Artigo
Recepción: 21 Agosto 2022
Aprobación: 28 Febrero 2023
DOI: https://doi.org/10.12662/2447-6641oj.v22i39.p35-57.2024
RESUMO
Objetivo: Este trabalho analisa a construção do direito à memória e à verdade no Sistema Interamericano de Direitos Humanos de acordo com conceitos de testemunho e verdade em Hannah Arendt.
Metodologia: Trata-se de uma pesquisa jurisprudencial, baseada em método jurídico-teórico. Serão sistematizadas e analisadas decisões em que se pleiteou reconhecimento de direito à memória e à verdade perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por intermédio do método qualitativo.
Resultados: Apresentam-se primeiramente os contornos da definição de memória e verdade no âmbito do sistema interamericano. De acordo com tais conteúdos materiais, é situado o debate sobre o direito à memória para se realizar a verdade a partir do papel do testemunho e das vítimas nas obras Eichmann em Jerusalém e Verdade e Política de Hannah Arendt.
Contribuições: O direito à verdade é necessário em um espaço público político, e os fatos não podem ser reduzidos à mera opinião; ao contrário, é somente a partir dos fatos que se podem extrair opiniões. O reconhecimento desse direito contribuiu para os processos de justiça de transição, reconhecendo-se também o direito à memória. Na sociedade atual, conforme atestado pela jurisdição interamericana, o direito à verdade deve ser garantido à sociedade como um próprio pressuposto do ambiente democrático.
Palavras-chave: Direito à memória, direito à verdade, Corte Interamericana de Direitos Humanos, Hannah Arendt.
ABSTRACT
Thesis Statement: This work analyzes the construction of the right to memory and truth in the Inter-American System of Human Rights according to Hannah Arendt's concepts of testimony and truth.
Methodology: This is a jurisprudential research based on a legal-theoretical method. Decisions claiming recognition of the right to memory and truth before the Inter-American Court of Human Rights will be systematized and analyzed through the qualitative method.
Results: First, the outlines of the definition of memory and truth within the inter-American Human Rights system are presented. According to such material contents, the debate on the right to memory to realize the truth is based on testimony and victims' role in the works Eichmann in Jerusalem and Truth and Politics by Hannah Arendt.
Contributions: The right to the truth is necessary for public political space, and facts cannot be reduced to mere opinion; on the contrary, opinions can be extracted only from the facts. The recognition of this right contributed to transitional justice processes, which also recognized the right to memory. In today's society, as acknowledged by the inter-American jurisdiction, the right to the truth must be guaranteed to society as a presupposition of the democratic environment.
Keywords: The right to memory, the right to the truth, Inter-American Court of Human Rights, Hannah Arendt.
RESUMEN
Objetivo: Este trabajo analiza la construcción del derecho a la memoria y a la verdad en el Sistema Interamericano de Derechos Humanos según los conceptos de testimonio y verdad de Hannah Arendt.
Metodología: Se trata de una investigación jurisprudencial, basada en un método teórico-jurídico. Las decisiones que reclaman el reconocimiento del derecho a la memoria y a la verdad ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos se sistematizaron y serán analizadas a través del método cualitativo.
Resultados: En primer lugar, se presentan los lineamientos de la definición de memoria y verdad dentro del sistema interamericano. De acuerdo con tales contenidos materiales, el debate sobre el derecho a la memoria para realizar la verdad se sitúa a partir del papel del testimonio y de las víctimas en las obras Eichmann en Jerusalén y Verdad y Politica de Hannah Arendt.
Aportes: El derecho a la verdad es necesario en un espacio público político y los hechos no pueden reducirse a mera opinión; por el contrario, sólo de los hechos se pueden extraer opiniones. El reconocimiento de este derecho contribuyó a los procesos de justicia transicional, reconociendo también el derecho a la memoria. En la sociedad actual, como lo atestigua la jurisdicción interamericana, el derecho a la verdad se garantizará a la sociedad como presupuesto del ambiente democrático.
Palabras clave: Derecho a la memoria, derecho a la verdade, Corte Interamericana de Derechos Humanos, Hannah Arendt.
1 INTRODUÇÃO
O direito à verdade e à memória tem sido objeto de investigação no âmbito dos estudos de justiça de transição. O Centro Internacional para a Justiça de Transição (2009) conceitua a justiça de transição como as medidas implementadas por diferentes estados com o objetivo de reparar as consequências de regimes antidemocráticos que levaram a massivas violações de direitos humanos. Dentre estas, pode-se destacar a instauração de comissões da verdade, a reforma das instituições e a busca pela preservação de memória (International Center for Transitional Justice, 2009).
No âmbito da ciência política, a transitologia e a consolidologia são áreas que têm dedicado estudos sobre a transição de regimes autoritários para democracias e seu processo de consolidação. Para essas vertentes teóricas, define-se transição a partir do fator cronológico, isto é, o início e o fim do processo de democratização (Vitullo, 2001). Para os estudos de justiça de transição, entretanto, esses processos são mais complexos e levam em consideração outros fatores, como a necessidade de esclarecimentos dos fatos e a punição dos perpetradores de delitos, assim como o processo de reconciliação nacional para o estabelecimento da paz.
Apesar de se poder afirmar que o conceito de justiça de transição tem origens históricas muito mais remotas (Elster, 2004), sua compreensão moderna foi desenvolvida mais recentemente. O termo justiça de transição passou a ser adotado a partir de sua utilização por Ruti Teitel em 1991, que observou, em seus estudos, o momento do colapso da União Soviética e o processo de transição para a democracia na América Latina nos anos 1980. A autora propôs o conceito como forma de identificação de uma justiça que se distinguiria daquela associada a períodos de mudanças políticas radicais de um passado autoritário e opressivo (Teitel, 2014).
