RESUMO
Objetivo: O artigo pretende demonstrar como determinado tipo de racionalismo, ao promover a indiferença pela complexidade da condição humana e o desprezo por possibilidades epistemológicas mais integrativas, pode induzir a uma habituação moral capaz de insensibilizar eticamente o ser humano diante dos fenômenos que ofendem a existência do outro.
Metodologia: A abordagem metodológica utilizada se serve da filosofia retórica aplicada à revisão de literatura por meio do método hipotético-dedutivo. Partindo de textos de autores e propósitos distintos, o artigo desenvolve retórica estratégica útil para criticar determinadas formas de lidar com fenômenos constituintes da realidade material, realçando sua naturalizada incompletude.
Resultados: O desenvolvimento do trabalho permitiu organizar conceitos e ideias demonstrativas da efetiva agnosia moral produzida por modos de pensar que desafetivam os fenômenos relevantes nas interações humanas, sejam entre humanos, sejam destes com o meio ambiente. A partir dessa organização argumentativa, pôde-se criticar, a partir dos referenciais teóricos utilizados, a redução epistemológica causada pelo racionalismo, fenômeno que está na origem da ética do explícito.
Contribuições: A conceituação dessa modalidade de expressão ética permite introduzir, no debate sobre temas morais caros ao direito e à política, reflexões sobre a dessensibilização do pensamento racional, ocorrência que termina por criar culturas refratárias à alteridade e à razão compassiva, somente se sensibilizando diante da explicitude de seus efeitos negativos.
Palavras-chave: Dualismo cartesiano, monismo spinozano, racionalismo, agnosia moral, ética do explícito.
ABSTRACT
Objective: The article intends to demonstrate how a certain type of rationalism, by promoting indifference to the complexity of the human condition and contempt for more integrative epistemological possibilities, can induce a moral habituation capable of ethically desensitizing the human being in the face of phenomena that offend existence from the other.
Methodology: The methodological approach adopted uses the rhetorical philosophy applied to the literature review through the hypothetical-deductive method. Starting from texts by different authors and purposes, the article develops useful strategic rhetoric to criticize certain ways of dealing with phenomena that constitute material reality, highlighting its naturalized incompleteness.
Results: The development of the work allowed to organize concepts and ideas demonstrating the effective moral agnosia produced by ways of thinking that remove the affections from the relevant phenomena in human interactions, whether between humans or between humans and the environment. From this argumentative organization, it was possible to criticize, based on the theoretical references used, the epistemological reduction caused by rationalism, a phenomenon that is at the origin of the ethics of the explicit.
Contributions: The conceptualization of this modality of ethical expression allows to introduce, in the debate on moral issues dear to law and politics, reflections on the desensitization of rational thought, an occurrence that ends up creating cultures that are refractory to alterity and compassionate reason, only being sensitized in the face of the explicitness of its negative effects.
Keywords: Cartesian dualism, spinozan monism, rationalism, moral agnosia, ethics of the explicit.
RESUMEN
Objetivo: El artículo pretende demostrar cómo um determinado tipo de racionalismo, al promover la indiferencia ante la complejidad de la condición humana y el desprecio por las posibilidades epistemológicas más integradoras, puede inducir una habituación moral capaz de insensibilizar éticamente al ser humano antes los fenómenos que ofenden la existencia del otro.
Metodología: El enfoque metodológico adoptado utiliza la filosofía retórica aplicada a la revisión bibliográfica a través del método hipotético-deductivo. A partir de textos de diferentes autores y propósitos, el artículo desarrolla una retórica estratégica útil para criticar ciertas formas de tratar los fenómenos que constituyen la realidad material, destacando su incompletud naturalizada.
Resultados: El desarrollo del trabajo permitió organizar conceptos e ideas que demuestran la efectiva agnosia moral producida por formas de pensar que sustraen los afectos de los fenómenos relevantes en las interacciones humanas, ya sea entre humanos o entre éstos y el medio ambiente. A partir de esta organización argumentativa, fue posible criticar, a partir de los referentes teóricos utilizados, la reducción axiológica y epistemológica provocada por el racionalismo, fenómeno que está en el origen de la ética de lo explícito.
Contribuciones: La conceptualización de este modo de expresión ética permite introducir, en el debate sobre cuestiones morales caras al derecho y a la política, reflexiones sobre la desensibilización del pensamiento racional, hecho que acaba creando culturas refractarias a la alteridad y a la razón compasiva, que sólo se sensibilizan ante la explicitación de sus efectos negativos.
Palabras clave: Dualismo cartesiano, el monismo spinozano, racionalismo, agnosias Morales, ética de lo explícito.
Artigo
Ética do Explícito: Crítica ao Racionalismo, à Agnosia Moral e ao Desprezo pela Razão Complexa e pelo Pensamento Noético
Ethics of the Explicit: Criticism of Rationalism, Moral Agnosia and Contempt for Complex Reason and Noetic Thinking
Ética de lo Explícito: Crítica al Racionalismo y a la Agnosia Moral y Crítica al Desprecio de la Razón Compleja y del Pensamiento Noético
Recepción: 02 Agosto 2022
Aprobación: 18 Octubre 2022
É estreita relação das reflexões aqui organizadas com a metáfora política contida na literatura fantástica de José Saramago em Ensaio sobre a cegueira (1995). As hipóteses comportamentais aqui apresentadas como fundamento para se desenvolver o conceito de ética do explícito têm um quê de fantástico e poderiam compor a literatura que recebe essa denominação, na qual se situa essa obra.
Na literatura fantástica, o texto lança o leitor num universo perturbador porque o expõe a uma narrativa incompreensível para sua lógica; suas expectativas – ancoradas em uma visão realista estimulada pela ambiguidade do próprio texto – são perturbadas por ausência de encaixe da narrativa na racionalidade paradigmática. Todorov (2207, p. 16) diz que “o fantástico é a vacilação experimentada por um ser que não conhece mais que as leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente sobrenatural.”
Perplexo diante do oftalmologista, o paciente de Saramago (1995, n.p.) indaga: “Se meus olhos estão perfeitos, como diz, então por que estou cego?”. Sentindo-se, ele próprio, perturbado diante de fenômeno inalcançado por seu conhecimento, o médico responde: “Acho que tem alguma coisa a ver com o cérebro [...]. O que quero dizer é que se o senhor está de facto cego, sua cegueira, neste momento, é inexplicável.”
Essa metáfora é por demais conhecida para referir-se a cegueiras diversas e às agnosias que, mesmo diante da higidez do sistema visual, retiram das pessoas a capacidade de ver. Ela estimula reflexão sobre a incapacidade de ver com os olhos e também com outros sentidos. Ao fim da saga, Saramago (1995, n.p.) provoca: “Por que foi que cegámos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegámos, Penso que estamos cegos, Cegos que veem, cegos que, vendo, não veem.”
Não estar cego e, ainda assim, não ver. Ter preservado o sistema visual e, ainda assim, ver-se dessensibilizado para ver e sentir os fenômenos que, à nossa frente, devastam seres, sociedades e natureza. Dessa premissa partem as reflexões deste artigo, o qual atribui à opção moderna pelo racionalismo cartesiano o fortalecimento de certas características que vão marcar a história da pobreza e da riqueza do homem.
O tópico subsequente tenta demonstrar que a história do conhecimento e dos valores teria tomado rumo distinto se o pensamento monista e complexo de Benedictus de Spinoza não tivesse sido criticado, perseguido e descartado pelos potentes dos setecentos. O modo de produção de saberes e de riquezas nascente naquele século encontrou no racionalismo cartesiano o esteio ideal para o cientificismo e o progressismo irrefletido que marcariam os modos de sentir, de pensar, de viver e de produzir a partir daquela quadra histórica.
O modo como a filosofia de Spinoza compreendeu e explicou a complexidade da existência contrariava demandas de então por formas simplistas e reducionistas da análise do mundo e seus fenômenos. Rasgar o véu da ignorância tecido por essencialismos metafísicos não interessava àqueles que mistificavam com o fim de perpetuar poderes e consolidar modelos de dominação. À subversão radical de Spinoza preferiu-se, claro, uma subversão contida e controlável, sobretudo porque sufocava os afetos, encontrada no cartesianismo. Ao rejeitar o pensamento complexo de Spinoza, os líderes da modernidade se rendiam aos essencialismos metodológicos que vinham, desde a Antiguidade, firmando-se como pilares da organização socioeconômica do Ocidente desenvolvido, na acepção de progresso então em construção.
No terceiro tópico, a tônica da análise se dirige à consolidação da razão científico-instrumental, patrona da ideologia científica calcada no homem como imperium in imperio (Spinoza, 2007, p. 161) – na concepção cartesiana de mundo, segundo Spinoza. Aí é discutida a captura do racionalismo pela ideia de progresso, num contexto econômico, que levou à desumanização da razão e seu esvaziamento de valores como tolerância e pluralidade.
