RESUMO
Contextualização: O sistema de precedentes no Brasil foi positivado com o advento do Código de Processo Civil de 2015, vinculando os tribunais às teses firmadas pelas Cortes competentes. Entretanto, a mera positivação não gera eficácia, exigindo determinados comportamentos em prol da uniformização da interpretação do direito. Contudo, ainda que adote determinados precedentes, o Supremo Tribunal Federal mostra dar preferência às decisões monocráticas em detrimento do efetivo debate da Corte, o que gera incoerência na criação e aplicação dos precedentes vinculantes. O presente artigo estuda dois casos eminentemente políticos: a ADPF 402 e a Ação Penal 4070, os quais tiveram como sujeitos o então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e o então Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros.
Objetivo: Demonstrar as incoerências do Supremo Tribunal Federal na criação e aplicação dos precedentes.
Método: Priorizou-se o método hipotético-dedutivo e do estudo de casos das ADPF 402 e a Ação Penal 4070.
Resultados: O artigo demonstra que, como regra, não há efetiva deliberação colegiada apta a demonstrar a ratio decidendi nas decisões do Supremo Tribunal Federal e que a ausência de plena deliberação colegiada impossibilita a geração de precedentes que resultem em entendimentos consolidados da Corte sobre o tema, o que pode acarretar instabilidade institucional quando as decisões proferidas possuem alto impacto político nos demais Poderes.
Conclusões: O Supremo Tribunal Federal tende a não se utilizar dos precedentes judiciais vinculantes como fator limitante à sua atuação política, não se preocupando, via de regra, em manter sua jurisprudência estável, íntegra e coerente.
Palavras-chave: ADPF 402, ação penal 4070, Supremo Tribunal Federal, precedentes, coerência.
ABSTRACT
Background: The system of precedents in Brazil was established with the advent of the Code of Civil Procedure of 2015, binding the courts to the theses established by the competent courts. However, mere positivization does not generate efficacy, requiring certain behaviors for the sake of standardization of law. However, even though it adopts certain precedents, the Federal Supreme Court shows preference for monocratic decisions over effective debate by the Court, which generates inconsistency in the creation and application of binding precedents. The present article studies two eminently political cases: ADPF 402 and Criminal Action 4070, which had as subjects the former President of the Chamber of Deputies, Eduardo Cunha, and the former President of the Federal Senate, Renan Calheiros.
Objective: To demonstrate the inconsistencies of the Federal Supreme Court in the creation and application of precedents.
Method: We prioritized the hypothetical-deductive method and the case study of ADPF 402 and the Criminal Action 4070.
Results: The article shows that, as a rule, there is no effective collegial deliberation able to demonstrate the ratio decidendi in the decisions of the Federal Supreme Court and that the absence of full collegial deliberation makes it impossible to generate precedents that result from the understanding of the Court on the subject, which can lead to institutional instability when the decisions rendered have a high political impact on the other Powers.
Conclusions: The Supreme Federal Court tends not to use binding judicial precedents as a limiting factor for its political actions, and as a rule is not concerned with keeping its jurisprudence stable, integral and coherent.
Keywords: ADPF 402, criminal action 4070, Supreme Court, precedents, coherence.
RESUMEN
Antecedentes: El sistema de precedentes en Brasil se estableció con la llegada del Código de Procedimiento Civil de 2015, vinculando a los tribunales a las tesis establecidas por los Tribunales competentes. Sin embargo, la mera positivización no genera eficacia, exigiendo determinados comportamientos en aras de la normalización del derecho. Sin embargo, aunque adopta ciertos precedentes, el Supremo Federal muestra preferencia por las decisiones monocráticas sobre el debate efectivo del Tribunal, lo que genera incoherencia en la creación y aplicación de precedentes vinculantes. El presente artículo estudia dos casos eminentemente políticos: la ADPF 402 y la Acción Penal 4070, que tuvieron como sujetos al entonces Presidente de la Cámara de Diputados, Eduardo Cunha, y al entonces Presidente del Senado Federal, Renan Calheiros
Objetivo: Demostrar las incoherencias del Supremo Tribunal Federal en la creación y aplicación de precedentes
Método: Se priorizó el método hipotético-deductivo y el estudio de casos de la ADPF 402 y la Acción Penal 4070.
Resultados: El artículo muestra que, por regla general, no existe una efectiva deliberación colegiada capaz de demostrar la ratio decidendi en las decisiones del Supremo Tribunal Federal y que la ausencia de una plena deliberación colegiada imposibilita la generación de precedentes que resulten del entendimiento del Tribunal en la materia, lo que puede conducir a la inestabilidad institucional cuando las decisiones dictadas tienen un alto impacto político en los demás Poderes.
