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Estado, Democracia e Guerra: a Imaginação Bélica em Hans Kelsen e Carl Schmitt
State, Democracy and War: the Warfare Imagination in Hans Kelsen and Carl Schmitt
Estado, Democracia y Guerra: la Imaginación Bélica en Hans Kelsen y Carl Schmitt
Revista Opinião Jurídica, vol. 21, núm. 38, pp. 120-144, 2023
Centro Universitário Christus

Artigo


Recepción: 08 Julio 2022

Aprobación: 22 Marzo 2023

DOI: https://doi.org/10.12662/2447-6641oj.v21i38.p120-144.2023

RESUMO

Objetivo: O objetivo deste artigo é demonstrar de que modo as teorias do direito de Hans Kelsen e Carl Schmitt refletem o contexto político-econômico de seu tempo. Assim, trata de investigar o seguinte problema: em que medida as filosofias políticas de Schmitt e de Kelsen são coerentes com suas críticas dos efeitos da guerra no Estado contemporâneo?

Metodologia: Tal objetivo foi desenvolvido a partir da exposição de alguns pontos das filosofias políticas dos autores, bem como de algumas de suas considerações sobre a guerra. A metodologia utilizada foi a comparação bibliográfica entre os escritos dos autores mencionados, com o apoio de referências secundárias que auxiliam na elucidação do contexto histórico.

Resultado: Após esse desenvolvimento, pôde-se constatar a coerência acima mencionada em ambos os autores, respectivamente: na correspondência entre a defesa que Schmitt faz do político estatal e sua conclusão do fim da era da estatalidade; e na correspondência entre a defesa de Kelsen da democracia e sua crítica ao jus belli.

Conclusão: Constatando-se tais pontos de aproximação na argumentação dos autores, conclui-se não apenas que seus diagnósticos sobre a guerra têm lastro em seus escritos políticos, mas também que seus próprios escritos políticos já desenvolvem, de certa forma, o tema da guerra, presente de forma latente no imaginário histórico da primeira metade do século XX.

Palavras-chave: Teoria do direito, história do século XX, direito internacional, vontade do estado, teoria do estado.

ABSTRACT

Objective: This article aims at demonstrating how Hans Kelsen’s and Carl Schmitt’s theories of law reflect the political-economical context of their time, by answering the following question: to what extent are Schmitt’s and Kelsen’s political philosophies coherent with their critiques of the effects of the war in the contemporary State?

Methodology: This question was developed by the exhibition of some elements of Kelsen’s and Schmitt’s political philosophies, as well as some of their meditations on the war. The methodology used in this research consists of a bibliographical comparison between the aforementioned theorists, in addition to secondary bibliography that helps to clarify the historical context.

Results: The authors verified that both theorists present the above-mentioned coherence in their texts. One can perceive it in Schmitt’s correspondence between his defense of the political and his conclusion that we’ve reached the end of the State’s age. One can also perceive it in Kelsen’s correspondence between his defense of democracy and his critique of the jus belli.

Conclusion: After acknowledging some contiguity in the theorists’ argumentation, the authors could conclude not only that their diagnoses of the war are linked to their political writings, but also that their very political writings have already developed the issue of the war, latently present in the historical imaginary of the 20th century’s first half.

Keywords: 20th century history, international law, theory of state, theory of law, will of the state.

RESUMEN

Objetivo: El objetivo del artículo es demostrar cómo las teorías del derecho de Hans Kelsen y Carl Schmitt reflejan el contexto político-económico de su época. Se trata entonces de investigar el siguiente problema: ¿en qué medida las filosofías políticas de Schmitt y Kelsen son consistentes con su crítica a los efectos de la guerra en el Estado contemporáneo?

Metodología: Este problema se desarrolló a partir de la exposición de algunos puntos de las filosofías políticas de los autores, así como de algunas de sus consideraciones respecto de la guerra. La metodología utilizada fue la comparación bibliográfica entre los escritos de los autores mencionados, con apoyo de referencias secundarias, en la elucidación del contexto histórico.

Resultados: Luego de este desarrollo, fue posible verificar la coherencia antes mencionada en ambos autores, respectivamente. En relación a Schmitt, entre la defensa de la política estatal y su conclusión del fin de la era de la estatalidad; y en la relación a Kelsen, entre la defensa de la democracia y su crítica del jus belli.

Conclusión: Observando tales puntos de aproximación en los argumentos de los autores, se concluye, no solo que sus diagnósticos sobre la guerra se basan en sus escritos políticos, sino que sus propios escritos políticos ya se desarrollan el tema de la guerra presente en el imaginario histórico de la primera mitad del siglo XX.

Palabras clave: Derecho internacional, historia del siglo XX, teoría del derecho, teoría del estado, voluntad del estado.

1 INTRODUÇÃO

O historiador Fernand Braudel construiu uma historiografia que buscava dar um enfoque maior às estruturas históricas de longa duração. Com isso, o autor francês almejava verificar quais condições materiais se conservavam e se repetiam em longos espaços de tempo. Tomando a historiografia de Braudel como ponto de partida, o historiador alemão Reinhart Koselleck construiu sua historiografia a partir da hipótese de que todo conceito histórico reproduz certos elementos da história social à qual ele pertence. Esse modo de conceber a história busca enfatizar as condições materiais subjacentes às teorizações, evitando abordar os conceitos como ideias abstratas.

Diante disso, uma história do direito construída a partir de tais intuições historiográficas pode demonstrar que toda teoria do direito reflete elementos de seu contexto histórico. Uma aposta científica em determinada teoria jurídica busca responder a uma demanda social de organização do espaço político, uma maneira de resolver os impasses postos pela ordem do tempo. Na mesma medida em que se pode derivar uma teoria do direito de diagnósticos sobre a situação político-estatal como solução para momentos turbulentos, é possível inferir diagnoses políticas com suporte em uma teoria do direito. Esse duplo movimento pode ser percebido por meio da análise de textos de dois teóricos do direito aparentemente contrários um ao outro: Hans Kelsen e Carl Schmitt.

Hans Kelsen (1881-1973) foi um teórico do direito austríaco de meados do século XX. A teorização de Kelsen consistiu, de forma genérica, em abordar o direito positivo, comumente examinado de um modo tradicional pelas mais diversas teorias do Estado, a partir de uma teoria jurídica radicalmente normativa. Essa tarefa implicou a criação de um modelo lógico-normativo que lhe permitiu analisar o direito positivo como ele é, verificando as inconsistências derivadas de certas naturalizações ou hipostasiações recorrentes nas ciências que tratavam do direito. Foi com tal formalismo que o jurista austríaco procurou construir uma teoria forte o suficiente para enfrentar os temas mais controversos de seu tempo.

Contemporâneo a Kelsen, Carl Schmitt (1888-1985) foi um teórico alemão do direito cuja proposta teórica consistiu em abordar o direito alicerçado em seu aspecto formal e formalizador, isto é, enquanto meio de criação do jurídico a partir do não jurídico. É nessa perspectiva teórica que se inscreve sua preocupação com o caráter excepcional da decisão soberana. Sempre reforçando que a constituição do jurídico depende de uma decisão política fundamental e a preocupação está na explicação da nomogênese em termos meramente políticos.

