabalho doméstico sem abordar determinados recortes, como de classe, raça e gênero. A categoria aqui analisada sempre encontrou severos óbices para seu reconhecimento e para sua valorização, pois foi formada sob a imposição de diversas desigualdades, em especial econômicas e sociais, que “se refletem hoje nas particularidades do trabalho doméstico, o qual conta com a presença maciça de mulheres negras, pobres e com baixo nível educacional.” (WERMUTH; NIELSSON, 2021, p. 233).
O trabalho doméstico, predominantemente, é exercido por mulheres, fruto da realocação pós-escravidão e do patriarcado que ainda impõe suas vontades no país. As mulheres continuaram a prestar serviços referentes à limpeza, à cozinha e a cuidados em geral, e os homens foram em busca de trabalho nas fábricas, nas lavouras, nos setores canavieiros, entre outros. Hirata e Kergoat (2007, p. 599) aprimoram a discussão ao esclarecerem que
Essa forma particular da divisão social do trabalho tem dois princípios organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem “vale” mais que um trabalho de mulher). Esses princípios são válidos para todas as sociedades conhecidas, no tempo e no espaço. Podem ser aplicados mediante um processo específico de legitimação, a ideologia naturalista. Esta rebaixa o gênero ao sexo biológico, reduz as práticas sociais a “papéis sociais” sexuados que remetem ao destino natural da espécie.
Conforme dados publicados pelo PNAD Contínua/IBGE e organizados pelo NPEGen, em 2020, no Brasil, de 92 milhões de pessoas que possuíam ocupação, 40 milhões são mulheres, o que corresponde a 43,7% do total. Do número de mulheres que possuem ocupação, aproximadamente 5,5 milhões estão inseridas na categoria trabalhadoras domésticas, o que totaliza 13,6%. Desse número, 1.444.207 trabalhadoras domésticas possuíam registro formal, o que corresponde a 26%, e 4.050.500 não possuíam registro, ou seja, majoritariamente à margem da proteção trabalhista e previdenciária, o que corresponde a 74% do total. Quanto ao recorte de cor, a porcentagem de trabalhadoras domésticas de cor negra ou parda é de 65,3% (SARRIS et al., 2020).
Os dados apontados são fruto do processo histórico do trabalho doméstico, em particular a herança escravocrata, cimentando a “persistência de desigualdades decorrentes da divisão sexual e racial do trabalho reprodutivo remunerado.” (BURITI; GOMES, 2021, p. 120). A partir disso, o estudo acerca do trabalho doméstico no âmbito do Direito do Trabalho não pode se restringir à análise da relação jurídica, sendo importantes sua constituição e moldura social, o que para Wermuth e Nielsson (2021, p. 232) são “recortes de gênero, raça, classe, sexualidade, e outros, que auxiliam a estabelecer concretamente as censuras e os muros que separam, biopoliticamente, as vidas.”
Por fim, é importante aqui destacar a Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), relativa à proteção e a medidas que tornam regulamentam sob o enfoque da dignidade da pessoa humana, em seu preâmbulo
Considerando que o trabalho doméstico continua sendo subvalorizado e invisível e é executado principalmente por mulheres e meninas, muitas das quais são migrantes ou membros de comunidades desfavorecidas e, portanto, particularmente vulneráveis à discriminação em relação às condições de emprego e trabalho, bem como outros abusos de direitos humanos; Considerando também que, em países em desenvolvimento, que historicamente têm escassas oportunidades de emprego formal, os trabalhadores domésticos constituem uma proporção significativa da força de trabalho nacional e permanecem entre os mais marginalizados (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2011, online).
Ao presente estudo interessará, para além da construção teórica e normativa, a análise fática do fenômeno social, sob o prisma da vulnerabilidade, particularmente no difícil momento que o mundo enfrenta, após o advento da Covid-19.
4 A ESSENCIALIDADE DO TRABALHO DOMÉSTICO NA PANDEMIA DA COVID-19 EM MINAS GERAIS E O REFORÇO DA VULNERABILIDADE
Em Minas Gerais, o governo estadual, à luz do intitulado “Plano Minas Consciente”, organizou os decretos relacionados à Covid-19 por meio de “Ondas”. Para cada “onda”, foi atribuída uma cor, considerando, entre outras informações, a gravidade da pandemia no local e a disponibilidade de leitos, para, a partir disso, fixar medidas de contenção.
