RESUMO
Contextualização: Na contemporaneidade, desenvolveu-se aquilo que pode ser denominado de sociedade de massa, que é marcada, principalmente, pelo consumo excessivo de bens materiais e por diversos abusos em face de sujeitos vulneráveis, como é o caso dos idosos. No sentido de proteger tais indivíduos, surge a Lei nº 14.181/2021, a qual busca estabelecer o reconhecimento da condição hipervulnerável da pessoa idosa e do dever de salvaguarda de seus direitos defronte ao superendividamento.
Objetivo: Investigar as implicações proporcionadas pela Lei nº 14.181/2021, especialmente no sentido de perquirir os contornos da hipervulnerabilidade do idoso e sua propensão ao endividamento excessivo, sem, contudo, ignorar as inovações proporcionadas pelo princípio do crédito responsável, o combate ao assédio de consumo, bem como o instituto da repactuação de dívidas do consumidor superendividado.
Metodologia: O presente estudo foi conduzido por meio da seleção de bibliografia especializada, bem como de entendimentos jurisprudenciais recentes e decisões proferidas pelo Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, utilizando-se, para isso, do método dedutivo.
Conclusões: Os preceitos tratados pela Lei nº 14.181/2021, além de criarem e reforçarem os direitos e as garantias individuais do idoso devidamente reconhecidos pelo ordenamento jurídico, estabelecem ainda novas óticas ao tratamento do endividamento excessivo do idoso como consumidor hipervulnerável.
Palavras-chave: Idoso, hipervulnerabilidade, superendividamento, crédito.
ABSTRACT
Context: In contemporary times, what can be called mass society has developed, which is marked, mainly, by the excessive consumption of material goods and by various abuses in the face of vulnerable subjects, such as the elderly. In order to protect such individuals, brazilian law number 14.181/2021 emerges, which seeks to establish the recognition of the hypervulnerable condition of the elderly and the duty to safeguard their rights in the face of over-indebtedness.
Objective: Investigate the implications provided by brazilian law number 14.181/2021, especially in the sense of investigating the contours of the hypervulnerability of the elderly and their propensity to excessive indebtedness, without, however, ignoring the innovations provided by the principle of responsible credit, combating consumer harassment, as well as the institute of debt renegotiation of over-indebted consumers.
Methodology: The present study was conducted through the selection of specialized bibliography, as well as recent brazilian jurisprudential understandings and decisions issued by the National Council for Advertising Self-Regulation, using the deductive method.
Conclusion: The precepts dealt with by brazilian law number 14.181/2021, in addition to creating and reinforcing the individual rights and guarantees of the elderly duly recognized by the legal system, also establish new perspectives on the treatment of excessive indebtedness of the elderly as hypervulnerable consumers.
Keywords: Elderly, hypervulnerability, over-indebtedness, credit.
RESUMEN
Contextualización: En la época contemporánea se ha desarrollado lo que se puede llamar sociedad de masas, marcada principalmente por el consumo excesivo de bienes materiales y diversos abusos hacia sujetos vulnerables, como los ancianos. Para proteger a dichas personas se creó la Ley n° 14.181/2021, busca establecer el reconocimiento de la condición hipervulnerable de las personas mayores y el deber de salvaguardar sus derechos frente al sobreendeudamiento.
Objetivo: Investigar las implicaciones previstas por la Ley nº 14.181/2021, especialmente con el fin de explorar los contornos de la hipervulnerabilidad de las personas mayores y su propensión al endeudamiento excesivo, sin embargo, las innovaciones aportadas por el principio de crédito responsable, lucha contra el acoso a los consumidores, así como el instituto para la renegociación de deudas de consumidores sobreendeudados.
Metodología: El presente estudio se realizó a través de la selección de bibliografía especializada, así como de precedentes jurisprudenciales e decisiones dictadas por el Consejo Nacional de Autorregulación Publicitaria, utilizándose para tal efecto el método deductivo.
