Artigos
O Cabimento de Ações Rescisórias em Virtude da Inobservância a Pronunciamento Judicial Vinculante
The Suitability of Rescissory Lawsuits due to Noncompliance to Binding Judicial-Ruling
La Elegibilidade de las Acciones de Rescisión por Incumplimiento del Pronunciamiento Judicial Vinculante
O Cabimento de Ações Rescisórias em Virtude da Inobservância a Pronunciamento Judicial Vinculante
Revista Opinião Jurídica, vol. 21, núm. 38, pp. 18-44, 2023
Centro Universitário Christus
Recepción: 08 Abril 2022
Aprobación: 07 Octubre 2022
RESUMO
Contextualização: A ação rescisória é medida cabível contra decisão judicial transitada em julgado que viole manifestamente norma jurídica, assim, necessário questionar se a inobservância a precedente dá azo ao manejo da ação rescisória, uma vez que os precedentes alteram o núcleo interpretativo da norma jurídica.
Objetivo: O objetivo deste artigo é o de postular uma hipótese de cabimento da Ação Rescisória à luz dos objetivos postos pelo Código de Processo Civil de 2015 (“CPC”), explicitado em seu artigo 926, de manter um sistema jurídico estável, íntegro e coerente.
Método: O presente estudo foi conduzido por meio da revisão da legislação, bem como da doutrina nacional e internacional, utilizando-se do método dedutivo.
Resultados: A preocupação da temática não é apenas de ordem tópica, acerca de casos isolados, mas se dá como reflexão lógica de um sistema jurídico que se queira coerente, estável e harmônico, como preconizado em CPC de 2015.
Conclusões: Finalmente foi percebido que há alcance normativo das regras processuais já postas para que seja encaminhada a conclusão pelo cabimento das ações rescisórias para a tutela do direito coerente, estável e íntegro, em virtude da inobservância de pronunciamento judicial vinculante, desde que observados os prazos estabelecidos.
Palavras-chave: Ação rescisória+ coerência+ direito+ precedentes+ segurança jurídica.
ABSTRACT
Contextualization: The rescission lawsuit is an appropriate measure against a final and unappealable court decision that manifestly violates a legal rule, thus, it is necessary to question whether the non-compliance with the precedent gives rise to the propose of the rescission lawsuit, since the precedents change the interpretative core of the legal rule.
Objective: The objective of this article is to postulate a hypothesis of the suitability of the Rescissory Action in the light of the objectives set by the Civil Procedure Code of 2015 ("CPC"), explained in its article 926, of maintaining a stable, integrity and legal system coherent.
Method: This study was conducted by reviewing legislation, as well as national and international doctrine, using the deductive method.
Results: The concern of the theme is not only of a topical nature, about isolated cases, but it is given as a logical reflection of a legal system that wants to be coherent, stable and harmonious, as recommended in CPC of 2015.
Conclusions: Finally, it was seen that there is normative scope of the procedural rules already set so that the conclusion is forwarded by the appropriateness of the rescission actions for the protection of the coherent, stable and complete right, due to the non-observance of a binding judicial pronouncement, provided that the established deadlines are observed.
Keywords: Rescissory lawsuit, coherence, law, precedents, legal certainty.
RESUMEN
Contextualización: La acción de rescisión es una medida adecuada frente a una decisión judicial firme e inapelable que viola manifiestamente una norma jurídica, por lo que cabe cuestionarse si el incumplimiento del precedente da lugar a la tramitación de la acción de rescisión, ya que los precedentes modifican el núcleo interpretativo de la norma jurídica.
Objetivo: El objetivo de este artículo es postular una hipótesis de la idoneidad de la Acción Recisoria a la luz de los objetivos trazados por el Código Procesal Civil de 2015 ("CPC"), explicados en su artículo 926, de mantener una relación estable, integridad y sistema legal coherente.
Método: Este estudio se realizó mediante la revisión de la legislación, así como de la doctrina nacional e internacional, utilizando el método deductivo.
Resultados: La preocupación del tema no es solo de carácter tópico, sobre casos aislados, sino que se da como reflejo lógico de un ordenamiento jurídico que quiere ser coherente, estable y armónico, como se recomienda en el CPC de 2015.
Conclusiones: Finalmente, se percibió que existe alcance normativo de las reglas procesales ya establecidas para que la conclusión sea adelantada por la pertinencia de las acciones de rescisión para la protección del derecho coherente, estable y completo, por la inobservancia de un mandato vinculante. pronunciamiento judicial, siempre que se respeten los plazos establecidos.
Palabras clave: Acción de rescisión, coherencia, derecho, precedentes, seguridad jurídica.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo precípuo a análise da possibilidade de ingresso de Ação Rescisória para a correção e a adequação sistemática de decisão judicial que inobservou pronunciamento com efeitos vinculantes obrigatórios, o chamado precedente obrigatório, desatendendo ao dever de manutenção de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente, como conclamou o CPC, em seu artigo 926.
Para tanto, inicialmente, será abordado o papel da Ação Rescisória no ordenamento jurídico pátrio, bem como as suas peculiaridades conforme disposto no CPC de 2015, especialmente na hipótese do artigo 966, inciso V, do CPC, sobretudo a partir de precedente obrigatório inobservado, passando, então, para um estudo acerca do sistema de precedentes inaugurado com o novo diploma processual vigente, com uma rápida digressão às origens jusfilosóficas dos precedentes, justificando a importância, para a tese encampada – do cabimento da Ação em comento –, da definição acerca da sua natureza multíplice.
Por fim, examinar-se-á a possibilidade e a necessidade da utilização dessa medida processual para corrigir decisão judicial prejudicial ao sistema jurídico como um todo, quando o precedente que der azo ao cabimento da medida da Ação Rescisória tiver sido cristalizado posteriormente ao trânsito em julgado da decisão rescindenda.
2 OS FUNDAMENTOS DA AÇÃO RESCISÓRIA, SEU CABIMENTO A PARTIR DE PRECEDENTES INOBSERVADOS E SUA FUNÇÃO JURISPRUDENCIAL
A Ação Rescisória é o meio jurídico apto a quebrar a assunção a priori e prima facie de que as decisões judiciais são protegidas pela imutabilidade advinda do efeito negativo da coisa julgada. Isso é dizer que o trânsito em julgado efetivo e real das decisões judiciais só pode ser tido assim passados os dois anos de cabimento da Ação Rescisória, porquanto esta constitui um instrumento hábil à desconstituição do que foi anteriormente decidido. Fato que não impede o cumprimento de quaisquer decisões após o seu trânsito em julgado, mas que tira a (sempre falsa) presunção de solidez dentro destes dois anos.
Assim, ainda que a rigor, pelo que disciplina o Código de Processo Civil no seu artigo 5081, não se possa mexer na decisão transitada em julgado, isso só é verdade na perspectiva endoprocessual, daquele processo considerado isoladamente, dentro do aludido prazo do artigo 975 do CPC. Assim, para além dos dois anos, a decisão estará protegida pela coisa julgada material, que é a estabilidade conferida à sentença de que a matéria é indiscutível entre as partes, impossibilitando que qualquer órgão julgador de futuros processos possa se manifestar acerca do que já foi decidido (SILVA, 2000, p. 485). Para Chiovenda (1998, p. 452), coisa julgada material é a afirmação indiscutível e obrigatória para os juízes de todos os futuros processos, de uma vontade concreta de lei que reconhece ou desconhece um bem da vida a uma das partes.
O instrumento processual previsto para rescindir as decisões de mérito, não apenas sentenças, é a Ação Rescisória, prevista e disciplinada nos artigos 966 e seguintes do CPC, que visa à desconstituição de um ato judicial.