Na fase global da justiça de transição1 (Teitel, 2014), os sistemas internacionais e regionais de direitos humanos têm dado significativa contribuição para a busca em superar o passado autoritário em diversas regiões do mundo. Nesse aspecto, o sistema interamericano de direitos humanos costuma enfrentar diversas demandas sobre tais reivindicações de direitos, seja a partir de vítimas individuais, seja por meio de uma coletividade, ainda que sua implementação possua diferenças nos países latino-americanos (Porto, 2021). Um desses aspectos diz respeito ao direito à verdade e à memória.
A partir desse contexto, este trabalho pretende analisar a construção do direito à memória e à verdade no âmbito do sistema interamericano de proteção aos direitos humanos e possíveis contribuições do diálogo com o pensamento de Hannah Arendt, especialmente a partir dos conceitos de testemunho e verdade. Afirmamos que o pensamento de Hannah Arendt é relevante para o entendimento de tais direitos, principalmente em razão de seu pioneirismo e importância.
Inicialmente, destacaremos alguns casos em que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) buscou o reconhecimento desses direitos, tendo um resultado infrutífero, e, posteriormente, aqueles em que a Corte os reconheceu. Ressalte-se que, não obstante apresentarmos o direito à verdade e à memória no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, a Corte não reconhece a memória como um direito presente na Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), seu documento constitutivo e do qual é seu intérprete máximo. Todavia, em diversos casos, a Corte determina medidas de reparação que visam a satisfazer a necessidade de memória, essas portanto, tais medidas se situam no âmbito das chamadas políticas de memória, as quais vamos detalhar mais adiante. Além disso, apresentaremos o “direito à verdade e à memória”, dada a consagração desse conjunto de medidas características da justiça de transição.
Em um segundo momento, serão contextualizados os conceitos arendtianos e suas contribuições para a análise desses direitos. A justiça de transição e os seus eixos estruturantes - memória, verdade, reformas das instituições, responsabilização dos violadores e reparação às vítimas - (Torreão; Almeida, 2022) são posteriores ao pensamento político de Hannah Arendt. Entretanto, ao estabelecer uma relação entre a verdade e a memória, compreendendo a primeira como o lugar da segunda (Arendt, 2016; Campos, 2022), pode-se apontar que o pensamento da autora possibilita um diálogo com os direitos à memória e à verdade, desenvolvidos pela jurisprudência da Corte Interamericana. Ao final, procuraremos responder às seguintes perguntas: por que o julgamento de Eichmann, objeto da análise de Arendt, foi importante para a discussão sobre justiça de transição? Quais os paralelos que podem ser feitos entre ambos os julgamentos? As possíveis respostas dessas questões serão objeto do último tópico.
2. O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE NA JURISDIÇÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
As reivindicações em torno de um direito à verdade, no âmbito do sistema interamericano, situam-se, inicialmente, no contexto dos desaparecimentos forçados ocorridos na América Latina, principalmente entre os anos 1970 e 1980. Ainda que os contextos de violações de direitos humanos se assemelhem aos casos sobre o direito à verdade, em relação ao direito à memória, a Corte IDH somente passou a se referir a ele expressamente com o caso Gomes Lund e outros vs. Brasil. Osmo (2014) explica que, entre as décadas mencionadas, a CIDH recebeu grande número de petições de familiares de pessoas que se encontravam desaparecidas forçadamente na região, o que levou à aprovação de diversos relatórios, exortando os estados a esclarecer tais acontecimentos, em que foi recomendada, inclusive, a elaboração de um tratado específico para sua prevenção e repressão, oportunidade em que também foram traçadas características específicas dessa prática no continente latino-americano. Para a autora, esse momento é de significativa importância para o reconhecimento do direito à verdade no sistema interamericano.
Osmo (2014) sistematiza, em seu trabalho, uma série de relatórios, em que a CIDH manifestou sua preocupação com o crescimento dessa prática na América Latina. Nesse aspecto, destaca-se o relatório de 1980 sobre a situação dos direitos humanos na Argentina e os relatórios anuais de 1978, 1980 e 1981. A partir do conhecimento desses relatórios, a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) passou a proferir diversas resoluções, inicialmente, conclamando os Estados e, posteriormente, exortando-os a dar uma resposta sobre o paradeiro dessas pessoas.
Sugeriu-se, também, o estabelecimento de registros centrais a respeito das prisões, e instou-se a busca dos restos mortais das vítimas que já não estavam mais vivas. Entre os anos de 1986 e 1987, a CIDH estimulou a criação de uma convenção internacional tratando da questão dos desaparecimentos forçados, tendo em vista que esse fenômeno teria se irradiado no continente latino-americano como instrumento político de perseguição de opositores dos regimes políticos da época2 (OSMO, 2014).
Ainda nos anos 1980, a CIDH admitiu a existência do direito à verdade em sentido mais amplo do que em casos de desaparecimentos forçados. Para ela, negar o acesso à informação dos fatos impediria, inclusive, a responsabilização dos violadores dos direitos, compreensão abordada continuamente nas resoluções deste órgão. Nessas, foram constatadas violações aos artigos 25, 8, 13 e 1.1 da CADH (OSMO, 2014).
No âmbito da jurisdição contenciosa da Corte IDH, o caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, julgado em 1988, é considerado paradigmático para a formação de uma jurisprudência no âmbito do direito internacional sobre os contornos da justiça de transição. Na ocasião, afirmou-se que os estados possuem obrigações de evitar a violação dos direitos humanos, realizar investigações imparciais, sancionar os responsáveis e reparar as vítimas (Porto, 2021; Pinto, 2010; Galindo, 2018). No que se refere especialmente ao direito à verdade, ressaltou-se que, mesmo quando a legislação nacional se constitua como um impeditivo para a punição dos responsáveis pelas violações de direitos, aos familiares subsiste o direito de saber onde se encontra a vítima ou seus restos mortais (Corte Interamericana de Direitos Humanos, 1988). O caso Velásquez Rodríguez vs. Honduras, junto aos casos Godínez Cruz vs. Honduras e Fairén Garbi vs. Honduras, ambos julgados em 1989, inscrevem-se no que se chama de ciclo de casos hondurenhos e dizem respeito a uma série de desaparecimentos forçados ocorridos naquele país durante o período ditatorial (Legale, 2020).