Desse modo, o presente trabalho tem por objetivo investigar, em algumas considerações, o seguinte problema: em que medida as filosofias políticas de Schmitt e de Kelsen são coerentes com suas críticas dos efeitos da guerra no Estado contemporâneo? A hipótese do presente artigo é que se pode constatar tal coerência em ambos os autores: a defesa que Schmitt faz do político estatal corresponde à sua conclusão de que o mundo alcançou o fim da era da estatalidade, da mesma forma que a defesa de Kelsen da democracia corresponde à sua crítica ao jus belli. Se essa hipótese tiver algum prosseguimento, pode-se deduzir que ambos os diagnósticos sobre a relação entre Estados após a Segunda Guerra (pessimista e otimista) têm lastro em suas respectivas formas de organização – autoritária e democrática – da política interna de um Estado. Além disso, é possível concluir que, da mesma forma que a aposta no autoritarismo e a crença no fim da estatalidade padecem do déficit de uma organização política em benefício de uma análise da ordem concreta, a aposta na democracia e a crença no direito internacional unificado padecem do déficit de análise da ordem concreta em benefício de uma organização política. Ambos os diagnósticos, porém, complementam-se enquanto visões de mundo dos desígnios jurídicos e políticos do século XX.

Sendo assim, o presente texto está dividido em quatro partes. A primeira busca introduzir o problema da guerra e da democracia de massas no final do século XIX. A segunda traz algumas considerações de Schmitt a respeito daquilo que entende por democracia, ressaltando-se como o jurista vê o papel do povo e de que modo ele tenta justificar a utilização da ideia de povo como meio de fundamentar um maior autoritarismo estatal e a manutenção da guerra contra inimigos externos. A terceira traz algumas considerações de Kelsen sobre democracia, mostrando-se de que forma o jurista austríaco busca desmistificar algumas noções inerentes a esse conceito, como a de representação, ressaltando o fato de que há dominação em toda democracia e de que, apesar disso, essa ainda é a melhor forma de organização dos conflitos internos. Na parte final, busca-se mostrar os reflexos dos períodos das guerras nos escritos de Kelsen e Schmitt.

É importante destacar que essa exposição serve para entender o pano de fundo comum diante do qual Kelsen e Schmitt elaboravam, por vias distintas, suas perspectivas, reforçando-se, portanto, o fato de que suas considerações políticas não devem ser restritas apenas ao âmbito estritamente teórico, uma vez que tais preocupações também residem na resolução de impasses práticos. A metodologia utilizada foi a comparação bibliográfica entre os escritos dos autores mencionados, com o apoio em outros autores. Destaque-se que as conclusões deste trabalho não exaurem o assunto, sendo apenas inferências de cunho teórico que buscam fomentar o debate sobre o tema.

2 GUERRA E DEMOCRACIA DE MASSAS NA CONJECTURA DO INÍCIO DO SÉCULO XX

Apesar de o intercâmbio político entre Estado e economia fundamentar o capitalismo desde seus primeiros anos, a grande novidade instaurada pela fusão entre política e economia, que teve lugar durante a segunda metade do século XIX, foi o crescente descontrole da rivalidade internacional, mesmo com a divisão pacífica das zonas de influência coloniais. A competição frenética pela expansão industrial, combinada com o protecionismo econômico, fez que o fortalecimento das nações convergisse com os seus respectivos crescimentos econômicos, desencadeando uma corrida expansionista das nações europeias por meio de conquistas de novos territórios. Esse intercâmbio político nacionalista de expansão econômica incentivou os Estados a financiarem cada vez mais a indústria bélica (HOBSBAWM, 2017, p. 482-483).

Nesse ínterim, o bloco beligerante da Tríplice Entente surgiu de um acordo assinado em 1904 pelo Reino Unido e pela França a respeito da divisão de suas colônias, apesar de apenas em 1907 ter se consolidado como bloco político.1 O industrialismo e a malha comercial global alcançaram uma extensão tão ampla na segunda metade do século XIX que a única saída encontrada pelas economias nacionais para a crise da década de 1880 foi um intenso protecionismo estatal. Quando o liberalismo econômico adquire feições mais protecionistas, a ganância e a concorrência do livre comércio se transformam em disputa de poder estatal, já que os Estados passam a intervir cada vez mais nas transações econômicas. Foi no bojo desse isolacionismo econômico generalizado, reação à alta concorrência internacional, que a Primeira Guerra Mundial se desenrolou (HOBSBAWM, 1995, p. 30-43).

O aumento da hostilidade entre nações teve como uma de suas consequências a necessidade cada vez maior de mobilização das massas para a formação de uma identidade nacional unificada, fenômeno lastreado na formação dos exércitos nacionais. Quanto maior a necessidade de formação de uma imaginação nacional comum, maior a importância do papel do exército para o ensino dos valores nacionais e para a militarização (HOBSBAWM, 2021, p. 123-126). A formação de uma conjuntura bélica acompanhou, pois, no início do século XX, a emergência de nacionalismos hostis, fundados na causa nacional de cada Estado, que impactaram diretamente no processo de democratização da política liberal sectária.2 Como a proteção econômica nacional dependia da mobilização das massas para a efetivação do industrialismo militar, as demandas sociais, em especial das classes médias baixas que surgiram nesse contexto, foram cada vez mais institucionalizadas, ampliando-se o sufrágio aos não detentores de bens. Democracia, guerra e mobilização das massas caminham paralelamente na formação do imaginário social dos primeiros anos do século XX.3

Em sua crítica dirigida a Ernst Jünger, Walter Benjamin descreve como o protofascismo literário alemão evidencia uma importante mudança no imaginário nacional. Após a derrota na Primeira Guerra, muitos dos combatentes alemães passaram a operar como ideólogos da guerra, promovendo uma nova imagem do front, que deixa de ser um espaço de luta localizado e se torna a nova pátria do pós-guerra. Nesse cenário, a técnica se torna o novo veículo da natureza, de modo que essa noção de “guerra como abstração metafísica, professada pelo novo nacionalismo, é unicamente a tentativa de dissolver na técnica, de modo místico e imediato, o mistério de uma natureza concebida em termos idealistas” (BENJAMIN, 2002, p. 73). Fora do campo de batalha tradicional, o soldado dá lugar ao guerreiro fascista da luta de classes, de forma que a guerra se dispersa pela sociedade, concretizando aquilo que Ernst Jünger definiu como mobilização total: a completa confusão entre combatentes e não combatentes, que se estende da guerra ao pós-guerra e que atribui sentido bélico a toda prática cotidiana, mergulhando a sociedade em um medo perene de se ver atingida pela próxima guerra (JÜNGER, 2002, p. 192-202, 207-212; BENJAMIN, 2002, p. 63-76).

O aumento da participação das massas na administração dos Estados – seja por meio do parlamento, seja por meio da educação pública, seja por meio do exército – coincide com o aumento da hostilidade entre Estados. Se o capitalismo liberal era condicionado pela exclusão política e social das massas, essa inversão muda a própria forma como o capitalismo se apresenta, de modo que ele passa a se organizar cada vez mais a partir de uma chave bélica: mobilização das massas em favor dos conflitos bélicos como modo de fomentar o industrialismo militar. Se, entre os teóricos liberais do Estado do século XIX, havia certo consenso a respeito da relação entre Estado e política representativa – limitação dos poderes e sufrágio sectário –, a relação entre Estado e política se torna ambígua entre os juristas durante o capitalismo bélico. Os próximos capítulos têm como hipótese o fato de se pode perceber uma latência do problema da guerra e do conflito nos escritos políticos de Carl Schmitt e Hans Kelsen, dois juristas centrais para a teoria do direito do século XX.

3 CARL SCHMITT E O ESTADO COMO JUSTIFICAÇÃO DO CONFLITO EXTERNO

Em sua conceituação contida em Teoria da Constituição (Verfassungslehre), a “democracia” de Carl Schmitt significa qualquer Estado no qual um povo seja detentor do poder constituinte, bem como a atribuição do poder a esse mesmo povo para se dar uma constituição para si mesmo. Em outras palavras, trata-se de um conceito que reforça a “identidade do povo em sua existência concreta consigo mesmo como unidade política” (SCHMITT, 1982, p. 221, tradução nossa).4 Tal forma política democrática, segundo Schmitt, está assentada no denominado “princípio de igualdade”, que, por sua vez, não se refere a uma igualdade social ou universal. Sendo muito mais restrita, a igualdade jurídica a que Schmitt se refere implica necessariamente aquela igualdade jurídica dos súditos de determinado Estado, bem como a perpétua diferenciação dos indivíduos daquele Estado em relação aos de outro Estado. Essa é a tradução constitucionalista do conceito do político schmittiano, isto é, da produção de uma identidade que se contrapõe ao não idêntico, ao inimigo externo em potencial.