De fato, ao enfatizar o cogito, o racionalismo cartesiano fundou as bases de uma metodologia e de uma epistemologia capazes de “desafetivar os acontecimentos”, conforme precisa expressão de Matos (2002, p. 305). Essa desafetivação do mundo da vida será promotora de um distanciamento emotivo que abre vias para o surgimento de um modus pensandi excludente de outras formas de percepção. Por essas vias, transitavam, como transitam, a indiferença e a apatia diante daquilo que não é considerado próximo, ensinando o homem a pensar de modo reificante o seu próprio semelhante e também o seu hábitat. E é por caminhos assim que se firmou o que se vai chamar de agnosia ética, expressão colhida em Jung (2015, p. 73), a cegueira moral que torna o ser humano refratário às condições existenciais do outro, mesmo que este esteja diante de si.
Esse alheamento ético resultante da agnosia constitui um estado de saber e de sentir que será denominado ética do explícito. À conceituação dessa ética e sua origem será dedicado o quarto tópico, no qual se defenderá que a opção pelo racionalismo reducionista, ao negar a abordagem integral da complexidade do homem no mundo, incluindo suas funções conativas, originou a debilidade sensitiva que interfere no modo de percepção dos fenômenos, predispondo o indivíduo e as sociedades à indiferença e à apatia em relação ao outro.
O aparecimento de indivíduos moralmente dessensibilizados – no dizer de Bauman (2014, p. 179), indivíduos capacitados e dispostos a não levar em conta o bemestar do outro – porque acometidos de uma espécie de cauterização espiritual e moral, não é exclusividade da educação racionalista, que tonifica o cognitivo e inibe o afetivo, mas certamente os fundamentos metodológicos do racionalismo fazem atrofiar outras formas de percepção e surgir a cegueira moral de que se tratará.
No quinto tópico, o leitor encontrará reflexões sobre como enfrentar a letargia moral que dá origem a comportamentos orientados pela ética do explícito. Serão sucintamente apresentados os conceitos de razão complexa (Morin, 2013, p. 167) e revolução noética (Halévy, 2010, p. 77), dos quais se extraem elementos que melhor se adaptam ao imperativo de desenvolvimento do ser humano voltado para a coexistência, para a alteridade, para a vida em comum, dando espaço para uma razão compassiva. Nesse tópico, a expressão de um neurocientista, Eagleman (2017), tem a finalidade de registrar a importância das neurociências para compreender como o cérebro humano se relaciona com a tríade neurofuncional – conforme Fonseca (2014): funções conativas, funções cognitivas e funções executivas – para habilitar o ser humano a se posicionar na existência de modo empático, tolerante e construtivo. Por não ser o objeto de análise, as neurociências não receberam atenção extensiva, mas é certo que suas descobertas tornam respeitável a premonição de Eagleman (2017, p. 189):
Estamos em um momento da história humana em que o casamento de nossa biologia com a tecnologia transcenderá as limitações do cérebro. Podemos acessar nosso próprio hardware para determinar um rumo para o futuro. Isto representa mudar de forma fundamental o que significará ser humano.
Na conclusão, uma vez demonstradas as pretensões anunciadas nesta Introdução, a retórica da complexidade, segundo Morin (2013), e a revolução noética e suas premissas, segundo Halévy (2010), assomam-se como proposta de combate às aporias da tríade racionalismo-cientificismo-progressismo. Concluir-se-á que essas proposições constituem retórica estratégica (Adeodato, 2010, p. 68), a qual pretende influenciar a retórica existencial, nela se inserindo e promovendo mudanças de paradigmas. Talvez em breve se possa dar ao homem maior dignidade para si e para suas relações com seus semelhantes e com o meio ambiente e evitar tonificar uma daquelas funções em detrimento das demais, abrindo caminhos para uma ética sensível ao outro.
Em sua Ética, Spinoza (2007, p. 161) afirma: os que escreveram sobre os afetos e os modos de vida dos homens “parecem conceber o homem na natureza como um império num império”, denunciando a incompletude arrogante do racionalismo então nascente. Assim Spinoza inicia sua argumentação para, num modelo geométrico, evoluir rumo ao pensamento logicamente estruturado segundo o qual “ninguém determinou a natureza e a força dos afetos e nem, por outro lado, que poder tem a mente para regulálos”.
A tese a que Spinoza se contrapôs foi aquela valorizada por René Descartes e que viria a se converter no método dos processos cognitivos vitoriosos na cultura ocidental, o racionalismo1. Sobre Descartes, disse Spinoza (2007, p. 161):
Sei, é verdade, que o mui celebrado Descartes, embora também acreditasse que a mente tem um poder absoluto sobre suas próprias ações, tentou aplicadamente, entretanto, explicar os afetos humanos por suas causas primeiras e mostrar, ao mesmo tempo, a via pela qual a mente pode ter um domínio absoluto sobre os afetos. Mas ele nada mais mostrou, em minha opinião, do que a perspicácia de sua grande inteligência, como provarei no momento oportuno.
A potência e a complexidade do pensamento spinozano são reconhecidamente desafiadoras do racionalismo derivado do dualismo redutor cartesiano – que ecoa platonismos e agostinismos e sua preconceituosa relação com o corpo, cada qual a seu modo – e também ameaçadoras das conformações filosófico-políticas que imperavam em seu tempo e nos sucessivos, quando a tríade Deus, Natureza e Razão era manipulada segundo o pensamento dominante. Entre o pensamento cartesiano, inovador para sua época, mas insuficiente para a complexa e plural condição humana, e o pensamento de Spinoza, inclusivo das complexidades e das pluralidades, os potentes políticos fizeram sua opção. Spinoza foi excluído de sua comunidade pelo herém e perseguido; sua obra, censurada. Decerto nem o próprio filósofo esperava reação distinta: seu racionalismo imanente se opunha aos ontologismos metafísicos correntes, às explicações mitológicas e às revelações religiosas, todas organizadas de modo a favorecer a estrutura social e econômica emergente.
Sua crítica aos pilares da ordem protestante tornou-o persona non grata em seu país, pois denunciava o “voluntarismo finalista que sustenta o imaginário da contingência nas ações divinas, naturais e humanas” (Chauí, 2010, online). Spinoza entendia que as noções estruturantes da vida cristã eram constituídas a partir do desconhecimento das verdadeiras causas e ações de todas as coisas, fazendo surgir “um sistema de crenças e de preconceitos gerado pelo medo e pela esperança, sentimentos que dão origem à superstição, alimentando-a com a religião e conservando-a com a teologia, de um lado, e o moralismo normativo dos filósofos, de outro” (Chauí, 2010, online). A vontade de ordem dos poderosos não admitiu a disseminação de pensamento tão potentemente revolucionário. Spinoza foi silenciado. Sua coragem de incluir os afetos nas formas de compreensão e relação com o mundo, ignoradas. Sua preocupação com o implícito inserto nas franjas da razão explícita, criticada.
Apesar de um ou outro eco na filosofia moderna – como, entre outros exemplos, em Nietzsche e sua famosa carta a Franz Overbeck2 –, apenas em tempos recentes, e, paradoxalmente, pelas vias das ciências da saúde, modernamente tão tributárias do cartesianismo, Spinoza passou a receber tratamento mais condizente com a riqueza e a precisão de suas descrições e prescrições.
Ao construir a hipótese, a partir das neurociências, de que “a emoção é parte integrante do processo de raciocínio e que poderia auxiliar esse processo ao invés de, como se costumava supor, necessariamente perturbá-lo”, o neurocientista Damásio (2012, p. 12), v.g., reconheceu a conexão dos fenômenos socioculturais com aspectos da neurobiologia, filiando-se às teses de Spinoza, que antecipara a vinculação entre neurobiologia e humanidades, embora se cometa algum anacronismo ao assim referir suas reflexões setecentistas.
Uma lição indubitavelmente extraída pelos neurocientistas dos insights revolucionários de Spinoza ensina que emoções e sentimentos servem de guias internos e ajudam-nos a comunicar aos outros sinais que também podem guiá-los, pois não são nem intangíveis, nem ilusórios, mas, ao contrário da opinião científica tradicional, são precisamente tão cognitivos quanto qualquer outra percepção (Damásio, 2012, p. 19):
Os sentimentos permitem-nos entrever o organismo em plena agitação biológica, vislumbrar alguns mecanismos da própria vida no desempenho das suas tarefas. Se não fosse a possibilidade de sentir os estados do corpo, que estão inerentemente destinados a ser dolorosos ou aprazíveis, não haveria sofrimento ou felicidade, desejo ou misericórdia, tragédia ou glória na condição humana.
O reconhecimento do processamento unificado dos afetos em conexão com o que se denomina racionalismo certamente representa um triunfo das ideias de Spinoza, como se pode deduzir da leitura de outros estudos de Damásio (2004, p. 34), os quais afirmam que as emoções precedem os sentimentos e que estes orientam a organização racional das reações na interação existencial. Só esse modo de interação é capaz de lidar, por exemplo, com a pluralidade e a complexidade dos fenômenos que constituem a tensão existencial.
O resgate das antevisões de Spinoza pode ser visto como efeito de repetidas críticas às filosofias modernas que se acomodaram no restritivo dualismo cartesiano e construíram a modernidade e seus signos; pode ser visto como uma resposta aos efeitos históricos da absolutização da razão científica, destituída de seus constituintes afetivos e, por isso, redutora da capacidade de compreensão dos fenômenos. Deve ser visto como esforço de superação do estado de negação da complexidade notado por Morin (2013, p. 175), quando afirma que a devida dimensão da complexidade ainda é marginal nos pensamentos científico, epistemológico e filosófico.
