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Os Fundamentos do Republicanismo Cívico no Pensamento Constitucionalista Rousseauniano

The Fundamentals of Civic Republicanism in Rousseaunian Constitutionalist Thought

Los Fundamentos del Republicanismo Cívico en el Pensamiento Constitucionalista Rousseauniano

Leonardo Delatorre Leite
Universidade Presbiteriana Mackenzie, BR
Daniel Francisco Nagao Menezes
CIRIEC-Brasil, BR
Gerson Leite de Moraes
Universidade de São Paulo -(FFLCH/USP - 2021), BR

Os Fundamentos do Republicanismo Cívico no Pensamento Constitucionalista Rousseauniano

Revista Opinião Jurídica, vol. 21, núm. 38, pp. 73-102, 2023

Centro Universitário Christus

Recepción: 02 Mayo 2022

Aprobación: 15 Septiembre 2022

RESUMO

Contexto: A filosofia do pensador genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) foi de fundamental importância para o desenvolvimento da mentalidade constitucionalista e, principalmente, dos princípios do republicanismo, enquanto uma orientação axiológico-normativa em prol do chamado “bem comum”, compreendido como o conjunto dos bens e dos valores imprescindíveis para o desenvolvimento da comunidade. Além disso, as teses republicanas enxergam a liberdade não apenas como um direito, mas, sobretudo, na qualidade de um dever. Nesse sentido, o republicanismo apresenta, em seu âmago, uma nova compreensão sobre a liberdade, encarando-a a partir do papel do indivíduo na organização do poder político.

Objetivos e metodologia: Desse modo, as discussões rousseaunianas acerca da chamada “vontade geral”, das virtudes cívicas, da liberdade enquanto autorregulação e da soberania do corpo coletivo estabelecem um diálogo central com os elementos nevrálgicos da cosmovisão republicana, cujas reflexões são de grande valia para um melhor entendimento das fragilidades democráticas contemporâneas e da crise da democracia liberal. Fundamentado sob a metodologia de abordagem dedutiva, o presente trabalho foi construído com a utilização de fontes bibliográficas.

Conclusão: Observa-se a imprescindibilidade da estruturação do constitucionalismo democrático a partir de mecanismos que favoreçam uma compreensão deontológica da liberdade civil, sobretudo, para uma melhor concretização do princípio da dignidade da pessoa humana.

Palavras-chave: Rousseau+ republicanismo+ virtudes cívicas+ constitucionalismo.

ABSTRACT

Context: The philosophy of the Geneva thinker Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) was of fundamental importance for the development of the constitutionalist mentality and, mainly, the principles of republicanism, as an axiological-normative orientation in favor of the so-called "common good", understood as the set of goods and values essential for the development of the community. Moreover, republican theses see freedom not only as a right, but above all as a duty. In this sense, republicanism presents, at its core, a new understanding of freedom, facing it from the role of the individual in the organization of political power.

Objective and Methodology: In this way, Rousseau's discussions about the so-called "general will", civic virtues, freedom as self-regulation and the sovereignty of the collective body establish a central dialogue with the neuralgic elements of the republican cosmovision, whose reflections are of great value for a better understanding of contemporary democratic weaknesses and the crisis of liberal democracy. Based on the deductive approach methodology, the present work was built with the use of bibliographic sources.

Conclusion: It is observed the imprescindibility of the structuring of democratic constitutionalism based on mechanisms that favor a deontological understanding of civil liberty, above all, for a better realization of the principle of the dignity of the human person.

Keywords: Rousseau, republicanism, civic virtues, constitucionalism.

RESUMEN

Contexto: La filosofía del ginebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) fue de fundamental importancia para el desarrollo de la mentalidad constitucionalista y, principalmente, los principios del republicanismo, como orientación axiológico-normativa en favor del llamado "bien común", entendido como todos los bienes y valores esenciales para el desarrollo de la comunidad. Además, las tesis republicanas ven la libertad no sólo como un derecho, sino, sobre todo, como un deber. En este sentido, el republicanismo presenta, en su esencia, una nueva comprensión de la libertad, del papel del individuo en la organización del poder político.

Objetivo y Metodología: De esta manera, las discusiones de Rousseau sobre la llamada “voluntad general”, las virtudes cívicas, la libertad como autorregulación y la soberanía del cuerpo colectivo establecen un diálogo central con los elementos neurálgicos de la cosmovisión republicana, cuyas reflexiones son de gran valor para una mejor comprensión de las debilidades democráticas contemporáneas y la crisis de la democracia liberal. Basado en la metodología de enfoque deductivo, el presente trabajo se construyó con el uso de fuentes bibliográficas.

Conclusión: Se observa la indispensabilidad de estructurar el constitucionalismo democrático a partir de mecanismos que favorezcan una comprensión deontológica de la libertad civil, sobre todo, para una mejor realización del principio de la dignidad humana.

Palabras clave: Rousseau, republicanismo, virtudes cívicas, constitucionalismo.

1 INTRODUÇÃO

O republicanismo, enquanto uma cosmovisão jurídico-política, apresenta uma historicidade perceptível, cujos prolegômenos podem ser encontrados nos elementos da filosofia política romana, sobretudo nos escritos de Cícero e Políbio. É importante destacar que o republicanismo não se resume às características da República, enquanto forma de governo. Nesse sentido, muitos autores tidos como republicanos, ao longo da história, eram adeptos da monarquia. Ademais, a corrente republicana não deve ser encarada como sinônimo de apologia aos princípios da democracia. A associação entre República e democracia foi realizada, de forma categórica, apenas no século XVIII, com os escritos de Thomas Paine1, pensador britânico e figura essencial da Revolução norte-americana e da Revolução Francesa.

Em vista disso, é premente ressaltar que “democracia” apresenta um caráter polissêmico e uma abordagem plurissemântica. Portanto, falar de democracia é elucidar a história de um conceito2. Desse modo, conforme ressalta o historiador inglês John Dunn, democracia não corresponde necessariamente a um tipo específico de governo. Sob essa perspectiva, o pensador francês Pierre Rosanvallon desenvolveu a chamada “Teoria da Indeterminação democrática”3, segundo a qual os significados de democracia variam conforme as condições e situações históricas particulares.

Além disso, democracia nem sempre teve uma conotação positiva. Platão a enxergava como o governo dos medíocres4, visto que a organização legítima da sociedade, em sua perspectiva, consistia numa espécie de aristocracia dos filósofos, ou melhor, na sofocracia (governo dos sábios). Nesse sentido, destaca Richard Romeiro Oliveira:

Com efeito, a contestação de Platão à democracia pode ser compreendida como um prolongamento e uma radicalização dos referenciais teóricos que nortearam a reflexão ética levada a efeito por Sócrates, a qual possuía um caráter visceralmente intelectualista. Assumindo, realmente, a existência de uma unidade profunda entre o pensar e o agir, Sócrates julgava, contra a moralidade aristocrática tradicional, que a excelência (areté) da práxis encontrava-se substancialmente subordinada à orientação cognitiva fornecida pelo saber ou pelo conhecimento (episteme). A ideia socrática fundamental quanto a esse ponto parece ser a de que em qualquer atividade humana, para se alcançar a excelência, é preciso, antes de tudo, conhecer o bem relativo à ação que se pretende realizar, o que indicaria que não há, efetivamente, virtude sem conhecimento (OLIVEIRA, 2014, p. 31).

O pensador grego Aristóteles a compreendia enquanto a degeneração da Politeia, forma justa de governo, caracterizada por um regime político misto e moderado. Na Idade Média, muitos filósofos, como São Tomás de Aquino5 e alguns expoentes da escolástica tardia, possuíam grande preferência pelo “governo misto”, herança das obras aristotélicas e dos escritos de Políbio. Na Idade Moderna, John Locke (1632-1704) e Charles-Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu (1689-1755), demonstravam grande entusiasmo com as monarquias constitucionais. Até mesmo, o iluminista francês clássico Voltaire (1694-1778) era adepto da chamada “monarquia esclarecida” e afirmava categoricamente: “Tudo para o povo e nada pelo povo”. Apenas durante o chamado “Iluminismo radical”, caracterizado pelas obras de pensadores, como Rousseau, Thomas Paine e Maximilien de Robespierre, a democracia é defendida como um valor positivo. Todavia, tratava-se de uma posição minoritária. Diante disso, o historiador norte-americano Palmer (1953) afirma que a democracia só adquire um aspecto positivo, na opinião majoritária, apenas no período posterior aos eventos da Segunda Guerra Mundial, principalmente, como estratégia de oposição ao regime soviético.

Enfim, as crescentes críticas ao regime democrático não atenuam o fato de que ele representa um fenômeno eminente e irreversível na história humana. Embora as fragilidades democráticas sejam visíveis, o anseio por uma democracia legítima permanece arraigado na mentalidade política das nações. Nesse sentido, o filósofo francês Alexis de Tocqueville6 estava certo ao afirmar que a democracia, enquanto um tipo de sociedade (fato social), representa um valor irresistível, e, portanto, o avanço da democratização das estruturas sociais era uma realidade insofreável.

As observações (...) apenas prolongam um diagnóstico já efetuado por Tocqueville em fins do século XIX, qual seja, o do caráter inexorável – e aparentemente irreversível – do desenvolvimento da democracia no contexto histórico atual. De fato, em sua obra magna, A democracia na América, Tocqueville já observara que o curso da história contemporânea caminha de forma irresistível no sentido de uma democratização cada vez mais ampla de todas as estruturas sociais e políticas. Valendo-se de uma linguagem teológica, Tocqueville chegava mesmo a comparar, nesse sentido, a marcha triunfal da democracia no mundo moderno a um evento providencial, cujo curso seria presidido, pois, pela própria mão divina (OLIVEIRA, 2014, p. 30).