A noção schmittiana abrangente de povo pode ser entendida a partir da crítica que o autor alemão realiza contra o parlamentarismo weimariano, em primeiro lugar, e, além disso, contra a própria forma de parlamentarismo em geral. Participando do pensamento conservador ascendente de sua época5, em muitos de seus textos da década de 1920, é explícita a definição da democracia parlamentar como certo “absolutismo parlamentar” (SCHMITT, 1996, p. 1-80). Em outros termos, é por causa da democracia parlamentar que a grave crise jurídica, econômica e social estava ocorrendo nos anos subsequentes ao término da Primeira Guerra, que durou de 1914-1918. Sua analítica entende que a deliberação ilimitada das massas teria se infiltrado nos assuntos do governo, tendo como objetivo subordinar toda a política estatal aos múltiplos ideais sociais, comprometendo a existência da instância estatal.

A esse pretenso desvirtuamento do parlamentarismo, Schmitt defende um parlamentarismo “autêntico”, haja vista que somente este, por seu caráter essencialmente burguês e alinhado desde a origem com a ordem estatal, deve ser cultivado e privilegiado. Para o jurista alemão, a qualidade fundamental para tal autenticidade é o sectarismo, visto que qualquer outra forma política procuraria desfazer o vínculo radical entre, de um lado, os interesses burgueses e, de outro, o conjunto da política estatal, vínculo que configuraria a base social tradicional que fundamenta a unidade política do Estado. A democracia de massas surge a partir do momento em que os interesses não representados tentam se fazer valer politicamente, ampliando o espectro eleitoral para outras classes sociais (SCHMITT, 1982, p. 301-302).

Esse duro golpe sofrido pela forma parlamentar do século XIX, na visão de Schmitt, fez que desaparecessem, de uma só vez, as discussões decisivas a respeito dos problemas estatais, o caráter representativo da unidade política do povo pelos parlamentares (que então começavam a representar “parcelas” do povo, e não sua integralidade). Sob esse regime, a publicidade e a multiplicidade de vozes dissonantes promoviam uma transformação nas estruturas do Estado, desviando o foco das prioridades do Estado para aquele da defesa dos direitos individualistas e parciais da sociedade. Isso acarretou um progressivo abandono da política burguesa unitária e um aumento dos antagonismos sociais dentro do parlamento.

Contra a inserção das massas na política, Schmitt se apoia em uma vertente teórica antidemocrática para endossar sua aposta em um conceito de “povo” e de “nação” de vernizes democráticos. Essa aparente contradição está presente em seu livro sobre a noção de constituição: uma dura postura contra a democracia tal qual estabelecida pelos critérios formais da Constituição de Weimar e, ao mesmo tempo, a defesa intransigente de uma democracia capaz de resgatar a ordem perdida burguesa (econômica) e pública (estatal) que fora outrora unificada. Não se trata, porém, de uma contradição de fato: o que há é uma defesa de uma política dita popular performada como condição para a restauração e manutenção do sectarismo parlamentar, agora sob condução demagoga das massas.

Schmitt reforça o argumento do povo unificado como uma dada unidade imanente e soberana capaz de distinguir quem são os integrantes do Estado e quem não são. É nesse sentido que, tanto em sua Teoria da Constituição como em O Conceito do Político, o jurista alemão faz questão de separar o conhecido esquema que dá a essência do conceito do político: o antagonismo originário entre amigo e inimigo (SCHMITT, 1982, p. 241). A identidade do termo “amigo” passa necessariamente pela identificação daquilo que ele não é, ou seja, o saber sobre o amigo vem a reboque do que se sabe sobre o “inimigo”. Da perspectiva de um Estado, o inimigo público (hostis) é, segundo Schmitt, aquele conjunto política e integralmente antagônico de indivíduos que ou configura outro Estado – inimigo externo – ou busca promover a guerra civil – inimigo interno.

A guerra é um combate armado entre unidades políticas organizadas; a guerra civil, um combate armado dentro de uma unidade organizada (mas que assim se torna problemática) [...] Os conceitos amigo, inimigo e combate adquirem o seu real sentido ao terem e manterem referência, em particular, à possibilidade real da morte física. A guerra resulta da inimizade, pois esta é negação conforme ao ser de um outro ser. A guerra é apenas a mais extrema realização da inimizade. Ela não precisa de ser nada quotidiano, nada normal, nem de ser sentida como algo ideal ou desejável, mas tem de permanecer presente como possibilidade real enquanto o conceito de inimigo tiver sentido (SCHMITT, 2015, p. 62).

O inimigo público (hostis) não se reduz ao inimigo em sentido privado (inimicus). Um Estado é capaz de comportar uma série de adversidades privadas, na medida em que a concorrência entre inimigos privados não atinge a ordem estatal. Contudo, a partir do momento em que determinado agrupamento, até então inimigo privado (inimicus) de outros grupos, alcança a forma cultural básica do inimigo público (hostis), há aí um salto político. Tal decisão política fundamental sobre o caráter do inimigo só pode encontrar um lastro de fundamentação naquilo que é puramente a essência do político. Sendo assim, qualquer decisão política que trata do jus belli em sentido geral (do direito de se fazer guerra ou do direito de dispor sobre a aniquilação física da vida humana) é guerra, e guerra é uma decisão política.

Preocupado com o crescimento do pluripartidarismo e da democracia parlamentar em Weimar, Schmitt elaborou o conceito de “Estado total” (SCHMITT, 2015, p. 46), ou seja, uma concepção estatal resultante do entrelaçamento do Estado com todos os âmbitos não políticos da vida de um povo, acarretando a consequente politização orientada da sociedade. Segundo Schmitt, o aumento quantitativo da participação do povo (e de sua fragmentação em pequenas unidades sem compromisso como o Todo), isto é, da pluralização dos partidos e dos representantes capazes de afetar as decisões públicas, daria lugar a um potencial estado de guerra civil. Substituindo cada vez mais os interesses burgueses, os demais interesses sociais estimulariam dissensos, disputas e confrontos nas deliberações parlamentares. Esse maior pluralismo pelas leis e pelas normativas estatais interventoras na economia interferiria no funcionamento do Estado diretamente, prejudicando as demandas e a organização de diversos setores da economia, acarretando variações na produção industrial e agrícola, o que, por sua vez, balançaria as estruturas de classe em direção a uma maior distribuição de renda, estabelecendo o quadro social adequado para um engrandecimento das disputas internas e, até mesmo, de guerras civis.

O parlamentarismo democrático implicaria para Schmitt, portanto, maiores cisões internas do Estado e um decaimento do político, tendo em vista que o Estado deixa de se preocupar com o inimigo externo – a guerra, propriamente dita – passando a concentrar esforços para apaziguar e neutralizar os inimigos internos – um cenário de guerra civil. A teorização de Schmitt sobre o político, portanto, tem como pano de fundo sua posição política sectária que, ao fim e ao cabo, corresponde a um certo liberalismo econômico (favorável às elites setoriais econômicas de um território nacional) que se mistura com um conservadorismo antidemocrático, político e moral oriundo da tradição política do século XIX (BERCOVICI, 2019, p. 33; BUENO, 2011, p. 776-905).