Há outros exemplos de esforços científicos de superação do dualismo simplificador e promotores do monismo complexo e plural determinante do reconhecimento da interação mente e corpo, emoção e razão, visando à superação da razão utilitárioinstrumental do modelo moderno de racionalização. Depois de Spinoza e Damásio, é a outro estudioso de origem lusitana que se vai referir: Vítor da Fonseca, estudioso da psicomotricidade e da intersubjetividade, a qual se realiza a partir das funções neuronais cognitivas, conativas e executivas, constituintes da tríade funcional da aprendizagem humana.
Tributário da filosofia de Spinoza3, Fonseca é um estudioso das neurociências aplicadas à psicopedagogia, tendo desenvolvido estudos sobre como o cérebro humano processa informação e aprende. Segundo seus escritos, cognição, conação e execução fazem parte da plenitude das faculdades superiores humanas e decorrem da coatividade de bilhões de neurônios, que resulta de mecanismos biológicos e substratos neurológicos do cérebro, “demonstrando a impossibilidade de separar a função do sistema nervoso de qualquer forma de aprendizagem” (Fonseca, 2014, p. 239). Refletindo sobre Spinoza, Fonseca (2014, p. 242) diz:
Diferentemente de Descartes, Espinoza não acreditava nas dualidades do espírito e da matéria ou da mente e do corpo; os seus “teoremas éticos” abriram caminho ao estudo da rede de comunicação entre o corpo, o cérebro e a mente como um sistema interativo altamente distribuído e com grandes graus de liberdade, mas possuidor de um “posto de comando”, um “Eu”, considerado como atributo fundamental de uma mente consciente. O comportamento humano é determinado por emoções, consideradas como a força principal de impulsos naturais como a força principal de impulsos naturais que emanam do corpo e o impelem para a ação, disposições tônico-energéticas essas que visam a preservar a essência mais profunda do ser humano com a criação subsequente de sentimentos de si e dos outros.
Para Fonseca, os processos ditos conativos têm um poderoso impacto nas funções cognitivas e também nas funções executivas, ou seja, têm influência dominante em todo o complexo processo da aprendizagem e das interações humanas.
O erro de Descartes residiu, justamente, na submissão do paradigma de racionalização por ele proposto à dualidade mente e corpo, a partir do que – influenciado pela ideia religiosa do corpo impuro – se sobrevalorizou a razão destituída de conexão com os afetos. Sem significação afetiva, ou seja: conativa, a aprendizagem humana caminhou para um tipo nefasto de progresso, escamoteando a complexidade da própria existência, gerando as condições que levaram Benjamin (2012, p. 14) a sugerir, em sua décima tese Sobre o conceito de história, que se deve considerar o progresso como catástrofe se realmente queremos escapar do seu encanto, segundo observação de Mate (2011, p. 206).
O acerto de Spinoza foi ignorado, pois a complexidade de seu pensamento era incompatível com os anseios de um mundo estruturado sobre realidades compartilhadas para assegurar certo modo de organização social e de produção econômica. A racionalidade moderna de base cartesiana se converteria no paradigma da razão na modernidade, a racionalização científica ou o cientificismo, criando meios para o surgimento de um conhecimento utilitário, voltada para a técnica reificante e redutora dos sentimentos e da moral, como se o saber científico-racional nenhuma relação tivesse com a moralidade. Racionalismo e cientificismo vão preparar a superfície para o advento do progressismo, o terceiro cavaleiro do apocalipse da modernidade.
Conhecer a história da modernidade causa a impressão de que a simplificação artificial da existência, que se serviu do dualismo cartesiano, foi opção para afastar discussões sobre as implicações dos afetos e da moral acerca das pretensões e do próprio conceito de progresso. É dizer: a racionalização excludente e claudicante se mostrou deficitária e incapaz de tratar variáveis complexas da condição humana, permitindo a desconsideração de fenômenos constituintes da humanidade, desumanizando a sua própria práxis. Mais do que uma rejeição das emoções, contudo, deu-se a sua seletividade e a escolha de afetos moldáveis aos interesses nascentes. Em sua essência, o racionalismo prestigiou a técnica, para fins instrumentais, e desvalorizou a ética e suas provocações ao espírito.
Apesar do inegável caráter emancipador da fórmula cogito, ergo sum, a tese cartesiana de simplificação da existência pelo silenciamento do corpo e, assim, dos afetos que por ele chegam à mente pelo sistema somestésico4, atendia às expectativas de sua época, valorizadora dos essencialismos, dos ideais de verdade, de perfectibilidade, bem como simplificadora. Do racionalismo originado no dualismo cartesiano a humanidade retirou o seu melhor e o seu pior. O exclusivismo epistemológico daí derivado ignorou, por método e conveniência, a pluralidade moral e ética e a complexidade filosófica, epistemológica e científica.
O frustrado duelo epistemológico e metodológico entre o dualismo cartesiano e o monismo spinozano permitiu, dadas as exigências naturais daquela quadra histórica, a consolidação de um pensamento influenciado por teologismos típicos do monoteísmo, que se inclina à simplificação da análise dos fenômenos segundo um método excludente de outras hipóteses. Se há Deus, há o seu oposto, o Diabo. Se há o bem, há o mal. Assim, o espectro da fenomenologia seria reduzido por um pensamento adestrado para reconhecer na existência apenas uma face, a oposta, tornando-se sensível unicamente ao explícito, ignorando o entremeio, a pluralidade e a complexidade dos saberes e dos afetos e sua implicitude.
Há vínculos entre a ideologia racionalista (Feyerabend, 2011, p. 95), que se enraíza no ideal metodológico cartesiano, e os essencialismos metodológicos do platonismo. Ambos são excludentes de formas complexas de compreensão dos fenômenos e promotores de um pensamento dicotômico de vastas consequências. Veja-se: ao perceber nas falas de Teeteto pendores relativistas5, pois este considerava variáveis cognitivas além daquelas puramente idealistas e racionalistas, Sócrates submete seu pensamento ao essencialismo racional que marca a filosofia platônica, enfatizando a crença na verdadeira essência das coisas e, portanto, numa verdade somente alcançável pelas formas idealmente concebidas pela razão, sem a interferência das afetações corporais (Platão, 2007, p. 56). Popper (1987, p. 45) considera o essencialismo metodológico de Platão uma teoria segundo a qual é “tarefa do conhecimento puro, ou ‘ciência’, descobrir e descrever a verdadeira natureza das coisas, isto é, sua realidade ou essência ocultas”, podendo-se afirmar que tal pensamento renega esforços includentes de outras formas de apreensão dos fenômenos, sendo mesmo intolerante com percepções pluridimensionais6, donde derivam pluralismos, multiculturalismos e diferentes tipos de relativismos, sejam culturais e morais, sejam metodológicos e epistemológicos. Numa síntese: o essencialismo metodológico, donde deriva o racionalismo cartesiano dualista e seus consectários, é excludente de outras formas de análise dos fenômenos que envolvem o homem no mundo. Certamente, aqui se encontra a gênese da intolerância nas sociedades modernas.
Ancorado na crença perfectibilista e impulsionado pela recusa do enfrentamento das complexidades, a ideologia racionalista do humanismo frequentemente soçobra diante da realidade por falhas talvez atribuíveis à ancestral resistência em reconhecer suas limitações, dificultando a busca por uma percepção realista dos eventos. A recusa à complexidade e à pluridimensionalidade do mundo da vida, porém, não impediu o homem de alcançar imenso êxito em muitos desafios que natureza lhe impôs. Porém, a aplicação do analitismo e do reducionismo, base do método científico, inclusive à psicologia, à sociologia, à política, à economia e ao direito, redundou também em retumbantes fracassos (Halévy, 2010, p. 12).
É fato que à aplicação do método cartesiano, aliado ao empírico, cuja centralidade para o racionalismo não pode ser olvidada, se deve a extraordinária ascensão das ciências7, admiradas de forma quase inconsequente por causa de seu sucesso prático, ainda que tenham se convertido em uma força predatória, pondo em risco a própria sobrevivência da espécie, não exatamente por um processo de destruição da natureza.
A história ensina que a razão – especialmente a científica, vista a partir da tensão entre racionalismo e empirismo – se tornou o grande mito unificador do saber, da ética e da política (Morin, 2013, p. 159), apesar de sua ambiguidade na interação com as vontades e necessidades da humanidade e da imposição metodológica de sua ideologia: no seu interior, desenvolveram-se processos racionalizadores capazes de eliminar aquilo que parecia inexplicável. O reducionismo sempre foi parte dos racionalismos: só assim se podem domar as paixões, disciplinar os desejos e promover a ordem, talvez o maior de todos os desejos.