Conclusión: los preceptos abordados por la Ley nº 14.181/2021, además de crear y reforzar los derechos y garantías individuales de ancianos debidamente reconocidas por el Ordenamiento Jurídico, también establecen nuevas perspectivas sobre el tratamiento del endeudamiento excesivo de las personas mayores como consumidores hipervulnerables.
Palabras-clave: Ancianos, hipervulnerabilidad, sobreendeudamiento, crédito.
Artigo
DA HIPERVULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR IDOSO FRENTE AO SUPERENDIVIDAMENTO
HYPERVULNERABILITY OF THE ELDERLY CONSUMER IN FRONT OF OVER-INDEBTEDNESS
HIPERVULNERABILIDAD DEL CONSUMIDOR ANCIANO ANTE EL SOBREENDEUDAMIENTO
Recepción: 30 Junio 2023
Aprobación: 08 Noviembre 2023
Desde o advento da chamada indústria cultural e da gloriosa sociedade de massas, significantes estudos vêm se dedicando acerca dos malefícios irremediáveis que o desenvolvimento humano (irresponsável) tem ocasionado naquilo que toca à exploração das vulnerabilidades existentes.
Se, por um lado, o século XX foi marcado pela abertura econômica dos países emergentes para os grandes conglomerados de consumo, o século XXI pode ser visto sob um viés social demarcado pelo reconhecimento de direitos e garantias de grupos e indivíduos que, até este momento histórico, eram marginalizados e recriminados por suas fragilidades.
É justamente em razão disso que tratar da temática do superendividamento do consumidor idoso frente ao modelo jurídico atual significa buscar a compreensão acerca da concessão indiscriminada e abusiva de meios creditórios e a formação de expressivo problema na base da economia brasileira.
Em que pese a se tratar de temática atual em meio a debates acadêmicos e da não tão uníssona jurisprudência nacional, o fenômeno do superendividamento é amplamente reconhecido como sendo reflexo direto dos abusos praticados pelo sistema capitalista de consumo, em vigência nas últimas décadas, notadamente na era pós-industrial.
Tamanha é sua magnitude dentro do corpo social que obrigou o ordenamento jurídico a desenvolver uma verdadeira política de repressão ao endividamento excessivo da população brasileira por meio da promulgação da Lei 14.181/2021, cujas disposições centrais acabaram por forjar e consolidar o princípio do crédito responsável, no resguardo ao mínimo existencial, desenvolvendo, ainda, novas soluções jurídicas para a tutela dos interesses tratados, em especial, da pessoa idosa.
Além de se debruçar sobre os principais fatores que levaram à origem do superendividamento do idoso nos dias atuais, buscar-se-á, também, demonstrar a importância da Lei nº 14.181/2021, enquanto mecanismos estruturantes de uma necessária evolução social, pautada pela proteção do consumidor hipervulnerável.
A sociedade atual atravessa o desafio de combater o consumo excessivo, em busca da tão sonhada sustentabilidade e do engajamento ético daqueles que integram o chamado “ciclo de vida do produto”, nos termos do art. 3º, inc. IV, da Lei nº 12.305/2010, que trata da Política Nacional dos Resíduos Sólidos. A dificuldade, no entanto, reside no enraizamento do consumo excessivo, enquanto aspecto intrínseco à comunidade global; uma cultura de hiperconsumo, por assim dizer.
Segundo Harari (2018, p. 359), a ética capitalista-consumista é a primeira “religião” na história cujos seguidores, realmente, fazem o que deles se espera, ao conseguir que “os ricos continuem gananciosos e dediquem seu tempo a ganhar mais dinheiro e as massas deem rédea solta a seus desejos e paixões - e comprem cada vez mais”.
É importante mencionar os aspectos negativos do consumo excessivo, com destaque para o superendividamento e para a irreversibilidade da situação financeira dos afetados.
Antes de entrar, efetivamente, no tema do superendividamento do consumidor idoso, faz-se necessária uma abordagem sociológica, ainda que breve, sobre como a sociedade atingiu tamanho patamar consumista, bem como a razão pela qual esse fenômeno é parte integrante da vida dos indivíduos atualmente.