Conclusiones: El Tribunal Federal Supremo tiende a no utilizar los precedentes judiciales vinculantes como factor limitador de su acción política y, por regla general, no se preocupa por mantener su jurisprudencia estable, íntegra y coherente.
Palabras clave: ADPF 402, acción penal 4070, Tribunal Supremo, precedentes, coherencia.
Artigos
As Incoerências do Sistema de Precedentes no Supremo Tribunal Federal: análise da adpf 402 e da Ação Penal 4070
The Incoherencies Within the Precedent System of the Brazilian Supreme Court: an Analysis of the adpf 402 and the Criminal Suit 4070
Las Incoherencias del Sistema de Precedentes en el Supremo Tribunal Federal: Análisis de la adpf 402 y la Acción Penal 4070
Recepción: 11 Mayo 2022
Aprobación: 18 Noviembre 2022
O Supremo Tribunal Federal detém a competência do exercício do controle concentrado de constitucionalidade, bem como do direcionamento da hermenêutica constitucional como forma de garantia da efetividade dos direitos consagrados na Carta Magna.
A existência de um Tribunal Constitucional faz-se essencial ao Estado Democrático de Direito, pois essa jurisdição deve perfazer os princípios consagrados na Constituição e estabilizá-los. Essa estabilidade é oriunda dos precedentes gerados pelo Tribunal, os quais, antes do advento do Código de Processo Civil de 2015, eram legitimados unicamente pelo controle concentrado de constitucionalidade. Com a positivação do sistema de precedentes no direito brasileiro, as Cortes passaram a ficar vinculadas aos próprios precedentes, os quais passaram a vincular ainda as Cortes inferiores, em respeito ao princípio da estabilidade.
Entretanto, seja pelo alto volume de julgamentos, seja por questão cultural, o Supremo Tribunal Federal mostra dificuldades de se adaptar à nova realidade precedentalista, mantendo elevado o número de decisões monocráticas, e, ainda que profira decisões colegiadas, estas não são dotadas de ratio decidendi, pois, como regra, não deliberam colegiadamente com vistas a uma decisão de que resulte o entendimento institucional sobre o tema. Esse comportamento tem consequências agravadas nas decisões com alta carga política relacionadas aos demais Poderes da República, fato que pode gerar grande estabilidade institucional.
Nesse contexto, pelo método hipotético-dedutivo e com o objeto de demonstrar as demonstrar as incoerências do Supremo Tribunal Federal quando da criação e da aplicação dos precedentes, foram escolhidas a ADPF 402 e a Ação Penal 4070 como casos objeto da pesquisa. De forte cunho político, os casos envolveram o então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e o então Presidente do Senado Federal, Renan Calheiros. A questão central dos casos se resume ao questionamento se réus em ações penais perante o Supremo Tribunal Federal poderiam figurar na linha sucessória da Presidência da República.
Não se pretende repercutir em detalhes os elementos e fatos políticos oriundos da crise institucional gerada por esses casos, os quais repercutiram a agravada crise político-institucional na qual o Brasil estava inserido, sobretudo considerando o processo de impeachment da então Presidente da República Dilma Roussef, mas sim, mediante análise de uma situação já posta, demonstrar a falta de coerência entre eles, de modo a tentar contribuir com a melhora do procedimento deliberativo do Supremo Tribunal Federal.
As Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental são cabíveis dentro de hipóteses restritas de descumprimento do texto constitucional. Não há, contudo, uma definição legal do que se entende por “preceito fundamental”, tendo a doutrina admitido consensos acerca do conceito, definindo-o por: (i) fundamentos da República e decisões políticas fundamentais (arts. 1º a 4º); (ii) direitos fundamentais (art. 5º e seguintes); (iii) cláusulas pétreas (art. 60, §4º); e (iv) princípios constitucionais sensíveis (art. 34, IV), cuja violação justifica a decretação de intervenção federal (BARROSO, 2012).
Nos entornos dos conceitos doutrinários, a jurisprudência tendeu à uniformização de ideais, expandindo a interpretação da Constituição Federal, cabendo ressaltar que o direcionamento hermenêutico dado a esse diploma legal é de competência exclusiva do Supremo Tribunal Federal. A Corte firmou o entendimento de que a ideia de preceito fundamental deveria ser entendida de forma ampliativa: “lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio” (BRASIL, 2003b).