Decerto está nesse pendor racional-reducionista a origem da desumanização da razão e sua renúncia à tentativa de esclarecimento de certas complexidades, bem como sua opção metodológica pelo desprezo àquilo que se mostra irredutível às suas próprias técnicas, ou seja: valoriza-se apenas o explícito demonstrado pela racionalização científica. Isolado em seu próprio berço epistemológico e autorizado por seus próprios feitos a desdenhar de outros saberes, não científicos e não racionais segundo seus critérios, o racionalismo científico converteu-se em instrumento de uma racionalização perversa, podendo levar “a promover a homogeneização, trituradora das diferenças, ou ao desprezo do diferente como inferior.” (Morin, 2013, p. 161).
A captura do racionalismo pela ideologia do progresso, num contexto de capitalismo industrial, levou, de fato, à desumanização da razão, tornada ferramenta da barbárie, tenha ela natureza bélica ou corporativa, promovida pelo Estado ou pelo complexo industrial-militar. Nesse sentido, é ilustrativa da razão instrumental belicista a observação da personagem Maximilien Aue, protagonista de As Benevolentes, romance de Jonathan Littel, acerca da racionalização da barbárie nos campos de concentração e extermínio administrados pelo Reich. Em certa passagem, Auer afirma que a utilidade dos presos judeus – condenados por Rassenschande, mácula racial – se submetia ao programa Vernichtung durch Arbeit, destruição pelo trabalho, que impunha a obrigação, em nome da racionalidade econômica, de usufruir de “sua capacidade de trabalho para o Reich antes que morram”. Por isso, dadas as restrições logísticas decorrentes do conflito na fronteira leste da Alemanha, não se poderia “desperdiçar comida pensando neles.” O refinamento do cálculo se aplicava à alimentação como forma de controle da morte: “Rizzi perguntou a Weinrowski se era tecnicamente possível calcular rações apropriadas para fazer um homem morrer num tempo determinado; uma ração, por exemplo, que desse três meses a um judeu não-qualificado, outra que desse nove a um operário especializado associal.” (Littel, 2012, n.p.).
Em sua obra “Ciência com consciência”, Morin (2013, p. 162) reflete sobre esse processo de industrialização e seu utilitarismo perverso e reificante do humano:
Pode-se dizer que a industrialização, a urbanização, a burocratização, a tecnologização se efetuaram segundo as regras e os princípios da racionalização, ou seja, a manipulação social, a manipulação dos indivíduos tratados como coisas em proveito dos princípios de ordem, de economia, de eficácia.
Reconhecendo que “a brutalidade desenfreada da racionalização pôde por vezes ser moderada” pelo humanismo, pelo jogo plural das forças sociais e políticas, Morin (2013, p. 163) destaca que ela se expandiu pelo planeta, tornando-se artífice de sua própria destruição. Convém atentar outra vez para as reflexões do filósofo francês (Morin, 2013, p. 164):
A razão enlouquece quando se torna ao mesmo tempo puro instrumento do poder, dos poderes e da ordem e fim do poder e dos poderes; ou seja, quando a racionalização se torna não só o instrumento dos processos bárbaros da dominação, mas também quando se destina ao mesmo tempo à instauração de uma ordem racionalizadora, na qual tudo o que a perturbaria se torna demente ou criminoso.
No relato da personagem de Littel, o oficial nazi Max Aue, assim como nas reflexões de Morin, veem-se os reflexos de um modus pensandi valorizador de interesses ancorados na subjetividade do pensante, os quais, por sua vez, são despertados pela explicitude daquilo que lhes afeta e que floresce em seu pensamento segundo uma seletividade racionalizante. Fenômenos que não constituem o universo conativo do indivíduo e de se seus pares – ainda que diante de seus olhos – não se explicitam como gatilhos de indignação. A barbárie se torna implícita; os gritos de suas vítimas, inaudíveis.
Racionalização e processos bárbaros de dominação são conceitos presentes na sétima tese Sobre o conceito de história, de Benjamin (2012, p. 12), na qual afirma “nunca ter havido um monumento de cultura que também não fosse um monumento da barbárie”. Benjamin também enfatiza que “assim como a cultura não é isenta de barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão de cultura”, com o que – na interpretação acertada de Chauí (2004, p. 150) – o filósofo consegue “situar a barbárie no interior da cultura ou da civilização, recusando a dicotomia tradicional, que localiza a barbárie no outro e o situa no exterior.” Nessa interessante reflexão, Chauí afirma que, “pelo contrário, a tese de Benjamin coloca a barbárie não só como o avesso necessário da civilização, mas como o pressuposto dela, como aquilo que a civilização engendra ao produzir-se a si mesma como cultura.”
O racionalismo, visto como expressão de uma cultura que se metamorfoseia ao longo dos tempos, foi, muitas vezes, o patrono da barbárie. Ainda que se reconheçam os méritos de Descartes com seu grito emancipatório do cogito, não se podem ignorar as perdas decorrentes do desprezo destinado a Spinoza, pois, como a história insistentemente grita, “o exercício da razão não é desencarnado; necessita do corpo e de suas paixões” (Atlan, 2004, p. 30).
Essas perdas não foram casuais, mas parte de um projeto incompatível com suscetibilidades afetivas estimulantes da indignação em face da barbárie e dependente, portanto, da ausência de sensibilidades vicejantes naquela porção do homem desprestigiada pelo racionalismo dualista. Esse projeto foi, no contexto de Descartes e Spinoza, o protocapitalismo, criação humana tão ambígua quanto o racionalismo cartesiano, e que com este entrou em simbiose, influenciando o modo de sentir e conformando a própria moralidade.
Simmel (1971, p. 325-328), associando capitalismo e urbanismo, conecta o racionalismo ao instrumentalismo capitalista, reconhecendo em ambos a gênese da separação da razão e da emoção, donde surge um padrão emocional útil ao mercado, com a exclusão dos traços e dos impulsos emocionais próprios do humano. Assim, a individualidade, na ambiência capitalista e metropolitana, é construída nas interações sociais do coletivo, “sobre a intensificação da vida emocional devida à rapidez e alternância contínua entre estímulos externos e internos” (Simmel, 1971, p. 325). Como, segundo Smith (2015, p. 141), “é evidente que nossa própria beleza e deformidade nos preocupam somente por causa dos seus efeitos sobre os demais”, as emoções dos indivíduos vão sendo moldadas para que ele se sinta apto ao reconhecimento por seus semelhantes. Há, portanto, um controle social das emoções, como se dá em outros meios e instituições, como a religião, por exemplo.
A trajetória da razão trouxe o homem da ordenação do mundo segundo as cosmogonias e mitologias, passando pelo essencialismo platônico e ontologias religiosas, ao racionalismo dualista capturado por sistemas econômicos e regimes políticos, que nele viram seu instrumento de conformação do mundo das ideias. Desse consortismo, nos últimos séculos, assistiu-se à consolidação de um pensamento que, adotado maciçamente, tem reduzido a capacidade humana de desenvolver visão profunda em seu entorno e, assim, prosseguir em sua evolução.
O erro fundamental de Descartes foi também percebido por Scheler (2008, p. 89), crítico do filósofo francês por “descurar totalmente, no homem e no animal, o sistema de pulsões que constitui a unidade e opera a mediação entre cada genuíno movimento vital e os conteúdos de consciência.” Scheler (2008, p. 85) reconhece o feito intelectual de Descartes, chegando a afirmar que, “na era moderna, a teoria clássica do homem encontrou a sua forma mais influente na doutrina de Descartes”, mas não se omite: “Descartes introduziu na consciência ocidental uma chusma de erros muito graves sobre a natureza humana.”
Scheler (2008, p. 87) criticava a visão cartesiana do homem como “uma espécie de máquina, e tal no sentido rígido da antiga doutrina mecanicista da natureza, própria de época de Galileu-Newton, hoje já ultrapassada e condenada pela física teórica e até pela química”, para destacar “o abismo que Descartes, com o seu dualismo de extensão e consciência como substâncias, cavou entre o corpo e a alma” (Scheler, 2008, p. 89). De fato, a influência mecanicista sobre Descartes é insinuante. Matos (2004, p. 285), dentre outros, nota que o método cartesiano estabelece a “diferença entre o corpo e a alma, e o funcionamento do corpo-máquina é do autômato movido como por engrenagens de um relógio”.
Ainda que se considere o “enobrecimento do cogito emancipador cartesiano” (Matos, 2004, p. 285), as configurações cognitivas e morais sustentadas pelo racionalismo, e sua instrumentalização pelos responsáveis pela organização da sociedade, do estado e da economia, não possibilitaram uma superação adequada do abismo biológico deixado pela herança genética do homem, limitando as reflexões acerca da sua própria condição.
Duas fundamentais áreas da existência humana, decisivas para a instituição de uma ordem de convívio, têm sido profundamente afetadas por essa reducionista concepção de vida e sua captura por ideologias descompromissadas com a vida satisfatória: a educação e a afetividade ou, sintetizando-as, a educação para os afetos. O rebento orgulhoso do racionalismo, o positivismo, também não se debruçou sobre suas aporias morais e éticas.
Não se diga ser privilégio da era do racionalismo as injustiças marcantes das sociedades humanas. Há acerto no pensamento de Harari (2015, p. 141) quando afirma que “não há justiça na história”, mas é fato que as estratégias cognitivas derivadas do modus pensandi típicas das sociedades modernas têm constituído formas débeis de compreensão dos fenômenos, de suas causas e de suas consequências, assombreando aspectos dos fenômenos que se revelam, mas são, por incapacidade conativo-cognitiva, convenientemente escamoteados.