No final do século XIX e no início da Primeira Guerra mundial, surgem, nos núcleos sociais, as origens do que seria conhecido mais tarde como “indústria cultural”. Tudo isso graças ao aperfeiçoamento dos meios de comunicação e da tecnologia para as mais diversas formas de satisfação dos anseios humanos (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 57).
Quem melhor tratou o tema da “indústria cultural”, em seus estudos, foram Adorno e Horkheimer (1985), principais filósofos representantes da Escola de Frankfurt - movimento que analisou fatos sociais, cultura, consumo e entretenimento a partir de uma perspectiva crítica, visando à transformação da realidade.
Em célebre obra escrita originalmente no ano de 1947, intitulada “Dialética do Esclarecimento”, Horkheimer e Adorno expõem sobre o ar de semelhança da cultura da época, de modo a tratar o cinema, o rádio e as revistas como integrantes do próprio sistema industrial, com modo de produção autônomo e geração de lucros para seus dirigentes (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 57). Ainda, para os autores, “o fato de que milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 57).
Com essa “indústria” de produção de bens para consumo individual, as relações sociais passaram a ser fenômenos objetivos e abstratos que escapavam ao controle e, até mesmo, da consciência das pessoas; ou seja, o capitalismo limitava a liberdade dos sujeitos (Domingues, 2008, p. 74). Os consumidores desses bens passaram a ser reconhecidos como vítimas autênticas do sistema capitalista, uma vez que foram obrigados a “engolir” os produtos e serviços culturalmente padronizados e, consequentemente, alienados frente à dura realidade de dominação que os cercam.
Para Horkheimer e Adorno, o principal objetivo da “indústria cultural” era a homogeneização da sociedade por meio da disseminação de bens culturais padronizados, para fins de organizar e dominar os indivíduos inconscientemente submetidos ao sistema capitalista (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 57).
Pouco tempo depois, em uma relação de interdependência com a “indústria cultural”, surge o que Hannah Arendt conceitua como sociedade de massa, que nada mais é do que a maneira pela qual os indivíduos se unem e formam uma identidade própria, sendo o homem massificado e caracterizado por “sua adaptabilidade; sua excitabilidade e falta de padrões; sua capacidade de consumo aliada à inaptidão para julgar ou mesmo para distinguir e, sobretudo, seu egocentrismo e a fatídica alienação do mundo” (Arendt, 2016, p. 147).
Com a clássica obra denominada “Entre o passado e o futuro”, do ano de 1961, Arendt diferencia a sociedade e a sociedade de massas estabelecendo que, enquanto aquela sentia necessidade de cultura, valorizava ou desvalorizava os objetos culturais ao invés de os consumir, a sociedade de massas não precisa de cultura, mas sim de distração, “e os produtos oferecidos pela indústria de diversões são com efeito consumidos pela sociedade exatamente como quaisquer outros bens de consumo” (Arendt, 2016, p. 151).
Essa indústria de divertimento, à qual a autora alude, produz mercadorias que não possuem a finalidade de se tornarem permanentes no mundo e não devem ser julgadas por tal padrão; ao contrário, elas são bens de consumo que se esgotam rapidamente (Arendt, 2016, p. 152). Além disso, essas mercadorias devem ter novidade e ineditismo para suprir a intensa necessidade e o desejo de entretenimento da sociedade de massa. O atrativo da novidade, sempre adjetivado pela “obsolescência programada” (Capella, 1998, p. 24) imposta pelo mercado, subverte a sociedade ao consumo compulsivo.
Desse modo, pode-se notar a relação de interdependência da “indústria cultural” e da sociedade de massa, pois ambas aumentaram o sentimento de consumo nas pessoas pertencentes à comunidade capitalista, fazendo que mais mercadorias fossem produzidas e adquiridas pelos indivíduos com objetivo de satisfazer suas necessidades de entretenimento rápido e efêmero.
Com o advento da pós-modernidade, as relações de consumo passaram por uma análise sob um novo enfoque em relação às teorias mencionadas anteriormente, ganhando relevo a imagem, a estética e o estilo de vida dos consumidores como verdadeiros critérios para o desenvolvimento do mercado de consumo.