A pandemia da Covid-19 consiste em uma crise sanitária sem precedentes que emergiu na China e, em questões de semanas, atingiu nível mundial, provocada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) e reconhecida como pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Sobre o assunto, Ferreira Netto e Corrêa (2020, p. 19) esclarecem sobre a origem:
Designado anteriormente como 2019-nCOV pela OMS, o SARS-CoV-2 assim identificado pelo “International Committee on Taxonomy of Viruses” é um novo Betacoronavírus que infecta os seres humanos. Baseado em sua similaridade genética a dois outros coronavírus semelhantes ao SARS (vírus causador de Síndrome Respiratória Aguda Severa), sua origem tem sido atribuída a morcegos.
A sociedade enfrentou e enfrenta complexos desafios para obstar o avanço do vírus. Até meados de 2020, os Estados Unidos, a Itália e a Espanha estavam entre os países que possuíam o maior número de casos identificados de Covid-19. A partir disso, consoante Ferreira Netto e Corrêa (2020, p. 23):
Medidas extensivas para reduzir a transmissão de Covid-19 de pessoa para pessoa foram implementadas para controlar o surto atual, tais como o uso de máscaras, práticas de higiene das mãos, prevenção de contatos públicos, detecção de casos, rastreamento de contatos e quarentenas.
Dessa forma, “devido à rápida emergência da epidemia de Covid-19, muitas das medidas de controle da epidemia foram introduzidas de uma só vez e tiveram graus variados de adesão nos diferentes países.” (AQUINO et al., 2020, p. 2428).
No Brasil, adotou-se, em um primeiro momento, o distanciamento social e o teletrabalho para servidores federais pertencentes a grupos de risco a partir da Instrução Normativa 19 do Ministério da Economia, datada de 17/3/2020. Posteriormente, estabeleceram-se o teletrabalho, a antecipação de férias individuais e coletivas, a compensação de horas e a antecipação de feriados, advindas da Medida Provisória 927, datada de 22/3/2020.
Em Minas Gerais, definiu-se, no que diz respeito a eventos, sua proibição com mais de 30 pessoas, por meio da Deliberação 17 do Comitê Extraordinário Covid-19, exarada em 22/3/2020. Sobre o ensino, público e privado, houve o fechamento parcial das escolas, determinado pela Deliberação 01, de 18/3/2020, e, ainda, o fechamento total das unidades de ensino por força da Deliberação 15, de 21/3/2020. Em relação à circulação de pessoas, houve a priorização do teletrabalho para todos os servidores e/ou medidas de diminuição dos servidores presentes, o que foi estabelecido pela Deliberação 02, de 17/3/2020. Adotou-se, também, o teletrabalho para servidores pertencentes a grupos de risco (Deliberação 04, de 18/3/2020); a suspensão do transporte rodoviário, aquaviário e ferroviário interestadual (Deliberação 11, de 21/3/2020); o teletrabalho para todos os servidores (Deliberação 12, de 21/3/2020); a determinação de suspensão pelos municípios do comércio e de serviços (Deliberação 17, de 22/3/2020).
À vista disso, “[...] é bastante provável que alguns dos efeitos mais dramáticos dessa nova crise econômica serão sentidos fortemente no mercado de trabalho nacional, que já se encontrava em um processo de deterioração desde 2015” (MATTEI; HEINEM, 2020, p. 648), ao passo que “[...] já vinha em franco processo de degradação ainda maior, ao menos desde a crise de 2015, dadas as dinâmicas econômicas e políticas estabelecidas no país desde então” (BRIDI, 2020, p. 159).
Sabendo-se que o mercado de trabalho brasileiro ainda possui traços discriminatórios, as medidas estatais adotadas atingiram grupos já marginalizados e vulnerabilizados historicamente.
No que se refere ao mercado de trabalho, além de desarticuladas, as medidas adotadas podem ser consideradas também prejudiciais, pois invés de buscar preservar os empregos e os salários dos trabalhadores, elas operam exatamente no sentido oposto, ou seja, para estimular o desemprego e rebaixar os salários (MATTEI; HEINEM, 2020, p. 657).
Exemplo disso é a Medida Provisória nº 936 que permitiu a redução da jornada de trabalho, sendo de 25%, 50% ou 75%, reduzindo-se, concomitantemente, o salário do trabalhador, bem como a suspensão total do contrato de trabalho, isto é, redução integral da jornada e, também, de seu salário.