4 HANS KELSEN E A DEMOCRACIA COMO ORGANIZAÇÃO DO CONFLITO INTERNO

Em seus estudos de filosofia política, o jurista austríaco Hans Kelsen constata que há uma tendência, por parte dos jusracionalistas dos séculos XVII e XVIII, de justificar o direito positivo pelo direito natural, de modo a se conservar a autoridade estatal. Se o Estado passa a se legitimar, a partir de autores da estirpe de Thomas Hobbes, como instância ilimitada do poder de pôr o direito sob os desígnios de uma justiça absoluta, a partir da segunda metade do século XIX essa legitimação passa a ter lastro na noção de “democracia”. Segundo Kelsen, “Democracia é a palavra de ordem que, nos séculos XIX e XX, domina quase universalmente os espíritos; mas, exatamente por isso, ela perde, como qualquer palavra de ordem, o sentido que lhe seria próprio” (KELSEN, 2000, p. 25).

Em Essência e valor da democracia (Wesen und Wert der Demokratie), escrito em 1929, Kelsen se debruça sobre o tema da democracia, buscando separar o que é imprescindível do contingente para este regime político. Também, em Fundamentos da democracia (Foundations of democracy), publicado originalmente em 1956, ele busca complementar o texto mencionado anteriormente. Ambos os textos partem de certa correspondência entre relativismo político e filosófico: um regime de pensamento relativista, isto é, não absoluto – que leve em consideração as demandas dos demais indivíduos –, só pode funcionar em um regime político igualmente relativista, ou seja, não autoritário.

Segundo sua convicção antropológica, Kelsen parte do pressuposto de que há dois instintos primitivos no humano, o da liberdade e o da igualdade, que naturalmente impulsionam os indivíduos a se oporem às ordens externas ao almejarem certa equivalência em relação a seus semelhantes (KELSEN, 2000, p. 167; MATOS, 2006, p. 115-139). A partir de ambos os instintos, a absoluta liberdade do indivíduo é mitigada: os sujeitos se reconhecem mutuamente como relativos às suas próprias visões de mundo (evitando o absoluto), organizando-se politicamente pelo imperativo desse relativismo e reconhecendo as limitações às próprias liberdades como forma de manutenção da igualdade. E o regime político que melhor atenderia aos critérios desse relativismo é o da democracia representativa.

Kelsen busca mitigar os exageros dos impasses da convivência social tomando partido pela democracia representativa, afastando incidências autoritárias, autocráticas e antiminoritárias. Sua preocupação é bem justificada, na medida em que sua produção bibliográfica se deu em grande parte em uma Alemanha temporalmente localizada entre a monarquia do II Reich e a emergência dos populismos que culminaram no III Reich. Se a sujeição a uma ordenação alheia é socialmente inevitável, melhor seria que essa ordenação fosse estabelecida pelos próprios indivíduos que a ela se sujeitam (KELSEN, 2000, p. 168; HERRERA; RAMIRO, 2015).

Apesar de a democracia representativa endossar a noção de participação dos indivíduos na política estatal, é preciso, porém, separar a vontade dos indivíduos da vontade objetiva do Estado. Para se verificar a veracidade dessa separação, basta-se elencar a hipótese contrária de que a vontade do Estado corresponde à vontade dos indivíduos que o compõem. Segundo essa hipótese, uma constituição de dado Estado é criada unanimemente por um único ato instituinte formado por todos os indivíduos (vontade de todos). Isso implicaria que à ficção da constituição unânime fosse anexada a ficção de um princípio de conservação desse mesmo Estado, já que a eventual discordância de qualquer dos indivíduos em relação aos demais acarretaria o desfazimento da constituição. Em outras palavras, a manutenção de uma ordem constitucional depende da separação entre a vontade dos indivíduos e a vontade da constituição.

Porém, mesmo que, após sua constituição, a ordem normativa seja estabelecida como uma ordem de vontade independente em relação à vontade dos indivíduos, seria muito contraintuitivo que essa ordem não pudesse ser alterada. A razão disso é que, mesmo na hipótese de uma constituição criada do “nada”, uma ficção ainda precisa operar. Sendo assim, o princípio majoritário para criar novas normas em um ordenamento já existente é defendido por Kelsen, na medida em que sustentar a unanimidade ou maioria qualificada como requisitos de alteração de uma ordem dada teria como resultado o privilégio dos interesses de gerações passadas sobre os indivíduos da geração atual, uma maneira autocrática de dar predileção a uma parcela não votada e de submeter os indivíduos à autoridade de fantasmas do passado, expressão de um absolutismo transcendente e inalcançável (KELSEN, 2000, p. 179).

Além do princípio da maioria, outra condição necessária para a manutenção de qualquer democracia realmente existente é a representação política. Se o exercício da democracia direta, por meio de assembleias populares, é impraticável nos Estados atuais – tendo em vista a demanda por um processo legislativo mais célere e a dificuldade que seria um processo de tal amplitude – os indivíduos se veem obrigados a antropomorfizar as próprias vontades na vontade das minorias eleitas, isto é, nos “representantes” do povo. No entanto, se o princípio majoritário fosse aplicado diretamente para o caso das eleições dos representantes, as minorias não teriam qualquer oportunidade de serem representadas. Para tanto, é conveniente adicionar um princípio auxiliar, o princípio da proporcionalidade: ao passo que a maioria dos votos dos representantes eleitos é necessária para a aprovação de uma norma, a eleição destes se dá pela proporcionalidade dos votos que cada partido recebe em relação ao total dos votos, para que haja a chance de que um partido pequeno receba ao menos uma cadeira. O regime democrático, portanto, é por essência uma dinâmica de mobilização, formação e deformação de maiorias (KELSEN, 2000, p. 69).

Kelsen em momento algum abandona a necessidade de manutenção do princípio da maioria, já que esse princípio sustenta a ideia de democracia. Contudo, para que as minorias sejam devidamente protegidas, é preciso que o Estado forneça os instrumentos para que elas consigam se preservar. À medida que a manutenção do sistema majoritário puro faria o regime democrático inclinar para uma autocracia da maioria, o parlamentarismo se insere na realidade da democracia. Quanto mais a vontade dominante se fragmentar em vários partidos, mais chances as minorias, até então desprezadas, terão de serem representadas, isto é, de realmente elegerem parlamentares cujas propostas correspondam às suas vontades. Além disso, o aumento do número de partidos dificulta a formação de maiorias parlamentares, o que ajuda a promover deliberações e acordos em benefício das minorias, cuja participação política se torna cada vez mais importante. Como o princípio da proporcionalidade possibilita a aproximação da vontade da maioria à vontade de todos os indivíduos, reduzindo a diferença entre ambas e permitindo a satisfação das demandas minoritárias, Kelsen afirma que a proporcionalidade é o princípio da democracia radical (KELSEN, 2000, p. 72).

Com isso, não se quer afirmar, contudo, que não exista dominação no regime democrático. O fato de a vontade do Estado ter sido democraticamente criada pela vontade da maioria dos indivíduos não implica que a vontade do Estado seja a vontade da totalidade ou da maioria dos indivíduos. Essa é a ficção fundamental da ideologia democrática, a ficção da transferência da vontade dos indivíduos para o órgão eleito. Segundo ela, a criação de um órgão representativo não apenas estabelece o órgão de criar a vontade do Estado, mas também delega essas mesmas vontades a esse órgão, criando a ilusão de que não existe dominação no regime democrático e engendrando a ficção máxima da soberania popular.

