RESUMO
Objetivos: Apresentar um roteiro de temas e comentários para a leitura dessa obra, destacando a compreensão de políticas públicas de Sen, a alguns temas estratégicos para a sua compreensão simplificada e mais abrangente e, por vezes, bem delimitada, priorizando temas que contribuam para a prevenção e superação das desigualdades injustas e, dada sua interdependência, aprimorem a democracia e os processos de participação e decisão. Avaliar as políticas públicas em contextos complexos, desiguais e necessitados de soluções que humanizem as relações humanas, sociais e ambientais democraticamente construídas.
Metodologia: A metodologia usada no trabalho foi feita pelo método dedutivo com base em revisão bibliográfica.
Resultados: A legitimidade das políticas públicas está relacionada a diversas referências que atestam desde a sua necessidade, as condições de implementação até o seu resultado final. “Glória incerta: a Índia e suas contradições” é uma importante análise de referência para esta abordagem, que visa à apresentação da obra com seus temas estratégicos (simbólicos) que contribuem para a solução das desigualdades injustas.
Contribuições: A compreensão atualizada de políticas públicas orienta para a superação de graves problemas sociais em vista da equidade social. A missão do Estado e o papel dos demais atores sociais é de cooperação, em que a transparência e o debate público são essenciais para uma efetiva participação de todos nas decisões.
Palavras-chave: Desigualdades injustas, democracia, participação, planejamento, políticas públicas.
ABSTRACT
Objectives: To present a script of themes and comments for reading this work, highlighting Sen's understanding of public policies, some strategic themes for their simplified and more comprehensive and, at times, well-defined understanding, prioritizing themes that contribute to the preventing and overcoming unfair inequalities and, given their interdependence, improve democracy and participation and decision-making processes. Evaluate public policies in complex, unequal contexts in need of solutions that humanize democratically constructed human, social and environmental relations.
Methodology: The methodology used in the work was carried out using the deductive method based on a literature review.
Results: The legitimacy of public policies is related to several references that attest to their need, implementation conditions and final results. “Uncertain glory: India and its contradictions” is an important reference analysis for the This approach aims to present the work with its strategic (symbolic) themes that contribute to the solution of unfair inequalities.
Contributions: An updated understanding of public policies guides the overcoming of serious social problems with a view to social equity. The mission of the State and the role of other social actors is cooperation, where transparency and public debate are essential for the effective participation of everyone in decisions.
Keywords: Unfair inequalities, democracy, participation, planning, public policy.
RESUMEN
Objetivos: Presentar un guión de temas y comentarios para la lectura de este trabajo, resaltando la comprensión de Sen sobre las políticas públicas, algunos temas estratégicos para su comprensión simplificada y más integral y, a veces, bien definida, priorizando temas que contribuyan a la prevención y superación. desigualdades injustas y, dada su interdependencia, mejorar la democracia y los procesos de participación y toma de decisiones. Evaluar políticas públicas en contextos complejos y desiguales que necesitan soluciones que humanicen las relaciones humanas, sociales y ambientales construidas democráticamente.
Metodología: La metodología utilizada en el trabajo se realizó mediante el método deductivo basado en una revisión de la literatura.
Resultados: La legitimidad de las políticas públicas está relacionada con varios referentes que dan fe de su necesidad, condiciones de implementación y resultados finales. “Gloria incierta: India y sus contradicciones” es un análisis de referencia importante para el Este enfoque tiene como objetivo presentar el trabajo con sus temas estratégicos (simbólicos) que contribuyen a la solución de desigualdades injustas.
Contribuciones: Una comprensión actualizada de las políticas públicas orienta la superación de graves problemas sociales con miras a la equidad social. La misión del Estado y el papel de los demás actores sociales es la cooperación, donde la transparencia y el debate público son esenciales para la participación efectiva de todos en las decisiones.
Palabras clave: Desigualdades injustas, democracia, participación, planificación, políticas públicas.