Em virtude do que foi apresentado, compreender e estudar as obras de Rousseau são atitudes indispensáveis para um melhor entendimento da democracia, tendo em vista, por certo, seu aperfeiçoamento, mediante um esclarecimento de suas características centrais, suas limitações e contingências. Além de um defensor da democracia, compreendida por ele enquanto o regime cuja soberania reside na Vontade geral, Jean-Jacques Rousseau era um republicano radical, mas, afinal, o que significa realmente “ser republicano”? Quais são os traços primordiais do republicanismo?

Antes de adentrar nas nuances do republicanismo, é preciso elucidar o significado de “República”. Assim como democracia, o termo “república” apresenta um significado polissêmico. A expressão em latim Res publica tipifica a tradução do grego Politeia. Na Antiguidade clássica, a expressão República fazia referência a qualquer modo de constituição política. Com a evolução das análises e das ponderações políticas, o termo foi associado aos valores do “governo misto”. Na modernidade, era comum a associação da república com atitudes de “rebeldia” e “aversão à ordem instituída”. Rousseau, por outro lado, a compreendia como um governo legítimo, “todo o Estado regido por leis é republicano”. O filósofo suíço Benjamin Constant (1767-1830) era adepto da concepção segundo a qual a República encarnava uma ideia, um pensamento, uma matriz ideológica centrada na igualdade jurídica, isto é, no ethos do bem comum. Todavia, a visão majoritária é a do pensamento maquiaveliano7, que enxerga na República um governo livre, cujo traço primordial reside na não submissão dos indivíduos aos comandos de uma autoridade arbitrária. Trata-se de uma visão em consonância com as teses rousseaunianas. Desse modo, em termos gerais, “República representa uma forma jurídico-política que tem por objetivo central a convivência social pacífica, mediante a promoção de alguns princípios, quais sejam: a superioridade da lei, a cidadania [...] e a busca pelo bem comum.” (LEITE, 2022, p. 22-23). Sob essa perspectiva, afirma Sérgio Cardoso:

República se diz, então, sobretudo dos “regimes constitucionais”, daqueles em que as leis e regulações ordinárias, bem como as disposições do governo, derivam de princípios que conferem sua forma à sociedade e em que tais estabelecimentos, postos acima de todos, a protegem de todo interesse particular ou transitório, de toda vontade caprichosa ou arbitrária. Deste modo, o termo nos remete também à ideia de “governo das leis” (e não de homens), de “império da lei” e mesmo de “estado de direito”, expressões que declaram, na sua acepção mais imediata, a prescrição de que os que mandam também obedeçam, mesmo nos casos em que a forma de governo não seja democrática e em que apenas alguns, ou mesmo um só, ocupam posições de mando e postos de governo (CARDOSO, 2004, p. 45-46).

Embora República e republicanismo não se confundam, isto é, não podem ser tidos como sinônimos, a visão supracitada acerca de República dialoga imensamente com os pressupostos do republicanismo. Para o pensador Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros8, republicanismo representa, em última instância, uma nova forma de enxergar a liberdade, não a limitando ao quesito da não interferência externa às ações individuais, visão liberal de herança neo-hobbesiana. Para os republicanos, a liberdade é, por assim dizer, um fato político genuíno, ou seja, envolve uma série de elementos e valores, quais sejam, a busca pelo bem comum, a legalidade, o autogoverno, a autorregulação, a cidadania, a importância das virtudes cívicas e a participação ativa de todos os cidadãos no exercício do poder político. Diante disso, pode-se afirmar que o pensamento rousseauniano é eminentemente republicano.

Resgatar os pensamentos e escritos de autores republicanos é de grande valia para uma melhor compreensão das relações existentes entre a liberdade individual, a esfera pública e o princípio da legalidade. Afinal, as mudanças da pós-modernidade e a crescente primazia da esfera privada acabam por enfraquecer os fundamentos de uma visão da liberdade enquanto dever, não meramente enquanto direito. O aperfeiçoamento da democracia só pode ocorrer mediante o aperfeiçoamento do espírito comunal e do senso de responsabilidade com a comunidade. Eis uma das lições cruciais do republicanismo radical de Rousseau.

Fundamentado sob o método dedutivo, o presente trabalho objetivará elucidar os traços centrais do republicanismo cívico do pensador genebrino em seus estudos acerca da democracia e do naturalismo contratual. Desse modo, é premente ressaltar o problema fulcral que guiará o artigo em questão, a saber: “Quais são os elementos republicanos presentes no constitucionalismo contratualista rousseauniano?”. Diante disso, será realizada, numa primeira análise, uma exposição acerca das ideias nevrálgicas da cosmovisão republicana e de suas relações com o iluminismo.

2 REPUBLICANISMO E ILUMINISMO

Conforme indicado anteriormente, o republicanismo representa uma corrente de pensamento, que possui como objetivo primordial a apresentação de uma forma de enxergar a liberdade para além dos limites impostos pelo liberalismo, que compreende a liberdade em termos de não interferência externa às ações individuais. Desse modo, insta trazer à baila as reflexões do teórico liberal Isaiah Berlin9 (1909-1997) com o intuito de elucidar as considerações acerca da liberdade e de sua relação com a esfera pública.

Para o autor em questão, a liberdade pode ser tratada de duas formas, ou melhor, a partir de duas dimensões, a saber: a chamada “liberdade negativa” e a “liberdade positiva”10. A liberdade negativa, conforme supramencionado, indica a ausência de coerção externa sobre as escolhas particulares e, desse modo, reforça a inexistência de impedimentos exteriores ao exercício da autonomia individual como critério indispensável para a definição de liberdade11. Trata-se de uma visão intrinsecamente presente na tradição liberal e, portanto, consiste na abordagem defendida pelo próprio Berlin. Enfim, segue uma definição de liberdade negativa: “Normalmente sou considerado livre na medida em que nenhum homem ou grupo de homens interfere em minha atividade. Liberdade política neste sentido é simplesmente a área em que um homem pode agir sem a obstrução de outros.” (BERLIN, 1969, p. 3).

Sob essa perspectiva, comenta Alberto Ribeiro Gonçalves de Barros: “A liberdade no sentido negativo é caracterizada pela área na qual um agente tem a possibilidade de agir sem ser impedido ou de não agir sem ser coagido por outros agentes” (BARROS, 2020, p. 11). Para Berlin, apenas a coerção (capacidade e decisão de um agente em específico de restringir ou impedir a ação de outrem) é tida como um empecilho para a liberdade. A liberdade positiva, por sua vez, consiste na busca e na realização de uma obrigação. Nas palavras do teólogo Nicholas Thomas Wright: “A liberdade de restrições externas não é a mesma liberdade direcionada a algum propósito ou fim” (WRIGHT, 2020, p. 124). Desse modo, a dimensão positiva da liberdade reside na ordenação da vontade para um fim ou objetivo.

Já a liberdade no sentido positivo é caracterizada pela autodeterminação, ou seja, pela disposição do agente de ser senhor de si mesmo e de estabelecer a norma de sua própria ação. Ela não designa a ausência de algo (liberdade de), mas a presença de um atributo específico do querer (liberdade para), enfatizando a autonomia do agente e a sua capacidade de controle sobre suas ações (BARROS, 2020, p. 13).

Os elementos de uma compreensão da liberdade em termos positivos podem ser encontrados nos escritos de Rousseau, na filosofia moral Kantiana, nos textos dos socialistas, nas ponderações de Hannah Arendt e nos preceitos dos comunitaristas. Entretanto, qual é a visão de liberdade presente na tradição republicana? O chamado “retorno ao republicanismo” apresenta, em seu âmago, uma pretensão de superar a primazia da “liberdade negativa” na cosmovisão pós-moderna, primazia que se deve à hegemonia do capitalismo e das democracias liberais com o término da Guerra Fria, bem como transcender os limites do reducionismo estabelecido por Berlin em suas análises acerca da liberdade. Como um liberal categórico (não um liberista)12, Isaiah Berlin desconfiava da “liberdade positiva”, visto que, em suas ponderações, o estabelecimento de um “monismo moral” era um perigo recorrente da dimensão positiva. Desse modo, ao impor um fim ou uma obrigação a ser perseguida, o risco do sacrifício da liberdade individual em prol de outros valores favorecia a ascensão de governos autoritários e despóticos. “Nas últimas décadas, alguns historiadores das ideias políticas e filósofos políticos têm recorrido ao republicanismo em busca de uma terceira concepção de liberdade [...]” (BARROS, 2020, p. 77).

Os autores do republicanismo enxergam o reducionismo da cosmovisão liberal, reducionismo presente na pretensão de limitar todo o seu escopo ético e sua dimensão política meramente aos termos de um entendimento de liberdade enquanto não interferência externa às ações individuais13. Sob essa perspectiva, um indivíduo que se vê explorado economicamente ou, ainda, se enxerga sem condições mínimas de subsistência é tido como plenamente livre. Trata-se de uma visão que não condiz com o quadro axiológico do princípio da dignidade da pessoa humana14.

Diante disso, é premente frisar que os teóricos do republicanismo não se limitam aos pressupostos da liberdade negativa. Desse modo, são pensadores que enxergam a eminência de outros princípios e valores para a afirmação da existência genuína da liberdade. Como forma de oposição a uma visão puramente liberal, os republicanos da contemporaneidade se dividem em duas grandes concepções, a saber: republicanismo neo-ateniense e republicanismo neorromano. O primeiro tipo apresenta uma grande influência da matriz de pensamento de Hannah Arendt, defensora categórica de um participativismo ativo15, da intersubjetividade e da realização do homem pela sua atuação na esfera pública e na vida comunitária. Entretanto, muitas críticas16 são dirigidas ao ideal neo-ateniense, que é acusado de ser utópico para o cenário atual, visto que a supremacia da esfera privada e a preponderância dos assuntos econômicos impediriam o participativismo do “contratualismo horizontal” arendtiano. Dessa forma, o republicanismo neorromano, cujos expoentes centrais são Quentin Skinner e Philip Pettit, representa uma tendência na filosofia republicana contemporânea.