Na ideologia democrática, a eleição deve ser uma delegação de vontade dos eleitores ao eleito. Deste ponto de vista ideológico a eleição e, por conseguinte, a democracia que nela se apoia seriam, como já foi dito, “impossibilidades lógicas intrínsecas”; a vontade, na realidade, não pode ser delegada: celui qui delègue, abdique [quem delega, abdica]. Não é possível fazer-se representar na vontade, dizia Rousseau. Mas esta interpretação ideológica da vontade corresponde evidentemente à intenção de manter a ficção da liberdade. Uma vez que a vontade, para permanecer livre, deve ser determinada apenas por si mesma, a vontade dominadora dos eleitos deve valer como vontade dos eleitores. Disso resulta a identificação fictícia dos eleitores com os eleitos (KELSEN, 2000, p. 91-92).

A ilusão da soberania popular que realiza a vontade das massas é o ponto de partida de qualquer forma de governo que pretenda justificar seus aparelhos jurídico e governamental como sua expressão. Sendo apenas uma condição formal (“o poder emana do povo”), não é prescrito de antemão o modo de seu exercício. Tal ficção inverte a ordem material pragmática pela primazia da ordem das razões lógicas (KELSEN, 2000, p. 48). No entanto, estando separada dos indivíduos, a vontade do Estado, criada pela função legislativa dos representantes do povo, nada mais é que uma vontade dominadora, autônoma e totalmente separada dos indivíduos. Somente por uma metafísica do poder é que se pode conectar ambas as instâncias indissociavelmente (perderia todo o sentido a ideia de necessidade de uma ordem heterônoma como condição para a convivência entre indivíduos).

O ponto de vista de Kelsen sobre a democracia é algo um tanto quanto pessimista, tendo em vista que ela estaria mais próxima de um autogoverno pleno de imperfeições. Diante da constatação de que a consumação das vontades dos indivíduos jamais se realiza completa ou diretamente, mas sempre minimamente, o povo, enquanto conjunto, também jamais pode se unificar, permanecendo um complexo de individualidades sujeitas a uma vontade estatal alheia e dominadora. Na medida em que o pensamento de Kelsen busca expor e desmistificar certas hipostasiações das ciências políticas e jurídica, o jurista conclui que a crença democrática na ficção de delegação da vontade do povo significa atribuir a ele um poder que, de fato, não possui. Mais vale para Kelsen, porém, compreender as imperfeições da democracia e saber lidar com elas, de forma que os indivíduos consigam organizar politicamente as próprias demandas e conflitos da forma mais eficiente possível.

5 REFLEXOS DAS GUERRAS NOS ESCRITOS POLÍTICOS DE SCHMITT E KELSEN

Com o advento do horizonte de expectativas da guerra, as dinâmicas político-econômicas estatais passaram a se modificar. As teorias do direito da primeira metade do século XX, por colocarem em pauta a relação entre Estado e direito, refletem a forma como o Estado é entremeado pelos estratos político, econômico e social. A partir dessa hipótese, a seguir, serão expostas algumas considerações de Hans Kelsen e Carl Schmitt a respeito da guerra na contemporaneidade. O objetivo desta seção é demonstrar de que modo a abordagem desses teóricos sobre o direito revelam a maneira como o Estado é atravessado pela dinâmica da guerra, indicando de que modo o horizonte de espera da guerra afeta a teoria do direito.

Schmitt vê o Estado de seu tempo como algo qualitativamente diferente do Estado moderno. A ordem interestatal europeia moderna só pôde existir “contra o pano de fundo de gigantescos espaços abertos dotados de uma espécie particular de liberdade” (SCHMITT, 2014, p. 158). Foi o consenso europeu de tomar as colônias não europeias como amplos espaços que permitiam o uso irrestrito da violência que, habilitando a expansão comercial e os progressos científicos, possibilitou a circunscrição das guerras na Europa. Com o progresso e os mercados se sustentando sobre o extermínio colonial, os Estados europeus puderam limitar suas guerras, evitando a mútua aniquilação dos seus povos em detrimento dos povos de além-mar. A tese de Schmitt é, portanto, a de que o Estado moderno tem como fundamento último a separação entre um espaço europeu regrado e um grande-espaço colonial sem lei.

Esse Estado moderno, no entanto, encontraria seu fim, segundo Schmitt, por volta dos anos 1890. Em O nomos da Terra, o jurista alemão argumenta que a extensão do caráter jurídico-estatal às colônias no século XIX foi acompanhada de uma subordinação dos Estados à economia mundial. A ambição dos juristas, ao atribuir aos diferentes espaços da Terra o status equivalente de Estado desde meados do século XIX, foi a de constituir um direito internacional privado. Com a saturação da tomada de terras, a economia mundial, no auge da plenitude do industrialismo, expandia-se vertiginosamente, de forma que sua organização interestatal se fazia cada vez mais necessária. Tal organização se deu não por tratados de direito internacional, mas por meio de normas comuns de direito civil, que se replicavam nas diversas constituições. Como consequência, resultou na submissão do direito estatal a essa organização econômica global em que “aparece o Estado total da identidade entre Estado e sociedade, o qual não é desinteressado em relação a nenhum âmbito de coisas e agarra potencialmente qualquer âmbito” (SCHMITT, 2015, p. 46).

Os diagnósticos de Schmitt e Kelsen formam-se a partir de tomadas de perspectiva diversas a respeito do Estado. Se Kelsen tem como base o ponto de vista o jurídico-científico, Schmitt se apoia no teológico-político. Assim, enquanto o teórico austríaco abstrai uma sintaxe básica a partir do axioma da norma jurídica, Schmitt analisa o juspositivismo fundamentado em suas características historicamente contingentes. Apesar dessa diferença de perspectiva, as teorizações de ambos sobre o Estado indicam, em alguma medida, o potencial bélico engendrado pelo enquadramento economicista do jurídico-político. É o que se percebe quando Schmitt descreve o modo como se dá a dominação estatal engendrada no início do século XX por meio do “grande-espaço econômico” das potências globais:

O status territorial desse Estado [dominado] não se modifica a ponto de seu território ser convertido em território estatal do Estado dominante. Mas seu território passa a ser incluído no espaço relevante do Estado que controla e em seus special interests, sua soberania espacial. O espaço aparente da soberania territorial continua inalterado, mas o conteúdo material dessa soberania é alterado pela proteção do grande-espaço econômico da potência dirigente. Surge, assim, o tipo moderno de tratado internacional de intervenção. Intervenções garantem o controle e a dominação política, enquanto o status quo territorial fica preservado. [...] Esse novo método revoga a ordem e a localização inerentes à antiga forma de territórios estatal. Mais além de todas as particularidades dos novos métodos de dominação e controle, pode-se discernir sua característica essencial: a soberania territorial se transforma em um espaço vazio, aberto aos processos socioeconômicos. [...] O espaço do poder econômico determina o campo de ação do direito das gentes (SCHMITT, 2014, p. 271).

Schmitt descreve esse intervalo da história da política ocidental como um interregno de desterritorialização em que a soberania dos Estados cede espaço à economia. O ponto central da vida cultural europeia na passagem do século XIX para o século XX passa a ser a técnica, de modo que a ideia humanitária-moral de progresso passa a englobar a noção de progresso como avanço técnico-científico a serviço da economia. A antiga circunscrição da guerra dos Estados europeus modernos dá lugar a um extenso estado de exceção econômico que engloba todo o território terrestre.

Dedicando-se a uma detalhada análise dos compromissos interestatais realizados no período entre a Primeira e a Segunda Guerra, Schmitt nota uma tendência à criminalização da guerra. Se, antes do século XX, as guerras europeias consistiam em combates comumente seguidos de acordos de paz, convenções do início do século XX – como o Pacto Kellogg, de 1928 – buscavam criminalizar os atos bélicos que não constituíssem autodefesa. O problema dessa juridicização da guerra está no fato de que a decisão sobre o que é e o que não é ato de defesa ou ato bélico se restringe a um grupo de países dentro do qual os mais ricos influenciam economicamente as decisões políticas dos mais pobres. O lastro material-territorial do imaginário da guerra dá cada vez mais lugar à guerra ilimitada e justificável. Até meados do século XX, o ponto alto dessa desconexão entre guerra e território foi, segundo Schmitt, a guerra aérea. O espaço aéreo é qualitativamente diferente dos espaços terrestre e marítimo, descolando o horizonte de expectativas bélico de seu espaço de experiências.