Artigos
POLÍTICAS PÚBLICAS DE PREVENÇÃO E COMBATE ÀS DESIGUALDADES INJUSTAS: UM EIXO DE ABORDAGEM A PARTIR DA OBRA “GLÓRIA INCERTA”1
PUBLIC POLICIES TO PREVENT AND COMBAT UNFAIR INEQUALITIES: AN AXIS OF APPROACH FROM THE WORK “GLORIA UNCERTA”
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PREVENIR Y COMBATIR DESIGUALDADES INJUSTAS: UN EJE DE ABORDAJE DESDE LA OBRA “GLORIA UNCERTA”
Recepción: 05 Febrero 2024
Aprobación: 06 Febrero 2024
A avaliação das políticas públicas é uma referência indispensável para a sua evolução. O processo de planejamento e execução envolve desde a percepção das necessidades, seja por opções governamentais, análise de estatísticas, movimentos da população (manifestações públicas, divulgação pelos meios disponíveis das necessidades sociais ou outro mecanismo), até decisões do Estado ou de compromissos internacionais. Diferente é uma política institucional ou de mercado que surge por razões nem sempre conectadas com a participação ou visando o bem de todos. As políticas públicas são de responsabilidade das esferas públicas ligadas à estrutura do Estado e visam o bem comum.
A obra de Amartya Sen - Glória Incerta: a Índia e suas contradições - é uma pesquisa profunda, rigorosa, estratégica, visionária, atualizada e referência (modelo) para a percepção da importância da macroestrutura que precisa estar em íntima conexão com as microestruturas da sociedade para poderem corrigir os problemas que impedem o bem-estar. O autor tem a capacidade de expor com rigor metodológico e sem temor os dados da realidade e, simultaneamente, nas entrelinhas do seu vigor científico e argumentativo, sedimentar a sua exposição com um espetáculo de emoções, afetos e sentimentos que encantam o leitor, incomodam a consciência, expõe a impotência de governos e organizações sociais, denuncia o descaso dos gestores acostumados com os benefícios da burocracia previamente planejada para tal, a inoperância de governos astutos com as benesses da corrupção, a frieza dos mercados na busca pela implantação sem limites das suas metas e a exposição do sofrimento das pessoas vítimas de uma superestrutura que se auto reproduz acostumando “o andar de cima e o andar debaixo” a felicidade que lhes é dada porque “sempre foi assim”.
O objetivo deste artigo é apresentar um roteiro de temas e comentários para a leitura dessa obra, destacando a compreensão de políticas públicas de Sen, a alguns temas estratégicos para a sua compreensão simplificada e mais abrangente e, por vezes, bem delimitada, priorizando temas que contribuam para a prevenção e superação das desigualdades injustas e, dada sua interdependência, aprimorem a democracia e os processos de participação e decisão. Os temas estratégicos são simbólicos porque denunciam ou visualizam o que é inusitado ou um iceberg que “toma o leitor pela mão” e o conduz a outro universo surpreendente. Por exemplo, quem são os invisíveis que residem e trabalham numa usina de produção de eletricidade e, em suas casas, localizadas ao lado, vivem sem acesso à energia elétrica?
A exposição prioriza a escolha de citações da obra em tela e outras com alguma relação específica. Esta estratégia centraliza a atenção no tema proposto e situa o leitor nesse contexto. As imprecisões ou esquecimentos, mesmo quando relevantes, desafiam a continuidade das investigações, especialmente para iluminar as políticas públicas do Brasil que, em suas diferentes esferas, carecem de capacidade para solucionar problemas mais simples e aqueles estruturalmente enraizados, que em sua maioria, é possível com baixa estrutura de investimentos quando comparados aos benefícios da sua resolução.
Esta estratégia é indicativa de referenciais que ajudam a percepção, especialmente do ponto de vista simbólico, da riqueza de conteúdo contida na exposição da pesquisa. A visualização, mesmo que imaginativa, de graves situações de desigualdades injustas, assim como, a escolha das estatísticas convida para o reconhecimento das conquistas, as deficiências que permanecem sem a devida atenção dos governos e do Estado e a necessidade contínua de participação, debate público e exercício constante da impaciência para a sua solução.