Antes de adentrar nas especificidades do republicanismo neorromano, é preciso ressaltar a eminência dos estudos do historiador germano-americano Hans Baron (1900-1988), o qual cunhou o termo “humanismo cívico”. Em termos gerais, Baron (1966) afirma que a liberdade republicana remonta às lutas de Florença contra os despotismos externos no período da renascença (séculos XV e XVI).

Coluccio Salutati, Leonardo Bruni, Matteo Palmieri e Nicolau Maquiavel17 são alguns autores do movimento intelectual denominado por Baron de “humanismo cívico”18, que apresentava, em seu bojo, alguns elementos centrais, quais sejam, as críticas aos exércitos permanentes; a afirmação da liberdade como independência e autogoverno; a necessidade do aperfeiçoamento do espírito público; a compreensão segundo a qual a virtude encarnava a verdadeira nobreza; os ataques à monarquia; a defesa da constituição mista; a participação de todos os cidadãos em igualdade para ascender aos cargos públicos; a valorização da vida ativa, do patriotismo e, por fim, a adoção de uma inversão na visão histórica romana (preponderância da República em comparação ao Império).

As reflexões estabelecidas pelo humanismo cívico florentino foram imprescindíveis para o republicanismo inglês, corrente de pensamento essencial para as revoluções burguesas do século XVII, mais especificamente as revoluções puritana e gloriosa. Desse modo, as teses do humanismo supracitado estiveram presentes nas obras de pensadores, como James Harrington (1611-1677), Algernon Sidney (1623-1683) e Marchamont Nedham (1620-1678), os quais lançaram as bases do que Quentin Skinner denominaria de “Teoria dos Estados Livres”19, também conhecida como teoria neorromana da liberdade20. Em termos gerais, o republicanismo inglês carrega, em seu âmago, uma defesa do chamado “império das leis”, uma apologia aos mecanismos do “governo misto” e, por fim, um entendimento da liberdade enquanto autogoverno, isto é, na concepção segundo a qual só é possível usufruir plenamente da liberdade numa comunidade eminentemente livre. O republicanismo de Skinner representa a defesa da chamada “teoria neorromana da liberdade” e tipifica a tentativa do autor de superar a dicotomia estabelecida por Isaiah Berlin. A perspectiva neorromana da liberdade compreende a liberdade também a partir dos elementos de não interferência, mas entende que a dimensão negativa não basta para a concretização de uma liberdade genuína, visto que o engajamento na esfera pública e a promoção das virtudes cívicas são aspectos imprescindíveis para o desenvolvimento da comunidade. “Na tradição republicana, ser livre implica tanto escolher os próprios fins e os meios adequados para alcançá-los quanto praticar ações virtuosas que promovam o bem comum [...]” (BARROS, 2020, p. 79-80).

Além disso, frisa Skinner, o principal empecilho não é qualquer interferência externa às ações individuais, mas a chamada “interferência arbitrária”. Para fins explicativos, basta imaginarmos a situação de um trabalhador explorado cotidianamente pelo seu patrão. Embora sofra constantemente com os abusos de seu empregador, ele tem medo de abandonar seu trabalho, visto que a situação do mercado não se encontra favorável em razão do desemprego crescente. Ademais, seu trabalho não garante uma subsistência mínima para ele e sua família. Em vista disso, pode-se afirmar, de forma inequívoca, que o empregado em questão é livre? A mera ausência de interferência externa do poder público qualifica a liberdade genuína? Portanto, Skinner explica que a liberdade republicana, enquanto autogoverno, representa a ausência de interferência arbitrária. Diante disso, afirma Alberto Ribeiro de Barros:

Um cidadão aprisionado por descumprir a lei, a qual dera seu consentimento, mantém a condição de homem livre, embora esteja desprovido de uma de suas liberdades civis. Ao contrário, é possível desfrutar da liberdade como escravo, quando o senhor lhe permitir um amplo campo de ação. No entanto, mesmo que disponha de uma ampla liberdade de escolha e de ação, ele não é um homem livre, pois depende permanentemente da permissão daquele que dispõe de um poder arbitrário sobre ele. Assim, conclui Skinner, o ponto central da concepção neorromana é que a liberdade não é suprimida apenas pela interferência ou pelo constrangimento, mas também pela presença de um poder arbitrário (BARROS, 2020, p. 90-91).

Conforme supramencionado, a liberdade, enquanto autogoverno, engloba outros valores para além da mera não interferência às ações individuais. Eis um dos pontos cruciais do republicanismo e de suas disputas com o liberalismo21. “Não é difícil perceber que o conceito de liberdade se encontra no núcleo das disputas conceituais e retóricas entre republicanismo neorromano e liberalismo” (SILVA, 2015, p. 182). Terminadas as considerações gerais sobre a cosmovisão republicana, é importante destacar a conjuntura intelectual na qual Rousseau estava inserido, qual seja, o iluminismo francês.

Num primeiro momento, é importante ressaltar que não há um consenso acerca da unidade do iluminismo, e, portanto, não há como abordá-lo sem antes ressaltar seu caráter plural e a diversidade de interpretações acerca das suas nuances, características e consequências. Alguns pensadores, como Steven Pinker, enxergam, no iluminismo, as bases necessárias para libertar a contemporaneidade do obscurantismo, das superstições e do negacionismo. Nesse sentido, Pinker fala de “Um Novo Iluminismo”22. O romantismo, por sua vez, atribui aos pressupostos e aos impactos do movimento iluminista uma postura comum de desprezo dos sentimentos, das sensações e das emoções do homem. Na historiografia marxista, o iluminismo foi um movimento tipicamente burguês, revestido de uma falsa universalidade. Para os chamados “progressistas”, adeptos da contracultura, o movimento iluminista foi eurocêntrico, machista e racista. Sob a perspectiva da Escola de Frankfurt, os pensadores iluministas favoreceram o desenvolvimento da razão instrumental e de um esclarecimento hostil com o homem e com a natureza. Para o pensador Joseph Ratzinger (papa Bento XVI), o iluminismo, na verdade, foi uma espécie de secularização do universalismo cristão, ou seja, os teóricos do esclarecimento se valeram de conceitos e ideais cristãos, como o direito natural católico e a dignidade da natureza humana, mas os esvaziaram de uma abordagem essencialmente religiosa. O historiador Ferrone (1997) afirma que não é plausível a realização de uma “teologização” do iluminismo.

Enfim, não há consensos definidos acerca do movimento iluminista, mas é preciso salientar que suas bases, ideias e finalidades estavam ligadas com a contestação ao Antigo Regime, sistema sociopolítico que englobava o mercantilismo, o absolutismo monárquico, a influência da Igreja Católica nas esferas sociais e, por fim, a organização da sociedade em estamentos. Nas palavras do autor Jonathan Israel: “O Iluminismo marca o passo mais dramático rumo à secularização e racionalização da história da Europa e, pode-se argumentar, do mundo” (ISRAEL, 2009, p. 31).23

Desse modo, na conjuntura do iluminismo (século XVIII), há a pretensão de renovação das mentalidades em prol de ideias, como a liberdade, limitação do poder político, representatividade e livre-iniciativa, combatendo a primazia da Igreja Católica na seara cultural, as arbitrariedades do Estado e as superstições enraizadas na mentalidade da época. Diante disso, o historiador Darnton (2021) conceituava o iluminismo como “um movimento, uma campanha para mudar mentes e transformar as instituições”. John Pocock o compreende como “uma série de programas para a reforma das relações entre instituições religiosas e políticas- conectados, mas não contínuos”24. Além disso, outro fato importante consiste na “autoconsciência” do movimento iluminista, visto que muitos de seus pensadores acreditavam que o século deles era justamente o século do chamado “esclarecimento” e do progresso, todavia era um movimento repleto de autoenganos, como a tentativa de alguns teóricos racionalistas de ignorar a influência da doutrina do direito natural católico em seus pensamentos, criando, assim, os próprios precedentes, os quais eram, em grande parte, revestidos de uma “mitologização”.

A pluralidade do iluminismo é refletida nas características próprias que o movimento adquiriu em cada nação. A historiadora Himmelfarb (2011) afirmou que, na Inglaterra, o movimento iluminista demonstrou um maior destaque às sensações, aos afetos e às paixões como pulsões importantes do ser humano. Diante disso, é importante frisar o papel do escritor Edmund Burke para o contexto, já que suas obras representavam grandes críticas ao racionalismo exacerbado e abstrato. Himmelfarb atribuiu o nome de “iluminismo dos afetos”, ou sociologia da virtude, às particularidades dos traços iluministas na Inglaterra. O iluminismo escocês, tipificado pelas obras de David Hume, William Robertson, Adam Smith e Adam Ferguson, também atribuiu grande destaque às paixões. Hume chegou a afirmar que a moral provém das paixões. Em sua obra “Teoria dos sentimentos morais”, Smith ressaltou a eminência dos afetos na construção da moralidade, ressaltando o instinto de benevolência e a empatia. Portanto, afirmar, de forma categórica, que o racionalismo e a pretensão de hipervalorização do método científico são traços universais do iluminismo é um equívoco. Até mesmo no interior do iluminismo francês, caracterizado por Himmelfarb como o “iluminismo da ideologia da razão”, alguns teóricos desconfiavam do racionalismo, como Marquês de Condorcet e o próprio Rousseau.