Com efeito, isso nem sempre foi assim. Mesquita (2005, p. 246), por exemplo, defendia que a Ação Rescisória caberia tão somente para a rescisão das sentenças de mérito e, bem na verdade, nem toda a sentença de mérito, porquanto “nem tudo o que o CPC [1973] considera como julgamento de mérito é susceptível de rescisão”. Já em Wambier e Alvim Neto (2018) a Ação Rescisória é cabível de qualquer decisão de mérito, e não apenas das sentenças. Em igual e atualizado sentido ao de Wambier e Alvim Neto, Yarshell (2015, p. 156) assevera que, nos termos do artigo 966, não se fala mais em sentença de mérito, mas em decisão de mérito, isso porque as decisões interlocutórias também são passíveis de desconstituição pela Ação Rescisória, porquanto também podem conter julgamentos de mérito, mesmo que parciais. Nesse mesmo sentido, encontra-se a disposição do artigo 356 do CPC, que assevera que o juiz poderá resolver parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles i) mostrar-se incontroverso e ii) estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do artigo 355. Dessa decisão haverá trânsito em julgado autônomo da parte de mérito julgada. Assim, mesmo as decisões interlocutórias são aptas a projetar efeitos substanciais para fora do processo.
Yarshell (2015, p. 156) aponta que, como muito no código de 2015, a hipótese de que as decisões interlocutórias resolvem questões de mérito é facilmente verificada quando da leitura do artigo 1.015, inciso II, o qual prevê expressamente caber o recurso de Agravo de Instrumento contra decisão interlocutória que versar sobre “o mérito do processo”. Assim, questões como a julgada pelo Superior Tribunal de Justiça em 25 de novembro de 2020, que, em sede dos Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial nº 1.306.464/SP, decidiu que as intimações, ainda que eletrônicas, devem ser conduzidas no nome de todos os advogados indicados expressamente pelas partes para as receberem, sob pena de nulidade do ato processual, deve ser respeitada pelos juízes a quo, bem como pelo próprio STJ. Contudo, o seu descumprimento, isto é, a sua inobservância, não poderá dar azo ao cabimento da medida em questão, a Ação Rescisória, mas apenas da reclamação, porquanto não é uma decisão de mérito, ainda que promova uma nulidade. Ainda assim, nessa hipótese, pode-se asseverar que findando o processo algum tempo depois da revelia ou inércia por causa da falta de intimação, a contagem do prazo para o manejo da Ação Rescisória, se ela fosse cabível, deveria ser iniciada a partir da última decisão de mérito proferida no processo, mesmo que não seja a decisão que se quer ver corrigida, nos termos do artigo 975 do CPC.
Fica bem assentado que as ações rescisórias são cabíveis, portanto, desde que seja qualquer decisão de mérito. Inclusive, segundo Yarshell (2015, p. 158), que, conforme o disposto no §2º do artigo 966 do CPC é cabível o manejo da Ação Rescisória da decisão transitada em julgado que, embora não seja de mérito, impeça a repropositura da demanda ou impeça o reexame do mérito. Um bom exemplo disso são as decisões de inadmissão de recurso nos tribunais, porquanto são decisões que projetam efeitos substanciais para além do processo. Pela lógica, também caberá a Ação Rescisória de decisões monocráticas e acórdãos, visto que tratam de mérito.
Assim, a Ação Rescisória é o meio apto ao afastamento da coisa julgada. Isto é, somente a partir do instrumento processual autônomo rescisório, como via de impugnação autônoma às decisões judiciais, no caso da rescisória, já transitadas em julgado, que se poderá promover a rediscussão acerca das questões de fato e de direito debatidas no processo original. Segundo Pontes de Miranda (2016, p. 69), para o manejo da Ação, é necessário que o autor elenque, na exordial, o pedido de rescisão do julgado e de rejulgamento da questão, trazendo os fundamentos jurídicos que embasam os pedidos. Além disso, deve demonstrar a pretensão jurídica à tutela buscada com o pedido de rescisão, bem como exercer, dentro dos lindes processuais, o direito de ação, não lhe socorrendo o direito, ainda que explícito, após o prazo decadencial estipulado.
Não que a Ação Rescisória vise a enfraquecer a coisa julgada, mas ela existe para evitar que a coisa julgada seja concretizada sobre decisões que não estejam livres de impugnação fundamentada. Isto é, a sistemática processual brasileira, ao continuar prevendo a Ação Rescisória, vê nela um instrumento apto ao combate às decisões que, por quaisquer questões, consolidaram-se no tempo tendo como substrato alguma daquelas hipóteses taxativas do artigo 966 do Código de Processo Civil. Assim, o ato rescindendo, até que rescindido, ou ao menos até que arguida a sua rescisão, é considerado um ato juridicamente válido, que impõe um dever no mundo (MOREIRA, 2004, p. 107).
Assim, rescindir é, na técnica jurídica mais apurada, não uma mera constatação de ilegalidade, rescindibilidade, ou a existência de um defeito invalidante, mas um romper ou desconstituir ato jurídico, no exercício de faculdade assegurada pela lei ou pelo contrato (direito potestativo) (THEODORO JÚNIOR, 2016, p. 837). Segundo Dinamarco (1995, p. 143), o que a decisão transitada em julgado tiver errado, a rescisória poderá emendar, desde que o vício seja daqueles tão graves a ponto de estarem previstos em lei, porquanto os casos indicados nos noves incisos do Art. 966 do CPC revelam o juízo normativo sobre os vícios que justificam a relativização da coisa julgada.
Desse modo, a Ação Rescisória é ação autônoma de impugnação das decisões formuladas a contar do enquadramento dos Art.s. 485 e 487 do Código de Processo Civil. Contudo, Silveira (2020, p. 304-305) faz ressalva interessante acerca do cabimento da Ação Rescisória a partir de decisão, forte no artigo 487, no inciso III, do Código de Processo Civil, isto é, as decisões homologatórias. Para o autor, nos moldes do que está previsto no artigo 966, §4º, do Código de Processo Civil, os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por outros participantes do processo e homologados pelo juízo, bem como os atos homologatórios praticados no curso da execução estarão sujeitos à anulação, isto é, estão sujeitos à Ação Anulatória, e não à Ação Rescisória.
Para além disso, a Ação Rescisória não é mais somente cabível, na hipótese do artigo 966, inciso V, do CPC, quando não observar uma regra jurídica estrita. É bem mais que isso, ela é cabível da decisão sobre a qual seja apontada uma violação à lei ou às normas resultantes de outras fontes do direito. Nesse sentido, Yarshell (2015, p. 165) assevera que “se decisões podem estar fundadas em princípios, então é quando menos lógico e coerente que rescisões possam igualmente ocorrer por violação literal (ou manifesta) a esse tipo de norma”. Isso não significa uma total abertura para a rescisão de qualquer decisão baseada em qualquer princípio, mas só naqueles casos em que o princípio foi objeto explícito da fundamentação, ou implicitamente a alterou, porquanto tenha sido equivocadamente interpretado, em descompasso à jurisprudência histórica.
Uma questão adicional diz respeito ao cabimento da Ação Rescisória para rescindir decisão que inobservou precedente firmado já existente quando da prolação da decisão de mérito. Yarshell (2015, p. 165-166) aparece em sentido contrário a essa posição, argumentando que os precedentes, ainda que vinculantes e protagonistas no CPC, não podem, por si sós e em princípio, subsidiar “pura e simplesmente o pedido formulado em rescisória, ainda que eles possam livremente servir de reforço na argumentação de violação manifesta a uma verdadeira norma jurídica”. O artigo 966, em seu § 5º, entretanto, prevê a possibilidade do cabimento da Ação Rescisória, com fundamento no inciso V do caput (“violar manifestamente norma jurídica”), contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenham considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento. O §6º o complementa, asseverando que quando a Ação Rescisória for fundada no §5º, caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar fundamentadamente que as decisões tratam de situações diferentes e, em especial, que o caso em que fora insculpida a decisão rescindenda é particularizada por hipóteses fáticas distintas ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica.
Assim, é cabível a Ação Rescisória para corrigir uma inobservância de superação ou distinção de precedente que lhe era imposto e que lhe deva ter sido apresentada. A lógica é parecida com aquela insculpida no Enunciado de Súmula nº 249 do STF, segundo a qual “é competente o STF para a Ação Rescisória quando, embora não tenha conhecido do RE, ou havendo negado o provimento do agravo, tiver apreciado a questão federal controvertida”. Isto é, em grossas linhas, que, tendo o tribunal ignorado a matéria que era prejudicial ao contorno da decisão, caberá a Rescisória para a correção dessa inobservância.