Para todos os agentes públicos, governantes e líderes preocupados com a fosso causado pelas desigualdades injustas, a percepção da conexão entre rigor científico e abundância de sentimentos do autor no decorrer do escrito, torna a leitura um aprendizado, uma experiência inesquecível e a percepção que políticas públicas bem-organizadas podem mudar substancialmente as condições de justiça social em todos os ambientes.
O destaque para a relevância das políticas públicas como ferramentas importantes para o desenvolvimento social, a promoção da condição de agente ativo, a ampliação das capacitações (capabilities), o resgate das pessoas em situações de grave vulnerabilidade social e econômica, assim como, em contextos específicos, como a superação da violência contra as mulheres e minorias excluídas dos espaços de participação e decisão perpassa as obras de Amartya Sen.
A abordagem das questões que envolvem a efetivação da justiça, não centrada em referências transcendentais, mas ancorada na percepção das condições de vida das pessoas no seu cotidiano, destaca a responsabilidade do Estado e dos governos como atores primordiais da estruturação de políticas públicas atualizadas que melhorem as situações mais graves e, conjuntamente, promovam maior equidade social.
Uma abordagem combinada entre as políticas públicas, a solução de desigualdades injustas que ocorrem no cotidiano e a percepção de mudanças na vida das pessoas contempla o objetivo final, normalmente um ideal, e a ampliação de direitos e responsabilidades individuais e sociais. A negação desta conexão gera a manutenção de contradições insustentáveis, conforme destacado por Nussbaum (2012, p. 41): “Muitas sociedades educam as pessoas para que sejam capazes de exercer sua liberdade de expressão em assuntos políticos (ou seja, em nível interno), porém lhes negam esta mesma liberdade reprimindo-a na prática”.
Uma organização ampla e não centrada exclusivamente no volume de investimentos ou na renda destinada a cada cidadão depende da ação ativa dos governos. Afirma Sen (2000, p. 66): “A qualidade de vida pode ser em muito melhorada, a despeito dos baixos níveis de renda, mediante um programa adequado de serviços sociais”.
Há uma disputa recorrente entre diversos atores sociais e políticos sobre a eficácia dos mercados e do Estado na implementação das políticas de desenvolvimento. Nesse quesito, a identidade dos mercados obedece à lógica da geração de lucros. As políticas públicas orientam-se para o bem geral da população, especialmente daquelas vítimas de desigualdades injustas. Sobre este assunto Sen (2015, p. 102) é categórico: “Temos que tomar cuidado para não nos deixar envolver por nenhum desses contos de fada”.
O reconhecimento da legitimidade dos mercados como parte importante do exercício da liberdade humana, antes de limitar, numa visão mais completa das diversificadas forças que contribuem para a equidade social, Sen afirma a necessidade de um Estado atuante e ativo na regulação dos mercados, das políticas públicas e do custeio social para a qualidade da vida humana. Os defensores da prioridade (ou exclusividade) da economia de mercado não compreendem a interdependência destacada por Sen (2000, p. 23): “A privação de liberdade econômica pode gerar a privação de liberdade social, assim como a privação de liberdade social ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de liberdade social”. A identidade entre as políticas públicas e as estratégias de efetivação dos direitos fundamentais e sociais transformam o funcionamento da sociedade excludente e seletiva, conforme demonstra Sen (2015, p. 101):
Contudo há áreas (especialmente, educação, saúde, nutrição entre outras) nas quais a necessidade de um setor público atuante pode ser muito intensa, e sua presença pode dar uma contribuição importante não apenas para o bem-estar da população, mas também para o resto da economia (incluindo as iniciativas individuais e do setor privado).
A insistência sobre a necessidade de afastamento do Estado de setores estratégicos na sociedade, como a economia do desenvolvimento, é eivada de preconceitos injustificados e confusões devido a interesses individualistas ou falta de esclarecimento de quem opina. Antes, é necessário que o setor público funcione adequadamente, com alto nível de controle, dinamismo e políticas de longo prazo, adaptadas aos contextos e suas demandas.