A razão dualista posta a serviço das exigências de objetividade e materialidade nas relações interpessoais nas sociedades de mercado gerou, já se disse, um reducionismo cognitivo, conativo e, consequentemente, axiológico e permissivo, capaz de – renegando a complexidade das funções conativas em articulação com as funções cognitivas e executivas – retirar qualquer valor objetivo das emoções e sentimentos, desprezando a dimensão afetiva das interações socioambientais.
Dentre os efeitos negativos do reducionismo conativo-cognitivo, há um que se manifesta pela reação dos indivíduos diante dos acontecimentos que só podem ser apreendidos, em sua maior extensão, pela ausente mediação dialógica entre razão e sentimentos, ou seja, pela ampliação das funções cognitivas em articulação com as funções conativas. Esse efeito será chamado, aqui, de ética do explícito, cujo conceito se passa a expor, seguido de sua demonstração e, mais à frente, sugestão de enfrentamento.
Na esteira mais tradicional, Abbagnano (2000, p. 380) associa o vocábulo ética a uma ciência da conduta, informando existir duas concepções fundamentais: uma que “considera ética como ciência do fim para o qual a conduta dos homens deve ser orientada e dos meios para atingir tal fim, deduzindo tanto os fins quanto os meios da natureza do homem”, e outra, que “a considera como a ciência do móvel da conduta humana e procura determinar tal móvel com vistas a dirigir ou disciplinar essa conduta.” Nesse entremeio conceitual, a modernidade consolidou duas formas de disciplinar a conduta do homem: uma por meio da moral, fonte daquelas normas caracterizadas por sanção implícita, que nasce no seu âmago e define sua subjetividade; outra, pelo direito, fixando deveres e direitos na consideração da coexistência de subjetividades, com sanções objetivas. Daí se poder falar em ética moral e ética jurídica.
Como se nota, o conceito de ética é controverso. Na linguagem comum, aparece identificada com moral, e, em uma acepção mais técnica, a definição mais corrente é que consiste num conjunto de conhecimentos, um plano de metalinguagem que se dirige à “moral”, a qual está, assim, no plano correspondente de uma linguagem-objeto.8 Em outras palavras, a ética seria um discurso sobre uma moral. Nos termos deste texto, ética deve ser entendida como um gênero do qual a moral forma uma das espécies, ao lado das outras tradicionais ordens normativas, tais como política, direito, religião, etiqueta, dentre outras.
O importante é ressaltar que todas essas palavras aparecem em três planos diferentes e superpostos, ainda que confundidos a todo momento. Tomando o direito como exemplo, há o direito no sentido da retórica material, ou seja, as maneiras efetivas nas quais se manifesta em determinados tempo e espaço, como se verifica que “é direito” decepar as mãos de gatunos nesta ou naquela comunidades; depois, há as concepções sobre o direito material no nível da retórica estratégica, as diferentes percepções dos seres humanos sobre como o direito deve ser, como, por exemplo, defender que a pena de morte deve ou não ser legalizada; finalmente, o direito em nível analítico, que consiste na observação e no estudo de como essas visões estratégicas se digladiam e interferem na constituição do direito materialmente realizado.
Por isso, pode-se falar em boa e má ética, de uma postura estratégica, mas não se pode deixar de reconhecer que qualquer postura de valor é ética para alguém ou algum grupo social, pois, em caso contrário não existiria. As penas cruéis para gatunos só existem porque constituem bom direito para o grupo social eticamente dominante naquela sociedade.
Com os crescentes antagonismos éticos da sociedade complexa e a escassez de consensos, surge a estratégia da procedimentalização: cria-se, coercitivamente, uma arena de relatos comuns, regras procedimentais, elas mesmas sem conteúdo ético, segundo as quais os conteúdos éticos podem se enfrentar. Daí as regras do sistema que disciplinam a validade e a eficácia jurídica de outras regras e decisões que compõem o sistema. Esses são os mais importantes componentes do ordenamento jurídico positivo, desbancando o antigo assim chamado “direito material”.
O interessante é que, embora essas regras de validade não apresentem conteúdo valorativo, pois são formais, elas vão possibilitar que se façam as opções éticas, que todo direito tem, pois todo direito material consagra por definição um conteúdo ético, por isso o direito é uma espécie do gênero ética. Nenhum direito surge ex nihilo, sempre representará uma tentativa de impor a todos um conteúdo ético que não é o de todos. Ou, nos termos da axiologia mais tradicional, a toda norma corresponde um valor, pois “as normas jurídicas, longe de serem mero reflexo daquilo que, no fato, já se contém, envolvem uma tomada de posição opcional e constitutiva por parte de quem a emana ou positiva [...].”9
A ética jurídica estratégica termina por influenciar todo o direito, desde sua concepção até sua produção, orientada por ontologias, epistemologias e axiologias, as quais são determinadas pelo conteúdo moral. Assim, v.g., o direito de uma sociedade reflete, necessariamente, suas construções morais. Treinado seu pensamento para o cogito, para relacionar-se com e pensar sobre a técnica, instrumentalizada racionalmente para produzir tecnologias aplicáveis a bens, serviços e instituições, o homem contemporâneo foi posto diante das duas éticas, com a quais se relaciona mal justamente por lhe faltar repertório – inclusive afetivo e educacional.
O conceito aqui trabalhado – ética do explícito – se vincula à concepção de ética como móvel da conduta humana, àquela percepção íntima do fenômeno que predispõe o homem à ação ou à inação; relaciona-se àquela provocação do espírito que inclina o ser que pensa e sente a tomar posição diante do fenômeno. Nessa perspectiva, ambas as éticas – moral e jurídica – têm sido influenciadas pela tecnificação dos saberes, inclusive a partir da onda racionalista do século XIX, estruturante do modo de organização e de produção que marcou a cultura ocidental.
Ao hipostasiar a razão, o dualismo corpo e alma concedeu à consciência o primado no processo de conhecimento, legitimou a neutralização do real (Matos, 2006, p. 108) e impôs um isolamento emotivo utilitário. Esse afastamento emotivo promove a dessensibilização da consciência, que “permitirá a separação radical entre a consciência intelectual e os conteúdos sensíveis da experiência, dada a angústia do contato vital com a realidade sensorial e sensível, fonte de incerteza” (Matos, 2006 p. 109). Sendo um fenômeno totalizante da existência, esses efeitos do racionalismo moldam a moralidade, provocando a erupção das éticas moral e jurídica cujos sujeitos se mostram incapazes – ou inapetentes – de reagir aos fenômenos que não tenham a apresentação sensível aos postulados racionalistas aos quais estão acostumados; incapazes de serem alcançados pelas percepções conativas, vinculadas que são aos sentimentos e às emoções, e dependentes de uma sensibilidade que transcende o óbvio da racionalidade. Esse modus pensandi produz indivíduos moralmente insensibilizados – ou seja, capacitados e dispostos a não levar em conta o bem-estar do outro (Bauman, 2014, p. 179) –, acometidos de uma espécie de cauterização espiritual e moral.
Na concepção aqui delineada, portanto, a ética do explícito é a resultante do embrutecimento dos sentidos e da insensibilização moral. É a ética que – sendo formatada segundo os cânones da razão ancorada em funções unicamente cognitivo-racionais – só movimenta o indivíduo se os fenômenos se manifestarem segundo as regras objetivas e explícitas da razão, sem a sutileza dos afetos, por meio de expressões brutas, capazes de provocar senão uma ruptura espantosa no estado de anestesia, estado esse criado após longos períodos de submissão do sujeito ao racionalismo embrutecedor e promotor de uma atrofia da capacidade de sentir, uma perda da sensibilidade moral, que se transforma em negligência moral, uma vez que apenas a brutalidade do fenômeno é capaz de acionar as funções conativas subdesenvolvidas, as quais têm o poder de disparar as funções cognitivas e executivas rumo ao objeto da percepção.
Bauman (2014, p. 20) usa a expressão “insensibilidade moral” para denotar um tipo de comportamento empedernido, desumano e implacável, ou apenas uma postura imperturbável e indiferente, assumida e manifestada em relação aos problemas e atribulações de outras pessoas. Bauman (2014, p. 20) compara: “O tipo de postura exemplificado no gesto de Pôncio Pilatos ao ‘lavar as mãos’”. Afirma, ainda, que, quando usa o conceito “insensibilidade”, o faz como metáfora, sabendo que sua localização básica é na esfera dos fenômenos anatômicos e fisiológicos dos quais é extraída, e que “seu significado fundamental é a disfunção de alguns órgãos dos sentidos, seja pela ótica, auditiva, olfativa ou tátil, resultando na incapacidade de perceber estímulos que, em condições normais, evocariam imagens, sons e outras impressões”.