Frente às incertezas e ao desequilíbrio no mercado econômico, houve a aprovação do Auxílio Emergencial pelo Congresso Nacional por intermédio da Lei nº 13.982, de 28 de março de 2020, que foi regulamentada pelo Decreto nº 10.316, de 7 de abril de 2020. O Auxílio Emergencial foi de significativa importância, considerando que os principais “indicadores considerados revelaram um forte processo de degradação do mercado de trabalho a partir da incorporação de um período de dois meses de influências da pandemia causada pelo novo coronavírus no país.” (BRIDI, 2020, p. 662).
No cenário brasileiro, houve aumento das taxas de desemprego, informalidade e desproteção do trabalhador. Já no âmbito internacional, a OIT apontou a necessidade de atenção a determinados reflexos da pandemia no mercado de trabalho, a saber:
Em março de 2020, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) alertou para os rápidos impactos da crise da Covid-19 sobre o mercado de trabalho, dando ênfase a três dimensões: a quantidade de empregos (com aumento súbito tanto da desocupação, quanto da subocupação); a qualidade do emprego (queda nos rendimentos e no nível de proteção social); e a desigualdade (efeitos mais graves em grupos específicos que são mais vulneráveis a retrações nos níveis de emprego e renda) (MATTEI; HEINEN, 2022, p. 44).
Em 17 de março de 2021, o Estado entrou na “Onda Roxa”, em que, por meio da Deliberação nº 130, de 3 de março de 2021, do Comitê Extraordinário Covid-19, foram estabelecidos quais serviços seriam considerados essenciais no contexto da pandemia. Foram consideradas essenciais no inciso XXV da referida regra as atividades de conservação e limpeza, domésticas e de cuidadores e terapeutas.
Com o objetivo de compreender, na prática, a ampliação da vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas no contexto da pandemia de Covid-19 foi realizada pesquisa de campo por meio de aplicação de questionário a 100 (cem) trabalhadores domésticos em Minas Gerais. Para alcançar o público-alvo, foi enviado o link do questionário do Google Formulários via WhatsApp, bem como divulgado no grupo de Facebook da Associação dos Trabalhadores Domésticos de Minas Gerais. Em tempos de isolamento social e com a crescente utilização de plataformas digitais, a aplicação do questionário via Google Formulários contribuiu para alcançar trabalhadores domésticos de diversas cidades mineiras, o que não seria possível se aplicado presencialmente. O questionário foi respondido por trabalhadores domésticos de 21 (vinte e uma) cidades de Minas Gerais.2
Diante de todos os problemas causados pela Covid-19 em todo o mundo houve, pelo menos no início do ano de 2020, grande temor de contaminação e maior adesão ao distanciamento social na maior parte do país, ainda que negacionistas insistissem em outras estratégias pouco científicas. Assim, “o trabalho nos serviços considerados essenciais, em especial, adquiriu grande visibilidade, dada sua importância para o combate direto à pandemia e para garantir o acesso a bens e serviços de necessidade básica durante o isolamento social” (CAMPOS et al., 2021, p. 362). Todavia, essa visibilidade não atingiu a categoria das trabalhadoras domésticas que, mesmo relegadas e permanentemente invisibilizadas, foram consideradas como inseridas em serviço essencial, laborando continuamente durante a crise sanitária.
Cardoso e Peres (2021, p. 305) chamam atenção para duas dimensões dos efeitos da pandemia nas relações de trabalho: a “desigualdade social e a informalidade. Quando associadas à pobreza, as desigualdades sociais denotam que parte considerável da população vive sob a díade de vulnerabilidade e precariedade [...].” A partir disso, para analisar, na prática, até que ponto determinar o serviço doméstico como essencial reforça a vulnerabilidade da categoria na pandemia da Covid-19 em Minas Gerais, foi aplicado virtualmente um questionário com perguntas (objetivas e subjetivas, fechadas e abertas) a trabalhadoras e trabalhadores domésticos, com resultados, a seguir, apresentados e analisados.
A primeira pergunta consistia em que cidade a participante trabalhava, obtendose as seguintes respostas: Betim, Barão de Cocais, Belo Horizonte, Bocaiúva, Contagem, Curvelo, Espinosa, Francisco Sá, Governador Valadares, Januária, Medina, Montes Claros, Nova Lima, Paracatu, Pedra Azul, Pirapora, Ribeirão das Neves, Santa Luzia, Teófilo Otoni, Unaí e Vespasiano.