A construção de políticas públicas nos contextos complexos, contraditórios e desiguais que caracterizam as sociedades, especificamente na atualidade, demanda contemplar diversas referências interpessoais, culturais, ambientais e políticas em vista da equidade social. Assinala-se a impossibilidade de exclusão de pessoas, instituições e organizações públicas e privadas que atuam equitativamente, sob risco de gerar outras formas de classificação. O que, por vezes, parece uma impossibilidade, pode transformar-se em oportunidade de construção de justiça, conforme destaca Sen (2018, p. 24):
Ao abrir várias possibilidades de avaliação interpessoal (em vez de nenhuma), a jogada teve o efeito de transformar a luta sem saída para fugir à impossibilidade numa batalha construtiva, permitindo a escolha de diferentes valores e prioridades, os quais se tornaram todos disponíveis com o uso de comparações interpessoais de diferentes maneiras, na abordagem de problemas de economia social e indicadores sociais. Também foi demonstrado que as comparações interpessoais podem ser parciais, em vez de totais, uma vez que alguns tipos de comparação são bastante fáceis de fazer, mas outros são muito difíceis.
As políticas públicas2, quando conjugadas com participação social, eficácia e eficiência, afirmam-se como estratégias ou instrumentos irrenunciáveis para a justiça, agregando qualidade de vida à população, equidade social e desenvolvimento.
Por desigualdades injustas entende-se aquelas formas de exclusão que podem ser evitadas porque são provocadas por decisões ou estruturas políticas, administrativas, econômicas ou culturais. Este é um problema universal que afeta o interior das nações e as relações entre estas de forma mais ou menos grave. A estratificação social classifica em ordem de preferência as pessoas, culturas, gêneros e ambientes. Esta é uma dinâmica perversa que sedimenta estruturalmente esta relação. Sen (2015, p. 236) explica: “Esse reforço mútuo de diversas desigualdades cria um sistema social excepcionalmente opressivo, no qual os indivíduos das camadas inferiores vivem em condições de extrema impotência”. Embora se refira pontualmente às divisões históricas da Índia, Sen (2015, p. 239), confirma essa arquitetura sinistra, que também povoa o Brasil: “Mais uma vez, uma forma de desigualdade atrapalha o enfrentamento de outra forma de desigualdade”.
O fosso das desigualdades injustas, majoritariamente com raízes históricas e estruturais, contribui para que se multipliquem as divisões entre aqueles tradicionalmente privilegiados e os demais. Somente políticas públicas bem estruturadas podem prevenir, corrigir e combater as causas deste fenômeno por meio de serviços sociais. Logo, “O primeiro passo rumo à justiça social na Índia é, sem dúvida, assegurar que todos tenham o básico, em vez de permitir que um imenso número de pessoas enfrente privações constantes no dia a dia” (Sen, 2015, p. 241). Embora, de forma simbólica, mas não menos relevante, vale ressaltar a importância de uma política pública bem estruturada e sem exclusões: “Não houve nenhuma evidência de presença significativa de membros da população dalit em nenhuma instituição das amostras, com exceção do corpo docente das universidades, em parte devido às cotas obrigatórias” (Sen, 2015, p. 243).
No Glória incerta, existem abundantes relatos das desigualdades na Índia que persistem ao longo do tempo e, outras, que caminham para a diminuição, mesmo de forma lenta3. Percebe-se a relação entre o vertiginoso crescimento econômico em anos recentes e a não correspondência com a diminuição das desigualdades injustas. Esta constatação está diretamente conectada com a compreensão geral de Sen sobre o desenvolvimento, que não pode ter como norte apenas o PNB ou a produção de bens, mas a ampliação das capacitações (capabilities) para o real exercício da liberdade (de escolha).
A percepção de um modelo de desenvolvimento centrado na pessoa e nas suas condições para o exercício das liberdades, direciona os critérios de avaliação e reconhecimento distantes de objetos, rendas, discursos diplomáticos ou funcionamento da arquitetura institucional, para o impacto na vida que as pessoas podem construir. Sen (2011, p. 381) sublinha essa distinção e afirma a necessidade de superação dessa contradição: “O desenvolvimento dificilmente pode ser visto apenas com relação ao melhoramento de objetos inanimados de conveniência, como um aumento do PIB (ou da renda pessoal) ou industrialização - apesar da importância que possam ter como meios para fins reais. Seu valor precisa depender do impacto que eles têm nas vidas e liberdades das pessoas envolvidas, que necessita ser central para a ideia de desenvolvimento”.