O atrofiamento das funções conativas provoca uma negligência moral que se incorpora ao modus vivendi do sujeito dessensibilizado. Esse fenômeno pode ser correlacionado com uma psicopatologia denominada agnosia pela neurologia, um transtorno do processamento sensorial definido como amnésia perceptiva que consiste na incapacidade de reconhecer os objetos ou símbolos, sem perturbação das sensações em geral, ou ainda como a incapacidade de reconhecer informações sensoriais. É também chamada de agnoia. Daí se poder falar em agnosia moral e agnosia hermenêutica dos fenômenos10, uma patologia moral que impede o sujeito de conectar-se com o seu semelhante, ou com o meio ambiente, por meio do reconhecimento de sua condição adversa, a menos que os fenômenos se manifestem por violências explícitas ou porque atingem aqueles com que ele mantenha relação de identidade.
Nessas condições conativas, cognitivas e executivas, o sutil e o implícito não têm lugar. O explícito se torna a única função do compreensível e do sensível. A moral se mostra cauterizada, e as reações que ela tem o poder de despertar se condicionam a uma demonstração grotesca, já que inexistentes as condições sensório-cognitivas para provocar qualquer reação ou qualquer sentimento de indignação diante de circunstâncias sutis e que apenas se insinuam como ofensivas à ética; que não gritam ofensas, mas apenas a insinuam, ao menos a princípio.
A inconsistência moral visível nos comportamentos orientados pela ética do explícito tem efeitos nas múltiplas dimensões da vida em sociedade, em especial nos campos social, político e jurídico. Como exemplo, pode-se citar o conceito de inconsistência temporal, desenvolvido por Elster (2009, p. 40) para demonstrar as dificuldades de pessoas, em grupos ou individualmente, em se livrar de comportamentos e comportamentos imediatistas para valorizar seus interesses mediatos, futuros. É conduta corrente, nas dimensões individual e coletiva, a sobrevalorização de interesses imediatos e uma tendência a escamotear objetivos futuros, mesmo que esse se mostre, a priori, como mais necessário e, no longo prazo, vantajoso. Em termos de política constitucional e políticas públicas, diz Elster, essa inclinação se torna um problema. Tome-se como exemplo o modo irresponsável como os atores políticos, em geral, tratam a questão ambiental e as externalidades negativas de longo prazo11.
Nesse exemplo, o substrato psíquico da inconsistência temporal reside nos fundamentos morais da ética do explícito: como os danos ao meio ambiente, resultantes de determinada opção não são imediatos e não afetam presentemente a rotina dos agentes decisores das políticas públicas ambientais, em geral sua formação intelectual e moral não lhes sensibiliza para o porvir. Apenas quando o dano se mostra em toda sua potência, há um despertar ético que desencadeia a razão operativa para reduzir ou debelar as consequências. Recentes tragédias ambientais são exemplos privilegiados de descaso de autoridades e gestores, constituindo casos típicos de inconsistência temporal e moral decorrentes da ética do explícito.12
Em artigo denominado “Administração inconstitucional, ética do explícito e poder econômico: o infante como o outro sujeito constitucional vulnerável”, Pereira e Miguel (2009, p. 4107) trabalharam a ética do explícito para demonstrar como as políticas públicas brasileiras vitimizam as crianças e os adolescentes, que vulneráveis continuam diante de políticas que só consideram os riscos em sua fase de dano expresso, sem qualquer consideração de riscos e danos implícitos verificáveis no presentes dessas vítimas apenas por um escrutínio sensível às sutilezas da existência infantil:
Administração se movimenta orientada, com anuência social, por uma obtusidade que talvez tenha origens na dessensibilização sofrida pelas sociedades com o advento da razão científico-instrumental, cujos pressupostos cognitivos lastrearam-se no tangível, no material, no palpável. Por essa via, também lastrearam sua perceptividade no imediato, sem capacidade de perceber a fenomenologia projetada no tempo. Esse estado de anestesia em que foi lançada a sociedade tornou-a apta a perceber e chocar-se com os atos de abuso e exploração que saltam aos olhos, como os casos de pedofilia, abusos físicos e demonstrações de desajustes sociais, que despertam a indignação da sociedade. Tal não se dá, contudo, com as práticas socioeconômicas que, sabe-se, incluem-se nas causas desses nefastos efeitos que tantas reações despertam. Aos efeitos dessa insensibilidade social, com reflexos na Administração, pública e privada, que impede o reconhecimento indignado dos males que a propaganda infanto-juvenil, dar-se-á o nome de ética do explícito (Pereira; Miguel, 2009, p. 4107).
Noutra passagem, os autores assim se expressam para enfatizar a referida dessensibilização (Pereira; Miguel, 2009, p. 4117):
A indiferente receptividade que a moral moderna enseja a essa fenomenologia discreta dos potencialmente nefastos marcos (des)regulatórios das práticas econômico-corporativas, por exemplo, é sintomático do solipsismo filosófico que caracteriza a filosofia moderna e das ideologias justificadoras de uma subjetividade incapaz de estender o olhar além do imediato cronológico e do explícito moral.
Acentuando a crítica ao nonsense comum teórico dos juristas, o texto dirige-se especificamente à produção doutrinária constitucional, também ela marcada pelo racional-positivismo excludente de outras formas de compreensão dos fenômenos e, por isso, promotora de institucionalização jurídica da ética do explícito (Pereira; Miguel, 2009, p. 4119):
Tão arraigado em nossa cultura esse escamoteamento dos efeitos pro futuro dos abusos contra sujeitos constitucionais vulneráveis que, mesmo a doutrina abalizada fixa o foco interpretativo a partir de análises orientadas pela ética do explícito. Veja-se, v.g., o pensamento de Canotilho, que ressalta três tipos de violência (física, política e social) a serem combatidas pela via constitucional (2003, p. 459). Enquadrado por aquele modelo mental racional-instrumentalizante, o notável constitucionalista lusitano refere as ocorrências acima quase como epifenômenos, desvinculados de outros tipo de violência, que bem podem receber o qualificativo de simbólica, nos termos mesmos em que tratada por Pierre Bourdieu[25], praticada por um poder (igualmente simbólico) de “construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo” (2004, p. 9).13
De fato, a racionalismo incorporado pelo positivismo jurídico fez surgir duas características redutoras das potencialidades conativo-cognitivas dos ordenamentos jurídicos e suas manifestações: (i) a crença na verdade e na completude das formas jurídicas e (ii) o distanciamento emotivo supra citado, que preserva o indivíduo e o faz se manter num nível racional de análise do fenômeno, momento em que se entrega à inconsistência moral e temporal, sucumbindo às deficiências da ética do explícito.
A ética do explícito, assim compreendida, somente instiga reações diante de circunstâncias que parecem resgatar nossa adormecida capacidade de indignação e, com torpor moral, chamam-nos ao combate das ignomínias. Se se tem como premissa que essa ética redutora das potencialidades do humano foi modelada pela ideologia racionalista fundada por Descartes, é preciso pensar formas e estratégias de combater suas aporias e transformar a relação do ser humano com seu próximo e com seu meio.
Neurocientistas confirmam o que a filosofia e a antropologia mais humildes – céticas ante ontologias, essencialismos e perfeccionismos – sublinham: o ser humano nasce “extraordinariamente inacabado”, o que permite reconhecer que “somos esculpidos pelo mundo em que por acaso vivemos”. A opção antropológica filosófica pelo reconhecimento da incompletude do homem opõe-se à arrogância intelectual que concebe o “homem na natureza como um império num império” (Spinoza, 2007, p. 160), a qual, inebriada por crenças perfectibilistas, depende do ilusionismo sincero de Descartes e de seus descendentes epistemológicos para seduzir o homem posto na tensão existencial por meio da radicalização ontológica fiadora de uma metafísica da verdade e de uma filosofia da absolutidade.
Metafísicas como a da vontade e a da completude, ligadas ao cogito cartesiano, operam refratárias às estratégias de desenvolvimento pleno do homem e às posturas includentes de outras formas de relação com o mundo, como a tese antropológica de Marquard (2012, p. 19), por ele denominada de filosofia cética da finitude humana, a qual, orientada pelo ceticismo e pelo reconhecimento da incompletude e da finitude, reconhece a insuficiência da razão para posicionar o homem na existência. Marquard (2006, p. 99) faz uma “defesa do imperfeito no homem”, afirmando que “o absoluto – o simplesmente perfeito, o extraordinário – não é humanamente possível, porque os homens são finitos”.
A oposição ao racionalismo cartesiano, nascida do reconhecimento de sua insuficiência para educar o homem para a complexidade do estar no mundo, também se expressou no pensamento de Plessner (2007, p. 27), que afirmava ter “ajustado contas com o cartesianismo” ao reforçar suas críticas ao dualismo e a sua trajetória platônica e cristã, até moldar o cartesianismo e este, a modernidade. Plessner reconhece no homem o que denomina posicionalidade, compreendida como atributo dos organismos vivos, cuja relação com o seu entorno é determinante de seu desenvolvimento (Plessner, 2007, p. 57).
A consideração dessas concepções tão díspares de posicionamento do homem perante a existência torna compreensível o reducionismo conativo, cognitivo e executivo promovido pela opção racionalista-cartesiana e enseja reflexão sobre os limites impostos ao ser humano que, obstado em sua naturalmente expansível compreensão dos fenômenos, vê-se metodologicamente preso a leituras e a interpretações simplistas de seu meio, constituindo condições para um modo de viver orientado pela agnosia moral e cognitiva da ética do explícito.