Em 1997, no caso Castillo Páez vs. Peru, a Corte volta-se a debater o direito à verdade também a partir de desaparecimentos forçados. Não obstante a CIDH pretendesse o reconhecimento de um direito autônomo, o fato de não apontar um dispositivo da CADH levou o tribunal a rejeitar essa pretensão, mencionando, entretanto, tratar-se de conceito em construção no âmbito do direito internacional. Em contrapartida, a Corte esclareceu que o dever de investigação se relaciona ao direito dos familiares de saber o destino das vítimas. Destaque-se ainda que esse é o primeiro caso em que a compatibilidade das leis de anistia é questionada no âmbito da jurisdição contenciosa. Um destaque em especial deve ser dado aos votos em apartado dos juízes Cançado Trindade e Burelli, que reconheceram que as leis de anistia são um obstáculo na busca pela verdade e realização da justiça3 (OSMO, 2014).
O reconhecimento do direito à verdade de modo não autônomo envolve uma análise conjunta dos artigos 1.1, 8 e 25 da CADH, mas também se conecta com a liberdade de informação e como uma medida de reparação. No caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala, entretanto, a Corte promove uma guinada em sua compreensão para reconhecer o direito à verdade, ainda que de maneira vinculada à pretensão dos familiares da vítima (dimensão individual), e não como um direito da sociedade (dimensão coletiva) (Burgorgue-Larsen, 2011).
No âmbito da CIDH, todavia, esse direito já havia sido apresentado e considerado como autônomo. Essa mesma compreensão, bem como amparo normativo do direito à verdade no Sistema Interamericano estão nos casos Massacre de La Rochela vs. Colômbia, Massacre de Pueblo Bello vs. Colômbia e Barrios Altos vs. Peru, o que, no entanto, não foi reconhecido pela Corte IDH. Nesse último caso, o tribunal passou a afirmar a incompatibilidade das leis de autoanistia com a CADH, o que foi reiterado no caso Almonacid Arellano vs. Chile (OSMO, 2014).
Em Gomes Lund e outros vs. Brasil, além de reproduzir seu entendimento, a Corte passou a afirmar que o direito à verdade se baseia na liberdade de expressão e pensamento, conforme artigo 13 da CADH.4 Assim, destacou que o direito à verdade possui dimensões individual e coletiva e está relacionado ao próprio acesso à justiça. Além disso, ressalta-se que somente, nesse caso, a Corte declarou violado o direito à verdade de maneira autônoma.5 Entretanto, sua relação com o referido artigo só tem sido reconhecida em algumas situações (quando, por exemplo, são negadas informações diretamente às vítimas e a seus familiares). Em casos posteriores em que se abordou a temática de justiça de transição como Gelman vs. Uruguai e Contreras e outros vs. El Salvador, a Corte não fez menção à combinação entre direito à verdade e liberdade de expressão e pensamento (OSMO, 2014).
Outra interpretação dada pelo tribunal é o direito à verdade e à memória como forma de reparação, tendo a Corte reiteradamente indicado no dispositivo de suas decisões o esclarecimento da realidade dos fatos.6 Nesse aspecto, a CIDH (2014) se manifestou no sentido de que a existência de Comissões da Verdade, entendidas como “órgãos oficiais temporários destinados a investigar e esclarecer abusos e violações sistemáticas aos direitos humanos cometidos ao longo do tempo” (Porto, 2021, p. 35), oferece à sociedade a possibilidade de reflexão sobre seu passado e futuro.
É oportuno destacar o entendimento da Corte manifestado nos casos Almonacid Arellano e outros vs. Chile, Radilla Pacheco vs. México, Masacre de las dos erres vs. Guatemala e reiterado no caso Ibsen Cárdenas e Ibsen Peña vs. Bolívia de que a verdade histórica produzida por comissões especiais e suas recomendações não substituem a obrigação estatal em estabelecer a verdade e investigar os delitos ocorridos no âmbito de processos judiciais (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2010).
No caso Rodríguez Vera e outros (Desaparecidos do Palácio da Justiça) vs. Colômbia, há uma interessante discussão sobre a necessidade de reconhecer o direito à verdade de modo autônomo, ainda que isso tenha se dado no âmbito dos votos em apartado e não tenha sido reconhecido pela composição majoritária do tribunal. O referido caso trata do desaparecimento forçado, da detenção e da tortura de diversas pessoas, bem como da execução de um magistrado, em evento conhecido como tomada e retomada do Palácio de Justiça, em Bogotá, nos dias 6 e 7 de novembro de 1985. Não obstante a Corte tenha condenado o estado colombiano, declarando violados os direitos à liberdade pessoal, à integridade pessoal, à vida e ao reconhecimento da personalidade jurídica, bem como às garantias judiciais e proteção judicial, não reconheceu uma violação ao direito à verdade (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2014).
No voto concorrente do juiz Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot, que contou com a adesão dos juízes Eduardo Vio Grossi e Manuel E. Ventura Robles, registrou-se a necessidade de o Tribunal reconhecer o direito à verdade de modo desvinculado a outros direitos. Para Mac-Gregor, o caso representava uma oportunidade para a Corte debater melhor perspectivas sobre o direito à verdade de modo autônomo no âmbito de sua jurisdição em um contexto de negacionismo por parte do estado. Isso porque havia transcorrido 29 anos dos fatos analisados pela Corte, nesse caso, sem que os familiares das vítimas tivessem notícia da verdade dos fatos, bem como a ausência de oferecimento por parte do Estado de uma versão oficial dos acontecimentos, apesar de a investigação ter acontecido (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2014).