A atenção às causas das desigualdades injustas, de forma apurada, conduz ao entorno das estatísticas sobre o desenvolvimento, seja em relação às vítimas de desigualdades injustas, seja em relação às referências para o potencial de superação mais amplo e global, mas também ao efeito simbólico para determinadas situações específicas. Gize-se, a violência contra as mulheres, os abortos seletivos, as incontáveis deficiências de acesso e qualidade da educação, as deficiências na saúde pública, as divisões de castas, o desemprego, a multidão sem acesso à energia e à propriedade, a qualidade das informações e as seletivas formas de representação na política e nas áreas da administração, especialmente dos mais pobres, das mulheres e dos membros de grupos culturais pouco expressivos.
A título de indicativo para a ampliação da compreensão sobre a importância das políticas públicas para a prevenção, correção e combate às desigualdades injustas, destaca-se, novamente com efeito simbólico, afirmações que esclarecem o seu potencial de solução desses graves problemas:
O papel da educação básica no processo de desenvolvimento e progresso social é amplo e importantíssimo; […] Na sociedade contemporânea em que tanta coisa depende da palavra escrita, ser analfabeto é como estar preso, e a educação escolar abre uma porta através da qual as pessoas podem escapar do encarceramento; […] a educação pode contribuir enormemente para a redução das desigualdades relacionadas com as divisões de classe e casta (Sen, 2015, p. 126-128).
As mediações para a prevenção, combate e superação das desigualdades injustas são mediadas pelo exercício constante do debate público desde o início da construção das políticas públicas até a sua conclusão. Sublinhar esta dimensão, recorda a afirmação da democracia como uma prática cotidiana não apenas institucional ou de direitos formais. As pessoas, no exercício da sua cidadania, para além do direito de votar e ser votado ou da arquitetura jurídica, precisam sentir a democracia funcionar na sua vida. As políticas públicas com ampla participação e divulgação da sua organização e seus feitos por meio da publicidade e das diversas formas de transparência, fazem-na pulsar no seu cotidiano.
A grave contradição sobre os níveis de desenvolvimento é sintetizada na estratégica afirmação de Sen (2015, p. 23): “A Índia foi subindo vários degraus em termos de renda per capita enquanto escorregava ladeira abaixo nos indicadores sociais”. O autor sublinha, nesta e em outras obras, que o crescimento econômico é apenas uma referência para a avaliação do desenvolvimento. Destaca-se, novamente, as políticas públicas como responsabilidade do Estado e estratégicas para a correção das desigualdades injustas.
A mesma responsabilidade recai sobre a organização e o funcionamento das estruturas democráticas como suporte para o desenvolvimento humano e social. A observação de Sen (2015, p. 12) destaca essa conexão: “A democracia indiana está seriamente comprometida pela extensão e pelo caráter da desigualdade social na Índia em especial considerando que democracia não significa apenas política eleitoral e liberdades civis, mas também uma distribuição equitativa de poder”. Essa dicotomia estende-se, com proporções semelhantes, nas esferas econômicas e do desenvolvimento.
Na obra que está sendo considerada nesta abordagem, perpassa de forma estratégica a relação, em suas diversas facetas ou conexões, entre crescimento e desenvolvimento. A sua valoração [moral] depende da seguinte equação: “[…] o ponto central a ser apreciado aqui é que, embora o crescimento econômico seja uma ferramenta importante para melhorar as condições de vida da população, seu alcance e impacto dependerão em grande parte do que é feito com os frutos do crescimento” (Sen, 2015, p. 54).
Na mesma perspectiva destaca-se a visão característica e ampliada de um modelo não restrito ou restritivo, quando Sen (2015, p. 55) diz:
A importância do crescimento econômico pode ser adequadamente entendida apenas nesse contexto mais amplo. É necessário reconhecer a função do crescimento na facilitação do desenvolvimento sob forma de melhoria da vida e das liberdades humanas, mas também é preciso avaliar como as possibilidades de crescimento de um país dependem, por sua vez, do avanço das capacidades humanas (através da educação, do atendimento em saúde e outros serviços) no qual o Estado pode desempenhar um papel bastante construtivo.