Eagleman (2017, p. 72), sobre as características do cérebro humano, diz:
Cada criatura capta sua própria faixa de realidade. (...) Ninguém tem uma experiência da realidade objetiva que realmente existe; cada criatura percebe apenas o que foi evoluída para perceber. Porém, pode-se presumir que cada criatura supõe que sua faixa da realidade é todo o mundo objetivo. Por que pararíamos para imaginar que existe algo além do que podemos perceber?
Eagleman (2017, p. 74) afirma ser “evidente que o modo como percebemos o mundo não é universal”. Decerto não o é também por causa dos diferentes estímulos a que estamos expostos desde o ingresso no mundo, com o qual interagimos por meio das linguagens. Essas formas de interação vão ser mais ou menos includentes, mais ou menos eficazes a depender do modo como nos posicionamos diante dos fenômenos que constituem nossa existência. A opção dualista parece historicamente estimular um essencialismo arrogante – fazendo do homem um império no império, na expressão de Spinoza – que exacerba o individualismo e a dessensibilização do sujeito perante os fenômenos. A opção spinozana, ao contrário, abre-se a experimentos inclusivos para fortalecer aquelas funções referidas por Vitor da Fonseca.
Adeodato (2012, p. 339), na trilha de A. Gehlen e H. Blumenberg, por sua vez alinhados – ao menos na crítica ao racionalismo arrogante e reducionista e na inclinação ao reconhecimento da incompletude do homem – a Simmel, Scheler, Plessner e Marquard, detecta divisão na teoria do conhecimento e a denomina em pares de oposição: essencialismo versus retórica e verdade versus conjetura, para clivar a dicotomia antropologias ontológicas e antropologias retóricas, reconhecendo, em sua filosofia retórica, que:
Uma das mudanças de paradigma na perspectiva da modernidade e da pósmodernidade seria exatamente deixar de ver o ser humano como espécie triunfante que domina a natureza, constrói seu próprio mundo e representa a ‘coroa da criação’, com queriam a filosofia da história e a biologia evolucionária, para entendê-lo como ser retardado, metafórico, intermediado em sua relação com o meio ambiente, dominado pela necessidade de compensação em virtude de seu distanciamento da natureza circundante.
Sobre a dicotomia entre essencialistas e retóricos, ou, noutra visada, entre dualistas-reducionistas e monistas-expansivistas das formas de interação, Adeodato (2012, p. 340) afirma que, para os essencialistas, “a linguagem é mero instrumento, um meio para a descoberta da verdade”, a ser alcançada “com método, lógica, intuição, emoção e todo o seu aparato cognoscitivo competentemente aplicado”. Para os retóricos, o ponto comum “é a convicção de que isso é uma ilusão, e a linguagem é o máximo acordo possível, constituindo o ambiente comum a todos, com ‘objetividade’ reduzida e condicionada aos diferentes contextos.”
A imersão do ser humano numa ambiência social e científica submetida ao paradigma racionalista, já se disse, tem sido fonte de restrições da compreensão dos sentidos do mundo. Uma cultura com potencial para estimular a insensibilidade moral, promotora da agnosia hermenêutica, prejudica a posicionalidade do homem em face de outros seres e objetos, torna-se presa fácil de ideologias exclusivistas e parece desconsiderar a própria natureza do homem. Eagleman (2017, p. 157) afirma que,
além dos nutrientes dos alimentos que você consome, além do oxigênio que respira, além da água que bebe, há mais uma coisa que é igualmente importante. A função normal do cérebro depende da teia social à sua volta. Nossos neurônios precisam dos neurônios dos outros para prosperar e sobreviver.
O novo campo de estudo denominado neurociência social também tem reconhecido que somos criaturas profundamente sociais, que “nossas sociedades são formadas de camadas de interações complexas” e que “toda essa cola social é gerada por circuitos específicos no cérebro: vastas redes sociais que monitoram os outros, se comunicam com eles, sentem sua dor, avaliam suas intenções e interpretam suas emoções” (Eagleman, 2017, p. 159).
Reconhecendo a complexidade do homem a partir da análise de sua configuração cerebral, Eagleman (2017, p. 163) afirma: “À medida que crescemos, nossos desafios sociais tornam-se mais sutis e complexos. Além das palavras e dos atos, precisamos interpretar inflexão, expressões faciais, linguagem corporal.”
Essa complexa rede de interpretações faz surgir a referida cola social, com comportamentos abrigados sob o conceito de eussocialidade14, o impulso para criar vínculos (Eagleman, 2017, p. 176) que constitui um dos fatores mais importantes na riqueza e complexidade do mundo moderno, também nos processos de sobrevivência. Mas, igualmente, por essas mesmas vias, as interações sociais podem entrar em colapso, fazendo surgir comportamentos indiferentes ou hostis, como aqueles marcados pela ética do explícito e outros, caracterizados por absoluta falta de empatia e pelos impulsos de aniquilação do outro.
Segundo experimentos neurocientíficos, as pessoas tendem a sentir empatia menor por quem não pertence a seu grupo (Eagleman, 2017, p. 182), especialmente porque não enxergam afinidades além das óbvias, relacionadas à família, à religião, à etnia, à classe social ou mesmo a uma agremiação esportiva ou político-partidária. Igualmente, mostram que o cérebro é capaz de desumanizar pessoas, vendo-as mais como objetos do que como gente. Citando sua colega Lasana Harris, Eagleman (2017, p. 183) relata: “Se você não diagnostica as pessoas como seres humanos, talvez as regras morais que são reservadas para a pessoa humana não se apliquem”.
Ora, assim como a desumanização – ou a objetificação do humano – é componente fundamental dos processos de aniquilação do outro, a “desafetivação dos acontecimentos” (Matos, 2002, p. 305) estimula o aumento da distância emotiva e faz surgir comportamentos calcados na ética do explícito. Na raiz desses males, há deficiências de apreensão dos fenômenos que constituem o humano. Deficiências que seguramente podem ser debitadas na escolha do método de interação homem-mundo realizada sob inspiração da racionalização iluminista de perfil cartesiano, o qual foi capturado como modus operandi da forma de organização socioeconômica baseada no modelo de mercado.
A ênfase no modo de existir orientado por esse paradigma resulta, como visto, na dessensibilização do homem, na desafetivação dos acontecimentos, na distância emotiva e, logo, nas inconsistências morais e temporais que se processam por meio da ética do explícito e dos impulsos de aniquilação do outro, assim como na habituação diante da dor alheia.
O combate aos processos de redução das funções conativas, cognitivas e executivas (Fonseca, 2014) deve se dar a partir de abordagens metodológicas e epistemológicas que superem as restrições ínsitas ao paradigma racionalista-instrumental que tem marcado a relação do homem com o seu entorno desde a subversão do Iluminismo operada pelo giro racionalista de inspiração cartesiana e aproveitada, com método, pelos potentes da política e da economia, pois esse tipo de interação do homem com o seu meio termina por ser útil aos seus desígnios.
Esse modelo racionalista é incapaz de abarcar a complexidade das sociedades. A complexificação do mundo da vida em decorrência da evolução cognitiva, afetiva e tecnológica – especialmente após os avanços das neurociências, que têm desvendado certos circuitos neurais relacionados à tríade funcional citada – revelou-o obsoleto, e mesmo contraproducente, em alguns casos. Sua manutenção, que reduz as potencialidades da evolução do ser humano, tem sido assegurada pela capacidade de submeter quase todas as instâncias da existência às necessidades de controle e de produção de riqueza material, ainda que ao custo de incalculáveis danos emocionais, abissais índices de desigualdade e de vergonhosa degradação ambiental.
Na perspectiva da humildade epistemológica ora assumida, revelam-se duas formas de abordagem do conhecimento e de interação com o mundo que podem ser antídotos contra a ética do explícito e seus nefastos efeitos, que naturalizam a habituação até com a barbárie. São propostas metodológicas mais alinhadas à pluralidade existencial e respeitosas da complexidade própria da tensão existencial.
A primeira proposta vincula-se ao reconhecimento da razão como fenômeno evolutivo (Morin, 2013, p. 167), “que não progride de forma contínua e linear, como julgava o antigo racionalismo, mas por mutações e reorganizações profundas.” Citando Jean Piaget, Morin reconhece que a razão se liga à organização biológica, devendo “deixar de ser mecanicista para se tornar viva, biodegradável”. Morin admite a existência de uma razão absoluta, fechada, autossuficiente, que deve ser sobrepujada pela evolução da razão, superando esse fechamento e a pretensa autossuficiência para se refazer, continuamente, como razão complexa15.
Afirmando que a razão não é totalmente racionalizável, Morin (2013, p. 168) reconhece, por força da história, que a razão fechada, a do paradigma racionalista-utilitário, não podia enfrentar a complexidade constituinte da vida humana. Por isso, a necessidade de uma razão complexa, que “já não se concebe em oposição absoluta, mas em oposição relativa”. O sábio francês louva a razão que se concebe “em complementaridade, em comunicação, em trocas, os termos até ali antinômicos: inteligência e afetividade; razão e desrazão. Homo já não é apenas sapiens, mas sapiens/demens.”