Além disso, é cabível a medida da Ação Rescisória para o enfrentamento de inconstitucionalidade superveniente. A possibilidade vem prevista nos artigos 525, §12, e 535, §5, ambos do Código de Processo Civil, e tratam, respectivamente, i) da possibilidade de manejo da Ação Rescisória (artigo 525, §18º, do CPC), para o combate a título executivo judicial fundado em lei ou ato normativo considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou do ato normativo tido pelo STF como incompatível com a Constituição da República, em controle de constitucionalidade (difuso ou concentrado), em específico, se essa decisão for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, e, no mesmo sentido, ii) para a impugnação de título contra a fazenda pública. Em ambos os casos, o prazo será contado a partir do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal2. Assim, os codificadores não albergaram a hipótese de que se possa continuar formando títulos executivos judiciais fundamentados em leis, atos ou interpretações em desconformidade com o texto constitucional, fato que impõe, após os dois anos da decisão do STF, o reconhecimento da nulidade por outras vias.
Contudo, é notória e pacífica, portanto, a possibilidade de Ação Rescisória tendo como objeto de parâmetro uma decisão com efeitos vinculantes dada posteriormente à formação de um ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Tudo isso por questão de atendimento ao direito fundamental à igualdade entre os jurisdicionados, que decorre do princípio democrático que inaugura o sistema judiciário, bem como no direito fundamental à segurança jurídica, não apenas, por óbvio, no direito intersubjetivo à segurança jurídica, mas no direito transindividual em que todos os cidadãos têm uma justiça que se manifeste de modo seguro, e mais, que procure a máxima adequação e harmonização do produto jurídico-estatal, privilegiando os direitos constitucionalmente estabelecidos (ALEXY, 2011, p. 194).
Portanto, após o prazo da rescisória, em qual marco temporal do início do direito de ação for, não mais se precisará falar em coisa julgada, porquanto há essa fragilização quando da possibilidade de sua rescisão pelo instrumento em estudo, mas poder-se-á falar, na esteira do voto do Min. Celso de Mello no Recurso Extraordinário nº 592.912, em “coisa soberanamente julgada”. Assim, diferentemente da coisa julgada standard, que é irretocável apenas prima facie e a priori, a coisa soberanamente julgada seria, ela sim, detentora da qualidade de perfectibilização inalterável de certa ordem de coisas no mundo. Há, por certo, uma colisão entre posições, de um lado, há a presunção de perfectibilidade temporal e respeito à coisa julgada enquanto uma experiência de concretização de um julgamento formal, de outro lado, há a teleológica razão de ser do direito, a não admitir que, ante a possibilidade de proferimento de respostas mais adequadas ao sistema jurídico existente, mantenham-se decisões sabidamente superadas em nome de uma falsa segurança jurídica. O direito deve ser um empreendimento teleológico válido e, por esse motivo, deve manifestar-se na coragem de alteração das coisas para a concretização de uma forma de vida satisfatória, e nunca contraditória3.
Em oposição diametral a essa postura, e com o reconhecimento de parcela de razão em virtude da delicadeza da situação problema, Nery Júnior e Nery (2010, p. 715-717) aduzem que o "risco político de haver sentença injusta ou inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de se instaurar a insegurança geral com a relativização ('rectius': desconsideração) da coisa julgada”. Entretanto, ao se assumir o direito enquanto manifestação de uma ótica prudencial do que deve-ser, torna-se irracionalmente e injustificada a posição de stare decisis et non quieta movere aos auspícios de uma sedizente segurança jurídica, quando essa qualidade do sistema jurídico deve, primeiro, preocupar-se com o significado do direito em sua autêntica teleologia jurídica, e, só depois, com a estabilidade4 dessa manifestação adequada do direito.
Contrario sensu ao que se defende – possibilidade de manejo de rescisória para corrigir inobservância de precedente, tanto já existente quanto superveniente – o STJ decidiu que não cabe Ação Rescisória com base em precedente posterior ao trânsito em julgado da decisão questionada, no julgamento da Ação Rescisória nº 4.443/RS5. No caso, a autora queria ver afastada do caso (Distinguishing) a incidência do Enunciado da Súmula nº 343 do STF (“Não cabe Ação Rescisória por ofensa à literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais“), porquanto a questão debatida era de natureza constitucional, e não legal. Venceu, no caso, o voto do Min. Gurgel de Faria que, na linha apresentada por Nery Júnior e Nery (2010), não se pode discutir questão transitada em julgado com base em precedente posterior à decisão que se quer ver rescindida, exceto se o precedente posterior tiver sido firmado em ação de controle concentrado de constitucionalidade. O Min. Herman Benjamin, que ficou vencido, argumentava que havia uma questão constitucional subjacente que era prejudicial, na hipótese, o padrão decisório que se queria ver consagrado foi proferido em sede de REsp afetado para julgamento sob o rito dos Recursos Repetitivos, em 2008 (nº 977.058/RS), que ia em sentido contrário à decisão rescindenda, que era de 2005. Assim, embora não estivesse respeitado os dois anos do artigo 975 do CPC, o estava respeitando a partir do precedente.
A situação desenhada nos autos da AR nº 4443/RS, julgada pelo STJ, é exatamente a que se quer ver combatida. No caso – que debatia se o adicional de 0,2% da contribuição sobre a folha de salário destinado ao INCRA havia sido extinto ou não, por ter natureza de contribuição para o custeio da Previdência Social – a questão era controvertida e veio a ser mais uma vez assentada no julgamento dos Embargos em REsp nº 770.451/SC, em 2006. Assim, havia tempo hábil para que o STJ houvesse cumprido a sua função precípua, de harmonização acerca da interpretação do direito infraconstitucional, e apreciado a matéria de modo material, como quis fazer o Min. Herman Benjamin, e não estritamente legal, como fez o Min. Gurgel de Faria.
De qualquer modo, a Ação Rescisória é um meio de impugnação autônomo dos atos judiciais. Assim, para muito além de meramente decidir sobre um ato ou relação jurídica dos particulares envolvidos, o Poder Judiciário adentrará na relação mais abrangente, uma relação da qual fazem parte os litigantes, os terceiros e o próprio Poder Judiciário (MESQUITA, 2005, p. 246). A Ação Rescisória é uma via processual que torna mais densa a relação entre decisão, dever do Estado enquanto detentor do monopólio da justiça e o correto entendimento acerca do que o direito é, do que significa e do que impõe no mundo.
Nota-se, portanto, que a Ação Rescisória tem o condão, ainda que o seu estudo e sua prática, nesse sentido, permaneçam incipientes, de ser mais um instrumento balizador de uma jurisprudência íntegra, estável e coerente, aos moldes do preconizado nos artigos 926 e 927 do Código de Processo Civil. Portanto, esse meio processual não serviria para a harmonização per se da jurisprudência, como servem, p.e., as ações do controle concentrado, o IRDR, o IAC e o rito de julgamento dos recursos extraordinários e especiais repetitivos, mas como um instrumento autônomo de impugnação de decisão já desarmônica, ou que se demonstra, dentro de dois anos, descompassada da correta e mais adequada interpretação do que o direito deve ser. A Ação Rescisória tem potencial para, junto à Reclamação, ser instrumento impugnatório autônomo de alteração do núcleo formativo do direito, ainda que de modo pontual e tópico.
Nesses moldes, a Ação Rescisória demonstra-se como mais um instrumento apto, hábil e hígido, embora controvertido, para a correta condução de um direito coerente, harmônico, unitário, íntegro e racional. É nesse sentido que Mancuso (2018, p. 353) reconhece a força da Ação em comento para a uniformização externa da jurisprudência. Desse modo, é um instrumento que possibilita que o Estado, a partir da função essencial dos advogados, possa cumprir sua missão harmonizadora e imperativa. Contudo, insta referir quais os precedentes que devem ser respeitados ex legge, via Ação Rescisória fundada no artigo 966, inciso V, do CPC, porquanto não são todos os que alteram com vinculatividade obrigatória a interpretação acerca do que é direito, mas tão somente aqueles previstos como tais.