A partir de uma reconstrução das decisões anteriores do tribunal, o juiz Mac-Gregor esclarece que, com base no artigo 29, “c”, da CADH, que dispõe que a Convenção não deve ser interpretada no sentido de “excluir outros direitos e garantias que são inerentes ao ser humano ou que decorrem da forma democrática representativa de governo”, não se pode dizer que o fato de não existir um artigo específico no referido tratado impediria o reconhecimento da autonomia do direito à verdade. No ponto, ressaltou que os tribunais colombianos têm reconhecidos os direitos à verdade, à reparação e à justiça para conquistar a paz. Para ele, o direito à verdade constituir-se-ia como o próprio acesso à justiça, e, assim, não seria necessário que outros direitos da Convenção fossem violados para que ele fosse reconhecido. Além disso, considerou que declarar violado o direito à verdade a partir de uma subsunção deste a outros direitos poderia até desnaturar o significado dos demais direitos (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2014).
Em seu voto de adesão ao posicionamento de Mac-Gregor, o juiz Ventura Robles foi além. Manifestou-se no sentido de que, caso a Corte tivesse esclarecido desde 1987 (ano em que julgou o primeiro caso sobre o assunto) que o direito à verdade está ligado à obrigação de investigar os fatos dos casos, a impunidade alarmante na América Latina e o descumprimento de decisões do tribunal teriam dimensões muito menores. A respeito do caso em particular, destacou que a falta de informação sobre o papel do Poder Executivo da Colômbia nos incidentes de 1985, bem como o fato de o Legislativo não ter realizado apurações sobre esse papel, impossibilitou uma decisão do tribunal sobre a responsabilidade desses poderes. Assim, argumentou que seria necessário declarar uma violação do direito à verdade de modo autônomo, a fim de averiguar se membros do Poder Executivo ou Legislativo colombiano contribuíram para a responsabilidade internacional do Estado (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2014).
A partir da sistematização de casos julgados pela Corte entre os anos de 2009 e 2018, em que os direitos à verdade e à memória são discutidos junto a outras violações de direitos humanos ocorridas em momentos de ruptura democrática na América Latina (Porto, 2021), pode-se constatar que a conexão com os direitos de livre expressão previstos no artigo 13 da CADH somente se encontra no caso Cepeda Vargas vs. Colômbia (além do já mencionado Gomes Lund). Trata-se do assassinato do senador colombiano, líder do partido comunista, Manuel Cepeda Vargas, em um contexto no qual havia um sistemático padrão de violência em relação a pessoas que faziam parte dessa filiação partidária. Em uma das medidas ordenadas à Colômbia, o tribunal determinou a realização de documentário audiovisual sobre a vida e o papel políticos do senador, bem como a criação de bolsa de estudos com seu nome. Esse é um exemplo da compreensão da Corte sobre direito à memória como medida reparatória.
No caso Anzualdo Castro vs. Peru, determinou-se a colocação de uma placa no Museu da Memória em meio a um ato público como uma medida de memória e garantia de não repetição (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2009). Em Massacre de Dos Erres vs. Guatemala, ordenou-se a criação de um monumento em memória às pessoas que foram mortas durante esses acontecimentos, nele devendo constar uma placa com o nome das vítimas para que se mantivesse a memória delas, assim como a garantia de não repetição (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2009). Também se decidiu, no caso Contreras vs. El Salvador, que o Estado deveria criar três escolas com o nome de crianças desaparecidas forçadamente, bem como colocar placas reconhecendo que o desaparecimento decorreu de ações das Forças Armadas daquele país. Além disso, determinou-se a produção de documentários audiovisuais a respeito da sistemática e reiterada prática de desaparecimento de crianças durante o período de conflito interno a ser veiculado nas mídias mensalmente por, pelo menos, três vezes (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2011).
Mais recentemente, ao julgar o caso Sales Pimenta vs. Brasil, a Corte IDH (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2022) voltou a reconhecer o direito à verdade e, dessa vez, em um contexto distinto. Após mais de 40 anos do assassinato do advogado de movimentos sociais e defensor de direitos humanos, Gabriel Sales Pimenta, o Estado brasileiro não adotou medidas suficientes para solucionar o caso, mesmo com a identificação de três suspeitos e com a existência de testemunhas oculares e outros meios de prova. Segundo o tribunal, para além da dimensão individual que possui o esclarecimento dos fatos, o direito à verdade também possui uma dimensão coletiva, uma vez que a falta de solução para esse caso gera um efeito amedrontador (chilling effect) para as pessoas defensoras de direitos humanos, para os trabalhadores rurais e para a sociedade como um todo. Ao estabelecer medidas de reparação, determinaram-se, além do esclarecimento do assassinato, especialmente, algumas medidas de preservação da memória, como nomear uma praça em Marabá (PA) com o nome Gabriel Sales Pimenta com uma placa contando sua trajetória e criar um espaço público de memória que resgate o ativismo das pessoas defensoras de direitos humanos e celebre a importância dessa profissão em Belo Horizonte (MG). Para a Corte, essas medidas têm a função de conservar a memória das vítimas, evitar a repetição dos fatos e gerar uma reflexão na sociedade a respeito do contexto de violência e impunidade na luta por terra no Brasil (Corte Interamericana de Derechos Humanos, 2022).
Como visto, a Corte IDH construiu, em sua jurisprudência, a ideia de memória como forma de reparação. Pode-se dizer, por outro lado, que as políticas da memória ou deveres de memória remontam a reivindicações de intelectuais, ativistas e descendentes de vítimas do nazismo em prol de reconhecimento e reparações.7 Os crimes cometidos na Alemanha nazista foram apurados por meio dos primeiros testemunhos apresentados no tribunal de Nuremberg e, a partir dos anos 1970, o chanceler Adenauer adotou uma política de memória diretamente relacionada com a ideia de responsabilidade histórica. Assim, museus foram criados, e o tema foi inserido em livros didáticos, dentre outras providências (Brepohl; Gonçalves; Gabardo, 2018). É a partir desse contexto que se pode situar o debate sobre o direito à verdade e à memória fundamentado em Hannah Arendt, o que será mais bem explorado nos próximos tópicos.
3 HANNAH ARENDT E OS DIREITOS À MEMÓRIA E À VERDADE
Pretende-se aqui estabelecer um diálogo sobre as origens dos direitos à verdade e à memória a partir do pensamento de Hannah Arendt. Em um primeiro momento, trazemos algumas considerações sobre o relato da autora na obra Eichmann em Jerusalém para depois atermo-nos a dois conceitos importantes para o que nos propomos: testemunho e verdade.