A ADPF 402 teve como objeto o afastamento de réus em ações penais perante o Supremo Tribunal Federal, com o objetivo de retirá-los da linha sucessória ao cargo de Presidente da República. Foram respeitados os princípios de aplicação das ADPFs, pois havia um ato em tese do Poder Público (aquele cuja ação penal tramita no STF não deveria figurar como figura principal do Executivo) e a subsidiariedade, uma vez que não havia outro meio eficaz que sanasse o prejuízo ao direito. Cabe ao Supremo Tribunal Federal identificar o preceito ferido: ato do Poder Público a partir da moralidade que, embora seja um princípio de conceituação subjetiva, deve ser interpretado e materializado pela Corte:
é preciso insistir que o correto dimensionamento de cada um dos preceitos fundamentais dar-se-á por obra do Tribunal Constitucional, identificando, em cada caso a ele submetido, a ocorrência ou não de violação a determinado preceito fundamental, com o que acabará, inexoravelmente, apontando e construindo, pouco a pouco, o conteúdo dos preceitos fundamentais (TAVARES, 2001, p. 154).
A ADPF 402, pautada no princípio da moralidade pública, foi proposta pelo Partido Rede de Sustentabilidade com o objetivo de afastar Eduardo Cunha, o então presidente da Câmara dos Deputados, da linha sucessória da Presidência da República. Cunha era réu em ação penal perante o Supremo decorrente nos inquéritos 3.983 e 4.146, os quais versavam sobre Crimes contra a Administração Pública.
Ainda no cenário político, sob a fundamentação de que Eduardo Cunha se utilizava do cargo público para obtenção de vantagens pessoais ilícitas, tramitava a ação cautelar com objetivo de afastar o Deputado de seu cargo eletivo, na tentativa de evitar que obstruísse provas contra ele e contra os envolvidos no crime, dada a posição ocupada pelo réu na Câmara.
Ademais, no contexto da ADPF, o Partido Rede de Sustentabilidade alegou que não haveria sanção direta e que seriam respeitados os princípios do Processo Penal, além de um reconhecimento da incompatibilidade moral entre o cargo (de Presidente da República, neste caso) e do fato de ser réu em ação penal no Supremo Tribunal Federal.
Na ADPF, o Partido autor requereu em caráter liminar o afastamento de Eduardo Cunha do cargo de Presidente da Câmara dos Deputados até que se aguardasse o julgamento final da arguição e que no julgamento fosse reconhecido a impossibilidade de pessoas que figurem em ações penais perante o Supremo figurem na Presidência da República, nestes termos:
(a) Fixe o modo de interpretação e aplicação dos preceitos fundamentais indicados (Lei nº 9.882/1999, art. 10), para declarar que a pendência de ação penal já recebida pelo STF é incompatível com o exercício dos cargos em cujas atribuições constitucionais figure a substituição do(a) Presidente da República; (b) Em face dessa orientação, determine o afastamento definitivo das funções de Presidente da Câmara dos Deputados do Sr. EDUARDO COSENTINO DA CUNHA (BRASIL, 2020, online).
Em se tratando de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, as decisões proferidas têm caráter vinculante, o que dá à Corte uma responsabilidade muito além do afastamento do réu a qual se referia o pedido liminar.
No curso da Arguição, o partido político Movimento Democrático Brasileiro – MDB, o Partido Social Cristão – PSC, o Partido Humanista da Solidariedade - PHS, o Solidariedade - SDD, o Partido Trabalhista Nacional – PTN e o Partido Progressista – PP, todos devidamente registrados perante o Tribunal Superior Eleitoral, ingressaram com pedido de amici curae, postulando o não conhecimento da ADPF. A fundamentação jurídica consistiu no fato de que o Supremo Tribunal Federal já possuía súmula a respeito da matéria, ou seja, já havia entendimento firmado a respeito, citando, inclusive, o Agravo Regimental interposto na ADPF 80, de Rel. Min. Eros Grau, na qual a Suprema Corte reconheceu a impossibilidade de pleitear alteração de súmula vinculante via ADPF.
Ainda, alegaram que a via da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental seria inadequada ao caso, invocando como precedente de reconhecimento dessa inadequação a demanda gerada pela tentativa de nomeação do Ex-presidente Lula como Ministro da Casa Civil no governo Dilma. Para fins de discussão argumentativa, utilizaram-se do voto de Teori Zavascki, relator da ADPF 390:
A amplitude dessa categoria – atos concretos do poder público –, praticamente ilimitada, reclamava fossem erigidos certos moderadores legais para o acionamento da ADPF, sem o que haveria sério risco de banalização, e talvez até de inviabilização, da jurisdição concentrada do Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2016a, online).
Outro argumento ventilado pelos pretensos amici curae foi o de que os crimes cometidos por Eduardo Cunha só justificariam seu afastamento efetivo do cargo caso estes tivessem sido cometidos enquanto na função de Presidente da República, o que foi fundamentado a partir do artigo 86, §4°, da Constituição Federal: “O Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções.” (BRASIL, 1988, online).