3 O PAPEL DOS PRECEDENTES NA CONCRETIZAÇÃO DO DEVER DA COERÊNCIA DA JURISPRUDÊNCIA E DO SISTEMA JURÍDICO
De maneira inovadora no ordenamento jurídico pátrio, o Código de Processo Civil de 2015 regula o sistema judicial de precedentes, que busca assegurar, entre outros princípios constitucionais atualmente aplicados ao processo brasileiro, a isonomia e a segurança jurídica. Para isso, o legislador elenca alguns mecanismos que terão observância obrigatória e que, além de contribuir para a segurança jurídica, mostram-se também como meios de otimização dos julgados, privilegiando a celeridade processual, diante de um Poder Judiciário cada vez mais abarrotado de processos. Surge o sistema de precedentes brasileiro, dando protagonismo a instrumentos processuais de eficácia vinculante, destacando para tal, além do controle concentrado de constitucionalidade, súmulas vinculantes e enunciados de súmulas do Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, o incidente de assunção de competência, o incidente de resolução de demandas repetitivas e os recursos especial e extraordinário repetitivos, disciplina dada pelo artigo 927 do CPC.
Assim, os precedentes garantem maior previsibilidade das respostas jurisdicionais. Não mais sendo tolerado, pelo menos no plano formal, que haja juízes julgando de maneira distinta casos semelhantes, aos quais já foi atribuída tese jurídica satisfatória por certas esferas do Poder Judiciário. Nessa linha, a mudança de paradigma que adotou o legislador, saindo de um caráter meramente persuasivo da jurisprudência (que continua existente) para assumir um papel autenticamente normativo dos precedentes vinculantes, fruto da tendência de tentar reduzir a discricionariedade judicial e o efeito danoso da litigiosidade em massa no congestionamento dos tribunais, contemplando maior respeito à igualdade, à segurança jurídica, à eficiência e à celeridade. Contudo, nem sempre foi assim.
É permitida, portanto, uma rápida digressão a termos mais conceituais e históricos acerca dos precedentes. Assim, o termo “precedente” é, sem dúvida, um conceito polissêmico, mudando de sentido por meio de sua história e de diferentes tradições jurídicas ao redor do globo. Precedente judicial, como o nome indica, diz respeito à identificação de uma solução jurídica adequada dada a um caso que servirá como guia interpretativo para casos posteriores. Esse papel de guia poderá ser de muitas naturezas, como se verá. Porém o destaque importante no ponto é para o fato de que todo o precedente será composto por duas partes distintas, uma parte que indica quais as circunstâncias de fato que embasam a controvérsia, que será de extrema importância para identificação das possibilidades aplicativas do precedente no futuro, e uma segunda parte que diz respeito à tese ou ao princípio jurídico assentado na motivação do provimento decisório, isto é, a formulação imperativa de norma individual e concreta para resolução do caso, bem como de seus fundamentos chaves (TUCCI, 2021, p. 2).
O primeiro momento é o momento da Obiter dictum, em que são aventadas as questões que serão utilizadas para a identificação da similitude fática entre este caso, que servirá de paradigma futuramente, e os casos em que se pretenda a aplicação da solução jurídica formulada na segunda parte, na ratio decidendi. A ratio decidendi, entretanto, não se identifica com todos os fundamentos argumentativos da decisão judicial (GOODHART, 1930, p. 164). Na verdade, os fundamentos fáticos e jurídicos da decisão são essenciais para que se permita abstrair sua ratio decidendi do caso concreto paradigma. Somente com a perfeita identificação dos elementos inerentes à fundamentação da decisão é que se consegue buscar a regra jurídica originada do julgamento, a qual servirá de guia para outras decisões cujas premissas fáticas sejam relevantemente semelhantes aos do caso paradigma, bem como que haja uma relevante semelhança nas possibilidades jurídicas de resolução dos casos. Não é uma regra geral e abstrata, como a dos atos normativos proferidos pelo Legislativo, porquanto a ratio decidendi está sempre ligada ao contexto fático analisado pelo tribunal (LAMOND, 2005, p. 2).
Daí por que a ratio decidendi constitui regra jurídica que sempre se relaciona aos fatos essenciais do processo no qual foi formado o precedente, sem poder ser abstraída de seu contexto, uma vez que é fonte argumentativa do direito, mas não é fonte formal do direito (GAVIÃO FILHO, 2011, p. 222). A regra jurídica insculpida no precedente judicial, depois de devidamente identificada e confirmada sua aplicabilidade ao caso, poderá desvincular-se razoavelmente do seu próprio contexto fático e tender a um nível adequado de generalização, o suficiente para permitir sua aplicação em casos relevantemente semelhantes (faticamente e nas possibilidades jurídicas do caso) que mereçam a aplicação daquele mandamento normativo.
O precedente é originalmente derivado da cultura do common law6, em que a preocupação é a de uma prática deliberativa cooperativa e continuada, cuja intenção imediata não é a aplicação ou criação de normas de condutas aprioristicamente, como tradicionalmente é nos ordenamentos jurídicos de cultura romano-germânica, mas a de solução judicativa de problemas práticos que surgem da vida em sociedade, preferencialmente pela identificação de resposta contida em certo costume comunitário7, não querendo prever todos os problemas que possivelmente surgirão e suas soluções hipotéticas e em abstrato. Contudo, Schauer (1991) reconhece a possibilidade de existirem sistemas jurídicos baseados em regras, mas que valorizam fortemente o uso dos precedentes:
In dealing both with authoritative interpretations of statutes and with common-law decisions, legal systems characteristically purport to rely on precedents, and frequently justify that reliance by reference to many of the same virtues that are used to justify rule-based decision-making, such as predictability, stability, and decision-maker disability. This suggests that there may be and affinity between rule-based and precedent-based decision-making, an affinity that itself may explain why decision-making systems valuing these traits finds a place both for rules and for a strong system of precedents (SCHAUER, 1991, p. 182).
Outrossim, as razões de decidir, se exemplares, racionalmente construídas e aptas a orientarem casos relevantemente semelhantes, serão utilizadas, em um constructo histórico, para a resolução de conflitos, de modo que, posteriormente, as decisões nas quais foram insculpidas serão reconhecidas como precedentes. O precedente é um status adquirido por determinada decisão ao ser aplicada subsequentemente em demandas sucessivas, sendo considerado o leading case na formulação daquela resposta jurídica (ratio decidendi) que, de fato, altera o sentido material sobre determinada norma. Este é o conceito que mais se aproxima da Rule of Precedents, modelo existente nos países da Common Law, em especial, no stare decisis (et non quieta movere), há a formulação do ideário de promoção da segurança jurídica e da igualdade entre os jurisdicionados a partir, principalmente, da previsibilidade das decisões.
Nesse diapasão, constata-se que o sistema da common law se caracteriza pela observância dos precedentes como fonte primária do direito, sendo tal força vinculativa das decisões elemento central de tal estrutura jurídica (TUCCI, 2021, p. 3). No Brasil, com a opção legislativa de constituir pronunciamentos vinculantes, os precedentes ostentam o condão de vincular a decisão proferida aos casos posteriores.
Deve-se destacar que nem a tese jurídica nem a decisão que se torna precedente pode ser vista como fonte normativa (formal de direito), de modo que se possa facilmente extrair dali regras jurídicas aplicáveis subsuntivamente. Na verdade, qualquer decisão deixará margens razoáveis de indeterminação, frequentemente bastante substanciais. Por isso, é necessário que sejam buscados outros elementos presentes na justificação da decisão pretérita, fora da ratio decidendi, para que se possa pretender uma adequação argumentativa ao âmbito de aplicação do mandamento jurídico ocasionado pela força do precedente.
Na dinâmica processual, o advogado de uma das partes possivelmente argumentará que os fatos essenciais do caso submetido a julgamento são idênticos ao do precedente que pretende ver aplicado, enquanto o advogado da parte adversa desenvolverá argumentação em sentido contrário, demonstrando a inadequada aplicação do precedente por distinções em relação ao núcleo essencial da ratio decidendi, como, por exemplo, a razoável similitude fática e a semelhança relevante da quaestio júris (SCHAUER, 2009, p. 179). A situação do caso é construída a partir do diálogo, do debate entre as partes. A força dos argumentos apresentados é que pode conduzir ao convencimento de que a ratio decidendi é mais ampla ou mais estreita, segundo a hipótese fática concreta a ser decidida, isto é, a utilização do precedente dependerá de como a solução dada anteriormente será interpretada (TWINING, 1999, p. 301).