Perguntada a idade das participantes, apuraram-se idades entre 25 a 49 anos, com maior concentração de respostas nos 40 (quarenta) anos.

Sobre o gênero da participante, ratificou-se o já trazido no presente artigo e como se infere das principais pesquisas e estudos sobre trabalho doméstico no Brasil, ou seja, a categoria é composta, em sua maioria, por mulheres. No caso específico, de modo impactante, apenas mulheres responderam aos questionários.

Impactante também a resposta à pergunta referente ao trabalho durante a pandemia. Todas as 100 trabalhadoras domésticas responderam positivamente.

O resultado confirma o trazido por Campos et al. (2021, p. 362), que recentemente criticou a exposição dos trabalhadores considerados essenciais ao risco de contaminação pelo coronavírus:
Esses trabalhadores, diariamente expostos aos riscos de vida no exercício de seu trabalho, trabalham em condições bastante heterogêneas e são afetados, de diversas maneiras, pelo processo de precarização do trabalho, bem como pelas opções políticas, sanitárias e econômicas adotadas pelo governo e pelos setores empresariais para enfrentar a pandemia.
Além disso, as respostas positivas são fruto, provavelmente, da “premente necessidade, sujeitando-se à vontade do mais forte para que tenham suas necessidades básicas atendidas” (D’AQUINO, 2016, p. 200), levando a categoria das trabalhadoras domésticos a laborar continuamente durante o período pandêmico. Campos et al. (2021, p. 388) destacam, também, a exposição e a vulnerabilidade da categoria. Trabalhadoras domésticas “com a pandemia, além de sofrer a intensificação dos ritmos do trabalho e extensão da jornada”, na prática, ficaram “mais expostos à transmissão do vírus, mais vulneráveis ao contágio, ao adoecimento e ao risco de morte”.
Levando-se em consideração as mudanças provocadas pela pandemia da Covid-19, como a redução de carga horária e rodízios nos ambientes de trabalho, até mesmo a dispensa por períodos que marcavam altos registros de morte pelo coronavírus, foi perguntado às participantes se a duração semanal do seu trabalho (horário, dias) sofreu alguma alteração durante a pandemia da Covid-19. Também o gráfico seguinte revela um padrão impactante, pois somente uma trabalhadora teve alteração na duração semanal do trabalho.


O resultado apresentado é consequência da discriminação que gira em torno da categoria, historicamente considerada mero instrumento de trabalho, quase sempre invisibilizada e objetificada. Decorre também de situação típica do Brasil, em que aqueles que podem (ou precisam) preferem (ou necessitam) contratar trabalho doméstico para se abster das atividades que podem ser impostas à mulher negra. Em meio a um cenário pandêmico, poucos patrões deram folga remunerada às trabalhadoras domésticas ou reduziram a jornada como medidas preventivas para frear a proliferação do vírus e a devastação da doença. As trabalhadoras domésticas continuaram trabalhando normalmente na casa dos patrões, que agora também são, em grande parte do país, trabalhadores em home office, que, por sua vez, também necessitam da mão de obra doméstica contratada para manter o novo ambiente de trabalho limpo e confortável.
O Brasil, sobretudo por seu Governo Federal, claramente tratou mal a gestão da doença e principalmente o povo durante o longo tempo de pandemia. Estratégias que são unanimidade mundial foram questionadas no país, como distanciamento social e uso de máscara. Não obstante a resistência de negacionistas e incautos, é inequívoco que instrumentos não farmacológicos de enfrentamento à pandemia foram e são essenciais para minorar a transmissão do vírus e o adoecimento. A partir disso, questionou-se às participantes se o empregador forneceu máscara, álcool em gel e outros instrumentos de proteção individual. Nesse ponto, 72% responderam positivamente e 28% negativamente.
Embora não tenha havido questionamento específico, é possível afirmar que impactante é o número de 28% de trabalhadoras domésticas que não receberam de seus patrões proteção não farmacológica mínima para o desenvolvimento do trabalho e enfrentamento da pandemia. Seria de se supor que o fato de trabalharem na residência de seus patrões impusesse, até mesmo por sentimento de autopreservação destes, a mais ampla proteção possível para que o vírus não chegasse até eles.