Desse modo, nesta tese contra a ADPF, ter denúncia recebida contra si em crimes comuns dissociados do exercício do cargo de Presidente da República não seria, por si só, causa de afastamento do cargo, uma vez que não cometidos no cargo que justificaria a medida.
O pedido de ingresso como amici curae foi deferido em decisão monocrática pelo Ministro Marco Aurélio, tendo por base o argumento de que referidos Partidos prestariam esclarecimentos, sem, contudo, especificar quais.
Posteriormente, manifestou-se a Procuradoria-Geral da República na figura do então Procurador-Geral, Rodrigo Janot Monteiro de Barros, pleiteando pelo não conhecimento da ADPF sob o argumento de ausência de um dos requisitos necessários à propositura desse tipo de ação de controle concentrado de constitucionalidade, qual seja, ato concreto do Poder Público.
A Procuradoria-Geral da República destacou que Eduardo Cunha já havia tido o mandato suspenso em ação penal, o que inviabilizaria o ato concreto do Poder Público. Ainda, não haveria mais interesse de agir, pois o Deputado Federal Rodrigo Maia já havia sido eleito novo Presidente da Câmara.
Ocorre que Eduardo Cunha só teria sido afastado do cargo em razão do julgamento da Ação Penal 4070, em decisão monocrática de Teori Zavascki, o qual reconheceu os delitos cometidos pelo réu, bem como a gravidade destes, o que justificaria a medida cautelar de afastamento pelo Código de Processo Penal. Embora tenha ocorrido de forma monocrática, essa decisão foi posteriormente referendada pelo Pleno por unanimidade, logo após o impeachment da Presidente Dilma Roussef.
Esse momento de instabilidade política resultou na suspensão do julgamento da ADPF a pedido do Ministro Dias Toffolli, e só seria retomado posteriormente, com votos de maioria dos Ministros de forma favorável ao pedido inicial1, cuja análise continuará sendo feita no tópico seguinte.
O Direito de Ação Penal, de acordo com a doutrina majoritária, é o direito público subjetivo de provocar o Estado (juiz) para que aplique o direito material penal ao caso concreto. O Direito Processual Penal no Brasil, em constante evolução histórica, sobretudo após a Ditadura Militar de 1964, parte do sistema acusatório, de modo que é caracterizado pela composição de partes distintas, contrapondo defesa e acusação em condições de igualdade, ambas se submetendo a um magistrado imparcial (PRADO, 2005, p. 114).
Nesse sentido, o Estado enquanto titular do jus puniendi nas ações penais públicas, por intermédio do Ministério Público, deve tutelar a aplicação da Lei Penal, respeitando o âmbito das respectivas competências. A competência no Direito Processual Penal recai sobre a natureza delitiva, a qual irá definir se um crime será julgado pela justiça comum ou especializada.
Ocorre que, para além da natureza do crime, considera-se a prerrogativa de função (política) para julgamento em foro especial em razão do cargo público. Em relação a isso, houve mudança no entendimento do Supremo Tribunal Federal em 2018, quando o Ministro Luís Roberto Barroso declarou em seu voto no contexto na Ação Penal 937:
O foro por prerrogativa de função aplica-se apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. Após o final da instrução processual, com a publicação do despacho de intimação para apresentação de alegações finais, a competência para processar e julgar as ações penais não será mais afetada em razão de o agente público vir a ocupar outro cargo ou deixar o cargo que ocupava, qualquer que seja o motivo (BRASIL, 2018, online).
Diante do mesmo cenário político da ADPF 402, ajuizada em 3 de maio de 2016, foi deferido o pedido feito pela Procuradoria-Geral da República em 2015 no âmbito da Ação Penal 4070: a medida cautelar que afastaria Eduardo Cunha da linha de sucessão da Presidência da República.
Coincidência ou não, a decisão de acolhimento da cautelar na Ação Penal 4070 foi proferida um dia após o ajuizamento da referida ADPF. A Fundamentação da decisão tomada pelo Ministro Teori Zavascki em caráter monocrático foi pautada no artigo 319 do Código de Processo Penal (risco de voltar a delinquir), tamanha a influência política do Ex-presidente da Câmara.