Jean-Jacques Rousseau foi uma grande figura do iluminismo francês, e, por certo, embora não seja um racionalista convicto aos moldes de Voltaire e Diderot, suas obras moldaram o ideário revolucionário francês e contribuíram para as teses constitucionalistas e republicanas. “[...] Rousseau foi o primeiro a dirigir sua crítica não somente contra o Estado estabelecido, mas contra a sociedade que criticava o Estado. Foi também o primeiro a conceber as relações entre ambos sob o conceito de crise” (KOSELLECK, 1999, p. 138). Numa perspectiva geral, é importante reiterar que o iluminismo, apesar de suas ambiguidades e contradições, foi fulcral para o desenvolvimento de ideais, como justiça social, igualdade e direitos, guardando uma conexão íntima com o republicanismo. Por fim, serão analisadas a filosofia política de Rousseau e suas relações com a moralidade republicana e com o constitucionalismo.

3 REPUBLICANISMO EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

O republicanismo radical de Rousseau guarda uma conexão íntima com sua concepção de liberdade civil enquanto autorregulação. Todavia, não há como elucidar a liberdade rousseauniana sem antes explicar as especificidades de seu contratualismo e de suas críticas à sociedade de sua época. Numa primeira análise, os escritos de Rousseau são classificados em textos de caráter fático e textos de plano prescritivo-normativo. Seu clássico “Discurso sobre as ciências e as artes” é um exemplo de texto fático, cujo conteúdo reproduz um julgamento do autor acerca das nuances da vida social de sua época e traduz um Rousseau “crítico da sociedade burguesa” (STAROBINSKI, 1991; DERATHÉ, 1984). Por sua vez, os textos de caráter prescritivo estão no plano do deverser e expressam sua visão de uma boa organização política. O republicanismo cívico rousseauniano está contido em suas obras de abordagem normativa.

Desse modo, “o republicanismo de Rousseau é, pois, uma teoria da boa constituição política, muito mais que uma teoria da melhor forma de governo” (VIROLI, 1988, p. 35). Em sua obra “Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens”, o autor iluminista estabelece uma distinção entre “liberdade natural”, cujo limite reside nas forças do indivíduo (BÔAS FILHO, 2008, p. 95) e a “liberdade civil” é estabelecida pela vontade geral. Em vista disso, afirma Milton Meira do Nascimento:

[...] no estado de natureza, ela se define como liberdade natural, própria do homem no seu insulamento, marca de sua independência absoluta e de sua não-submissão à vontade de nenhum outro homem. No estado civil, ela se definirá como liberdade convencional, civil ou moral, já que, agora, não faz mais sentido a vida isolada, mas a condição de sobrevivência se define necessariamente pela vida em comunidade (NASCIMENTO, 1988, p. 122).

Para sua avaliação acerca do estado de natureza, Rousseau se vale do método hipotético-evolutivo, da história conjectural e, sobretudo, da chamada “Antropologia Negativa”, “uma especulação filosófica [...] se retirarmos do homem tudo o que ele aprendeu ou adquiriu socialmente, a partir do contato com outros seres humanos, o que lhes resta?” (CARVALHO, 2020, p. 69). Ao se valer do método supracitado, o autor iluminista pretende evitar cometer “anacronismos”, típicos das análises de Hobbes e Locke, os quais, para Rousseau, analisaram o estado de natureza a partir dos elementos e traços do estado civil. No estado de natureza rousseauniano, o homem é guiado pelo instinto de sobrevivência, pela satisfação de suas necessidades básicas, pela autossuficiência e pela autopreservação. Originalmente, há a abundância (dos bens e das sensações) e a primazia do amor físico. É importante frisar que, a despeito da “Teoria do bom selvagem”25, utilizada para explicar o estado de natureza no pensamento de Rousseau, o “bom selvagem”, na realidade, é amoral, visto que a moral, tal como a conhecemos, é uma construção do estado civil (criação social), isto é, apresenta um caráter artificial. “No estado de natureza de Rousseau, portanto, não há propriedade, não há moralidade e não há ciúme. O único amor que o homem natural conhece é o amor físico [...] desprovido de quaisquer mediações subjetivas” (CARVALHO, 2020, p. 68).

Afinal, o que distingue o homem dos outros animais? Rousseau afirma que não é a razão o traço distintivo do ser humano, pois a racionalidade é uma faculdade que não se desenvolve de forma automática e natural, necessitando do convívio social para o seu pleno aperfeiçoamento. Isso vale para a linguagem, que precisa do meio social para o seu progresso. Desse modo, o filósofo iluminista enxerga na liberdade natural e na perfectibilidade os aspectos distintivos do homem. A liberdade natural existe numa conjuntura em que os indivíduos vivem de forma isolada e solitária. Nas palavras d Robert Derathé (1984, p. 109-124), o homem natural é “um todo perfeito e solitário”, portanto não se pode pensar em uma liberdade passível de extensão aos demais. Desse modo, o que limita a liberdade natural26 é a força e o seu traço distintivo é a independência, “viver somente sob a lei de sua própria natureza” (BARROS, 2020, p. 52). “O princípio de toda ação está na vontade de um ser livre” (ROUSSEAU, 1999, p. 378). Diante disso, segue uma reflexão do próprio Rousseau: “Renunciar à liberdade é renunciar a qualidade de homem, aos direitos da humanidade, e até aos próprios deveres. Não há recompensa possível para quem tudo renuncia” (Do contrato, I, 4, p. 33).

O conceito de “perfectibilidade” é estrutural para o pensamento rousseauniano e está relacionado com a capacidade do homem de sair do “estado de natureza”, isto é, de desenvolver propriamente a racionalidade, a linguagem e de instituir a sociedade civil, ou seja, a civilização. Em termos gerais, “só o ser humano, se desejar, pode fazer o contrário do que sua estrutura físico-química ordena que ele faça” (CARVALHO, 2020, p. 70). Entretanto, a perfectibilidade não implica necessariamente perfeição, visto que só o ser humano pode se desenvolver e aperfeiçoar moralmente, mas também só ele pode se degenerar potencialmente, somente ele pode se bestializar. Enfim, a moralidade é um traço exclusivo dos seres humanos. Desse modo, a instituição da sociedade civil implica a “desnaturação” do homem. Nesse sentido, o cidadão é uma entidade artificial. “[...] as boas instituições são justamente aquelas que melhor desnaturam o homem, substituindo sua existência absoluta por uma relativa, transportando-o para o âmbito de uma unidade comum” (BÔAS FILHO, 2008, p. 95).

Nisso consiste o cerne do republicanismo rousseauniano: a liberdade civil consiste na adequação da vontade particular aos ditames do corpo moral e coletivo. A integração do homem aos elementos da vontade geral é a suprema realização da liberdade no estado civil. Daí deriva a crítica de Rousseau aos burgueses, um posicionamento eminentemente político e não econômica. O burguês é um ente artificial, mas não é um cidadão, pois não adequa suas vontades ao interesse comum e, portanto, não sofre uma “desnaturação”. Mas, afinal, o que é o corpo moral/ coletivo e o que representa a vontade geral?

Antes de responder às indagações supracitadas, é premente elucidar o que Rousseau compreende por civilização, educação e pacto social. A instituição da civilização não é vista pelo pensador genebrino como algo original e eminentemente benéfico. O estabelecimento da sociedade civil foi marcado pela primazia da concorrência, da competitividade e da comparação; frutos da propriedade privada. O artificialismo da civilização trouxe, inicialmente, a prevalência do egoísmo, do orgulho e da ambição exacerbada. As críticas de Rousseau às ciências e ao racionalismo de seu tempo derivam de sua concepção acerca dos males oriundos do estabelecimento da civilização. Para o pensador em questão, as ciências e as artes, guiadas por uma espécie de razão técnica, apenas mascaravam as vaidades dos homens. Dessa forma, a perspectiva rousseauniana não enxergava com bons olhos as crenças iluministas (em especial do francês) no progresso e no otimismo científico. Diante disso, reitera Alysson Leandro Mascaro:

Em sociedade, o comportamento humano se altera, buscando ganhos e vantagens pessoais. A polidez, a educação e a etiqueta escondem o interesse pessoal por detrás da relação com os outros. Em sociedade, dá-se importância ao luxo, criam-se necessidades artificias e os homens passam a ser escravos de tais caprichos. Aquilo que se pretende civilizado é uma máscara dos baixos interesses dos homens (MASCARO, 2010, p. 185).

Tais críticas dialogam com a concepção do autor acerca dos efeitos destrutivos de um conhecimento puramente técnico, o qual favorece a potencialização pelo desejo da glória, do orgulho e do saber pela reputação. Em oposição ao “tecnicismo” da razão, Rousseau reitera a centralidade das virtudes, da sensibilidade e da simplicidade. “Segundo Rousseau, para aprender as leis da virtude, basta voltar-se para si e ouvir a voz da consciência no silêncio das paixões” (NOHARA, 2016, p. 74). Portanto, o pensador genebrino não quer acabar com as universidades, academias e bibliotecas, mas apenas frisar que a verdadeira filosofia e o conhecimento genuíno se encontram na virtude.

A ciência que se pratica muito mais por orgulho, pela busca da glória e da reputação do que por um verdadeiro amor ao saber, não passa de uma caricatura da ciência e sua difusão por divulgadores e compiladores, autores de segunda categoria, só pode contribuir para piorar muito mais as coisas. A verdadeira filosofia é a virtude, esta ciência sublime das almas simples, cujos princípios estão gravados em todos os corações (NASCIMENTO, 1989, p. 190).