A perspectiva do desenvolvimento, atento aos desafios supracitados, a atuação dos mercados e outras prerrogativas importantes para a vida das pessoas e a equidade social, especialmente por meio da diminuição dos aviltantes níveis de pobreza e exclusão, precisa atender às demandas da sustentabilidade do meio ambiente em geral. Neste quesito importa sublinhar o destaque: “Se o desenvolvimento diz respeito a aprimorar as liberdades humanas e a qualidade de vida - uma compreensão importante, a favor da qual temos argumentado - então a qualidade do meio ambiente deve ser parte do que queremos preservar e promover” (Sen, 2015, p. 58).
A relação entre desenvolvimento, meio ambiente, diminuição das desigualdades, condições para as escolhas livres, recoloca no centro da avaliação das políticas públicas e das proposições de organização social o valor e a identidade do ser humano, caracterizado nas democracias contemporâneas como sujeito de direitos. A autonomia humana não está dissociada da sua responsabilidade derivada da sua própria identidade e talentos. Uma sociedade de mercados ou com amplas desigualdades injustas não é desenvolvida, por isso, o modelo a ser perseguido precisa estruturar o desenvolvimento humano e social sustentável, que pode ser sintetizado na afirmação: “O desenvolvimento é, em última análise, o progresso da liberdade humana e da capacidade de levar um tipo de vida que as pessoas tenham razão para valorizar” (Sen, 2015, p. 59).
A via do desenvolvimento, seja na perspectiva de Sen na obra em tela, seja considerando o atual contexto de ameaças à estabilidade social, democrática e ambiental, está relacionado à qualidade da vida humana e social, especificamente, o ambiente epidemiológico, a integridade do meio ambiente, as condições para o exercício da liberdade de escolha, participação e decisão, entre outras. Uma visão integrada e cooperativa do desenvolvimento é o retrato simbólico desta obra.
As estratégias de ampla participação e decisão são características próprias da democracia como instrumentos de esclarecimento das necessidades, dos objetivos e das formas de implementação das políticas públicas. A participação quanto mais ampla, mais amplia o debate público para que as escolhas sejam livres e congreguem a população em geral. No dizer de Comim (2021): “O cerne de seu argumento, é que sociedades necessitam de liberdades políticas para seus cidadãos, tais como a de poder participar de debates públicos e discussões para que seja possível definir quais são as necessidades econômicas de suas populações”.
Não são legitimas, exequíveis, eficazes, eficientes e, sequer, contribuem para o bem-estar da população mais vulnerável, ou dito de outra forma, para a efetiva correção das desigualdades injustas, as políticas públicas paternalistas ou unilaterais decididas em gabinetes ou por burocratas profissionais.
A participação, numa democracia mesmo incipiente como a brasileira não pode limitar-se ao processo de escolhas eleitorais. O debate público é essencial nos micro espaços de poder e suporte para as macroestruturas. Especificamente sobre as políticas públicas, afirma Sen (2015, p. 282): “[…] e um vigoroso exercício da argumentação pública pode desempenhar um papel importante tanto para expandir a compreensão da população como para ampliar a prática política esclarecida”.
Conectado aos direitos de ampla participação e decisão, está a convicção, rotineiramente defendida por Sen, inclusive com fartas pesquisas empíricas, sobre as condições que os países, mesmo os mais pobres ou com organização democrática incipiente, possuem para investirem em políticas públicas que diminuem as desigualdades injustas e, por consequência, fomentam a participação da população. Entre as razões está o baixo custo que elas representam para os cofres públicos quando comparadas a países desenvolvidos. Por exemplo, os valores destinados aos programas básicos de educação e saúde, além da eficácia, garantem que o retorno é imediato e com excelentes resultados, por sua vez, o impacto no orçamento geral é baixo. No Brasil o exemplo que pode ser destacado é o Programa Bolsa Família.
Sen (2015, p. 299) relata, em relação à Índia, a relevância de ações com estas características como indicativo de alta prioridade:
O mais urgente no momento é reconhecer a necessidade de medidas para superar carências sistêmicas que condenam a maior parte da população indiana a vidas atrofiadas e que militam contra o bem-estar das pessoas, especialmente os menos favorecidos, além do bom funcionamento da economia.