Entretanto, de forma ordinária e de acordo com o texto Constitucional, a competência desse afastamento recairia sobre o Poder Legislativo e não sobre o Judiciário, o que gerou um conflito institucional em relação à separação dos Poderes. O relator se pautou em entendimento firmado a esse respeito via Mandado de Segurança nº 24458 (BRASIL, 2003a, p. 15):
[...] É imprescindível atentar – ainda a propósito do art. 55, VI, e de seu § 2º – que a outorga da decisão sobre a perda de mandato às próprias Casas Legislativas tem como pressuposto a ultimação dos trabalhos da Justiça Criminal, na forma de uma sentença transitada em julgado. O preceito trabalha com uma lógica de harmonia entre poderes, que não interdita o funcionamento de qualquer um deles. Pelo contrário, permite que cada um funcione dentro de suas respectivas competências.
O Relator também se pautou na Lei de Abuso de Autoridade de 1992, reconhecendo que cabe ao Judiciário analisar as ilegalidades (abusos) cometidos no exercício da atividade parlamentar, e, caso constatadas, as infrações da lei são incompatíveis com o cargo (BRASIL, 2003a, p. 15), de modo que estaria justificada a aplicação da medida cautelar prevista no diploma do Código de Processo Penal.
Ademais, Eduardo Cunha seria o primeiro na linha sucessória da Presidência da República, sendo necessária a intervenção do Poder Judiciário, pelo Supremo Tribunal Federal, para assegurar a idoneidade daqueles que ocupam, ou possam vir a ocupar, o mais alto escalão do Poder Executivo. Mediante as fundamentações expostas pelo Ministro, a Corte referendou a liminar por unanimidade.
Com o julgamento da ADPF 402 ainda suspenso, o partido Rede de Sustentabilidade fez o pedido, nos autos da ADPF, de nova medida cautelar com intuito de afastar dessa vez o então presidente do Senado Federal, Renan Calheiros. Esse fato se deu, pois o Supremo teria acolhido denúncia de crimes praticados pelo Senador no exercício do mandato, de modo que a medida cautelar suscitava o afastamento da linha sucessória da Presidência da República, mantendo-o no cargo de eletivo de origem. Diante disso, o relator da arguição, Ministro Marco Aurélio, decidiu pelo acolhimento da cautelar, alegando que havia divergência entre as responsabilidades do cargo com a figura de réu em ações penais no Supremo Tribunal Federal.
Houve, contudo, uma incoerência grave e uma afronta ao sistema de precedentes, pois o Ministro utilizou-se da decisão da Ação Penal 4070 como precedente, bem como do julgamento de acolhimento da ADPF por maioria do pleno para fundamentar o afastamento de Senador da presidência do Senado Federal, não se atendo à ratio decidendi, tampouco às peculiaridades dos casos.
O relator Ministro Marco Aurélio partiu do fundamento de que haveria uma “tendência de julgamento” da ADPF 402 quando afirmou que “os seis ministros concluíram pelo acolhimento do pleito formalizado na inicial da arguição de descumprimento de preceito fundamental, para assentar não poder réu ocupar cargo integrado à linha de substituição do Presidente da República” (BRASIL, 2016c, online). Portanto, o Relator se pautou em uma possibilidade de decisão do julgamento de uma arguição cujo mérito encontrava-se suspenso.
Essa decisão monocrática em caráter liminar gerou uma crise institucional acerca da legitimidade da medida, uma vez que o Senado Federal invocou sua exclusividade do julgamento de perda de mandato ou suspensão de processo-crime, de forma que não houve cumprimento da liminar. Em meio ao caos gerado pela decisão, o Senado se pautou no texto Constitucional para que nada fosse feito até o julgamento de mérito da ADPF 402. Com fulcro nos artigos 53 e 55 da Carta Magna, a casa Federativa, em contraposição ao conteúdo da decisão do Ministro Marco Aurélio, concedeu ao então Presidente do Senado, Renan Calheiros, prazo para que apresentasse defesa à Mesa.
Acirrando ainda mais a tensão entre Poder Legislativo e Poder Judiciário, Renan Calheiros apontou a decisão do Relator da ADPF 402 como essencialmente política: “Ao tomar a decisão de afastar um presidente de um poder por decisão monocrática, nove dias antes do término de um mandato, nenhuma democracia merece isso. A democracia, mesmo no Brasil, não merece esse fim.” (LIMA; MURAKAWA, 2016, online).
A tensão política entre os poderes foi tamanha que o Supremo Tribunal Federal, em contradição às tendências decisórias apresentadas até o momento, julgou parcialmente o mérito da Arguição, cassando a liminar, de modo que manteve Renan Calheiros como Presidente do Senado, sem que ele, contudo, pudesse exercer eventual cargo de Presidente da República.