De acordo com Bauman (2008), as pessoas são aliciadas, estimuladas ou forçadas a promover uma “mercadoria” atraente e desejável, fazendo uso dos melhores recursos que possuem à disposição, para incrementar o valor do produto que estão vendendo, sempre com a finalidade de gerar correspondência exata entre a mercadoria e os próprios indivíduos. Para o referido autor, “a característica mais proeminente da sociedade de consumidores - ainda que cuidadosamente disfarçada e encoberta - é a transformação dos consumidores em mercadorias” (Bauman, 2008, p. 20).
Sendo assim, o objetivo crucial do consumo na sociedade de consumidores pós-moderna não é a satisfação de necessidades, desejos e vontades das pessoas, mas a comodificação ou recomodificação do consumidor, ou, dito em outras palavras, elevar a condição dos consumidores à de mercadorias vendáveis (Bauman, 2008, p. 76).
O sociólogo polonês estabelece, ainda, uma distinção entre consumo e consumismo, porém “de maneira distinta do consumo, que é basicamente uma característica e uma ocupação dos seres humanos como indivíduos, o consumismo é um atributo da sociedade” (Bauman, 2008, p. 41). Em melhores palavras, consumismo nada mais é que um arranjo social que coordena a reprodução sistêmica, a integração e a estratificação sociais, além da formação dos seres humanos ao participar da seleção e da execução de projetos de vida individuais (Bauman, 2008, p. 41).
Dessa forma, o consumismo exerce uma grande influência na sociedade atual, ainda que, muitas vezes, despercebida e involuntária, pois os integrantes do ambiente social buscam, em praticamente todos os momentos, referenciarem-se a partir do consumo praticado. Tal fato pode ser demonstrado e fica muito mais evidente, a partir do surgimento e desenvolvimento das redes sociais em meios eletrônicos (Fazolli, 2016, p. 41).
Lipovetsky (2007, p. 104), ao se referir ao período pós-moderno, destaca a figura do “turboconsumismo”, momento no qual foi ampliada incessantemente a gama de escolhas individuais e desenvolvida a individualização dos bens de equipamento. Em suas palavras, o “turboconsumismo” representa “a passagem da era da escolha à era da hiperescolha, do monoequipamento ao multiequipamento, do consumismo descontínuo ao consumismo contínuo, do consumo individualista ao consumo hiperindividualista” (Lipovetsky, 2007, p. 104).
Os sujeitos, nessa fase, buscam, na ostentação e no consumo exacerbado, muito mais do que não ser confundido com os outros, tendo uma lógica bem além das paixões egoístas, mas se caracterizam pela emancipação das condutas pessoais em comparação aos enquadramentos coletivos, bem como pelo intenso desenvolvimento dos cultos ao divertimento, do maior bem-estar e da saúde (Lipovetsky, 2007, p. 125).
Na pós-modernidade, o consumismo passa a ser um verdadeiro atributo da sociedade, influenciando a vida de todos, ainda que, muitas vezes, despercebida e involuntariamente, gerando uma necessidade voltada para a aquisição enquanto forma de autorrealização.
A condição suscetível da pessoa idosa é temática recorrente no direito contemporâneo. Contudo, esse tratamento e esse cuidado conferido aos idosos é fruto não apenas do respeito aos mais velhos, mas também da concepção erigida pelo modelo contemporâneo constitucionalista, que se fundamenta na vulnerabilidade do idoso como aspecto central da igualdade material (Coelho; Ayala, 2019, p. 4; Graeff, 2013, p. 2).
Com isso em mente, uma série de mecanismos legislativos foram empreendidos no intuito de proteger esse grupo de sujeitos. Como precursor na proteção eficaz dos idosos, é possível citar a Lei 10.471, de 2003, principal responsável pela condensação dos direitos inerentes ao idoso e pela tipificação das condutas praticadas contra estes (Queiroz, 2006, p. 2).