O debate público esclarecido ou para esclarecer temas sobre a rotina dos serviços públicos ou da sociedade faz uma grande diferença no conjunto da vida das pessoas, especialmente dos menos favorecidos. Para tanto, inclusive como garantias de liberdade política, reforça-se como alma da democracia, o direito de votar e ser votado, as eleições periódicas e a liberdade de imprensa, opinião e associação. A ampliação da concepção de mundo exercido pela ampla maioria da população compreende as condições de ultrapassar a visão territorial, a dependência do ambiente cultural e as diversas filiações que mantém pessoas e grupos restritos ao seu entorno, normalmente manipulado por líderes interesseiros e autoritários que submetem os demais a suas metas individualistas. Nessecontexo destaca-se a afirmação de Sen (2011, p. 441): “Na verdade a aparente força de convencimento de valores paroquiais muitas vezes deriva da ignorância do que se demonstrou factível na experiência de outros povos”.
Esforços conjugados e bem orientados fortalecem, dinamizam e atualizam as políticas públicas essenciais para a equidade social. No Glória incerta são abundantes os relatos sobre isso.
De forma conclusiva destaca-se alguns temas estratégicos para políticas públicas que povoam o conjunto da obra, por vezes de forma discreta, porém decisivos para a equidade social. A menção está acompanhada de, pelo menos, uma citação original. Embora a pesquisa empírica tenha sido realizada na Índia, no contexto brasileiro possui igual ou maior necessidade de investigações.
A credibilidade das políticas públicas é essencial para a sua concretização, especificamente, a ACCOUNTABILITY como procedimento de controle do conjunto dos processos em qualquer nível é destacado pela sua capacidade de análise estratégica dos processos, justamente por envolver as esferas de decisão e de mando. Prioritariamente, as autoridades e os burocratas, quando bem-intencionados, tem muito a ganhar, tanto em nível pessoal, quanto na sua imagem pública. Diretamente o benefício maior é da população que experimenta o resultado da transparência e a prestação de contas, apenas para citar alguns. Sen (2015, p. 100): ressalta:
O funcionamento do setor público é uma que estão de interesse geral em todos os países do mundo, porque todos os países têm um. É evidente que o tamanho e a extensão do setor variam de caso para caso, mas, apesar dessas variações, o problema de implementar a accontability no setor público surge em todos os lugares.
A IMPACIÊNCIA é uma dessas dimensões que surpreendem porque não integram o rol de preocupações rotineiras, mas, nesta obra é indicado com perspicácia e demonstra o quão importante é a garantia das liberdades formais, ou seja, previstas no arcabouço constitucional, assim como, as condições reais para o seu exercício. A ausência do hábito para o debate e a argumentação públicos impedem sensivelmente o conhecimento dos problemas e a sua respectiva de solução. Os parâmetros de participação geral precisam contemplar o sentimento de expressão do público daquelas injustiças que os afetam direta e indiretamente como parte da rotina democrática. Sen (2015, p. 308; 309) afirma:
Por outo lado, a democracia indiana oferece diversas oportunidades para remover pontos cegos e transformá-los em questões sociais vivas, que é o primeiro passo para remediá-las. […] Valorizar possibilidades construtivas é tão importante como perceber mais plenamente a gravidade e a severidade das privações a que a população indiana é submetida.
A INCLUSÃO INJUSTA é um tema que parece inusitado, descontextualizado e irrelevante porque, rotineiramente, nas abordagens sobre justiça, democracia, igualdade e tantos outros, a menção aos signos inclusão e exclusão é suficiente. Entretanto, as abordagens que envolvem as relações entre Estado e mercado, pela sua complexidade e concepções errôneas ou dominadas pelo auto interesse podem demonstrar um esforço demasiado ou suficiente, conforme os interesses envolvidos, ante a existência de certo número de políticas públicas. A inclusão injusta refere-se, entre outras percepções, àquelas que parecem garantir certos níveis de inclusão, ou mesmo a impossibilidade de haver outras propostas.