Assim, o desenvolvimento do sentido material do direito, concretizado mediante sua dialética realização no Judiciário, vai sendo construído lentamente pela história. Esse mosto de decisões é que indicará o verdadeiro significado do direito aplicado a casos, isto é, o real significado atribuído por juízes e tribunais na prática jurisdicional em si. É nesse sentido que o artigo 926 buscou explicitar a preocupação com a manutenção de uma jurisprudência estável, íntegra e coerente. Desse modo, o precedente judicial exsurge enquanto instrumento apto a promover mudança institucional-cultural da prática judicante.
Precedentes, conceitualmente, são manifestações judiciais capazes de funcionar como paradigmas orientadores de interpretação e aplicação do direito, a partir das formulações racionais das fundamentações dos julgados originários, ou daqueles que definitivamente cristalizam e delineiam (MARINONI, 2010, p. 213-214) a tese, ou teses, jurídicas contidas naquela decisão, sobretudo na sua ratio decidendi. Para Dworkin (1999, p. 176), um precedente é o relato de uma decisão política anterior e, enquanto fragmento da história política, oferece uma razão para que outros casos sejam decididos de maneira similar no futuro.
Nenhuma decisão jurídica nasce precedente persuasivo de pronto, somente historicamente, a partir de sua intromissão na fundamentação das partes e dos juízos, é que poderá ganhar o status diferenciado de pronunciamento persuasivo. Assim, precedente é uma ratio decidendi formal somada a uma teoria dos precedentes persuasiva, para MacCormick (1987, p. 171). A razão para tanto é que os sucessivos julgamentos darão coerência ao direito, em um processo que ele chamará de reconstrução racional da ratio decidendi, ou seja, o precedente é definido com o tempo, e pelos demais julgadores. Castanheira Neves (1983, p. 11-12), ao distinguir precedentes de assentos, asseverou que precedentes não se identificam com o precedente obrigatório do regime dos assentos de Portugal, porquanto o precedente é uma concreta decisão jurisprudencial que, vinculada historicamente e concretamente ao caso originário, se torna padrão normativo casuístico a ser replicado em situações análogas – Alexy (2020, p. 237-238) chamará de relevantemente semelhantes – para a sua (re)aplicação, mas não a criação de uma norma ex novo visando ao futuro, em uma autêntica função legiferante.
Contudo, os precedentes judiciais podem conter duas naturezas distintas, uma constitutiva, que são aqueles que criam regras a partir de direito costumeiro, e uma interpretativa, em que são proferidos entendimentos sobre a interpretação e aplicação de regras legislativas ou constitucionais. No civil law, encontravam-se apenas os precedentes interpretativos. Entretanto, precedentes não advêm de todo e qualquer pronunciamento judicial, com efeito, a decisão deve apresentar valor transcendental (para além do caso concreto) e se mostrar apta a potencialmente funcionar como paradigma à orientação, tanto dos jurisdicionados quanto dos aplicadores do direito, sobretudo dos magistrados, ganhando verdadeiro status de “padrão normativo casuístico em decisões análogas futuras ou para casos de aplicação concretamente analógica” (CASTANHEIRA NEVES, 1983, p. 12).8.
No Brasil, o Código de Processo Civil de 2015 regula o sistema judicial de precedentes; e, para tanto, o legislador elencou alguns mecanismos que terão observância obrigatória e que se mostram como meios de otimização dos julgados, privilegiando a celeridade processual, diante de um Poder Judiciário cada vez mais abarrotado de processos. Surge o sistema de precedentes obrigatórios, dando protagonismo a instrumentos processuais de eficácia vinculante, destacando para tal, além do controle concentrado de constitucionalidade, súmulas vinculantes e enunciados de súmulas do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) e Supremo Tribunal Federal (“STF”), o incidente de assunção de competência, o incidente de resolução de demandas repetitivas e os recursos especial e extraordinário repetitivos, disciplina dada pelo artigo 927 do Código de Processo Civil. Mas como corretamente aplicá-los?
A interpretação e a aplicação dos precedentes são os pontos-chave para sua efetiva utilização e cristalização enquanto fonte do direito9. Primeiramente, deve-se diferenciar a(s) ratio(s) decidendi(s) insculpida(s) na decisão cujo status vai atribuído hipoteticamente, dos meros obiter dictum, isto é, daquelas partes da decisão das quais não se extrai conteúdo jurídico essencial à compreensão da tese jurídica utilizada para a resolução do caso. Assim, é necessária a observância das circunstâncias de fato que embasaram a discussão da controvérsia originária, isto é, do precedente paradigma. De modo que a aplicação do precedente P, cuja tese T foi insculpida a partir de uma situação de fatos S, deverá ser analisado se a T, consubstanciada no pronunciamento P, poderá ser utilizada para a resolução da situação S’; e o poderá se, além de T ainda apresentar-se corrigido, S’ é relevantemente semelhante à S. Caso não seja hipótese de aplicação de T em virtude de um descompasso histórico de reverberação social, deverá ser afastado do caso, podendo ainda sofrer, no common law, o overruled (revogação de sua ratio) é formalmente excluído das fontes e perde, por via de consequência, qualquer valor, e, no civil law, o revirement da jurisprudência, ou seja, quando determinado posicionamento pretoriano, até então dominante, é substancialmente alterado por um julgado que se transforma em novo precedente, pela atuação dos tribunais superiores (TUCCI, 2021, p. 3-5).
Nesse sentido, aos tribunais superiores é guardada função nobre, a nomofilácica a qual comina aos tribunais que coordenem de que forma deve-se dar a interpretação do direito, assim garantido a uniformização da jurisprudência e, em alguns casos, impondo determinada interpretação a casos subsequentes (ROSITO, 2012, p. 243-249).
Para Wambier (2009, p. 4-5), “a vinculatividade dos precedentes é justificada pela necessidade de igualdade e a igualdade é atingida por meio da seleção de aspectos do caso que deve ser julgado”. Os precedentes judiciais, portanto, garantem a igualdade, a segurança jurídica e a previsibilidade necessárias para o livre desenvolvimento da vida na comunidade política. Então, há imperativa necessidade de observância e respeito às decisões e as teses emitidas aos julgamentos dos tribunais superiores, principalmente por razões de ordem obrigatória (vinculante), mas também por imperativo coativo-moral (persuasivo). Para Tucci (2021, p. 195), há fatores determinantes de diferentes níveis da força gravitacional, ou vinculante, dos precedentes, como a posição hierárquica do tribunal, a natureza processual em que foi proferida, o tempo de institucionalização daquele precedente enquanto detentor deste status e, dentre outros, a aceitação gerada na teoria ou a repetida utilização enquanto precedente para resolução dos casos, consolidando-o enquanto tal pelo caminhar histórico da jurisprudência (PECZENIK , 1997, p. 477-478).
No Brasil, tendo-se em vista que não existia respeito aos precedentes emanados pelas cortes, sobretudo pelos tribunais superiores, por “falta de responsividade” e “ausência de plena motivação” das decisões judiciais que visavam a superar, ou meramente não aplicar, precedentes, optou-se pelo reconhecimento de status diferenciado, desde logo que prolatada a ratio juris, a certos pronunciamentos judiciais especiais, cuja vinculatividade se dá de forma obrigatória, inclusive com a possibilidade de apresentação de reclamação para o órgão que originou tal pronunciamento, em caso de descumprimento de seu mandamento por outra instância, hierarquicamente menor.
Contudo, o “rol” de precedentes de vinculatividade obrigatória, disposto no artigo 927 do Código de Processo Civil, não é taxativo10. Por exemplo, o STJ foi criado para que tivesse a função constitucional de interpretar e orientar a jurisprudência da matéria infraconstitucional, a título de manejar a consolidação mais segura, coerente e estável do sentido interpretativo da jurisprudência nacional. Assim bem explana a teoria de Alvim (1999, p. 37-39), para quem a função jurisdicional exercida pelo Superior Tribunal de Justiça representa o real significado que se deve impor no direito federal de caráter infraconstitucional, de modo que constitua a orientação do STJ a última e definitiva palavra sobre o entendimento aplicativo do direito infraconstitucional. De modo que, na sua percepção final e última, as decisões do Superior Tribunal de Justiça configuram o referencial máximo em relação ao entendimento que deve ser aplicado e que deve constranger a tomada de decisões por juízos a quo a ele vinculados.