A “ratio” subjacente a esse entendimento (exigência de preservação da respeitabilidade das instituições republicanas) apoia-se no fato de que não teria sentido que os substitutos eventuais a que alude o art. 80 da Carta Política, ostentando a condição formal de acusados em juízo penal, viessem a dispor, para efeito de desempenho transitório do ofício presidencial, de maior aptidão jurídica que o próprio Chefe do Poder Executivo da União, titular do mandato, a quem a Constituição impõe, presente o mesmo contexto (CF, art. 86, § 1º), o necessário afastamento cautelar do cargo para o qual foi eleito (BRASIL, 2016c, online).
Na sessão em se que buscou o referendo da medida cautelar da ADPF 402, o Ministro Marco Aurélio expôs que o colegiado, ao confirmar por unanimidade a decisão monocrática de Teorí Zavascki na Ação Penal 4070, já havia firmado, sem quaisquer ressalvas, o entendimento do Colegiado Maior.
O Ministro enfatizou que o Supremo Tribunal Federal estaria se desmoralizando ao decidir de forma diversa à tendência de julgamento previamente ajustada, uma vez que o “[...] princípio constitucional envolvido passa a ser um nada jurídico, a variar conforme o cidadão que esteja na cadeira [...].” (BRASIL, 2016c, online). Ademais, o Relator da ADPF 402 alegou que se estava diante de um “jeitinho brasileiro” e que “o Texto Maior implica relevo, deferência, não à pessoa, ao ocupante do cargo, mas à Casa por ele personificada”.
Por outro lado, o Ministro Teorí Zavascki demonstrou, ao proferir o voto no âmbito do referendo da medida cautelar na ADPF 402, descontentamento por ter tido sua decisão monocrática no contexto da Ação Penal 4070 citada pelo Relator Marco Aurélio:
Faço um parêntese para manifestar meu profundo desconforto pessoal com um fenômeno que infelizmente tem se banalizado, tem se generalizado, em que juízes, em desacordo com a norma expressa da Lei Orgânica da Magistratura, tecem comentários públicos e depreciativos a decisões de outros juízes, relacionados a processos em curso. Infelizmente, esse é um fenômeno que não depõe a favor da Instituição (BRASIL, 2016c, online).
Alegou o Ministro Teori Zavascki que, para o deferimento de liminar, pressupõe-se o requisito do periculum in mora, com risco iminente de dano grave, o qual cabe ao Poder Judiciário inibir. Enfatizou ser esse o embasamento da decisão da ação cautelar 4070, mas não o deve ser da cautelar da ADPF 402, uma vez que, no caso do então Senador Renan Calheiros, “este somente passou a figurar no cenário processual quando a demanda já estava em pleno curso, em fase de julgamento e figurou apenas como alvo de medida de urgência.” (BRASIL, 2016c, online), não sendo ele sequer parte do processo.
Na mesma linha de voto, seguiu a Ministra Carmem Lúcia, que presidia o Supremo Tribunal Federal à época dos fatos. Segundo a Ministra, não se fazia presente o perigo da demora que justificaria o afastamento de Renan Calheiros da função do mandato eletivo, pelo contrário, “o próprio órgão senatorial pode adotar as medidas necessárias, conforme o entendimento que vier a fixar, mas no espaço específico daquela Casa, deixando que isto seja ali deliberado,” (BRASIL, 2016c, online).
Por meio dessas argumentações, é possível identificar a incoerência da decisão parte do Ministro Marco Aurélio quando este não observou as peculiaridades de ambos os casos e aplicou não um precedente, mas uma possiblidade de julgamento cujo mérito, em suas ressalvas, não havia sido integralmente debatido pelo Colegiado.
O Supremo Tribunal Federal como órgão judiciário máximo no Brasil tem para si a função de direcionar a interpretação do texto constitucional, bem como o controle concentrado de constitucionalidade, definindo precedentes, os quais vincularão os demais juízos e Tribunais.
A função dos precedentes vinculantes no Brasil, para além da uniformização das decisões judiciais, consiste em evitar o desrespeito ao princípio da isonomia pelo Poder Judiciário quando da não uniformização de suas decisões. Dessa forma, a construção teórica de formas de controle das Cortes Constitucionais baseia-se na ideia de que a deliberação, e a consequente tomada de decisão, é limitada argumentativamente a decisões já tomadas anteriormente pela Corte (MENDES, 2008, p. 10).
Contudo, as relações jurídicas apresentam tendências à mutabilidade, acompanhando necessariamente as mudanças sociais, de modo que entender que uma decisão tida por precedente deve ser estável tem o mesmo peso que entender que as decisões são mutáveis. Em quase todas as jurisdições, um juiz tende a decidir um caso da mesma forma como um caso similar foi decidido no passado por outro juiz (CROSS, 1968, p. 35).