Rousseau almeja um retorno à pureza da consciência natural, mas não um retorno ao estado de natureza. O sentimento seria o instrumento de penetração na essência mais íntima do ser humano. Além disso, o filósofo genebrino ressalta a importância do sentimento místico da Natureza como condição para o sentimento de interioridade pessoal. A natureza pulsa no interior de cada indivíduo, servindo como um sentimento profundo de vida. Desse modo, muitos consideram o pensamento rousseauniano essencialmente “estético-romântico”. Em sua obra pedagógica Emílio, o escritor genebrino destaca novamente o sentimento como instrumento genuíno do conhecimento e frisa a crença na piedade natural do homem, afirmando que o mal é uma criação social, isto é, uma responsabilidade da civilização. Basicamente, a educação progressiva rousseauniana27 apresenta dois objetivos: o afastamento da criança dos males presentes na sociedade e a promoção do pleno desenvolvimento das potencialidades naturais do educando. Até que o indivíduo tenha consciência de sua relação com o próximo e com as instituições, a educação deve ser puramente negativa, fundamentada no que não deve ser realizado. Apesar dos males da civilização, o homem pode, sobretudo com o auxílio da consciência, da natureza e da razão, restaurar a ordem.

Para tanto, precisar-se-á aplicar uma educação preventiva e progressiva, porque o único modo de corrigir a maldade humana é a educação, cuja finalidade é o exercício constante da liberdade no transcurso da vida, desde a infância até a idade adulta, na sociedade civil, tornando o ser humano cidadão (NODARI, 2014, p. 122).

A questão da cidadania é fulcral para a filosofia rousseauniana. Em última instância, o pensador suíço almeja uma constituição política capaz de atenuar as desigualdades sociais e promover a liberdade moral/civil. A liberdade civil é um direito inalienável que, enquanto exigência indispensável da própria natureza espiritual do homem, apresenta-se como norma, isto é, como imperativo, a afirmação de um dever. Desse modo, Rousseau se afasta do individualismo e rejeita o que seria denominado por Berlin de “liberdade negativa”, aproximando-se da chamada “liberdade dos antigos”28, descrita por Benjamin Constant (1767-1830), e da apologia aos princípios da democracia participativa. Reiterando as reflexões presentes na introdução, a democracia é tida, na mentalidade de Rousseau, como um governo benéfico e positivo29.

Para Rousseau, a reorganização da sociedade civil, a partir de bases legítimas e moralmente sólidas, se daria pelo contrato social, ou seja, pelo pacto fundador e instituidor do corpo moral/coletivo, detentor da soberania. Na celebração do contrato social, verifica-se a alienação dos direitos individuais e dos interesses particulares para a comunidade, receptora universal dos direitos. Diante disso, a vivência da liberdade civil apresenta suas raízes e fundamentos na soberania do corpo moral, da vivência em comunidade e na subordinação aos ditames da Vontade geral30, espécie de substrato coletivo das consciências individuais e das vontades particulares. “Trata-se, na realidade, de uma síntese, ou seja, de um resultado qualitativo de fusão de vontades que resulta no interesse comum a todos [...]” (NOHARA, 2016, p. 77). Portanto, cada integrante do pacto social representa uma parte indivisível do corpo coletivo. Destarte, não há separação entre Estado e sociedade civil. “(...) o contrato não faz o povo perder a soberania, pois não é criado um Estado separado dele mesmo” (ARANHA; MARTINS, 1993, p. 225).

De sua concepção de soberania do corpo moral, Rousseau estabelece sua visão de liberdade como autonomia da vontade, ou melhor, como autorregulação. Liberdade do cidadão tipifica a liberdade de reger a sua conduta individual conforme uma lei da qual ele mesmo se enxerga como seu autor. Enfim, a liberdade de um integrante do corpo moral é, em última instância, o imperativo de condicionar-se às leis das quais ele mesmo participou de sua elaboração na qualidade de cidadão. Dessa forma, o pensador genebrino frisa o caráter consensual/convencional do poder político. Eis o republicanismo radical de Rousseau. A afirmação de uma liberdade que se expressa na vivência em comunidade é uma compreensão que se afasta da teoria do individualismo possessivo, típica do liberalismo, do contratualismo de Locke e, até mesmo, da teoria política de Hobbes31.

Em vista disso, é por meio do conceito de vontade geral que Rousseau defende sua liberdade essencialmente definida em termos positivos. Numa primeira análise, é importante ressaltar que a vontade geral é qualitativamente distinta do somatório das vontades particulares. Também não deve ser compreendida como uma espécie de “consciência coletiva” aos moldes da teoria de Durkheim. “O corpo social não constitui uma totalidade orgânica, transcendente e dominante em relação a seus participantes” (DEBRUN, 1962, p. 39). Ademais, a vontade geral não pode ser reduzida às decisões majoritárias num contexto de aparente primazia da democracia e da representatividade. A vontade geral está relacionada com o interesse comum, não propriamente com o interesse coletivo, mas com o interesse individual generalizado, isto é, um interesse individual compartilhado por todos os membros da comunidade. “O interesse comum não passa de um prolongamento do interesse individual, da mesma natureza dele” (DEBRUN, 1962, p. 46). Vontade geral é, portanto, um dos modos de manifestação da vontade individual. “A vontade geral é aquela que é a mesma para todos, é compreendida quando todos os homens, sendo racionais, se libertam das paixões e dos interesses pessoais, e são persuadidos que o seu bem é o comum” (RUZZA, 2010, p. 82).

Para Fortes (1976, p. 78), a vontade geral funcionaria como uma espécie de “ideia reguladora” imprescindível para a síntese entre duas necessidades e exigências contrárias, quais sejam, a da natureza, marcada pelo isolamento e pela autossuficiência, e da sociedade, caracterizada pela vivência em comum32.

Percebemos agora melhor em que consiste a vontade geral: é a parte geral da vontade individual, idêntica em todos os membros da coletividade, a que permite o entrosamento das vontades individuais no reconhecimento de certos valores e na procura em comum de determinados objetivos. Obedecendo à vontade geral e às leis nas quais ela se corporifica, a vontade individual não deixa, pois, de obedecer a ela própria (DEBRUN, 1962, p. 46).

Dessa forma, a vontade geral33 é um aspecto da vontade individual. Entretanto, os indivíduos podem se esquecer do interesse comum e abraçar tão somente a dimensão particular da vontade individual, todavia tal postura não desqualifica a vontade geral, que, no entendimento rousseauniano, é indestrutível. Para Louis Althusser (1976, p. 74), a vontade geral apresenta suas raízes na necessidade de guiar a sociedade a partir de um interesse comum, ou melhor, do bem comum. Geralmente, os homens ignoram os ditames da vontade geral simplesmente por ignorância, por preconceitos ou pela primazia de paixões desenfreadas, as quais os levam a desprezar e desconhecer uma parte essencial de sua vontade, qual seja, o interesse comum. O fato de a vontade geral encarnar o interesse comum é um dos fundamentos da obediência que os cidadãos devem a ela. Lembrando que “o interesse ou bem comum não significa somente de todos, nem da maioria, que pode ser constituída com base em interesses particulares (...) é o interesse de todos e de cada indivíduo, como componente do corpo político” (RUZZA, 2010, p. 78).

Aliás, a obediência aos preceitos da vontade geral favorece não apenas o convívio harmonioso, como também potencializa o desenvolvimento espiritual do homem e garante a concretização da finalidade mais nobre do ser humano, a saber: a convivência social. Para Ruzza (2010, p. 77), a vontade geral fornece a base da tão defendida moralidade republicana. Nas palavras de Debrun:

O único fundamento possível de legitimidade da pressão exercida pela vontade geral e pela lei que a concretiza reside no fato de que o total dos interesses comuns representa muito mais, para o próprio indivíduo, do que o total dos interesses meramente particulares. O interesse comum é onipresente. Aparece em primeiro lugar nas necessidades, que todos experimentam (...) A vontade geral é indissoluvelmente individual e universal (...) é que a existência da vontade geral, no sentido de Rousseau, não implica uma universalização do interesse privado e sim apenas na sua limitação e na sua redução pelo interesse geral, igualmente presente no indivíduo, mas concebido como distinto e mesmo transcendente (DEBRUN, 1962, p. 50-57).

No estabelecimento do corpo coletivo, o cidadão demonstra seu consentimento aos valores essenciais da vontade geral. O Estado, enquanto encarnação visível dessa vontade, possui uma força coercitiva legítima para a exigência da obediência às decisões concernentes ao interesse comum. Portanto, o indivíduo deve respeito às leis que, eventualmente, contrariem seus interesses privados e particulares, pois, quando uma proposta de lei é apresentada para assembleia popular, a grande questão não é se ela será aceita ou recusada, mas se está, de forma genuína, atrelada ou não ao conteúdo da vontade geral. A lei, fruto da aprovação da assembleia popular, é expressão da vontade geral, e todos os cidadãos devem respeito a ela. Nas palavras do próprio autor suíço: “obediência à lei que prescrevemos a nós próprios é liberdade” (ROUSSEAU, 1954, Livro I, p. 247). Diante dos fatos supracitados, a verdadeira liberdade consiste na obediência às leis oriundas do interesse comum, as quais tipificam um aspecto da vontade individual e, dessa forma, representam disposições normativas das quais os cidadãos se enxergam como seus elaboradores. Trata-se da liberdade enquanto autorregulação. Daí decorre a reflexão de Nascimento (1998, p. 131): “[...] tanto o interesse particular quanto a vontade particular, tomados como inclinações do homem natural, devem anular-se para que se realize a justiça na cidade.”

Por isso, não se pode pretender que prevaleçam, no estado civil, nem a liberdade natural, nem a vontade particular, consideradas por Rousseau como relativas ao homem natural, visto como ser solitário e suficiente a si mesmo, razão pela qual não podem ser postuladas pelo cidadão que deve estar totalmente integrado à sociedade, na qual prevalecem a vontade geral, expressa na lei, e a liberdade civil ou moral (BÔAS FILHO, 2008, p. 100).