Em maio de 1963, a obra Eichmann em Jerusalém foi publicada, fruto da cobertura do processo realizado em Jerusalém, a convite do jornal The New Yorker. Nela, Hannah Arendt faz uma descrição de como todo o processo se desenrolou. Desde o começo, aponta-se a preocupação do juiz Landau para o julgamento não se tornar um espetáculo, o que nem sempre ocorreu, eis que o local possuía um palco, e os trabalhos aconteceram diante de uma plateia - representando o mundo todo, nas palavras da autora (Arendt, 1999).
Uma das primeiras questões criticadas por Arendt diz respeito aos fatos sob julgamento e sob qual jurisdição ele deveria ocorrer. Eichmann, que foi capturado, em um subúrbio de Buenos Aires, em maio de 1961, para ser julgado em Israel por crimes contra o povo judeu, contra a humanidade e os crimes de guerra durante o nazismo. Na Segunda Guerra Mundial, ele estava sendo julgado, segundo ela, não pelos crimes que cometeu, mas pelo sofrimento do povo judeu. Nesse sentido, destacou que, em Israel, todos acreditavam que somente um tribunal judeu poderia fazer justiça à questão (Arendt, 1999).
Para todas as acusações que lhe foram feitas, Eichmann declarou-se “inocente, no sentido da acusação” (Arendt, 1999, p. 32). Sua tese de defesa centrou-se no fato de que, tendo por base o sistema legal nazista, seus atos não poderiam ser considerados crimes, mas verdadeiros “atos de estado” que, caso não cumpridos, acarretariam na prisão dos infratores. Arendt, que não teve a oportunidade de presenciar os processos que correram no tribunal de Nuremberg, estava frente a frente de um importante personagem da Solução Final e ficou intrigada com a figura de Eichmann: um homem comum, que não pertencia aos altos escalões do partido nazista, mas teve uma vida intelectual e profissional que se poderia dizer medíocre. Não era tampouco um homem sem consciência, Haja vista sua firme convicção demonstrar que suas atitudes estavam à altura da boa sociedade alemã por se considerar superior. Como anota a autora, ele insistiu reiteradamente que sua culpa residia tão somente na ajuda e na instigação aos crimes de que era acusado, mas que não os havia praticado, o que não foi negado pelo tribunal (Arendt, 1999).
Foi então que Hannah Arendt, ao ver a figura de Eichmann, repensou o conceito de mal tal qual havia afirmado na obra Origens do Totalitarismo, publicada em 1951. O mal absoluto, derivado de motivos humanamente incompreensíveis (Arendt, 2012, p. 13) que, em última análise, resultam nas experiências totalitárias, converteu-se em um mal banal, a incapacidade de pensar o outro como pessoa (Arendt, 1999). O relato de Arendt, entretanto, não foi bem recebido, principalmente pela comunidade judaica. Segundo a autora, o objetivo de um julgamento é fazer justiça, e qualquer finalidade que difere disso fere as finalidades da lei que são sopesar as acusações e aplicar o castigo devido. Para ela, o julgamento em Jerusalém fracassou por três motivos já conhecidos desde o tribunal de Nuremberg: “o problema da predefinição da justiça na corte dos vitoriosos; uma definição válida de ‘crime contra a humanidade’; e um reconhecimento claro do novo tipo de criminoso que comete esse crime” (Arendt, 1999, p. 297).
Em relação ao primeiro aspecto, houve grave comprometimento do que se espera de um processo justo quando o tribunal não admitiu testemunhas de defesa. Em relação ao segundo aspecto, Arendt (1999) acentua a contribuição de um julgamento “contra o povo judeu”, uma vez que o julgamento de Israel deu mais contribuição a distinções entre crimes de guerra (assassinatos de reféns), atos desumanos (expulsão de populações para o estabelecimento de colonização) e crimes contra a humanidade (cujos atos não encontravam precedentes) do que o tribunal de Nuremberg. Como relata a autora, em nenhum momento, o tribunal consegue dizer que os crimes praticados eram contra a humanidade e que a ordem internacional estava em risco. Tornara-se complicado para o tribunal concordar com os argumentos da acusação de que Eichmann era um sádico, quando ele era “assustadoramente normal”. Assim, em relação ao terceiro aspecto, era forçoso reconhecer que se estava diante de um novo tipo de criminoso, aquele que comete crimes em circunstâncias que tornam difícil apontar as condutas como certas ou não (Arendt, 1999).
Feita essa breve contextualização, é necessário analisar melhor as contribuições da ideia do testemunho e da verdade na obra de Hannah Arendt para se refletir sobre o direito à verdade e à memória. Inicialmente, é preciso dizer que o desconhecimento da verdade e a manipulação dos fatos podem levar a eventos radicais, como o foi na experiência totalitária, que retira dos indivíduos a capacidade de percepção e julgamento dos acontecimentos (OSMO, 2014). Lafer (1997), ao analisar a obra de Hannah Arendt, aponta que o direito à informação é essencial para manter o espaço público em que vige a democracia. Além disso, ao observar o contexto latino-americano de desaparecimentos forçados que conformou a jurisprudência da Corte, compreende-se esse fenômeno como aniquilamento das pessoas em processo de sua desumanização. Ainda que em medida diversa do fenômeno totalitário (já que pretendia eliminar o próprio povo, como se nunca tivesse existido), busca-se realizar o apagamento das vítimas, que não deixariam rastros (OSMO, 2014).
Como ressalta Pereira (2022), a forma de verdade que interessa à Hannah Arendt é a verdade dos fatos, que se contrapõe à mentira. O autor aponta dois aspectos que tencionam o tema da mentira com a verdade dos fatos na obra da autora. O primeiro refere-se à forma como o regime totalitário se utilizou da mentira como instrumento de dominação, tornando indistintas a ficção e a realidade, com o terror e a propaganda. Nesse caso, aquele que afirma a verdade é o que, ao refletir sobre os acontecimentos, começa a agir. O segundo refere-se ao uso do aparelho estatal para criar uma narrativa dos fatos por meio da mentira organizada. Para o autor, no campo democrático, essa acepção demonstra “os riscos políticos da desconsideração da realidade dos fatos e como essa fragilização da veracidade coloca em risco o espaço público político” (Pereira, 2022, p. 439).