Em uma passagem na qual cita Maurice Merleau-Ponty e Cornelius Castoriadis, Morin (2013, p. 169) sintetiza seu pensamento acerca da razão complexa:
Trata-se, hoje, diante da deflagração das mitologias e das racionalizações, de salvaguardar a racionalidade como atitude crítica e vontade de controle lógico, mas acrescentando-lhe a autocrítica e o reconhecimento dos limites da lógica. E, sobretudo, ‘a tarefa é ampliar nossa razão para torná-la capaz de compreender aquilo que em nós e nos outros, precede e excede a razão’ (Merleau-Ponty). Recordemos: o real excede sempre o racional. Mas a razão pode desenvolver-se e tornar-se complexa. ‘A transformação da sociedade que o nosso tempo exige revela-se inseparável da autossuperação da razão’ (Castoriadis)”.
Outra proposta de combate às aporias da tríade racionalismo-cientificismo-progressismo é o que Halévy (2010) denomina revolução noética. Para o autor (HALÉVY, 2010, p. 17), a
definição mais acadêmica da noética abrange o conjunto das ciências e das técnicas que tratam do conhecimento, da inteligência e, de modo mais geral, do espírito, podendo incluir, também, as ciências cognitivas e os modelos neurobiológicos do funcionamento da memória, da criatividade e do pensamento.
Prenhe de um otimismo científico inspirador desautorizado pela história, Halévy parte de dois conceitos assentados nos saberes científico e filosófico para fundamentar sua proposta de mudança de paradigma de racionalidade. Partindo da complexidade16 e do evolucionismo cósmico17, Halévy (2010, p. 14) afirma que “a revolução noética (do grego noos: espírito, inteligência, conhecimento) exprime essa passagem, esse salto entre a sociosfera e a noosfera.” Sociosfera, explica o autor, é constituinte da escala cósmica da complexidade, referindo-se às associações sociais, homogêneas ou heterogêneas entre elas, que interage com outros seres vivos (biosfera). Noosfera18, por sua vez, também inserida na complexidade cósmica, insere-se como dimensão pensante, em articulação com outra dimensão, denominada gnosiosfera19, composta por conhecimentos e associações ideais. A ultrapassagem da racionalidade racionalista (Halévy, 2010, p. 186) é um dos objetivos da revolução noética.
Para Halévy (2010, p. 79), a revolução noética, então, “não é nem política nem econômica, ainda que ponha o político e o econômico em seus devidos lugares, isto é, na periferia da atividade humana, que tem mais o que fazer do que editar leis e ganhar dinheiro”. Para o autor, o homem se tornará noético se aceitar o desafio, assumir sua missão e reconhecer sua vocação:
Ele escapará da sociosfera pelo alto, colocando-se a serviço da biosfera por baixo. Noologia20 e ecologia se unem para levar o homem a superar a si mesmo, a tornar-se maduro e criar conhecimento, tirando pouco da natureza. Será o fim do homem egocêntrico e das sociedades antropocêntricas. Será o fim do primado do político e do econômico sobre o humano (Halévy, 2010, p. 333).
Vista como “a economia das ideias” (Halévy, 2010, p. 7), a noética se concentra no estudo e no desenvolvimento de todas as formas de conhecimento e de criação que geram e alimentam a noosfera. E desse movimento surge o homem noético, consciente de que o racionalismo é uma ilusão, uma fantasia, uma cegueira, um impasse, que “leva ao ódio, à recusa, à rejeição do real em favor de um ideal”. A ética e a moral desse homem, também noéticas, fazem-no considerar “o racionalismo e o princípio de racionalidade como fugas (idealistas) do real, de sua complexidade, de sua impermanência e de sua criatividade” (Halévy, 2010, p. 186).
A concepção noética de mundo posiciona o ser humano, assim, como um agente de mudanças contra o estado de coisas gerado e consolidado pelo racionalismo cartesiano, mas reconhecendo que se está diante de escolhas: ou se fecha em sua esquizofrenia racionalista e crê firmemente que o mundo se assemelha a ele, ou compreende, humildemente, que suas modalidades neurobiológicas próprias não passam de ferramentas fracas e débeis, que ele deve superar pelos meios que for capaz de, noeticamente, desenvolver.
A revolução noética, que se alimenta da complexidade, conforme visto, tem como adversário existencial o racionalismo reducionista da compreensão dos fenômenos e sua consequente incapacitação para o manejo adequado de saberes e emoções, donde surge – conforme aqui defendido – a perversa ética do explícito, porta para a destruição da empatia e da desumanização das gentes.
Halévy (2010, p. 187) reflete sobre essa oposição:
O Ocidente teve essa escolha quando saiu da Idade Média. Escolhendo a racionalidade racionalista, provocou os estragos imensos que conhecemos, tanto para a natureza pilhada, saqueada e empobrecida, quanto para a saúde mental e espiritual do homem “moderno”, completamente desenraizado, desfigurado, desumanizado, desarticulado e desunificado.
A escolha referida por Halévy está, como visto, na origem do desenvolvimento de um modus perversivo de lidar com os fenômenos, reduzindo as possibilidades de apreensão dos fenômenos e de compreensão do mundo da vida em sua natural e inevitável complexidade, da qual faz parte a incompletude do ser humano.
As reflexões, nos capítulos anteriores, constituem o esforço demonstrativo de cada uma das teses neles apresentadas, que sustentam o argumento central do artigo.
Após a Introdução, o segundo capítulo tratou das distinções entre o dualismo de Descartes e a abordagem monista de Spinoza, tendo sido demonstrado que o modo de organização socioeconômica, naquela quadra da história, optou pelo racionalismo cartesiano por compreendê-lo como utilitariamente ideal para a promoção de seus desígnios, ainda que estes pudessem se mostrar excludentes de importantes formas de interação com os fenômenos.
O terceiro capítulo aprofundou a percepção daquela dicotomia, demonstrando a consolidação da razão científico-instrumental e a concepção cartesiana do mundo fenomênico, útil aos ideais de progresso pela própria desafetivação e desumanização da razão e seu esvaziamento ético, com o que se adotou determinado tipo de essencialismo metodológico exclusivista e a rejeição da complexidade, método que funcionou como portal axiológico e sociopolítico para condutas disfuncionais decorrentes da agnosia ética.
O capítulo subsequente prosseguiu na demonstração da dessensibilização humana como decorrência da opção por um racionalismo reducionista e seu consequente lógico, o alheamento ético, o que permitiu a formulação central do trabalho, a ética do explícito. Nesse capítulo, assentou-se o entendimento de que os fundamentos metodológicos do racionalismo estão na base das atrofias morais e da redução de outras formas de percepção, donde surge a cegueira moral que fundamenta toda a reflexão do artigo.
O quinto e último capítulo, após a defesa do que se denomina humildade epistemológica – coerente com a condição do homem no mundo e seus constrangimentos biológicos –, inseriu reflexões sobre o enfrentamento da letargia moral que enseja comportamentos orientados pela ética do explícito. Foram apresentados os conceitos de razão complexa e de revolução noética, de onde se podem extrair estratégias mais adequadas ao desenvolvimento humano apto à incorporação de outras formas de cognição e à coexistência das diferenças, à tolerância e à construção da vida em comum, o que, como se defendeu, poderá fazer surgir uma razão compassiva, construtora de novas formas de lidar com o outro.
Preservando a abordagem metodológica proposta, deve-se concluir, sublinhando o uso da retórica estratégica para reafirmar que a filosofia retórica (Adeodato, 2010, p. 68-74), de natureza cética e inimiga das ontologias, acertadamente verá, nas descrições acima, além de propostas de combate às aporias do racionalismo e da modernidade por ele moldada, uma relação dialética entre a retórica material (ou existencial), a retórica analítica (ou epistemológica) e a retórica estratégica (ou prática).
A primeira retórica se expressa nas “próprias relações humanas, entendidas todas enquanto comunicação, que constituem o plano da realidade”. Nela, os relatos assumidos pelas pessoas são a retórica material, o conjunto de relatos que constitui seu horizonte existencial, o que o senso comum considera “a realidade”. A segunda retórica se relaciona com “uma visão descritiva” e procura elidir preferências axiológicas, mesmo diante de objetos valorativos; trata-se de uma retórica não normativa, que não pretende orientar, mas apenas conhecer a ação. Difere, então, da terceira – a retórica estratégica –, que é reflexiva no sentido de “uma retórica sobre a retórica material, que parte dela e a ela retorna para reconstituí-la, isto é, interferir sobre ela”.
Assim, levando-se em consideração que “a reflexividade é a qualidade primeira da razão” (Porta, 2007, p. 43), claramente o apelo aos antídotos da complexidade e da revolução noética se constitui numa retórica estratégica que visa a reconstituir e ampliar a “realidade”, tão empobrecida pelo reducionismo da racionalidade cartesiana. Essas duas propostas buscam constituir um relato capaz de retirar o homem de seu torpor ético, moral e jurídico, afastando a ética do explícito e seu desprezo pela complexidade e pelo homem em suas múltiplas dimensões. Sabe-se, por que a história impede ignorar, que é “impossível aceder a um meio fundamentalmente novo sem passar pelos transes interiores de uma metamorfose” (Chardin, 2006, p. 248).