Em termos gerais, democracia, em Rousseau, é o governo da soberania da vontade geral, do participativismo, da convivência social, do exercício da cidadania e da supremacia do interesse público. Em vista disso, pode-se afirmar que a filosofia política rousseauniana é uma apologia aos valores da democracia participativa e de uma liberdade que se realiza na esfera pública.

Ademais, o pensador genebrino, além da questão da supremacia do interesse público, atribui grande importância às virtudes cívicas, questão presente em seu romance Nova Heloísa, que retrata o cotidiano de uma pequena comunidade de Clarens, cuja disposição organizacional se pauta pelo comunitarismo. A personagem central Julie declara: “Eu amei a virtude desde minha infância e cultivei sempre a razão” (ROUSSEAU, 1967, p. 527). Acerca das virtudes cívicas no pensamento rousseauniano, comenta Newnton Bignotto:

É necessário lembrar que em Rousseau devemos distinguir a virtude moral, que relaciona o homem consigo mesmo, e a virtude cívica, que aponta para as relações existentes entre os homens e os corpos políticos aos quais pertencem (...) No plano cívico, a cidade cobra de seus membros um tipo de comportamento- e até mesmo de devoção- que nada tem a ver com a esfera da moralidade. O amor pela pátria é uma das formas da virtude cívica, mas ele não tem o caráter absoluto que lhe emprestaram alguns intérpretes. Entre a esfera da moral e da política há complementariedade, e não contradição (BIGNOTTO, 2013, p. 189-190).

O apreço pelas virtudes cívicas é nevrálgico para a República, compreendida enquanto um governo legítimo, centrado na busca pelo bem comum, pela prevalência da legalidade, pela unidade do Estado e, em especial, pela supremacia do interesse comum. A valorização da legalidade fez do pensamento rousseauniano um dos grandes propagadores do constitucionalismo, enquanto afirmação da lei como fundamental para os direitos dos indivíduos e a limitação do poder do Estado. “Em sentido amplo, constitucionalismo é o fenômeno relacionado ao fato de todo Estado possuir uma constituição em qualquer época da humanidade, independentemente do regime político adotado” (BULOS, 2009, p. 5). Entretanto, embora o republicanismo radical do pensador suíço afirme os assim chamados direitos de liberdade individual, seu contratualismo não adere a uma supervalorização do indivíduo em face do Poder Público, abordagem típica das democracias liberais e das organizações políticas contemporâneas, as quais tendem a reafirmar tão somente os direitos e deixam a desejar no tocante aos deveres e virtudes cívicas. Dessa forma, o escritor suíço reitera a “liberdade no Estado” e não uma “liberdade do Estado”.

Destarte, o constitucionalismo democrático rousseauniano leva em consideração o Estado como encarnação da vontade geral, cuja lei máxima é uma expressão da soberania do corpo coletivo. Daí deriva a importância do cidadão, como integrante desse corpo moral e possuidor de deveres para com a comunidade. Portanto, o constitucionalismo, na mentalidade do filósofo suíço, está intrinsecamente relacionado com as virtudes cívicas e, propriamente, com a educação cívica. Rousseau toma como base a Antiguidade Clássica, mais especificamente a organização de Esparta e não Atenas. Para o escritor genebrino, a democracia ateniense era falsa, visto que seu governo, em última instância, era exercido por filósofos, oradores e intelectuais. Democracia é o governo do povo e dos cidadãos. “Juridicamente, o cidadão se define como membro do soberano; concretamente, como um indivíduo cuja virtude essencial consiste no respeito às leis, na dedicação ao coletivo e no amor à pátria” (RUZZA, 2010, p. 82).

Por certo, embora o naturalismo contratual rousseauniano tenha sido de grande importância para a evolução da república e do constitucionalismo, sua visão política recebeu duras críticas de diversos pensadores e correntes de pensamento, dentre as quais, podemos destacar as primordiais, a saber: o reacionarismo francês (sobretudo de seu principal autor: Joseph de Maistre), o conservadorismo inglês, mais especificamente nos escritos de Edmund Burke; o liberalismo doutrinário francês, cujas ideias centrais são demonstradas nos textos de Alexis de Tocqueville e Benjamin Constant; o positivismo de Auguste Comte; o liberalismo contemporâneo e, por fim, os escritos neotomistas.

Joseph de Maistre, grande opositor da Revolução Francesa, fez uma condenação categórica ao iluminismo de sua época com base na afirmação de uma interpretação providencialista da história, ressaltando a importância da restauração monárquica e a qualificação da revolução como um “castigo divino”34. O autor se opunha ao caráter abstrato das teses rousseaunianas, as quais acabam por se fundamentar num utopismo, ou melhor, numa quimera especulativa. Edmund Burke, enquanto um conservador, também realizou uma dura crítica ao revolucionarismo francês, frisando que o excesso do “racionalismo abstrato” presente em suas bases teóricas ignorou a complexidade social, a plasticidade do mundo e da natureza humana e, por fim, a tradição (aquilo que foi testado no tempo e que se reafirmou como verdade). Ademais, Burke foi um grande opositor da democracia, entendida, na concepção do autor, como um regime que restringe a política ao número, ou seja, ao quesito da aritmética, que favorece os medíocres e despreza a sabedoria e o conhecimento do passado. Alexis de Tocqueville segue a matriz de Burke e afirma que a Revolução atuou como uma espécie de “religião” em razão de sua abstração35 e de seu pouco apreço à prática política.

Além disso, muitos teóricos denunciaram o radicalismo de Rousseau presente em suas ideias sobre a religião civil e a noção de deísmo como dogma do Estado. A religião civil deve ser aceita independentemente da liberdade de consciência, sob pena, inclusive de pena de morte ou banimento. Tal radicalismo rousseauniano inspirou a postura de Robespierre36 e dos jacobinos durante a Convenção nacional. A crítica supracitada também foi feita por Auguste Comte (1798-1857), positivista e defensor da República tecnocrática. Comte considerava a soberania popular uma “mistificação opressiva” e defendia a primazia da indústria, da secularização, das ciências e da racionalidade em contraposição ao ideal estético-romântico rousseauniano. “Chocava-o haver Rousseau, levado pelo seu deísmo, proposto, naquela obra, o extermínio jurídico de todos os ateus, como uma das condições essenciais da nova ordem social por ele estabelecida” (LINS, 1962, p. 86).

A crítica contemporânea ao ideal de Rousseau acerca da liberdade civil é feita pelo teórico liberal Berlin (2005), que, em sua defesa categórica da liberdade negativa, recusou a integralidade dos elementos da liberdade positiva, reafirmando, assim, a teoria das verdades contraditórias e a imprescindibilidade da maximização dos direitos individuais, recusando teorias totalizantes e holísticas acerca da liberdade.

Os neotomistas, jusnaturalistas herdeiros de uma concepção valorativa do Direito, rejeitam a teoria política rousseauniana, designando-a de “democratismo” e associando seus preceitos à desordem moral, à secularização e à marginalização dos legítimos preceitos de organização do Estado a partir da Lei Natural. Desse modo, os neotomistas recomendam uma “democracia cristã”37 (tendência social da tradição eclesiástica de observação da caridade e da justiça distributiva) e a chamada “democracia política” (politeia ou República), caracterizada pelo governo misto e pela concretização do bem comum aos moldes da tradição aristotélico-tomista.

Entretanto, a despeito das críticas supramencionadas, é importante destacar as observações do pensador alemão Jürgen Habermas38, que, ao avaliar as distinções entre “autonomia privada” e “autonomia pública”, mais especificamente entre “direitos humanos” e “soberania do povo”, afirmou que o republicanismo cívico de Rousseau implica uma “sobrecarga ética do cidadão”, inaplicável ao estilo de vida da sociedade moderna. Todavia, ao frisar a autonomia do cidadão39, o pensador suíço acabou por estabelecer um nexo interno entre soberania popular e direitos humanos (BÔAS FILHO, 2008, p. 101), mas, para Habermas, “[...] o conteúdo normativo dos direitos humanos dissolve-se no modo de realização da soberania popular.” (HABERMAS, 1997, p. 136). A abordagem rousseauniana transparece uma abordagem ética do ideal de soberania popular e autolegislação, interpretação que favoreceu uma atenuação do significado universalistas do princípio jurídico. O filósofo alemão reitera que “[...] o visado nexo interno entre soberania do povo e direitos humanos reside no conteúdo normativo de um modo de exercício da autonomia política, que é assegurado através da formação discursiva da opinião e da vontade, não através de leis gerais” (HABERMAS, 1997, p. 137). Portanto, percebe-se uma visão crítica acerca da vontade geral como uma manifestação homogênea e unitária, tal como entendida por Rousseau.

Apesar das críticas, a filosofia política rousseauniana permanece importante para as discussões acerca da liberdade, do republicanismo, da democracia e do constitucionalismo. Por certo, embora muitos acusem as teses republicanas de impossíveis de aplicação às nuances da contemporaneidade, é preciso resgatar traços de uma liberdade positiva, que se realiza pelo participativismo e pela vivência do espírito comunal, visto que a crescente supervalorização da esfera privada, o isolamento dos homens e a escassez de instrumentos efetivos da gestão do poder público pelo povo demonstraram a insuficiência dos governos representativos e das ditas “democracias liberais” na concretização dos valores do Estado democrático de Direito. Embora revestida de uma aparência utópica, a afirmação, segundo a qual a consolidação dos elementos constitutivos do bem comum exige o cumprimento dos deveres cívicos e uma participação ativa na esfera pública, representa uma verdade inescapável. Diante disso, a valorização dos elementos da cidadania ativa retrata um dos traços eminentes da teoria republicana.