Em Verdade e Política, Arendt (2016) parte da distinção entre a verdade factual e a verdade filosófica para estabelecer qual sentido de verdade é significativo para a política e a preservação do mundo em que a vida humana seria possível. Enquanto a verdade filosófica é encontrada na solidão e transcende o âmbito político, a verdade factual está circunscrita ao domínio do político (o que não se confunde com meras opiniões) e às circunstâncias em que muitos estão envolvidos. Se o contrário da verdade filosófica é a mera opinião, no caso da verdade factual, sua oposição é a mentira deliberada, o que possibilita, inclusive, a própria destruição (Campos, 2022).
Para Hannah Arendt, seja no cenário totalitário, seja no campo democrático, a estabilidade da verdade dos fatos é fundamental no espaço público político. Desse modo, “mesmo não sendo política, a verdade, na sua face de verdade dos fatos, atua politicamente resistindo quando a mentira, na condição de mentira geral, coloca em risco a narrativa da realidade, ou a transmissão da memória dos eventos” (Pereira, 2022, p. 440).
Uma questão central a respeito do direito à verdade refere-se à possibilidade de restaurar a dignidade das vítimas (OSMO, 2014). Essa questão é fundamental em Eichmann em Jerusalém. Do ponto de vista da justiça, centra-se na investigação, no processamento e na punição dos responsáveis por violações de direitos. Entretanto, descabe limitar a categoria “direito à verdade” a essas medidas de reparação. Daí decorre a necessidade de análise das observações de Arendt (1999) sobre o julgamento de Eichmann.
As críticas da autora sobre a inadequação do julgamento do caso por um tribunal nacional, como era o de Israel, e a tentativa de julgar uma história e não um indivíduo são algumas questões colocadas na obra. A propósito de sua afirmação de que um tribunal internacional seria mais propício para julgar aquilo definido legalmente como um genocídio, Arendt (1999) observa que, ao contrário do tribunal de Nuremberg, o caso de Eichmann deu ênfase ao testemunho das vítimas como um momento para reviver e narrar os fatos. Nesse sentido, ela destaca que, de um total de 121 sessões, 62 foram utilizadas para a oitiva de 100 testemunhas de acusação. Em uma crítica ao promotor do caso, a autora afirmou, inclusive, a desnecessidade de tantos testemunhos dada a existência de provas suficientes para uma decisão condenatória. Ressaltou, ainda, que, se o intuito era dar voz aos sentimentos das vítimas do genocídio, esse espaço não seria em uma sentença.
Todavia, mesmo com sua oposição à condução do processo - para ela, uma estratégia política que atendia aos interesses de Israel - há um sentido que ultrapassa esta crítica. Mais do que contribuir para a acusação, as narrativas testemunhais reconstituíram parte da história. Assim, observou “como tudo seria tão absolutamente diferente nesse tribunal, em Israel, na Alemanha, em toda a Europa, e talvez em todos os países do mundo, se mais dessas histórias pudessem ser contadas” (Arendt, 1999, p. 253). Em sua descrição do processo, percebe-se uma quase total liberdade para a fala das testemunhas, com poucas perguntas específicas, o que tornou os testemunhos prova da experiência do povo judeu. Diante do terror totalitário de se tentar apagar o outro e enterrá-lo na história, não se poderia negar às vítimas esse espaço.
A ideia do aparato totalitário de destruição de todos os seus feitos e suas vítimas por meio de sua engrenagem mecânica não se concretizou, pois, como aponta Arendt (1999, p. 254), “sempre sobra um homem para contar a história”. Assim, o julgamento de Eichmann levou a memória individual dos sobreviventes do Holocausto ao patamar de memória coletiva. Essa ideia de memória coletiva tem sido discutida em mecanismos de justiça de transição, como as comissões da verdade, a instituição de museus e os seus acervos, e o acesso à informação. Tal como no julgamento de Eichmann, a realização dessas comissões é também uma oportunidade de dar voz às vítimas e, assim, possibilitar a construção de memórias. Então, ainda que se concorde com Arendt (1999) de que o julgamento de Jerusalém deveria ocorrer tão somente no interesse de se realizar justiça, é de se admitir também que o papel de estabelecimento da verdade e da memória, nesse caso, contribuiu para a formação do conceito de tais direitos, mesmo que em região e contexto distintos.
4. UM DIÁLOGO ENTRE OS JULGAMENTOS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O PENSAMENTO DE HANNAH ARENDT
Algumas premissas precisam ser colocadas para que seja possível estabelecer um diálogo entre os julgamentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos em relação aos direitos à memória e à verdade e o pensamento político de Hannah Arendt. Pela primeira, tomam-se por base as conclusões da autora sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém e contextualizam-se as semelhanças e as diferenças em relação aos julgamentos do tribunal interamericano. No âmbito da segunda, relacionam-se os conceitos de verdade e testemunho, em ambos os contextos, o que nos permitirá apontar a relevância da verdade, sob a perspectiva política, para a democracia e a formação da memória coletiva.
Uma questão primordial que leva a um afastamento entre o julgamento de Eichmann e os casos julgados pela Corte IDH diz respeito aos próprios tribunais. Enquanto, no primeiro caso, criou-se um tribunal ad hoc, para que fossem julgados crimes contra o povo judeu, crimes de guerra e crimes contra a humanidade cometidos por Adolf Eichmann em sua participação na “solução final dos judeus”, a Corte IDH é um tribunal regional de direitos humanos, criado pela CADH, cuja adesão é facultativa aos Estados, que podem, ainda, aceitar ou não se submeter à sua jurisdição contenciosa, isto é, à competência que o tribunal possui para apreciar casos individuais. Além disso, esse tribunal não julga indivíduos, mas apenas estados, em razão da inobservância de direitos e garantias previstos na Convenção Americana e nos tratados que a Corte pode interpretar.