Como visto, as decisões deste Tribunal Superior configuram o referencial máximo no que tange aos entendimentos havidos em relação ao direito federal. Suas decisões, portanto, apresentarão ratio decidendis vinculantes (obrigatoriamente ou meramente persuasivas), que deverão ser observadas. Com efeito, a mais importante função do STJ é o exercício de uniformizar a jurisprudência (artigo 105, III, da CF), fornecendo a mais correta interpretação das leis federais; e, o principal instrumento pelo qual o Superior Tribunal de Justiça pode exercer tal função constitucional é o Recurso Especial, cabível em causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federias, ou pelos Tribunais dos Estados, quando a decisão recorrida:
a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência;
b) julgar válido ato de governo local contestado em face de lei federal ou;
c) dar a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro tribunal.
Nesse diapasão, há que se pontuar que as decisões dos tribunais superiores têm vinculatividade em direção vertical ou horizontal. Essa perspectiva, comenta Gavião Filho (2016, p. 35): “diz respeito à direção da relação entre o órgão jurisdicional do caso precedente e o órgão jurisdicional do caso presente, objeto de interpretação e aplicação do Direito em uma situação concreta determinada.” Assim, na perspectiva vertical, o juiz a quo deve obedecer ao precedente frente à hierárquica na estrutura do sistema de justiça. Aplica-se esse modelo de vinculatividade aos juízes e aos tribunais que devem aplicar entendimentos fixados pelos seus superiores hierárquicos a casos semelhantes aos já interpretados e julgados.
Já na perspectiva horizontal, o tribunal deve ser coerente com sua jurisprudência interna. Aqui a vinculatividade se dá em “razão do princípio da universalidade e na regra formal de justiça de tratar igualmente os iguais. Casos semelhantes, em seus aspectos essenciais, devem receber semelhantes interpretações e qualificações jurídicas”. Ainda, em relação ao efeito vinculativo desses precedentes para cortes e juízos inferiores, sua vinculatividade não será total e obrigatória, como no caso dos precedentes verticais, e sim persuasiva. Isso significa, para Gavião Filho (2016, p. 35), “que não se pode falar em vinculatividade jurídica aos precedentes dos tribunais, tampouco se pode entender que os juízes de tribunais estão livres para se desviar, sem mais, dos precedentes dos tribunais aos quais pertencem”. Complementa-se que os juízos e os tribunais não podem se desviar dos precedentes de tribunais ad quem e nem daqueles produzidos por si próprios, uma vez que tais condutas afrontariam não apenas os deveres de busca e manutenção de uma estabilidade na jurisprudência, mas porque não se consideraria racionalmente justificadas tais decisões que não argumentassem o porquê da não aplicação de precedentes incidentes no caso (GAVIÃO FILHO, 2016, p. 35).
Frente a isso, nota-se que, em nome da coerência, da igualdade, da segurança jurídica e da integridade das decisões judiciais, devem ser seguidas as orientações e os entendimentos fixados pelos órgãos jurisdicionais de maior hierarquia, no que concerne à capacidade de julgamento com efeito vinculante, em uma perspectiva interna do Poder Judiciário, sobretudo nos reconhecidamente obrigatórios. De modo que a sua não aplicação dará azo ao ingresso da medida impugnativa autônoma da Ação Rescisória para a correção de decisão que não atentou, ou por bem decidiu não aplicar pronunciamento tido como obrigatoriamente vinculante àquele caso, ainda que devidamente fundamentada a sua não aplicação. De certa forma, a rescisão por precedente vinculante firmado anteriormente à prolação da decisão que transitou em julgado e que se quer ver rescindida deve ser pacífico, lastreado no dever de manutenção da jurisprudência íntegra, estável e coerente; o que se deve refletir é acerca da possibilidade de ingresso da Ação Rescisória com fundamento em pronunciamento vinculante concretizado dentro dos dois anos de que fala o artigo 975 do CPC.
4 A AÇÃO RESCISÓRIA E A NECESSÁRIA REFLEXÃO ACERCA DO CABIMENTO FUNDAMENTADO EM PRECEDENTE VINCULANTE FIRMADO DENTRO DO SEU PRAZO DECADENCIAL
O que se quer refletir, como adiantado, é a possibilidade de extensão do disposto no artigo 966, inciso V, do Código de Processo Civil para os casos de decisões, transitadas em julgado que tiverem dentro dos 2 anos de prazo (Art. 975 do CPC), alteração substancial no entendimento acerca da correta interpretação e aplicação do direito, no caso, alterada pela cristalização de entendimento com observância obrigatória. Adiciona-se a essa questão a possibilidade desse entendimento condicionado à afetação do meio processual apto a cristalizar precedente obrigatório dentro dos 2 anos de prazo (Art. 975 do CPC) da Ação Rescisória. Prazo que, segundo a Súmula nº 401 do STJ, é contado a partir de quando não é mais cabível qualquer recurso do último pronunciamento, ou do trânsito em julgado, se era cabível ainda algum recurso.
Pois bem, sabe-se que norma e texto não se identificam, porquanto a norma – enquanto força cogente e imperativa no mundo – decorre da interpretação, por um jurista, do texto legal. Assim, quando se fala em norma, como no apontado artigo 966, inciso V, do Código de Processo Civil, deve-se entender que se está falando de uma ordem interpretativo-jurídica que ocorre no sistema jurídico pela interpretação. Tanto pela interpretação feita por cada jurista quando da aplicação daquela norma quanto da interpretação que histórico-institucionalmente se foi infirmando na prática jurisdicional.
Na tarefa judicial, o seu objetivo é o da materialização do justo a partir da utilização do raciocínio teleológico da máxima do direito romano: ius est ars boni et aequi (o direito é a arte do bom e do justo) (CASTANHEIRA NEVES, 1976, p. 24-25). Nesse mesmo sentido, considerado que o fenômeno jurídico não se confunde com uma mera constatação do fenômeno político; compreende-se, então, que a efetiva operacionalidade de uma segurança jurídica se dê onde o direito deve-se realizar, isto é, na atividade jurisdicional. Portanto, mais do que buscar uma coerência no direito, em amplo aspecto (lei e prática), deve-se focar na realização coerente do direito, por meio da sua prática (AMAYA, 2015, p. 340).
Portanto, quanto mais respeitado for o direito como um todo, mais tal ordenamento jurídico será a expressão de uma coerência adequada. Contudo, coerência não pode ser traduzida simplesmente por se contemplar um sistema com segurança jurídica. Porquanto, para Raz (1992, p. 288), ainda que seguro, isso não estabelece que o direito é puramente e satisfatoriamente coerente, uma vez que o direito é o resultado da coerência observada pela média das atividades de uma complexidade de pessoas, de suas interações através da história.
Assim, o significado das normas jurídicas, assim como o do direito, não deve ficar preso por arreios promovidos por um respeito formal à coisa julgada – diferente à coisa soberanamente julgada – e à segurança jurídica. Deve haver deferência racional e juridicamente intencionada a estas duas categorias, contudo a hipótese de cabimento da Ação Rescisória que se defende não ofende nenhum dos objetivos pelos quais fora pensada a coisa julgada (formal e material) e a segurança jurídica. Em semelhante conclusão, promovendo o debate da confiança legítima, Alvim (2019, p. 59-71) assevera que, sendo o precedente uma interpretação acerca da norma, e não ela em algum espaço de tempo – daí decorre o problema da modulação dos seus efeitos –, o jurisdicionado deve poder calcular sob qual regra está imperado, podendo confiar que não será atingido por uma nova decisão que altere sentido à norma que lhe rege, porquanto os seus efeitos serão modulados, sendo essa modulação um direito de defesa do jurisdicionado. Contudo, Alvim (2019, p. 133-140) entende que, caso não haja modulação por um tribunal de cúpula, e se havia forte controvérsia sobre a correta interpretação na jurisprudência anterior, a Súmula nº 343 do STF deve ser afastada, bem como o Enunciado de nº 400, porquanto i) o seu intuito é defender a não rescindibilidade de interpretação clara sobre a lei, o qual só haverá depois da pacificação, ii) porque viola, nessa hipótese, com o princípio da legalidade e iii) porquanto conflita com o dever insculpido no artigo 926 e ss. do CPC, de modo que “admitir que sobreviva decisão que consagrou interpretação hoje considerada, pacificamente, incorreta pelo Judiciário apenas porque à época da prolação da decisão, a jurisprudência era controvertida, é prestigiar o acaso”11.