A inclusão injusta, normalmente, esconde a acomodação dos governantes e outros responsáveis. De outra banda, os níveis mínimos de bem-estar, e por vezes inferiores, ou a pouca disponibilidade de recursos orçamentários, normalmente recheados pela argumentação retórica, conduzem ao contentamento da população e a justificativa de compromisso com a solução dos problemas da população no longo prazo, especialmente a mais excluída. A ilusão em relação ao futuro apaga a necessária solução no presente. Sen (2015, p. 204), de forma pedagógica ensina:
O bom funcionamento dos serviços públicos pode fazer uma grande diferença para a vida da população. […] nos concentramos na educação e na saúde em virtude do seu papel central na formação e na expansão da liberdade real das pessoas: em última análise, é disso que se trata quando o assunto é desenvolvimento. Essas são também as áreas da vida pessoal e das relações sociais em que as limitações dos incentivos de mercado e a necessidade de ação do setor público podem ser mais fortes, como tem se reconhecido na literatura econômica convencional […]. Uma iniciativa pode ser chamada de “social” quando se baseia em instituições sociais - e não apenas no mecanismo de mercado.
A consideração especial com a VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES que, direta e indiretamente, perpassa toda a obra tem o significado de afirmar o quão decisiva é a presença, participação e atuação da mulher na sociedade, especialmente na construção da justiça, por meio de políticas públicas que visam a superação das desigualdades injustas. Seja pelo seu papel simbólico, seja pelas condições reais de atuação, organização, liderança e influência, dentre inúmeros outros atributos, a busca pela efetivação de políticas públicas que beneficiem prioritariamente as mulheres é salutar e recomendável visando a construção da justiça. Neste sentido, também indicado na pesquisa em tela, é a necessidade de inclusão ativa de outros sujeitos vítimas de exclusão de gênero. O retrato das graves violências que vitimam as mulheres denunciam uma sociedade doente e insensível. Eleger essas situações como estratégia decisiva para o debate público e para as políticas públicas demonstra as condições iniciais para a sua reversão. Destaca Sen (2015, p. 8):
As questões que afetam a vida, e até mesmo a sobrevivência, daqueles que têm sido exaustivamente deixados para trás tendem a receber muita pouca atenção. É um progresso bastante positivo que a violência contra as mulheres tenha por fim se tornado uma questão política importante na Índia, com a indignação pública que se seguiu ao terrível estupro coletivo em dezembro de 2002.
As políticas públicas direcionadas prioritariamente à superação das desigualdades injustas, quando bem estruturadas, têm como foco destacado a visão da necessidade de bons níveis de EDUCAÇÃO E SAÚDE para a totalidade da população, seja como condicionalidade, seja como opção do Estado ou dos governos. As investigações de Sen e as propostas de equidade social, mencionam e demonstram o quanto ambas as áreas são estratégicas e possuem elevado potencial de transformação social. Dada a opção que dá prioridade aos indicativos de leitura da obra, destaca-se a visão estratégia mencionada por Sen (2015, p. 126):
O papel da educação básica no processo de desenvolvimento e progresso social é amplo e importantíssimo. [...] Na sociedade contemporânea, em que tanta coisa depende da palavra escrita, ser analfabeto é como estar preso, e a educação escolar abre uma porta através da qual as pessoas podem escapar do encarceramento.
Com igual relevância assinala Sen (2000, p. 334):
Embora a prosperidade econômica ajude as pessoas a ter opções mais amplas e a levar uma vida mais gratificante, o mesmo se pode dizer sobre educação, melhores cuidados com a saúde, melhores serviços médicos e outros fatores que influenciam causalmente as liberdades efetivas que as pessoas realmente desfrutam.
O conhecimento da pesquisa de Sen sobre as principais políticas públicas da Índia pós-independência, assim como, as conquistas, retrocessos e expectativas sobre a democracia, contribuem para uma visão mais alargada e isenta de preconcepções errôneas, da mesma forma que, desafiam a criação de meios eficazes para o enfrentamento das desigualdades injustas no Brasil que estão na origem de outros graves problemas estruturais, por exemplo, da violência em geral.