Arendt (1999) conclui que o julgamento em Israel era inadequado, não só por perceber questões políticas que o processo acarretaria em torno da legitimação daquele estado, mas também por considerar que as então inéditas práticas utilizadas durante a Solução Final a justificar a alcunha de crimes contra a humanidade, deveriam ser submetidas a um tribunal internacional. Como demonstra a autora, até mesmo, o argumento israelense de que a produção probatória seria mais adequada naquele país se mostrou falso, já que possíveis testemunhas estavam na Alemanha, na Áustria e na Itália - algumas presas, inclusive - e que, até mesmo, poderiam vir a ser processadas, visto que não lhes fora garantido qualquer tipo de imunidade.
Do ponto de vista jurídico, a Corte IDH não tem sua legitimidade contestada. Do ponto de vista político, porém, alguns estados têm endossado críticas à sua atuação e ao conteúdo de suas sentenças, que adotam uma posição “legalmente não-conformista” (Hennebel, 2011), abandonando o direito internacional voluntarista e centrado no estado, em prol da construção de jurisprudência criativa. Especialmente em relação às medidas as quais dispõem que os estados têm o dever de criminalizar certas condutas e investigar, processar e punir agentes perpetradores de delitos são criticadas pela doutrina, ainda que essa inovação do tribunal interamericano seja considerada referência para outros tribunais internacionais.8
Silva Sánchez (2014, p. 81), ao refletir sobre as doutrinas da “luta contra a impunidade” e o “direito da vítima a punição do autor”, considera que, apesar de não se poder negar às vítimas um direito à verdade dos fatos, é problemático que esse direito seja satisfeito por meio do processo penal porque, segundo ele, “a reconstrução processual do fato histórico não pretende declarar a verdade do ocorrido, mas simplesmente preparar as bases para uma atribuição de responsabilidade”. Avaliando a atuação da Corte Interamericana, o autor afirma que o restabelecimento da dignidade das vítimas e dos vínculos sociais não conduziria, necessariamente, à punição efetiva do autor, despida de quaisquer limites jurídicos, como preceitua a jurisprudência interamericana.
Esse modo de atuar da Corte IDH, privilegiando a ideia de criminalização ao lidar com graves casos, envolvendo desparecimentos forçados, tortura e execuções sumárias, é apontado por Hennebel (2011) como aproximação do tribunal regional de direitos humanos com certas atribuições que um tribunal penal internacional exerceria. Nesse sentido, é importante notar que, em seus primeiros julgamentos, a Corte Interamericana conceituou os desaparecimentos forçados como crimes contra a humanidade. Assim, apesar de não poder julgar os indivíduos que deram causa aos crimes, o tribunal pode afirmar que o estado é responsável pela prática dos crimes contra a humanidade e determinar que os agentes perpetradores dos delitos sejam investigados e punidos, como o fez em relação a diversos fatos ocorridos durante os anos 1970 e 1980 por diferentes regimes ditatoriais da América Latina (Hennebel, 2011).
Assim como relatado por Arendt (1991) no julgamento de Eichmann, em que as vítimas assumiram um papel importante durante as audiências, cujos testemunhos permaneceram na história, os julgamentos da Corte IDH, com o passar dos anos, especialmente após a reforma de seu último regulamento, têm privilegiado o depoimento das vítimas perante a Corte, bem como a escuta de especialistas na matéria em apreciação. Trindade (2011) destaca que o quarto regimento da Corte promoveu as maiores alterações procedimentais sob a perspectiva de considerar o indivíduo como sujeito de direito internacional, concedendo aos peticionantes legitimação ativa e participação direta durante todas as etapas de tramitação do caso no tribunal. Essa mudança, além de ser uma evolução em direção à centralidade do indivíduo na seara internacional, situa-se em outro papel a restauração da dignidade das vítimas.
Se, a partir de uma leitura arendtiana, o crime contra a humanidade constitui-se como uma negativa à pluralidade humana e a tentativa de sua eliminação, assim como os testemunhos são um espaço de recuperação do plural e de reconciliação com o passado, a partir de uma oposição ao esquecimento (OSMO, 2014). Ao se debruçar sobre as medidas de reparação ordenadas pela Corte IDH, Hirsch e Barguil (2022, p. 2) afirmam que a criação de memoriais visa “preservar a memória de uma determinada violação de direitos humanos (para evitar a repetição de tais atos) e proporcionar alívio simbólico às famílias das vítimas”. Os mencionados autores referem-se a diversos casos em que a Corte ordenou medidas que envolvem desde a criação de uma bolsa de estudos com o nome da vítima (caso Myrna Mack Chang vs. Guatemala), a instituição de um museu (Caso dos Meninos de Rua vs. Guatemala) e até a criação de um parque em homenagem às vítimas (Caso Diário Militar vs. Guatemala). Como destacou um de seus juízes, a centralidade das vítimas no direito internacional deve levar em consideração que as reparações a serem estabelecidas pelos tribunais avaliem a vitimização, o sofrimento humano e a sua reabilitação (Trindade, 2007). Nesse sentido, na visão da Corte Interamericana, um dever de memória seria um contraponto ao esquecimento.
Similar caminho é traçado por Arendt (2016) no ensaio Verdade e Política, publicado pela primeira vez em 1967 na revista The New Yorker. Nele, Arendt estabelece a verdade como um espaço para a memória, isto é, o âmbito daquilo que não se pode modificar porque, precisamente, aconteceu daquela maneira. Como destaca Campos (2022), aquele que enuncia os fatos, relata e testemunha o que presenciou, constrói uma narrativa a qual possibilita a reconciliação com o mundo ao dar sentido a narrativas antes esparsas. Assim, além de constituir um limite ao poder, a verdade dos fatos, no pensamento de Arendt, cria condições de estabilidade para o mundo e para a ação (Campos, 2022).