Em virtude do que foi apresentado, é preciso retomar as teses centrais do republicanismo cívico rousseauniano, quais sejam, o conceito de vontade geral como encarnação dos prolegômenos da moralidade republicana; a afirmação da soberania como inalienável e indivisível; a eminência das virtudes cívicas e do patriotismo como cruciais para o bem comum na comunidade; a liberdade civil como autorregulação; a supremacia do interesse público; o naturalismo contratual e o constitucionalismo democrático.

4 CONCLUSÃO

O republicanismo, enquanto uma cosmovisão jurídico-política, apresenta como intenção primordial lançar as bases e os fundamentos para um entendimento da liberdade do homem a partir de suas relações com a esfera pública. Diante disso, muitos dos teóricos republicanos, como Philip Pettit e Quentin Skinner, objetivaram romper com a perspectiva dualista estabelecida pelo autor liberal Isaiah Berlin entre liberdade negativa, definida como não interferência externa às ações individuais, e liberdade positiva, enquanto autogoverno e cumprimento de obrigações. Os autores do republicanismo contemporâneo enxergam a República a partir da associação com os pressupostos democráticos e de sua teleologia, qual seja, a concretização dos direitos fundamentais e a expansão da cidadania. Todavia, é premente frisar que, ao longo da história, o ideal republicano nem sempre esteve vinculado a uma apologia aos princípios da democracia, sendo que uma aproximação propriamente dita entre a República e o regime democrático se deu apenas no século XVIII mediante as obras de autores, como Thomas Paine e o próprio Rousseau. Sendo assim, o pensamento rousseauniano é de grande valia para a historicidade do republicanismo.

O naturalismo contratual do pensador genebrino apresenta como traço distintivo a noção unitária e homogênea de “Vontade geral”, responsável por lançar as bases da moral republicana e do próprio constitucionalismo democrático, na medida em que há o estabelecimento de um padrão diretivo da sociedade, a saber: o interesse comum. De maneira geral, a liberdade enquanto autorregulação, isto é, a sujeição do indivíduo a uma lei da qual ele mesmo se enxerga como elaborador em vista do interesse geral, é uma noção fortemente republicana, que reflete, em última instância, uma espécie de legitimação ética da esfera política. Por certo, a adesão de Rousseau a uma matriz de entendimento que posteriormente seria denominada de “liberdade positiva” contribuiu para os diálogos profundos de sua época concernentes à moralidade, ao participativismo e à legitimidade da democracia.

Todavia, a supervalorização das virtudes cívicas e um ideal de liberdade definido puramente em termos de autorregulação renderam duras críticas à compreensão rousseauniana, dentre as quais, destaca-se a chamada “sobrecarga ética do cidadão” e a insuficiência de uma “abordagem unitária e homogênea da vontade geral”, julgamentos apontados por Habermas. Em termos gerais, afirma-se que o republicanismo cívico do escritor suíço é inaplicável e, até mesmo, tipifica uma quimera romântica para a contemporaneidade, marcada por seu dinamismo comercial, pela heterogeneidade, pelos pluralismos, pela prevalência da esfera privada e, por fim, pela primazia de assuntos de ordem econômica. Apesar das insuficiências das teses de Rousseau, é possível atestar a fragilidade das ditas “democracias liberais” na consolidação da dimensão teleológica do Estado democrático de Direito e do quadro holístico do princípio da dignidade humana. A primazia da liberdade negativa não implica necessariamente um governo livre, visto que a expansão geral da liberdade exige um comprometimento essencialmente comunitário de ordem comunal. Desse modo, resgatar o contratualismo rousseauniano é uma maneira de retomar uma tese central para o constitucionalismo democrático, qual seja, a concretização dos direitos fundamentais requer o cumprimento de deveres cívicos, da observância do participativismo e da atenuação da supervalorização da esfera privada em detrimento da esfera pública.