Além disso, é importante citar o papel desempenhado pelo Código de Defesa do Consumidor que, antes mesmo da criação do Estatuto do Idoso, previa como prática abusiva o ato de prevalecer-se da fraqueza ou da ignorância de alguém em razão de sua idade.
A proteção erigida em prol da pessoa idosa é conquista tida como recente para o ordenamento jurídico atual (Graeff, 2013, p. 2). Isso porque, a partir do atual reconhecimento de determinadas vulnerabilidades sociais, floresceu o dever de discriminação positiva dos grupos fragilizados (Coelho; Ayala, 2019, p. 2; Nunes, 2021, p. 212).
Nesse sentido, para falar em direitos do consumidor idoso, deve-se perpassar pelos fundamentos do dever de tutela que a Constituição Federal de 1988 resguarda não só à pessoa idosa, mas também ao consumidor. Em seu art. 5º, inc. XXXIII, a Carta Magna assinala a proteção do consumidor ao dispor que “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (Brasil, 1988, cap. I, art. 5, inc. XXXII), já no art. 230 do mesmo texto legislativo está consignado ao idoso o direito de ser amparado pela família, pelo Estado e pela sociedade.
Nas lições de Graeff (2013, p. 2), essa proteção vem sendo conferida a novos bens jurídicos e sujeitos, em especial, ao consumidor e ao idoso. Trata-se, na mais clara dicção, de reflexo direto da “expansão e especificação dos direitos humanos apontados por Norberto Bobbio” (Graeff, 2013, p. 2). Para a estudiosa, é por meio dessa incorporação de direitos e deveres que o sistema normativo inicia uma análise profunda acerca das vulnerabilidades (Graeff, 2013, p. 2).
É em detrimento dessa mudança paradigmática que a Lei nº 10.471, de 2003, encontra respaldo em seu escorço histórico. Atendendo às disposições de índole constitucional elevadas pelo art. 230, o Estatuto do Idoso, legislação de índole protetiva, trata-se de diploma legal responsável pela condensação dos direitos inerentes ao idoso e pela tipificação das condutas praticadas contra estes como formas de concessão do devido amparo jurídico em razão de sua inerente vulnerabilidade (Queiroz, 2006, p. 2).
A construção materializada pelo Código de Defesa do Consumidor também ocorre em sentido análogo, em que, seus mais de 100 artigos, exprime verdadeira política nacional de combate às abusividades ocorridas no mercado de consumo para fins de reconhecer a existência de constante e esmagador desequilíbrio entre as partes e a consequente necessidade de o Estado amenizar tais dissonâncias (Santos; Vasconcelos, 2018, p. 3; Theodoro Júnior, 2020, p. 3).
Especificamente ao consumidor idoso, o Código de Defesa do Consumidor, pioneiro no tema das vulnerabilidades, exaltou, em seu art. 54, alínea “c”, a absorção da tutela conferida a esse grupo de sujeitos nos casos de oferta de crédito, dispondo, ipsis litteris, ser vedado “assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio” (Brasil, 1990, cap. VI-A, art. 54-C, inc. IV).
Ademais, antes da alteração legislativa que fez a inclusão do dispositivo supra, o art. 39, inciso IV, do diploma consumerista já fazia previsão como prática abusiva a conduta de “prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade [...] para impingir-lhe seus produtos ou serviços” (Brasil, 1990, cap. V, art. 39, inc. IV), disposição que, apesar de não se referir de forma expressa à classe idosa, provocava, de antemão, a possibilidade de proteção desse sujeito de características especiais face à legislação (Graeff, 2013, p. 2; Coelho; Ayala, 2019, p. 7)
Vale notar que todas essas disposições partem de um pressuposto básico que se refere à existência prévia e inseparável da suscetibilidade do sujeito idoso em sofrer danos, ou, em termos específicos, ser vulnerável frente aos demais (Pasqualotto; Soares, 2017, p. 2-3). Essa vulnerabilidade que deve ser analisada em um aspecto amplo dentro do sistema, por vezes, conduz ao estado de hipervulnerabilidade, em que o idoso enfrenta outras fragilidades além da idade (Coelho; Ayala, 2019, p. 6).