Mesmo sendo anterior ao desenvolvimento da justiça de transição, o pensamento de Arendt é pertinente para avaliar e fundamentar os direitos à verdade e à memória construídos na jurisprudência interamericana. De um lado, em uma dimensão individual, as medidas de reparação em processos transicionais objetivam a indenização das vítimas e, de outro, em uma dimensão coletiva, buscam a reconstrução do estado democrático de direito, a reconciliação nacional - e, com isso, a paz social -, bem como o exercício da democracia (Torreão; Almeida, 2022). Para Arendt (2016), o significado da verdade está relacionado com o acesso e a informação ao próprio pensamento político. Para que cada geração possa construir sua própria história, não se pode negar o arcabouço factual. Assim, o desenvolvimento do direito à memória e à verdade, para além dos contextos de períodos pós-autoritarismos e pós-conflitos (Torreão; Almeida, 2022), torna-se relevante em um cenário em que as democracias enfrentam desafios em torno da desinformação e do revisionismo histórico.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho analisou a construção do direito à memória e à verdade no âmbito do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, tendo como objeto refletir sobre sua formação a partir dos conceitos de verdade e testemunho na obra de Hannah Arendt. Inicialmente, apresentamos o debate no âmbito dos estudos de justiça de transição, que, além de analisar processos de democratização e consolidação desses regimes, têm desenvolvido mecanismos que visam reparar graves violações de direitos humanos. No âmbito da América Latina, em especial, diversos países têm implementado, em menor ou maior medida, essas estratégias.
Um desses aspectos é o direito à memória e à verdade, que, no âmbito latino-americano, desenvolveu-se inicialmente pela atuação de familiares que procuravam conhecer o paradeiro de seus entes diante de desaparecimentos forçados. Destacamos que, nos casos iniciais, a Corte IDH não reconheceu o direito à verdade por não ter a CIDH apontado nenhum artigo específico da CADH que versasse sobre o assunto e, em outra oportunidade, salientou tratar-se de um direito em construção no âmbito do direito internacional. Posteriormente, abordamos casos em que a Corte passou a reconhecer o direito à verdade, mas ainda subsumido a outros direitos previstos na CADH e, finalmente, o caso Gomes Lund, único caso em que se declarou o direito à verdade de forma autônoma. No caso dos Desaparecidos do Palácio da Justiça, apontamos votos dissidentes que manifestaram a necessidade de a Corte reconhecer a violação a esse direito de maneira autônoma, assim como aconteceu em Gomes Lund.
Ao apresentarmos algumas ideias de Hannah Arendt sobre a verdade, buscamos evidenciar que o direito à verdade dos fatos é necessário em um espaço público político, não podendo se converter fatos em meras opiniões. Ao contrário, é somente a partir dos fatos que se podem extrair opiniões. A experiência totalitária demonstrou que a mentira deliberada e publicizada levou a consequências extremas na história da humanidade.
A análise de Arendt (1999) em relação ao julgamento de Eichmann é de que o tribunal de Jerusalém fracassou por três razões já conhecidas desde o tribunal de Nuremberg: a justiça foi formada pelos vitoriosos, a problemática definição sobre o crime contra a humanidade e o reconhecimento de um novo tipo de criminoso. Segundo a autora, em relação ao primeiro problema, o maior fracasso foi a não admissão de testemunhas de defesa, o que fere as concepções mais estabelecidas de devido processo legal, e o fato de que, após dezesseis anos do fim da guerra, a não admissão do julgamento por países neutros não mais se justificaria. Em relação ao segundo problema, Arendt (1991) considerou que o tribunal israelense fora mais bem-sucedido do que o de Nuremberg porque fez emergir a reflexão sobre a diferença entre crimes de guerra, atos desumanos e crimes contra a humanidade, esses últimos, inéditos, ainda que o próprio tribunal não tenha mencionado que o crime seria uma ofensa não só ao povo judeu, mas à humanidade como um todo. Já o terceiro problema era o novo tipo criminoso que fora reconhecido, uma pessoa assustadoramente normal, e não um sádico, como descrevia a acusação.
Apontamos que a Corte Interamericana, por sua vez, como tribunal de direitos humanos, não analisa o perfil de um criminoso, tampouco aplica condenações penais. Por outro lado, atribui responsabilidade aos estados por sua conduta comissiva ou omissiva em garantir direitos humanos e ordena medidas de reparação, sejam elas individuais ou de não repetição. É bem verdade que, especialmente nos casos envolvendo os graves crimes cometidos contra a sociedade civil durante as ditaduras latino-americanas, o tribunal já os qualificou como “crimes de estado” ou “terrorismo de estado” e, inclusive, desde a análise do primeiro caso contencioso submetido à sua jurisdição, ressaltou a natureza de crimes contra a humanidade que se constituem os desaparecimentos forçados.
Portanto, procuramos estabelecer que, mesmo considerando a crítica de Arendt aos testemunhos no processo de Eichmann, dar voz à narrativa das vítimas permitiria uma reconstituição da história, tornando uma memória que antes era individual em memória coletiva. Daí também a importância de ressaltar a legitimidade das comissões de apuração da verdade, instrumentos que têm produzido relatos das vítimas de graves violações de direitos humanos em tempos de exceção e possibilitado a reconstrução da verdade e da memória históricas. Nesse contexto, aponta-se a atualidade do pensamento arendtiano, pois, sendo a verdade necessária para a estabilidade do mundo, o que possibilita a ação humana, os mecanismos de justiça de transição, consolidados posteriormente a seu pensamento, fundam-se na perspectiva de promover a reconciliação com o passado a partir do estabelecimento da verdade, não como esquecimento, mas como memória.
Desse modo, pode-se afirmar que o reconhecimento do direito à verdade e à memória na jurisdição interamericana de direitos humanos se situa na impossibilidade de “buracos do esquecimento” (Arendt, 1999, p. 254). Por mais que se tente apagar a verdade dos acontecimentos, a ação humana não é perfeita a ponto de produzir o esquecimento, dado que sempre existirá algo ou alguém para contar a história.
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