Outro assunto que bastante repercutiu em torno do labor na pandemia foi o deslocamento dos trabalhadores para o seu local de trabalho, tendo em conta que grande parte dos brasileiros utilizam transporte público coletivo. Obviamente, os ônibus, majoritários no país, são considerando local propício para a propagação do vírus, o que torna a situação ainda mais grave diante redução do número de linhas em diversas cidades brasileiras. Com base nisso, foi perguntado às participantes qual o meio de transporte utilizado para o deslocamento diário casa-trabalho-casa. A pesquisa revela que 60% das trabalhadoras utilizaram o transporte público; 26% delas foram ao trabalho caminhando; 11% utilizaram motocicleta para o deslocamento e 3% fizeram uso de outros meios de transporte.

Em decorrência das medidas de combate à Covid-19 muitas cidades reduziram o número de linhas de transporte coletivo, o que fez que os trabalhadores buscassem meios alternativos, nem sempre seguros, para se deslocarem até os seus ambientes de trabalho. Houve pergunta às participantes sobre alteração no meio de locomoção em razão da pandemia, sendo que aqui 98% das trabalhadoras entrevistadas responderam negativamente.

No que diz respeito especificamente à infecção durante a pandemia do novo coronavírus, foi perguntado às participantes se elas ou seus familiares contraíram o coronavírus, de acordo com as respostas,73% não contraíram e 27% contraíram o coronavírus.
Outro problema do enfrentamento brasileiro à Covid-19 é o baixíssimo número de pessoas testadas no país. Por opção obtusa do Governo Federal, os testes acabaram restritos, na maioria dos casos, àqueles que adoeceram ou buscaram atendimento médico. Essa realidade é mais clara na classe baixa, que não teve acesso aos testes pagos, feitos em laboratórios privados. Não houve, no Brasil, como pretendia o ministro da saúde no início da pandemia, a realização de testes em massa para que o enfrentamento à doença se fizesse com base em dados científicos. Assim, esse número de pessoas infectadas trazido no gráfico acima provavelmente equivale ao número também de adoecimentos, sendo possível supor que há pessoas infectadas que, por não terem adoecido, não foram testadas.
Noutro sentido, questionado às participantes se os seus empregadores ou familiares próximos deles contraíram coronavírus, obteve-se como resultado que 61% dos empregadores ou seus familiares tiveram Covid-19 e 39% não.
Perceba-se que comparativamente os gráficos 8 e 9 trazem situações inversas. Aqui o número de infectados é maior muito provavelmente em razão do acima exposto, ou seja, os pobres não tiveram acesso aos testes facilmente, mas a classe média conseguiu fazê-lo em laboratórios privados e pôde também em maior número buscar atendimento médico de melhor qualidade, mesmo com poucos ou, até mesmo, sem sintomas.


Por fim, como forma de abrir espaço para ouvir as opiniões das trabalhadoras domésticas participantes, foi perguntado como elas se sentiram ao trabalhar durante a pandemia da Covid-19, de modo a tentar compreender os sentimentos que permearam a categoria.
Como houve aqui questões abertas, dissertativas, as respostas serão analisadas de forma agrupada. Para não afastar a essência da pesquisa, serão apresentas as respostas originais, sem qualquer modificação ou revisão linguística, apenas planificadas.
O primeiro grupo é composto por respostas que demonstram sentimento de normalidade e neutralidade frente à continuação da prestação de serviços domésticos na pandemia da Covid-19. Percebe-se uma espécie de naturalização da vulnerabilidade, em que a própria trabalhadora doméstica se relega a uma posição de inferioridade e sujeição, compelida à entrega da prestação de serviço. Algumas respostas demonstram claramente o trabalho durante a pandemia decorrente da mais absoluta necessidade, mas sem manifestar quaisquer sentimentos de preocupação ou insegurança.

O segundo grupo é composto por respostas de participantes que expressaram preocupação com a permanência do trabalho durante a pandemia, sendo possível verificar que grande parcela das participantes manifestou sentimento de medo, exposição, insegurança, ansiedade e aflição, cada qual com a sua abordagem e singularidade. Destacam-se falas de medo em paralelo com a necessidade de trabalhar para garantir o sustento familiar e não perder o emprego. Outras falas apontam que, muito embora inseguras no início da pandemia, acabaram adaptando à situação. Outras indicam o medo de contágio nos transportes coletivos, o que conduz e se equivale à pergunta do questionário acerca do transporte utilizado para o deslocamento acimada analisada. Ainda, é demonstrado o sentimento de desamparo ante à ausência de legislação que tutelasse a categoria frente à pandemia, o que foi apresentado por uma das participantes e que chamou a atenção.