Os precedentes devem ser adotados independentemente do sistema jurídico de um determinado país, pois, quando a norma não se encaixar de forma completa ao caso, o juiz deverá interpretá-la para decidir o caso. Essa decisão deverá ser equilibrada na procura da resposta correta, devendo alterar o trabalho do legislador apenas em casos excepcionais (SCHAUER, 1991).
Desse modo, ao agir para além das imposições legais do Poder Legislativo, o Supremo Tribunal Federal tende a ultrapassar os limites impostos pelos adeptos do juiz positivista “bouche de la loi” e passa a atuar como controlador dos demais Poderes.
Contudo, essa atuação só será legítima mediante a plena decisão argumentativa da Corte, a qual deverá ser dotada de estabilidade, integridade e coerência. O sistema de precedentes, portanto, serve de fator limitante às argumentações “vazias” sem a devida formação de ratio decidendi, obrigando o Tribunal a estabelecer uma relação entre a decisão passada e a decisão futura, de modo a manter a coerência (PANUTTO; CHAIM, 2021). Essa coerência é visível nas decisões judiciais quando os juízes apresentam certo padrão de comportamento, decidindo se serão pragmáticos, positivistas ou se atuarão como Hércules2.
No cenário político da ADPF 402, em conjunto com a Ação Penal 4070, o Ministro Marco Aurélio retoma uma decisão como precedente, sem, contudo, observar todo o contexto fático em que esta foi proferida, ignorando o passado, sem determinar o objetivo e a amplitude de uma norma (lê-se “precedente”), sem estudá-la em suas origens (POSNER, 2012, p. 382).
Uma crítica que se deve estabelecer é em relação à força das decisões monocráticas, sobretudo em julgamentos essencialmente políticos, envolvendo membros dos demais Poderes. Tamanha foi a tensão gerada entre os Poderes da República que o Ministro Gilmar Mendes, após as repercussões da cautelar na ADPF 402, declarou em jornal de veiculação pública que prezava pelo afastamento do Ministro Marco Aurélio e eventual impeachment3.
Ocorre que, no Supremo Tribunal Federal, via de regra, os casos são tidos como isolados, sobretudo os de cunho político, pois o Tribunal aparenta levar em consideração a repercussão da decisão na sociedade (POSNER, 2010, p. 27). Entretanto, a interpretação do direito é um ato contínuo, que não se aplica a um único caso, mas sucessivos.
Com isso, ao optar por aplicar ou criar um precedente, o Tribunal deve fundamentar a decisão após plena deliberação, pois a garantia de motivação das decisões judiciais tem a finalidade de assegurar uma justificação política para as decisões proferidas, fazendo que a decisão fundamentada possa ser submetida a uma espécie de controle, seja judicial, seja das partes, seja político (TESHEINER; THAMAY , 2015, p. 61).
Assim, para que haja eficácia e coerência do sistema precedentalista no Brasil, é necessário que o STF exponha a ratio decidendi do julgado ao efetivo debate da Corte, pois, como leciona Leite (2007, p. 129), “a jurisprudência constitucional erguida pelo Supremo Tribunal Federal não deve ser vista como mero repertório de decisões, mas sim uma forma de concretização da Constituição.”
A análise dos casos mencionados demonstrou incoerência do Supremo Tribunal Federal em citar e utilizar os próprios precedentes. No contexto da ADPF402 e da Ação Penal 4070, não deveriam ter sido tratados os casos como análogos, assim como o fez o Ministro Marco Aurélio, sobretudo diante da precariedade de uma decisão liminar, que deve seguir de forma harmônica os precedentes firmados pela Corte. Na peculiaridade do Senador Renan Calheiros, os fatos que deram origem à denúncia se deram antes de ele ocupar o cargo no Senado Federal de modo que o precedente de Eduardo Cunha não seria aplicável a ele.
Diferentemente de Calheiros, Eduardo Cunha foi corretamente afastado pela medida cautelar tanto na fundamentação da decisão quanto na competência do Supremo para fazê-lo. Na relação procedimental, a decisão monocrática contra Renan Calheiros deveria ter sido referendada pelo Pleno mediante debate da Corte para que o precedente fosse efetivado.
O Supremo Tribunal Federal possuía os amparos constitucionais no âmbito da Ação Penal 4070, e, desta forma, ainda que houvesse margem discricionária em relação à tomada de decisões, o Ministro relator deveria ter partido da ratio decidendi do precedente para prolação de sua decisão no âmbito da ADPF 402.