A necessária extensão do entendimento acerca da hipótese de cabimento da Ação Rescisória contra decisão de mérito, transitada em julgado, que viole manifestamente norma jurídica (artigo 966, inciso V, do CPC), para abarcar nela a ofensa a precedentes, é imperativa pelo fato de serem os precedentes, ainda que na sua formulação obrigatória e ex novo, fonte substancial do direito (TUCCI, 2021). Por lhe ser assim, não há que se falar em violação à norma sem que seja considerada a real manifestação do sentido material desta, via qualquer tipo de pronunciamento que lhe dê significado e que seja vinculante dentro da sistemática nacional, sobretudo quando esse pronunciamento já era existente e cogente, na ordem jurídica, quando da prolação de uma decisão judicial. Decisões como essa merecerão a rescisão.
De modo menos pacífico, e reconhecidamente polêmico e novo, tem-se que não apenas precedentes firmados antes da prolação da decisão de mérito rescindenda, mas também há que se pensar na possibilidade da rescisão tendo como paradigma um precedente obrigatório – daqueles instrumentos tidos como obrigatoriamente vinculantes pelo Códex Processual – ainda que superveniente, dentro do prazo de dois anos da Ação Rescisória (artigo 975), contados a partir do trânsito em julgado da decisão de mérito que se quer ver rescindida. De modo muito semelhante com a possibilidade de rescisão por declaração de inconstitucionalidade superveniente, como traçado pelos artigos 525, §12, e 535, §5, ambos do Código de Processo Civil. Evidentemente que, para que isso seja possível é necessário que a decretação da nova cogência via precedente obrigatória seja dada sem a modulação dos efeitos para somente ex nunc, devendo ter os efeitos (ex tunc) aptos a alcançarem a contemporaneidade com a decisão rescindenda (PONTES DE VIEIRA, 2016, p. 692).
Assim, não há que se falar no óbice insculpido ao Enunciado sumular nº 343 do Supremo Tribunal de Federal (“não cabe Ação Rescisória por ofensa a literal disposição de lei, quando a decisão rescindenda se tiver baseado em texto legal de interpretação controvertida nos tribunais”), porquanto, na vigência de um precedente obrigatório, não mais haveria interpretação controvertida nos tribunais, e apenas uma única interpretação insculpida em meio processual que impõe obrigatoriamente a sua observância, isto é, que oferta – ainda que idealmente – um substrato interpretativo único, padronizador e conformador acerca da correta interpretação a ser acatada nos casos. Desse modo, parece que, após 2015, se pode rever o precedente persuasivo vertical – utilizado como tal pelo próprio STJ – insculpido no Recurso Especial nº 736.650/MT, julgado em 20 de agosto de 2014, que assevera que “a pacificação da jurisprudência desta Corte em sentido contrário e posteriormente ao acórdão rescindendo não afasta a aplicação do enunciado n. 343 da Súmula do STF”, entendimento reverberado, por último (que se tem notícia) nos autos do EDcl no AgInt nos EAREsp 1.328.104/RS (Julgado em 28/10/2020). O caso era sobre a aplicação do BTNf para a correção monetária do saldo devedor dos contratos do SFH no mês de março de 1990, no percentual de 41,28%, bem como pela impossibilidade de aplicação da TR nos contratos de financiamento habitacional celebrados antes da Lei nº 8.177, de março de 1991.
O Supremo Tribunal Federal, nos autos da Ação Rescisória nº 2.297, teve a oportunidade de confirmar, em março de 2021, o entendimento decidido em monocrática, em 2015, hipótese em que o Min. Relator Edson Fachin havia julgado procedente a Ação Rescisória, com base em jurisprudência posterior ao trânsito em julgado do caso, e afastado o Enunciado sumular 343, porquanto o Acórdão rescindendo seria do próprio tribunal. Em 2016, contudo, o Min. se retratou e aguardou a tramitação ordinária do processo. A Autora da Ação Rescisória era a União, que tentava a rescisão do Recurso Extraordinário, de nº 350.446, julgado em 2007, com trânsito em julgado de outubro de 2010, que permitiu o creditamento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) referentes às aquisições de insumos e às matérias-primas sujeitos à alíquota zero (TEMA 136, segunda parte, de Repercussão Geral). A Ação Rescisória foi proposta em setembro de 2011 e pretendia ver superado o entendimento exarado nos autos do combatido RE nº 350.446, em favor do entendimento exarado nos REs nº 353.657, de novembro de 2010, nº 370.682, de fevereiro de 2011, e nº 566.816, de setembro de 2008. O STF entendeu, por não conhecer da Ação, argumentando a extinção sem julgamento de mérito, por considerar a discussão atentatória à segurança jurídica e à coisa julgada formada há 10 anos pelo Supremo Tribunal Federal.
Assim, note-se que, embora o STF tenha julgado contrária a tese de que cabe a Ação Rescisória por causa de alteração na jurisprudência dominante; no qual aqui se exige mais do que isso, mas a fixação de entendimento vinculante por conta do status de precedente, o julgamento levanta bons pontos para o debate. O primeiro ponto é que o argumento de respeito à coisa julgada pelo lapso de já de 10 anos da sua formação não subsiste a uma análise mais atida do caso, porquanto a decisão rescindenda foi julgada em outubro de 2010, ao passo que a Ação Rescisória nº 2.297 foi ajuizada em setembro de 2011. Portanto, dentro do prazo, fazendo com o que STF utilize a própria mora do Poder Judiciário para justificar a improcedência de sua ação. O segundo ponto é o de que o STF em nome da segurança jurídica, com um fundo de consequencialismo por motivação econômica (o que poderia ter sido combatido com uma modulação de efeitos), julgou caso com resposta contrária à sua jurisprudência mais recente, segundo a qual a Constituição Federal não autoriza o direito de crédito de IPI para o contribuinte adquirente de insumos sujeitos à alíquota zero, fato consubstanciado no agora vigente enunciado sumular vinculante nº 58 do STF. O terceiro ponto, portanto, é que o STF, para poder julgar improcedente a Ação Rescisória, contrariou o disposto na sua recentemente criada Súmula Vinculante nº 58, privilegiando, contudo, o TEMA 136 (segunda parte) de Repercussão Geral. Assim, o STF privilegiou a coisa julgada e a segurança jurídica, em detrimento de terem cumprido com a coerência do sistema jurídico.
O sentido atribuído à prática jurisdicional mudou. Exige-se menos tecnicismo-burocratizante e mais racionalidade-prático-problemática a partir de uma leitura sistemático-interpretativa do sistema; o que, às vezes, pode parecer um paradoxo e sequer é efetivado, como na recente decisão do STF suprademonstrada. Mas há uma curva tênue entre a total deferência acrítica a precedentes e o respeito aos precedentes obrigatoriamente vinculantes com o fim de harmonização da jurisprudência, isto é, com o fito de racionalizar e unificar o sentido normativo-axiológico e material de uma certa ordem jurídica. Desse modo, como poderia a coisa julgada material, que impõe um dever de abstenção tão forte ao poder judiciário e às partes, compactuar com um sabido sentido normativo-interpretativo, hermenêutico-textual diferente daquele que lhe foi empregado em uma decisão, ainda que superveniente, quando os efeitos moduladores fazem com que ela atinja a sua contemporaneidade? Ou pior, quando há Súmula Vinculante recentemente editada em sentido contrário à decisão que se quer rescindir?
Como bem asseverou Pontes de Miranda (2016, p. 46), não se pode tornar o direito, e especificamente o processo civil, em uma meia ciência, de modo a se mal repetir, por meio de frases diferentes, velhos erros, permeando a prática de uma burocracia sufocante, de modo a impedir a realização teleológica que se requeria com o direito, a da realização material do justo. Assim, por ser a justiça monopólio do Estado do direito, este deve assegurar, pelas vias processuais adequadamente constituídas, a correta condução não só da solução de casos, mas também do significado material do direito, a partir da observância sistemática do decidido em casos, e em todos eles sobre uma questão.