Dessa forma, se antes das alterações legislativas oportunizadas pela Lei nº 14.181, de 2021, era possível falar na proteção da pessoa idosa como forma de resguardo ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da igualdade formal e material, com a vigência da referida Lei, foi possível não apenas individualizar esse grupo, como ainda promover sua proteção por meio da absorção expressa do termo hipervulnerabilidade (Graeff, 2013, p. 2-4).
O Código de Defesa do Consumidor em seu art. 4º, inc. I, foi preciso ao estabelecer a vulnerabilidade do consumidor como princípio de ordem cogente e geral do sistema normativo consumerista (Nishiyama; Densa, 2010, p. 8). Isso porque, ao tratar a fragilidade do sujeito ativo das relações de consumo como princípio basilar, o CDC permitiu a análise casuística baseada não em uma aplicação de “tudo-ou-nada” igual às regras jurídicas tradicionais, mas sim, em juízos amplos de ponderação (Dworkin, 2002, p. 39; Pasqualotto; Soares, 2017, p. 1).
Nesse sentido, a vulnerabilidade passou a ser compreendida não apenas como premissa norteadora das relações de consumo, mas enquanto “[...] requisito essencial para formulação de um conceito de consumidor” (Cavalieri Filho, 2022, p. 24), pois, muito embora a Constituição Federal refira-se à livre iniciativa como um dos fundamentos da República, é justamente o art. 170, inc. V, do referido diploma que assinala a defesa do consumidor como princípio geral da atividade econômica.
Tal perspectiva que se fulcra no tratamento isonômico dos grupos sociais e ressalta a fragilidade preexistente entre o relacionamento consumidor-fornecedor é reflexo direto da construção de uma ordem democrática de direito que, a partir da revalidação das desigualdades existentes, estabelece o equilíbrio e a harmonia como responsabilidade da República Federativa do Brasil (Grinover et al., 2019, p. 73).
Justamente em relação a isso é que a doutrina se voltou, desde os primeiros estudos empreendidos em face do CDC, da conceituação e da aplicação do termo vulnerabilidade frente às relações de consumo (Santos; Vasconcelos, 2018, p. 3). Segundo Nunes (2021, p. 236), para uma análise completa da vulnerabilidade dentro de uma perspectiva principiológica e sistemática, demanda-se a consideração prévia pelo intérprete do direito da supremacia de fatores tanto técnicos quanto econômicos do fornecedor em relação ao consumidor.
Assim, para ele (Nunes, 2021, p. 236), a vulnerabilidade técnica seria então aquela que se refere ao conhecimento específico ou propriamente científico sobre o produto ou serviço adquirido nas relações de consumo, enquanto a vulnerabilidade econômica relaciona-se ao poderio e ao monopólio financeiro que o fornecedor agrega dentro de seus meios de produção em face do consumidor.
Já por meio de uma concepção ampliativa, Marques (2005, p. 304) leciona em favor da existência de mais duas espécies de vulnerabilidade, a jurídica ou científica, decorrente da falta de conhecimentos jurídicos, econômicos e contábeis, e a vulnerabilidade informacional que é entendida como um verdadeiro déficit que nasce a partir da manipulação de informações inverídicas ou dissimuladas pelo fornecedor.
Nesse aspecto, ao levar em consideração que, “no âmbito da tutela especial do consumidor, efetivamente, é ele sem dúvida a parte mais fraca, se se tiver em conta que os detentores dos meios de produção é que detêm todo o controle do mercado [...]” (Grinover et al., 2019, p. 73), é possível afirmar que sua vulnerabilidade se encontra fundamentada em uma presunção legal e absoluta de desigualdade preexistente dentro da relação de consumo e do consequente dever de equiparação imediata que o ordenamento jurídico atribui a esses sujeitos (Cavalieri Filho, 2022, p. 75-76). A vulnerabilidade é, pois, característica indissociável do conceito de consumidor.