A utilização de decisões monocráticas em temas de repercussão social ou hard cases em detrimento do processo deliberativo aventa questionamentos acerca da legitimidade da Corte no processo decisório. A cassação da liminar do Ministro Marco Aurélio na ADPF 402 é um exemplo desse enfraquecimento da autoridade da Corte, demonstrando consequências institucionais que as decisões individuais podem trazer ao Estado Democrático de Direito. No cenário político do ano de 2016, com o impeachment da Ex-presidente da República Dilma Roussef, o afastamento do então Presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, o qual, inclusive, foi o percursor desse processo de impeachment, colocou em pauta as competências do Supremo Tribunal Federal no julgamento de casos políticos.
Essa pauta se acirrou frente ao Poder Legislativo quando da liminar no Ministro Marco Aurélio na ADPF 402, cujo conteúdo a Mesa do Senado Federal sequer se dispôs a cumprir, criando desarmonia não apenas entre os membros da Corte, mas entre os Poderes como um todo, colocando em crise a definição dos limites da atuação do Tribunal no sistema de freios e contrapesos.
Ademais, a escassez argumentativa do Supremo Tribunal Federal é também escancarada quando do julgamento da ADPF 402 pelo Pleno, pois o Ministro Celso de Mello se antecipa aos demais, revisando o próprio voto, pleiteando pelo julgamento parcial de mérito da Arguição, pedindo escusas ao dizer que compreendeu o voto do Ministro Marco Aurélio de forma diversa, afirmando que se deve dar parcial procedência à Arguição, pois, uma vez recebida denúncia ou queixa-crime contra aquele que possa ocupar eventualmente o cargo de Presidente da República, é necessário que se impossibilite o exercício desta função em específico, “muito embora conservem a titularidade funcional dos cargos de direção de suas respectivas Casas” (BRASIL, 2016c, online).
Esse fato demonstra a carência argumentativa da Corte, bem como a ausência de exposição de votos entre os Ministros, sem que haja parâmetro decisório, acarretando insegurança jurídica (PANUTTO, 2018, p. 205) e crises institucionais quando se trata de casos políticos por essência.
Quando não há efetivo debate do colegiado e se consagra uma tradição de decisões monocráticas, questiona-se a autoridade do Supremo Tribunal Federal frente aos outros Poderes nos julgamentos com sérias repercussões políticas. A recusa de cumprimento da decisão pelo Senado, sob a argumentação de pouca credibilidade às decisões monocráticas em temas políticos escancarou a necessidade de adequação do sistema decisório da Corte, sobretudo nos casos envolvendo os demais Poderes da República.
Diante do exposto, ficou demonstrado que o Supremo Tribunal Federal tende a não se utilizar dos precedentes judiciais vinculantes como fator limitante à atuação política da Corte, utilizando-os, contudo, de forma que não cumprem a função que lhes é incumbida: manter a jurisprudência estável, íntegra e coerente.
Na cultura decisória da Corte não há o efetivo debate em favor da estabilização do direito, mas sim cultura pautada em decisões monocráticas (PANUTTO; CHAIM, 2018, p. 758), tal como ocorreu na medida cautelar no âmbito da Ação Penal 4070 em face de Eduardo Cunha. Essa decisão gerou posterior confronto entre os membros da Corte quando o Ministro Marco Aurélio aplicou tal precedente de forma equivocada, justificando, erroneamente, pedido liminar para afastamento de Renan Calheiros da linha sucessória da Presidência da República no julgamento de cautelar na ADPF 402.
Outro problema institucional demonstrado por meio da análise fática dos casos é que os Ministros não se entendem como parte de um mesmo sistema, mas se veem como instituições isoladas, sem valorização do debate, visando a efetivar entendimentos pessoais com justificativas jurídicas, procurando amparo constitucional para fazê-lo.
Manter a jurisprudência estável não se traduz apenas na continuidade do direito legislado, exigindo também a continuidade e o respeito às decisões judiciais, ou melhor, aos precedentes (MARINONI, 2016). Nesse sentido, direcionar a interpretação do direito à uniformidade das decisões e à formação dos precedentes transborda a conclusão de que o direito, enquanto questão de fato (DWORKIN, 1986, p. 272) -aquele criado pelas instituições - atingiu sua completude, mas o direciona para previsibilidade decisória e garantia de segurança jurídica em conflitos judiciais nos países de sistema civil law.
Com isso, diante da comparação entre os casos apresentados, quais sejam a Ação Penal 4070 e a ADPF 402, demonstra ser necessária adequação do sistema deliberativo do Supremo Tribunal Federal com o objetivo de garantir a aplicação do sistema de precedentes judiciais vinculantes, implementado pelo CPC de 2015, de modo a garantir a legitimidade da própria Corte, perante seus próprios membros, aos demais Poderes e à sociedade.