Contudo, ante a tantos percalços que devem ser debatidos e estudados pela doutrina, pela jurisprudência e pela academia do direito, tem-se, tão somente, que o caminho do direito é um caminho adaptativo que, à medida que a história jurídica vai se desenvolvendo, vai igualmente adequando-se ao que é logicamente e racionalmente explicável. O cabimento da Ação Rescisória a partir dos marcos padronizadores dos precedentes obrigatórios – e só deles, e não dos persuasivos – é tido como a próxima fronteira para a consubstanciação de um sistema de direito que preze, acima de tudo, por uma manifestação adequada, coerente, segura, igualitária e racional da jurisprudência e do direito. O direito é um materializar de casos, assim, cada caso considerado é uma atuação unitária e singular (sincrônica) do direito, que deve estar pautado por sua evolução enquanto instituição estatal e humana (diacrônica); um caso típico de colisão de princípios formais que autoriza repensarmos os topóis institucional-processuais e a própria prática judicante. Assim, ainda que diante de uma colisão de valores a que se quer promover (segurança jurídica e coisa julgada vs. análise tópica e jurisprudência harmônica, estável e coerente), o que deve prosperar é o direito constituído e desenvolvido de modo argumentativo-racional, manifestado em uma ordem coerente e cujo sentido normativo se possa extrair da análise de sua jurisprudência.
5 CONCLUSÃO
A Ação Rescisória evoluiu historicamente, sobretudo em suas hipóteses de cabimento, a fim de ajustar-se às necessidades encontradas pelo judiciário ao longo do tempo. A interpretação acerca do seu cabimento passou por momentos de maior restrição, ou de possibilidade razoável e racional de abertura.
Com o advento do Código de Processo Civil de 2015, que inaugura o chamado sistema de precedentes obrigatórios no ordenamento jurídico pátrio, com sua implacável missão de concretização de uma jurisprudência estável, integra e coerente, o cabimento da Ação Rescisória pode ser refletido, acerca de sua ampliação para aqueles pronunciamentos obrigatoriamente vinculantes elencados no Art. 927 do Código de Processo Civil.
Nesse sentido, a Ação Rescisória parece ganhar, ou pelo menos ter a oportunidade de ganhar, uma nova e nobre função, sendo um instrumento apto à garantia da observância obrigatória das teses de efeito vinculante aos casos em que não houve o devido zelo pela segurança do sistema jurídico, constituindo verdadeira prática prejudicial à jurisprudência pátria, e tempestivamente dentro do seu prazo de cabimento. Contudo, essa ampliação deve ser pensada frente ao dilema entre coisa julgada – que é diferente de coisa soberanamente julgada – e segurança jurídica sincrônica de um lado e análise tópica e segurança jurídica diacrônica de outro lado.
REFERÊNCIAS
AARNIO, Aulis. Lo racional como razonable: um tratado sobre la justificación jurídica. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1991.
ALEXY, Robert. Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica. Tradução Zilda Hutchinson Schild Silva. 5. ed. São Paulo: Landy, 2020.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução Vírgilio Afonso da Silva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
ALVIM, Arruda. A Alta Função Jurisdicional do Superior Tribunal de Justiça no Âmbito do Recurso Especial e a Relevância das Questões. In: 10 ANOS – Obra Comemorativa 1989-1999. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, 1999.
ALVIM, Teresa Arruda. Modulação: na alteração da jurisprudência firme ou de precedentes vinculantes. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
AMAYA, Amalia. The Tapestry of reason. An inquiry into the nature of coherence and its role in legal argument. Oxford and Portland: Hart Publishing, 2015.
BLACKSTONE, William. Commentaries on the Laws of England (1765-1769). Chigaco: The University of Chigaco Press, 1979. v. 1.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 15 ago. 2021.
CASTANHEIRA NEVES, António. Fontes do Direito: contributo para a revisão do seu problema. Coimbra: Coimbra Editora, 1985.
CASTANHEIRA NEVES, António. Justiça e Direito. Coimbra: Coimbra Editora, 1976.
CASTANHEIRA NEVES, Antônio. O Direito hoje e com Que Sentido? O problema actual da autonomia do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 2002.
CASTANHEIRA NEVES, Antônio. O instituto dos assentos e a função jurídica dos supremos tribunais. Coimbra: Coimbra Editora, 1983.
CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1998.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reforma do Código de Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 1995.
DUXBURY, Neil. The Nature and Authority of Precedent. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
DWORKIN, Ronald. Império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FULLER, Lon L. The Morality of Law. New Haven: Yale University Press, 1963.
GAVIÃO FILHO, Anizio Pires. Precedentes e argumentação Jurídica. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI: PROCESSO, JURISDIÇÃO E EFETIVIDADE DA JUSTIÇA II, 25., 2016, Florianópolis. Anais [...]. Florianópolis: CONPEDI, 2016.
GAVIÃO FILHO, Anizio Pires. Colisão de Direitos Fundamentais, Argumentação e Ponderação. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2011.
GOODHART, Arthur. Determining the Ratio Decidendi of a case. Yale Law Review, v. 40, n. 2, p. 161-183, dez. 1930.
LAMOND, Grant. Do precedents create rules? Legal Theory, v. 11, n. 1, p. 1-26. mar. 2005.
MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
MACCORMICK, Neil. Why cases haves rationes and what these are. In: GOLDSTEIN, Laurence. Precedents in law. Oxford: Oxford University, 1987.
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Divergência jurisprudencial e súmula vinculante. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2018.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIEIRO, Daniel. Ação Rescisória: do juízo rescindente ao juízo rescisório. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIEIRO, Daniel; ARENHART, Sérgio Cruz. Novo código de processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015.
MESQUITA, José Ignacio Botelho de. Teses, estudos e pareceres de processo civil: jurisdição e competência, sentença e coisa julgada, recursos e processos de competência originária dos tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. v. 2.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. v. 5.
NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 11. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
PECZENIK, Aleksander. The binding force of precedent. In: MACCORMICK, Neil; SUMMERS, Robert. Interpreting precedents: a comparative study. Aldershot: Ashgate, 1997. p. 461-479.
PEIXOTO, Ravi. Superação do precedente e segurança jurídica. 3. ed. Salvador: JusPodivm, 2018.
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado da ação rescisória: das sentenças e de outras decisões. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
RAZ, Joseph. The Relevance of Coherence. Boston University Law Review, v. 72:273, p. 273-321, 1992.
ROSITO, Francisco. Teoria dos precedentes judiciais: racionalidade da tutela jurisdicional. Curitiba: Juruá, 2012.
SCHAUER, Frederick. Playing by the rules: a philosophical examination of rule-based decision-making in law and in life. Oxford: Oxford University Press, 1991.
SCHAUER, Frederick. Thinking like a lawyer. Cambridge: Harvard University Press, 2009.
SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de Processo Civil: processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
SILVEIRA, Marcelo Augusto da. Recursos, sucedâneos recursais e ações autônomas de impugnação no CPC: teoria geral dos recursos: recursos em espécie, ações autônomas de impugnação e o seu processamento nos tribunais. Salvador: JusPodivm, 2020.
THEODORO JÚNIOR. Humberto. Curso de Direito Processual Civil: teoria geral do direito processual civil, processo de conhecimento e procedimento comum. 47. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. v. 3.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do direito. 2. ed. Rio de Janeiro: GZ, 2021.
TWINING, William; MIERS, David. How to do things with rules: a primer of interpretation. London: Butterworths, 1999.
WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; ALVIM NETO, José Manuel de Arruda. Coisa julgada material é a qualidade de imutabilidade e indiscutibilidade, ou mais precisamente, a autoridade, com a qual resta revestida uma determinada decisão de mérito. Enciclopédia da Faculdade de Direito da PUCSP. Tomo Processo Civil, Edição 1, jun. 2018.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Estabilidade e adaptabilidade como objetivos do direito: civil law e common law. Revista de Processo, v. 172, p. 121-174, jun. 2009.
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. Hipóteses de relativização. São Paulo: RT, 2003.
WEINREB, Lloyd L. A razão jurídica. Tradução Bruno Costa Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
YARSHELL, Flávio Luiz. Breves notas sobre a disciplina da ação rescisória no CPC 2015. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. O Novo Código de Processo Civil: questões controvertidas. São Paulo: Atlas, 2015.
Notas
Como citar este documento:
Notas de autor