O espaço aéreo, ao contrário, torna-se uma dimensão própria, um espaço próprio que não se conecta com os planos separados da terra e do mar. Ele encontra essa separação, e por isso diferencia-se essencialmente, na sua estrutura, do espaço constituído como superfície que caracteriza os dois outros tipos de guerra. O horizonte da guerra aérea não é o mesmo que o das guerras terrestre ou marítima; pode-se indagar, inclusive, se ainda cabe o termo horizonte quando se trata da guerra aérea. [...] A guerra aérea autônoma anula, em grau mais elevado que o bloqueio marítimo, a relação entre a potência que usa a força e a população afetada. No bombardeio a partir do ar, torna-se absoluta a ausência de relação do beligerante com o solo e a população inimiga que nele se encontra; já não resta mais nenhuma sombra de conexão entre proteção e obediência. Na guerra aérea autônoma, nenhum dos dois lados pode produzir essa conexão. [...] Uma análise da conexão entre proteção e obediência, assim como uma análise da relação entre o tipo de guerra e butim, revela a deslocalização absoluta e, com isso, o puro caráter de aniquilação da guerra aérea moderna (SCHMITT, 2014, p. 349).

Apesar de suas concepções teóricas nas décadas de 1920 e 1930 objetivarem a recuperação da centralidade do Estado moderno, nas décadas de 1950 e 1960, Schmitt aceita o fato de que o Estado moderno alcançou seu termo com a mundialização política ocorrida ao final do século XIX (SÁ, 2012, p. 179-197; 2009, p. 566-598). No prefácio, datado de 1963, feito para a segunda edição de O conceito do político, de 1932, Schmitt declara categoricamente que “a época da estatalidade chega agora ao seu fim” (SCHMITT, 2015, p. 30), juntamente com o fim das noções jurídicas conectadas à ideia moderna de Estado. O diagnóstico de Schmitt sobre o Estado é de que a soberania não mais se reduz à forma estatal, sendo substituída por um novo arranjo político de dimensões globais.

Em sua Teoria Pura Do Direito, cuja primeira edição é de 1934, Kelsen busca reduzir o direito a suas unidades lógico-positivas, de modo a combater as eventuais hipostasiações das ficções jurídicas.6 O Estado, por exemplo, não é um terceiro que transcende e cria as normas de direito. Ele nada mais é, segundo Kelsen, que uma ficção, criada pela ciência do direito, para agrupar o conjunto de normas gerais e individuais de determinado território. Entificar o Estado significa apreender a normalização jurídica das relações sociais como natural, o que contraria o caráter histórico-positivo do direito. Já em Deus e Estado, de 1923, Kelsen afirma que “em certas ocasiões a onipotência jurídica do Estado acaba sendo erroneamente considerada enquanto força natural absolutamente invencível”, ao que contra-argumenta que “a onipotência do Estado quer dizer apenas que, em sua esfera jurídica específica, o Estado pode fazer tudo que quiser; significa que a ordem jurídica pode ter qualquer conteúdo” (KELSEN, 2012, p. 45-46, grifo nosso).

Partindo desse ponto de vista, Kelsen, em sua Teoria Geral do Direito e do Estado de 1945, afirma que a ordem social regida pela doutrina da guerra justa, endossada pelo Pacto Kellogg (1928), “é semelhante a uma ordem social segundo a qual um furto insignificante é punido e o roubo armado permanece incólume” (KELSEN, 2016, p. 485). O Pacto Kellogg possibilitou a condenação, entre e por parte de seus signatários, de Estados que exerçam o jus belli, permitindo a criminalização da guerra. Apesar de se opor à doutrina da guerra justa, “através de exame de manifestações históricas da vontade dos Estados e de documentos diplomáticos, em especial declarações de guerra e tratados entre Estados”, Kelsen deduz que “todos eles demonstram de modo bem claro que os diferentes Estados [...] consideram a guerra um ato antijurídico [...], permitido apenas como reação contra um mal sofrido” (KELSEN, 2016, p. 473). Por essa razão, de sua perspectiva, é necessário compreender o contexto jurídico internacional tal como ele é, a partir da doutrina da guerra justa, que vige internacionalmente, assimilando “o Direito internacional geral como uma ordem que torna o emprego da força um monopólio da comunidade internacional” (KELSEN, 2016, p. 484).

Esta é, na verdade, uma interpretação do direito internacional que enreda resultados mais que paradoxais. Nenhum Estado estaria autorizado a realizar uma interferência limitada na esfera de interesses de outro Estado, mas todo Estado estaria completamente justificado ao cometer uma interferência ilimitada em tal esfera. De acordo com esta interpretação, um Estado viola o direito internacional se causa dano limitado a outro Estado, e, neste caso, seu inimigo está autorizado a reagir contra ele por meio de represálias. No entanto, o Estado não viola o Direito internacional e não se torna sujeito a uma sanção se interfere de forma adequada na esfera de interesses de outro Estado, [mesmo que sua intervenção acabe] atormentando a população inteira e o país inteiro do inimigo com morte e destruição (KELSEN, 2016, p. 484-485, modificada a partir de KELSEN, 1949, p. 340).

Somente compreendendo o Pacto Kellogg como este instrumento jurídico cuja aplicação prática nacionalista se distanciaria da norma abstrata internacionalista é que se poderia falar de uma doutrina da guerra justa. Em razão das falhas, Kelsen considera o direito internacional de meados do século XX como um “Direito confessadamente primitivo” (KELSEN, 2016, p. 485), mas que pode ser tomado como “o primeiro passo na evolução que, dentro da comunidade nacional, do Estado, tem levado a um sistema de normas geralmente aceito como Direito” (KELSEN, 2016, p. 485). O progressismo latente desta colocação evidencia o lastro do progresso na teoria de Kelsen. Apesar dos déficits do Pacto Kellogg, Kelsen ainda vê a possibilidade de uma uniformização jurídica das agressões de guerra como delitos passíveis de sanções. Sem que haja tal circunscrição, Kelsen infere que isso acarretaria uma indistinção entre a guerra como crime e como pena.

Se não existe nenhuma resposta uniforme à questão de saber se, em dado caso, existe ou não um delito, então não existe nenhuma resposta uniforme à questão de saber se a guerra empreendida como uma reação é ou não uma “guerra justa”, se o caráter dessa guerra é o de uma sanção ou de um delito. Desse modo, a distinção entre a guerra como sanção e a guerra como delito tornar-seia altamente problemática. Além disso, pareceria não haver diferença algumas entre a teoria que sustenta que o Estado tem direito de recorrer à guerra sempre e contra quem quiser e a teoria segundo a qual a guerra só é permitida como reação contra um delito, sendo qualquer outra guerra um delito: no entanto, deve-se admitir que dentro do Direito internacional geral, é quase impossível aplicar esses princípios satisfatoriamente em qualquer caso concreto (KELSEN, 2016, p. 480-481, grifos nossos).

O trecho grifado indica o ceticismo de Kelsen em relação ao Estado: não há qualquer garantia de que uma norma de direito internacional seja capaz de impedir a guerra, já que os Estados, agindo como querem, podem utilizá-la como modo de justificar a própria guerra. Isso é evidente na utilização pelos Estados Unidos de pactos globais de paz como justificativa de mobilização de exércitos de paz da ONU.