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Notas

O autor Leonardo Leite foi responsável pela redação das partes explicativas acerca da teoria republicana numa visão panorâmica, bem como de suas relações com o iluminismo. Ademais, sua contribuição foi significativa para a exposição das bases do pensamento rousseauniano. O pesquisador Gerson Leite de Moraes, além de contribuir com a escrita dos pormenores da filosofia política de Rousseau, realizou a revisão final do texto, confirmando, assim, a adequação do respectivo artigo com os aspectos formais exigidos pelo presente periódico. Por sua vez, o docente Daniel Francisco Nagao Menezes focalizou sua atuação no fechamento do texto e da conclusão do eixo argumentativo, explicitando as relações diretas entre o republicanismo e a teoria constitucionalista de Jean-Jacques Rousseau. Além disso, sua atuação foi crucial para indicação de autores e para a formulação de definições estipulativa presentes no texto.
1 Cf. Florenzano (1999). O historiador Modesto Florenzano foi um importante teórico para os estudos dos impactos da obra do autor Thomas Paine no período das revoluções liberais, figura controversa no século XVIII. Embora fosse um defensor das ideias tidas como “liberais”, apresentou propostas nada convencionais para a sua época, como: instituição de uma renda mínima universal, taxação progressiva da propriedade, auxílio-maternidade, assistência aos mais pobres e necessitados para que seus filhos pudessem estudar, auxílio-funeral, o abolicionismo e o voto universal. Bernard Vincent considera Paine “um socialista avant la lettre”, ou seja, um socialista antes dos socialistas. Por outro lado, Isaac Kramnick afirma que os textos de Thomas Paine foram nevrálgicos para a estruturação das bases do “Estado Liberal de Direito”. Enfim, percebe-se que a figura do autor em questão ainda é alvo de controvérsias, mas, por certo, suas ponderações foram essenciais para o liberalismo e republicanismo.
2 Cf. Dunn (2016).
4 O filósofo austríaco Karl Popper identifica o projeto político de Platão como uma forma de “totalitarismo primitivo”. Dessa forma, afirma o pensador supracitado: “[...] acredito que o programa político de Platão, longe de ser superiormente moral ao totalitarismo, identifica-se com ele. Creio que as objeções contra este ponto de vista se baseiam num preconceito enraizado e antigo em favor de um Platão idealizado.” (POPPER, 1987, p. 101). Encarar a filosofia política de Platão como um modelo primitivo de totalitarismo ou, até mesmo, de comunismo (visão defendida por Ayn Rand e Ludwig Von Mises) representa, para muitos, um anacronismo categórico.
5 “A maior expressão do pensamento político medieval é São Tomás de Aquino, dominicano italiano (1225-1274), que escreveu Do Governo dos Príncipes, obra em que, seguindo Aristóteles e Santo Agostinho, considera a monarquia a melhor forma de governo, mas não a monarquia absoluta dos Césares romanos e sim uma monarquia limitada pelo poder da Igreja, das cortes dos nobres, das universidades e das corporações de artes e ofícios (...). É a chamada monarquia temperada.” (CICCO; GONZAGA, 2013, p. 192).
6 Cf. Tocqueville (2001). O filósofo francês Tocqueville considerava que o traço distinguível da democracia era a pulsão pela igualdade (igualdade de possibilidades e oportunidades).
9 Isaiah Berlin foi adepto da chamada “Teoria das Verdades contraditórias”, tese segundo a qual as teorias totalizantes devem ser rejeitadas em razão da inexistência de verdades absolutas. Além disso, o autor em questão rejeita, de forma categórica, as chamadas “leis ou estruturas gerais do movimento histórico” e demonstra uma aversão às interpretações holísticas da realidade.
10 Cf. Berlin (1969).
11 A liberdade negativa guarda uma conexão íntima com a “Teoria do Individualismo possessivo”, tese fundamental para o liberalismo, visto que reforça a crença de que o indivíduo, bem como seus direitos, são anteriores à própria sociedade. Por certo, uma das refutações mais belas e poéticas aos pressupostos do individualismo encontra-se na obra de Edith Stein (1891-1942), que, partindo de conceitos como espiritualidade da consciência, consciência diante do mundo e de pessoa como “substância individual de natureza interrelacional”, afirma: “O indivíduo humano isolado é uma abstração. A sua existência é a existência em um mundo, sua vida é vida em comum. E estas não são relações externas, que são adicionadas a um ser que existe em si e para si, mas a sua inclusão em um todo maior pertence à própria estrutura do homem.” (STEIN, 2007, p. 163).
12 Para Benedetto Croce (1866-1952), escritor e filósofo italiano, liberista é aquele que restringe a liberdade meramente à liberdade econômica. O liberal, por sua vez, enxerga a liberdade a partir de uma abordagem multidimensional (social, política, econômica e civil), mas sem deixar de lado a liberdade de restrições externas como traço fulcral e distintivo.
13 Isaiah Berlin reconhecia que, em dados momentos, alguns princípios são mais importantes que a própria liberdade negativa, todavia a primazia da liberdade enquanto não interferência não deixa de ser um reducionismo atualmente.
14 O princípio da dignidade da pessoa humana guarda uma conexão íntima com a concepção de “bem comum”. Uma definição amplamente aceita consiste no entendimento disposto na encíclica Pacem in Terris do Papa João XXIII, o qual afirma ser o bem comum o “conjunto de todas as condições de vida social que favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana e sua sociedade."
15 Cf. Arendt (2011, p. 61). Hannah Arendt não ignora a eminência dos chamados “direitos de primeira geração”, mas reconhece que eles são insuficientes para um entendimento completo da liberdade que, enquanto um fato político genuíno, engloba a participação nos assuntos públicos ou a admissão na esfera pública.
16 “Por fim, é comum afirmar que o republicanismo é um pensamento inadequado para nosso tempo por não levar suficientemente em conta os imperativos de um mundo no qual a questão econômica é preponderante. Nessa ótica, os republicanos não reconhecem a supremacia do fator econômico na determinação da vida em comum. De forma mais precisa, o republicanismo é acusado de dar muita atenção ao problema da cidadania política e de ausentar da discussão sobre a justiça distributiva, sobretudo quando o que está em questão são vantagens materiais. Todas essas críticas têm em comum o fato de acusarem os pensadores republicanos de defenderem uma concepção da vida política por demais exigente para sociedades de massa, voltadas para afirmação dos interesses privados em contradição com a defesa da prioridade do interesse público [...].” (BIGNOTTO, 2013, p. 8-9).
17 “Maquiavel irá esclarecer [...] ninguém mais do que o povo pode cuidar da conservação desse bem, que é o comum, isto é, de todos. Nessa afirmação entre o povo e o bem comum, fica explicitada a razão dessa devoção: o bem comum se identifica com o próprio governo das leis, vale dizer, com a própria liberdade, que tem que ser garantida pelos próprios cidadãos. Assim, a ideia de governo das leis se prende à de governo da virtú. O povo, porque deseja a liberdade, porque é classe social inclinada a defendê-la, deve se erigir também como guardiã da supremacia da lei” (ADVERSE, 2013, p. 107).
18 “Em termos gerais, o termo corresponde a um redirecionamento do humanismo renascentista ocorrido no início do século XV [...] o humanismo cívico é um movimento de ideias estritamente associado à prática política. Seus principais representantes não atuam diretamente nas Universidades italianas, mas exercem cargos públicos nas principais cidades da Península, assim como junto à cúria papal.” (ADVERSE, 2013, p. 54).
19 O historiador Bernard Bailyn afirma que o humanismo cívico florentino e os pressupostos da filosofia política do republicanismo inglês foram as verdadeiras bases teóricas da Revolução Norte-americana, muito mais do que as teses liberais de John Locke e de outros iluministas. Cf. Bailyn (2003).
20 Cf. Skinner (1999). Uma das grandes pretensões de Skinner consiste em demonstrar a chamada “ilusão da continuidade”, muito presente nas análises historiográficas. Segundo o pensador em questão, há uma tendência de interpretação uniforme e linear nos estudos da História das Ideias. Trata-se de uma espécie de narrativa teleológica, que enxerga e a evolução do pensamento político a partir das seguintes fases: filosofia medieval, filosofia absolutista, República dos Homens de Letras (a Ilustração), preceitos liberais e materialismo histórico-dialético. Para Skinner, a interpretação uniforme supramencionada apresenta inúmeras lacunas e ignora a complexidade de outros movimentos intelectuais, como o próprio republicanismo. Ademais, o autor também demonstra uma preocupação com a contextualização linguística e a historicidade dos conceitos.
21 Por certo, seria reducionista afirmar que todos os liberais adotam única e exclusivamente uma visão de liberdade enquanto ausência de constrangimento. Exemplo disso é Alexis de Tocqueville, cujas obras e escritos reconheciam os perigos do individualismo exacerbado e da ausência de um espírito comunal. Para Tocqueville, o associativismo e a vivência em comunidade são imprescindíveis para a preservação da liberdade e da democracia. Ademais, o liberalismo doutrinário francês, especialmente em Benjamin Constant, também destacava a participação nos assuntos públicos como traço fundamental para a garantia da liberdade. (Cf. CARVALHO, 2020, p. 135-137).
22 Cf. Pinker (2018).
23 Jonathan Israel é um dos autores que encara o Iluminismo com grande entusiasmo, todavia, um entusiasmo fervoroso acaba por ignorar as ambiguidades e contradições do movimento iluminista. Israel também se destaca por sua periodização do iluminismo, que, segundo ele, teve seu início na Holanda, mais especificamente com a divulgação das obras de Espinoza. O término do iluminismo é marcado pela Primavera dos Povos (1848). (Cf. ISRAEL, 2009).
24 Acerca do iluminismo, Pocock continua: “uma família de programas políticos e intelectuais, que toma forma em diversos países da Europa Ocidental entre 1650 e 1700, com a intenção compartilhada, mas diversa, de encerrar as guerras de religião (...) esses programas atacam certas tradições na teologia política que asseguravam a presença de Deus, exercendo sua autoridade neste mundo por meio de seus agentes espirituais. Ecoando esse ataque, o iluminismo também consiste em uma série de tentativas de desenvolver uma culture of the mind, baseada no comércio e nos costumes, nas letras e na lei, e na capacidade crítica de ler textos da civilização europeia, a qual deve funcionar independentemente da teologia cristã e ancorar a vida na mente na vida social” (Trecho traduzido por Daniel Gomes de Carvalho) (POCOCK, 1999, p. 8).
25 Rousseau comenta acerca de um “sentimento natural de piedade” presente no homem. A piedade natural fomentou a crença na existência de uma teoria rousseauniana acerca da bondade natural do homem. Entretanto, a bondade natural não pode ser confundida com a moralidade. Moral está associada ao processo de “desnaturação” do homem.
26 Para Orlando Villas Bôas Filho, a liberdade natural em Rousseau é a “liberdade que pertence a cada indivíduo, enquanto ente independente e solitário em relação aos demais, que encontra na liberdade do outro uma força que limita a sua” (BÔAS FILHO, 2008, p. 96).
27 Por certo, a imanentização do mal à civilização e a crença do mal enquanto criação social renderam duras críticas à pedagogia rousseauniana. O pensador genebrino demonstrou um afastamento em relação à tradição tomista de encarar o mal enquanto a carência de um bem devido. Ao passo que, na cosmovisão cristã, há uma negação da ontologia ao mal, Rousseau o enxerga como uma construção artificial. A filósofa Edith Stein critica a pedagogia rousseauniana em razão de seus pressupostos serem falsos, visto que ignoram os “efeitos noéticos da queda”, isto é, os efeitos do pecado original. Diante disso, afirma a pensadora: “O homem não tem poder sobre as forças profundas, e não consegue encontrar por si próprio o caminho para as alturas, para a perfeição moral. No entanto, há um caminho preparado para ele. O próprio Deus tornou-se homem a fim de curar a sua natureza e devolver-lhe a sua elevação.” (STEIN, 2003, p. 570).
28 Sobre a liberdade dos antigos: “[...] consistia em exercer coletiva, mas diretamente, várias partes da soberania inteira, em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz, em concluir com os estrangeiros tratados de aliança, em votar as leis, em pronunciar julgamentos, examinar as contas, os atos, a gestão dos magistrados; em fazê-los comparecer diante de todo um povo, em acusá-los de delitos, em condenálos ou em absolvê-los; mas, ao mesmo tempo, em que consistia nisso que os antigos chamavam liberdade, admitiam, como compatível a ela, a submissão completa do indivíduo à autoridade do todo.” (CONSTANT, 1985, p. 11).
29 Por certo, Rousseau não era ingênuo e compreendia as limitações de uma espécie de democracia direta e participativa. Além disso, o pensador genebrino chegou a afirmar que não existe uma forma de governo superior às demais, visto que tal entendimento depende das condições específicas de cada povo. A democracia é um regime viável para pequenas comunidades, e, mesmo nelas, as contingências ainda permanecem.
30 A expressão “Vontade Geral” já tinha sido utilizada por Montesquieu e Diderot, mas de forma muito vaga e simplória. Montesquieu a utilizou como sinônimo de opinião pública, ao passo que Diderot a definiu como um simples ato de puro entendimento responsável pelo raciocínio no silêncio das paixões.
31 Pode-se afirmar que a obra política de Hobbes é paradigmática, pois rompe com a tradição aristotélica, com a perspectiva maquiaveliana de conservação do Estado e com a teoria do direito divino dos reis. Hobbes parte da conservação do indivíduo e da preservação da vida como fundamentos de suas análises acerca do surgimento do poder político. Em última instância, é possível verificar a existência de um ideal implícito de representatividade na fundamentação contratualista hobbesiana. Desse modo, muitos afirmam que as bases argumentativas de Hobbes são liberais, mas suas conclusões são absolutistas (SKINNER, 2010).
33 Para Ruzza (2010, p. 79), a vontade geral encontra respaldos numa moral objetiva, que não é moldada por pensamentos subjetivos.
35 “Daí decorre o absurdo de pretender-se julgar os governos dos diferentes povos, não de acordo com a situação social de cada qual, mas apenas segundo a sua maior ou menor conformidade com o tipo abstrato e imutável da perfeição política arbitrariamente como um ente de razão” (LINS, 1962, p. 75).
36 “E houve quem, inspirado em seus escritos, intentasse restabelecer, em plena Revolução Francesa, a teocracia: foi Robespierre, adepto fervoroso do Contrato social, cujo capítulo oitavo do livro quarto, pôs em prática ao sentenciar de morte os ateus e os que não aderissem à religião civil por ele instituída” (LINS, 1962, p. 83).
38 Habermas apresenta duas ideias essenciais para a estruturação de seu pensamento, quais sejam: sistema e mundo de vida. O sistema é o mundo do trabalho e da primazia da esfera econômica, ao passo que o mundo de vida é o espaço do diálogo, da ação comunicativa, da intersubjetividade e da busca por consensos. Habermas demonstra grande esperança na capacidade de comunicação e da construção de uma esfera pública centrada nos valores democráticos por meio da linguagem.
39 Para Rousseau, autonomia é “a realização consciente da forma de vida de um povo concreto.” (HABERMAS, 1997, p. 136).

Como citar este documento:

LEITE, Leonardo Delatorre; MENEZES, Daniel Francisco Nagao; MORAES, Gerson Leite de. Os fundamentos do republicanismo cívico no pensamento constitucionalista rousseauniano. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, v. 21, n. 38, p. 73-102, set./dez. 2023. Disponível em: link do artigo. Acesso em: xxxx.

Notas de autor

Editora responsável: Profa. Dra. Fayga Bedê

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