A análise de ambas os quadros permite também uma abordagem quantitativa, para além da qualitativa esperada. Percebe-se que a maioria das expressões das trabalhadoras domésticas é de temor, ansiedade, insegurança paralelamente a uma aceitação da condição econômica e de vida. Poucas são as que expressam naturalidade nesse momento grave da humanidade. Vale aqui destacar a fala de duas delas: “uma situação muito estranha. minha amiga falou pro patrão dela que tava com suspeita na outra semana foi dispensada. então agente tinha que ir trabalhar pra não ficar desempregada.” Há aqui a dura percepção, na prática, de que o Brasil optou conscientemente por não proteger o emprego ao não regulamentar o inciso I do artigo 7º da Constituição da República. Outra fala importante é da trabalhadora que achou a situação “estranha, não teve proteção para as domésticas ou alguma lei falando para ficar em casa então não tinha outra opção a não ser trabalhar”. Percebe-se aqui uma confiança na lei, que dessa vez lhes foi negada, pois, ao invés de proibir o trabalho doméstico, o Governo do Estado de Minas Gerais optou pelo contrário, ou seja, caracterizá-lo como essencial. Perceba-se que ambas, sem saber, trazem questionamentos jurídicos importantes para o Direito do Trabalho e para o Estado brasileiro, que preponderantemente opta por tutelar os patrões.
Para consolidar as respostas das participantes, foi feita uma nuvem de palavras por meio da ferramenta EdWordle, de forma a visualizar as palavras de maior destaque nas respostas das participantes.

Os resultados obtidos a partir da aplicação do questionário coadunam com os conceitos de vulnerabilidade aqui trazidos, pois o instituto em perspectiva justrabalhista consiste em uma situação que colocou a categoria das trabalhadoras domésticas em uma posição de inferioridade contratual agravada, ocasionada tanto por fatores de risco laboral quanto pela condição pessoal das trabalhadoras. A situação de emprego em âmbito doméstico pode ser, por si só, ensejadora de vulnerabilidade (ALVES; LINHARES, 2019). Aqui há a potencial generalização do agravamento da inferioridade contratual decorrente, dentre outros motivos, de um decreto que determinou a sua essencialidade em tempos de pandemia. Ao estabelecer por decreto que o trabalho doméstico seria considerado como essencial foram criadas “condições precárias laborais e violação de direitos, inadmissíveis nas outras profissões [...]” (WERMUTH; NIELSSON, 2021, p. 237), corroborando para o caráter discriminatório inerente à categoria. Por consequência, definir o trabalho doméstico como essencial também direciona para os desdobramentos da vulnerabilidade, notadamente negocial, hierárquica, econômica e ambiental.
Ao relacionar o decreto do governo de Minas Gerais que estabelece a essencialidade do serviço doméstico com as respostas obtidas no questionário aplicado, vislumbra-se a presença da vulnerabilidade negocial, dado que há a predominância de medidas de proteção aos empregadores em detrimento das trabalhadoras, situação agravada no contexto da pandemia. Há também vulnerabilidade hierárquica, pois foi reduzida, ainda mais, a possibilidade de os trabalhadores se insurgirem contra deliberações dos patrões. A pandemia aumentou muito os níveis de desemprego no país, e as trabalhadoras domésticas sabiam que, se perdessem o emprego, provavelmente, não conseguiriam outro facilmente. Essa realidade faz que elas se tornem resignadas, ainda que atemorizadas. Tal situação acaba por gerar, também, vulnerabilidade econômica para os trabalhadores em geral, não só para as domésticas, mas também para elas, obviamente. Wermuth e Nielsson (2021, p. 245) sinalizam que tal “situação se amplifica pela atual crise sanitária: qualquer tentativa de proteção e garantia de direitos à algum setor da produção, se choca com a lógica capitalista de precarização dos assalariados”. Há, também, vulnerabilidade ambiental, pois houve aumento do risco não só no ambiente de trabalho, mas também no deslocamento diário casa-trabalho-casa. Os gráficos 8 e 9 permitem inferir que os patrões foram mais identificados com a infecção do que as trabalhadoras e seus familiares. Assim, pelo menos em tese, os patrões colocaram em risco as trabalhadoras domésticas no ambiente de trabalho, pois o gráfico 5 demonstra que não houve mudança na duração semanal do trabalho, porém nem todas receberam proteção não farmacológica suficiente (gráfico 4).