A questão de se o direito internacional é subordinado ao nacional, ou vice-versa, engendra diferentes “concepções de mundo” (Weltanschauungen): a do imperialismo e a do pacifismo. Enquanto o sofisma da prevalência da soberania estatal sobre os demais Estados é imperialista por buscar justificar um uso ilimitado da intervenção estatal bélica, o sofisma da prevalência do direito internacional seria pacifista por defender a limitação da liberdade de todos os Estados. No entanto, Kelsen entende que muitos Estados democráticos têm “uma clara tendência em justificar a política externa mediante uma ideologia racionalista e pacifista” (KELSEN, 2000, p. 191).

Tais considerações podem ser visualizadas a partir do pano de fundo do “unimundismo” progressista pretendido por Frank D. Roosevelt. De 1933 a 1945, Roosevelt concentrou esforços na recuperação econômica norte-americana, de modo que “o alvo principal de seu New Deal era libertar a política norte-americana, voltada para a recuperação econômica nacional, da subordinação aos princípios da moeda forte defendidos [pelos financistas de] Londres e Nova York” (ARRIGHI, 2013, p. 288). Ao final da Guerra, Roosevelt passa a promover uma visão de mundo a partir da qual era necessário um “governo mundial” forte e amplo para que pudessem ser garantidas ordem, segurança e justiça para todos os povos. Contudo, seu “unimundismo” não fora realista o suficiente para conseguir apoio necessário da maioria do Congresso e dos empresários norte-americanos (ARRIGHI, 2013, p. 286), tendo dado lugar à “guerra dos mundos” armamentista promovida pelo governo Truman.7

A guerra permanente atravessa o Estado, mesmo após a pacificação jurídicointernacional dos Estados no pós-Segunda Guerra. A Guerra Fria consolidou a prática, em escala global e de forma sistemática, da decisão monopolizada sobre o caráter justo ou injusto dos atos de guerra. Neste momento, Kelsen pôde perceber que ocorria uma gradativa centralização do direito, consubstanciada na forma de fortalecimento do aparelho administrativo do Estado8, que abarcava cada vez mais funções, ratificando uma “tendência para fazer desaparecer a linha divisória entre Direito internacional e ordem jurídica do Estado singular” (KELSEN, 2009, p. 364), que parecia se encaminhar à “formação de um Estado mundial”. E Schmitt percebeu que, se este “Estado mundial” se concretizar, já não se trata mais de um Estado nos moldes modernos, mas de um Estado subordinado às decisões econômicas. Ou, como afirma o jurista alemão em um texto publicado em 1978, um Estado submetido à superlegalidade jurídicoconstitucional do grande-espaço (Großraum) industrial de trocas econômicas que subjazem às decisões estatais (SCHMITT, 1997, p. 106-107).9

A “mundialização” do Estado, percebida por Kelsen, deve ser lida em conjunto com sua preocupação em relação à tendencial naturalização daquele como onipotência jurídica. É esta naturalização que possibilita a instituição da “guerra justa” como prática hodierna. Além disso, ainda de acordo com o jurista austríaco, se a ordem jurídica pode ter qualquer conteúdo e o Estado pode fazer o que bem entender (KELSEN, 2012, p. 45-46), sua ampliação em escala mundial implica a extensão dessa normalização excepcional a nível global. Schmitt, percebendo isso, propõe não apenas que, “diante de um caso excepcional, o Estado suspende o direito em virtude do direito à própria conservação” (SCHMITT, 2009, p. 18, tradução nossa),10 mas também que essa suspensão, diretamente proporcional à crescente submissão do político ao econômico, adquira as proporções físicas das trocas econômicas do capitalismo global. Desse modo, não apenas Schmitt e Kelsen se inserem em um contexto de desagregação política promovida pela influência da economia nos Estados, como também essa conjuntura se reflete em seus diagnósticos políticos.

6 CONCLUSÃO

Apesar das diferenças políticas entre Kelsen e Schmitt, recorrentemente levantadas pelas teorias do direito, suas conceituações jurídicas encontram um traço comum no fato de ambos considerarem o direito como pura forma que mantém a si mesmo em permanente formalização. Tomam, de fato, pontos de vista diversos para abordar a forma jurídica, o que não nos impede de unirmos ambos em um mesmo conjunto que apresenta seus elementos comuns. Tal conjunto parece ser aquele do imaginário ou da imaginação da guerra.

Um recorte desses elementos permite relacionar suas considerações sobre o Estado e a guerra com a situação dos Estados no contexto político-econômico global. Enquanto Schmitt, objetivando a centralização do poder do Estado frente à economia mundial, contesta o argumento de que o poder soberano seria limitado pelo direito positivo, Kelsen contesta a ideia de que tal normatização possua qualquer determinação necessária intrínseca. A partir da perspectiva da ordem concreta, Schmitt demonstra como o direito positivo nada mais é, constitutivamente, que decisão ilimitada. E partindo da perspectiva jurídico-científica do direito positivo, Kelsen demonstra como o ordenamento é sempre relativamente valorado.

Seus pontos de vista teóricos se estendem, pois, da norma pura à ordem concreta normatizante. Apesar das diferenças, ambas as teorias constituem uma espécie de aposta ética no direito – a ética lógico-científica em Kelsen, a ética teológico-política em Schmitt –, em contraposição à instabilidade jurídica decorrente do rearranjo da relação entre Estado e guerra desde o início do século XX. Tanto a proposta de Schmitt de constituição de um Estado forte e centrado em um poder ilimitado como a proposta de Kelsen de instituição da democracia representativa centrada nos princípios da maioria e da proporcionalidade são as formas elencadas pelos autores para se contornar a guerra civil e se organizar os conflitos internos. Portanto, filosofias políticas correspondem, dentro de seus respectivos limites conceituais, ao contexto histórico centrado na guerra – que Jünger denomina como mobilização total – que lhes é contemporâneo.

Além disso, as considerações de ambos a respeito da guerra são coerentes com seus escritos políticos. A única forma de se evitar a guerra civil interna é, segundo Schmitt, a manutenção de um governo forte, centrado em um “povo” nacional bem delimitado e capaz de sustentar guerras com outros Estados. Com o fim da Segunda Guerra e as novas formas de guerras aéreas e de justificação dos ataques bélicos, muda-se a gramática da guerra entre Estados. O seu diagnóstico do fim da era da estatalidade tem como pressuposto seu reconhecimento de que o paradigma da guerra civil se torna cada vez mais presente nas relações políticas globais.

A defesa que Kelsen faz da democracia também coaduna sua crítica à guerra justa e sua aposta em um ordenamento jurídico mundial. Da mesma forma que a democracia é um regime imperfeito em que não há delegação de vontades, mas apenas de atribuições, o direito internacional padece de imperfeição semelhante: é a delegação de poder maior a um pequeno grupo de países – membros do G7 e membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, principalmente – que regula os conflitos bélicos entre Estados. Kelsen considera ambos os casos, porém, como as melhores formas de organização normativa da política interna e externa, sendo preciso que os indivíduos e os Estados aceitem tais imperfeições e se organizem a partir delas, reunindo agrupamentos minoritários e constituindo novas maiorias capazes de enfrentar o arranjo majoritário no poder de tempos em tempos.

Enquanto Schmitt declara o início da era do fim da estatalidade moderna, Kelsen adverte para uma aparente emergência de uma mundialização estatal. De fato, o Estado jurídico não acabou nem se mundializou, mas, tendo sido subordinado à economia, transformou-se em instrumento de gestão dos povos. Mas é exatamente a frustração de seus prognósticos que permite inscrever seus diagnósticos sobre o espaço de experiências jurídico, nesse intervalo de transição do horizonte de expectativas progressivo para a metafísica temporal da espera da guerra. Ambos os corpora teóricos tentam responder às demandas jurídico-organizacionais de seu tempo, correspondendo suas formulações ao contexto econômico-político que lhes é contemporâneo.

A Segunda Guerra Mundial funcionou como ponto de inflexão para as teorizações políticas de ambos os autores: ao passo que Schmitt, que apostava num Estado autoritário, passa a acreditar no advento da época do fim do Estado, Kelsen, por sua vez, que apostava em um Estado democrático, passa a dirigir suas críticas ao jus belli, endossando sua aposta em um direito internacional unificado. Isso é um exemplo de como os autores são limitados pelo seu tempo histórico: não apenas o medo de uma guerra civil indica os diferentes modos em que esses autores resolveram os problemas atinentes aos conflitos internos, como a ocorrência da Segunda Guerra produziu visões críticas em ambos referentes ao papel do Estado na resolução de conflitos externos. Desse modo, os exemplos dos escritos de Schmitt e de Kelsen permitem concluir que a conjectura de uma época marca profundamente o imaginário e a imaginação políticos, tomados em sentido amplo.

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Notas

1 Como a investigação de Hobsbawm pelas causas da Primeira Guerra mostra, nenhuma resposta para os motivos de a guerra ter sido desencadeada é completa ou suficiente. A historiografia de Giovanni Arrighi, a partir dos CSA, torna visível certa constância na história moderna, qual seja, a de que o momento de alta concorrência, que antecipa a passagem de um ciclo a outro, é normalmente seguido de um ou mais confrontos bélicos. Seguindo essa hipótese, a Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) e as Guerras Napoleônicas (1803-1815) seriam repetidas em algum momento, após o qual o Estado passaria a se relacionar com a economia de alguma outra forma. Se, por um lado, essa percepção do passado permitia aos historiadores de outras épocas a formulação de prognósticos a respeito dessa constância, por outro, a percepção da aceleração frenética das experiências em meados do século XIX e, principalmente, durante a guinada militar ao fim do século, talvez antecipasse, aos bons observadores, que essa repetição bélica estivesse próxima e tivesse proporções até então inimagináveis (HOBSBAWM, 2017, p. 459-514; ARRIGHI, 2013).
2 Benedict Anderson, percebendo a importância da nação para a formação de uma imaginação política a partir do século XIX, a define da seguinte maneira: “uma comunidade política imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo, soberana” (ANDERSON, 2008, p. 32).
3 Conforme Maurice Halbwachs, a memória coletiva é o elemento social responsável por essa operação de conexão de termos tão distintos, como democracia, massa e guerra, constituindo uma nova experiência de tempo (HALBWACHS, 1990, p. 53-130).
4 Na versão em espanhol: “identidad del pueblo en su existencia concreta consigo mismo como unidad política”.
5 A caracterização de Carl Schmitt como um conservador é bastante controversa nos estudos schmittianos. Autores como Roberto Bueno abordam Schmitt como um conservador por se aproximar do conservadorismo revolucionário antiliberal e antiparlamentar de sua época, como de Ernst Jünger, além de se atrelar ao conservadorismo católico de Donoso Cortés. Já Alexandre Franco de Sá não se concentra muito na alcunha de “conservador”, mas busca relacionar o antiparlamentarismo e o catolicismo schmittianos ao seu decisionismo, mostrando como suas escolhas políticas têm lastro em sua aposta teórica na importância da decisão para a manutenção da ordem jurídica. Segundo Franco de Sá, o maior problema do parlamentarismo para Schmitt é a perpétua indecisão do parlamento. William Scheuerman entende que Schmitt não pode ser classificado como um conservador tradicional, pois sua participação no Partido Nazista, que não pode ser ignorada, o colocaria em posição adversa a dos conservadores tradicionais. Próximo a Scheuerman, David Dyzenhaus critica o antiparlamentarismo de Schmitt, afirmando que ele não buscava propriamente conservar a ordem jurídica, já que o decisionismo schmittiano traria mais inconsistências que organização. Em que pesem aos diferentes pontos de vista, com o uso do termo “conservador” queremos dizer que Schmitt fazia parte do conjunto de autores alemães que se opunham ao parlamentarismo em ascensão desde a Constituição de Weimar, optando por conservar um modo de organização político mais autocrático. Sobre os autores mencionados, conferir Bueno (2011, p. 776-905); Sá (2009, p. 79-193, 267-379); Scheuerman (1991); dyzenhaus (1997, p. 38-101).
6 É interessante notar que, na primeira edição da Teoria Pura do Direito, é constante sua preocupação com a superação dos dualismos e das hipostasiações, preocupação que pretendia desmontar cada um dos dualismos do mundo jurídico (KELSEN, 2021, p. 42-60).
7 A respeito desta concepção unimundista, Reinhart Koselleck destaca um trecho contido na última mensagem de Roosevelt ao povo americano, escrita um dia antes de sua morte (1945): “Nós buscamos paz – paz duradoura. Mais do que o fim da guerra, queremos o fim dos inícios de todas as guerras – sim, o fim desse método brutal, desumano e completamente impraticável de se resolver as diferenças entre os governos” (ROOSEVELT, 1945, tradução nossa). No original: “We seek peace—enduring peace. More than an end to war, we want an end to the beginnings of all wars—yes, an end to this brutal, inhuman, and thoroughly impractical method of settling the differences between governments”. A Guerra Fria, fomentada pela doutrina Truman, concretizou a sentença de Roosevelt de modo cínico: ela foi, de fato, uma guerra sem início, não declarada e sem previsão de fim. Conforme Koselleck: “O fim de toda declaração de guerra é a primeira fórmula da Guerra Fria. Nem a última guerra terminou com um tratado de paz nem houve desde então declarações de guerra. As guerras que envolvem nosso mundo na miséria, no medo e no terror não são mais guerras, mas sim intervenções e ações de represália, mas sobretudo guerras civis – guerras civis cujos inícios parecem estar sob o mandamento prévio de evitar-se uma guerra atômica, e cujo fim, por isso mesmo, não é previsível” (KOSELLECK, 2006, p. 244-245).
8 Kelsen percebe que, ao mesmo tempo em que o aparelho administrativo de governo cresce, a noção de órgão de Estado é cada vez mais limitada às funções simplesmente burocráticas. Seu diagnóstico poderia ser complementado no sentido de se acrescentar que tais funções tendem cada vez mais a preencher o espectro tecnocrático e de gestão dos governos neoliberais das décadas seguintes (KELSEN, 2009, p. 329-330).
9 Nas palavras de Michel Foucault, um Estado governado a partir de uma “grade econômica” (FOUCAULT, 2004, p. 254).
10 Na versão em espanhol: “Ante un caso excepcional, el Estado suspende el derecho por virtud del derecho de la propia conservación”.

Como citar este documento:

LIMA, Lucas Bertolucci Barbosa de; GARBOZA JUNIOR, José Mauro; BOTELHO, Marcos César. Estado, democracia e guerra: a imaginação bélica em Hans Kelsen e Carl Schmitt. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, v. 21, n. 38, p. 120-144, set./dez. 2023. Disponível em: link do artigo. Acesso em: xxxx.

Notas de autor

Editora responsável: Profa. Dra. Fayga Bedê

https://orcid.org/0000-0001-6444-2631

Os três autores, José Mauro Garboza Junior, Lucas Bertolucci Barbosa de Lima e Marcos César Botelho, contribuíram igualmente nos três estágios da pesquisa do artigo Estado, democracia e guerra: a imaginação bélica em Hans Kelsen e Carl Schmitt, enviado e aceito para publicação pela Revista Opinião Jurídica: (a) todos participaram da coleta de dados, com a leitura e o fichamento de material bibliográfico; (b) todos redigiram ou revisaram o manuscrito; (c) todos aprovaram a versão final para publicação deste artigo.


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