O medo do desemprego3 foi um dos fatores provavelmente mais relevantes para que as trabalhadoras domésticas permanecessem no trabalho, mesmo que suas condições tenham se tornado ainda mais precárias. O percentual aferido de brasileiros desempregados no Brasil na pandemia da Covid-19 é de 14,7% no primeiro semestre de 2021, atingindo cerca de 14,8 milhões de trabalhadores (ALVARENGA; SILVEIRA, 2021). Sob essa perspectiva, Wyzykowski (2019, p. 191) reconhece que:
Soma-se a esta questão o medo do desemprego, que falseia o consentimento do trabalhador fazendo com que este se sujeite a disposições contratuais contra o sistema protetivo trabalhista, alterações contratuais lesivas, disposições contrárias àquilo que fora negociado pela categoria, dentre outros aspectos.
Examinada a vulnerabilidade da categoria doméstica a partir dos resultados, nota-se que, “embora os governos tenham decretado, durante a pandemia, que alguns serviços são essenciais para o funcionamento da sociedade, os trabalhadores que executam parte desses serviços são socialmente desvalorizados e assim permanecem, mesmo na pandemia” (CAMPOS et al., 2021, p. 389).
Diante dos resultados apresentados somados à construção teórica, constata-se o recrudescimento da vulnerabilidade da categoria das trabalhadoras domésticas que, mesmo compondo o grupo de trabalhos essenciais durante a “Onda Roxa” em Minas Gerais, não tiveram o reconhecimento social devido e tampouco qualquer tutela estatal específica, estando, como quase sempre estiveram nesse país injusto e discriminatório, relegadas à própria sorte.
5 CONCLUSÕES
O desenvolvimento do presente artigo possibilitou a análise da vulnerabilidade e da invisibilidade das trabalhadoras domésticas no cenário laborativo e social e a consequente ampliação da vulnerabilidade jurídica, levando em consideração o recorte geográfico, qual seja, o estado de Minas Gerais.
Os resultados obtidos, de modo geral, demonstram a maximização da vulnerabilidade laboral das trabalhadoras domésticas, historicamente sujeitadas a condições de desigualdade, não sendo diferente em tempos de pandemia, potencializada quando determinada a essencialidade do serviço doméstico, perenizando discriminações que advêm desde o período escravocrata até os dias atuais.
As informações obtidas por meio da aplicação de questionário permitiram uma visão empírica da vulnerabilidade da categoria, escancarando o recrudescimento das desigualdades econômicas e sociais, tendo em consideração a exposição das trabalhadoras domésticas ao vírus e ao adoecimento, não somente no ambiente de trabalho, mas também no deslocamento casa-trabalho-casa.
Frente às falas das trabalhadoras que responderam ao questionário, está claro que grande parcela manifestou preocupação, insegurança e ansiedade ao laborarem continuamente durante a pandemia da Covid-19, e uma outra reduzida parcela revelou a objetificação da trabalhadora doméstica enquanto instrumento de entrega de mão de obra, revelando a adaptação ao “novo normal” como uma questão de necessidade. Os resultados vão ao encontro da construção teórica feita a partir de pesquisas bibliográficas em torno da vulnerabilidade da categoria, sobretudo quando estudada sob os recortes de gênero, classe e cor.
O estudo assumiu importância, pois descortinou a expansão da vulnerabilidade das trabalhadoras domésticas de Minas Gerais na pandemia da Covid-19, possibilitando novas informações sobre o tema para o campo da ciência e para a sociedade como um todo.
Além disso, apesar das vagarosas conquistas trabalhistas, a categoria ainda se encontra às margens de direitos e garantias fundamentas conferidas aos demais trabalhadores brasileiros, tais como a tutela estatal em cenário pandêmico e a dispensa remunerada, o que não foi objeto de estudo do presente artigo dada a sua limitação, mas que pode auxiliar novos estudos sobre o assunto, por meio da utilização de novas ferramentas de análise.
Do exposto, diante do construto teórico e de metodologia de pesquisa de campo, conclui-se que a medida normativa de fixar o serviço doméstico como essencial serviu, na prática, para reforçar a vulnerabilidade da trabalhadora doméstica em Minas Gerais, consistindo na resposta ao problema de pesquisa apresentado e confirmando-se a hipótese inicialmente construída.
REFERÊNCIAS
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NOTA
Autor notes