Por outro lado, tem-se a compreensão do termo hipossuficiência. Esta, inobstante ser, por vezes, indicada de forma errônea como sinônimo de vulnerabilidade, apresenta-se, em verdade, como um traço subjetivo e casuístico de determinados consumidores que, dentro da relação processual, não se encontram em condições de, nos termos do art. 6°, inc. VII, “fazer prova necessária à instrução do processo” (Theodoro Júnior, 2020, p. 11).
Em virtude disso, a hipossuficiência, dentro do diploma consumerista, encontra-se inteiramente associada à seara puramente processual e, especificamente, aos casos de inversão do ônus probatório, sendo aplicado pelo Juiz, por meio de suas máximas de conhecimento, apenas quando defronte à situação de agravamento de sua condição, em razão de carência cultural ou material (Cavalieri Filho, 2022, p. 75).
Em outra gradação, todavia, estão os sujeitos hipervulneráveis, os quais, em razão de fatores biológicos, psicológicos e, até mesmo sociais, possuem uma fragilidade, ou melhor dizendo, vulnerabilidade mais acentuada em relação aos demais indivíduos (Nishiyama; Densa, 2010, p. 3). São estes os idosos, as crianças e os portadores de deficiência dentre outras pessoas, passíveis de enquadramento nesta novel categoria.
Pasqualotto e Soares (2017, p. 3-5), ao tratarem da hipervulnerabilidade, a classificam como um conjunto de fatores, sejam temporários ou não, que tornam o indivíduo mais propenso ao dano. Para os autores, assim como nos casos de vulnerabilidade, o agravamento da fragilidade de determinados grupos e sujeitos é ocasionada por fatores de ordem biológica, socioeconômica, geográfica ou, até mesmo, vinculados ao próprio consumo.
Posto isso, conforme a mesma lição doutrinária, apesar de a vulnerabilidade e a hipervulnerabilidade não se encontrarem dissociadas uma da outra, a constatação da existência de cada um dos institutos demanda análise diferenciada, de vez que, enquanto a vulnerabilidade se trata de princípio condutor do sistema consumerista, a hipervulnerabilidade pode ser visualizada como característica individualizada, para casos específicos.
Por derradeiro, com o afloramento das vulnerabilidades provenientes da expansão da cultura de massas e da sociedade de hiperconsumo, nos termos anteriormente relatados, a concessão de proteção jurídica que excede a mera igualdade formal se faz de extrema relevância não apenas para as relações consumeristas, mas as próprias desigualdades existentes dentro de toda a ordem jurídica brasileira.
Conforme enunciado, dentro da categoria das vulnerabilidades existentes na sociedade contemporânea, é possível vislumbrar o despontar de grupos de sujeitos que, por ocasião de suas características pessoais, necessitam de maior proteção em relação aos demais (Nishiyama; Densa, 2010, p. 3). Entre esses grupos reconhecidamente hipervulneráveis, estão os consumidores idosos.
O agravamento da condição vulnerável desses indivíduos é reconhecido pelo ordenamento jurídico, por análise conjunta de premissas constitucionais (CF, arts. 5º, inc. XXXIII, e 230) e diplomas pertencentes à legislação ordinária federal (Código de Defesa do Consumidor e Estatuto do Idoso), com evidente destaque à garantia de tratamento diferenciado (Coelho; Ayala, 2019, p. 7).
Etimologicamente falando, ao menos no que tange à proteção pretendida pelo ordenamento, o art. 1º da Lei 10.741 de 2003 enquadra na categoria de idoso todas as “pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos”. Já o Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 39, inciso IV, assinala a proteção ostensiva ao idoso, fulcrando-se na fraqueza e na suscetibilidade deste dentro do mercado de consumo (Pasqualotto; Soares, 2017, p. 5).
Além disso, em uma análise detida à Lei do Superendividamento, é possível perceber que o Código de Defesa do Consumidor passou a dispor de forma expressa por meio do art. 54-C, inciso IV, sobre a proteção do idoso, nos casos de assédio na contratação de produtos ou serviços.
Acerca dessas especificidades relativas à vulnerabilidade agravada do idoso, Miragem (2016, p. 134) indica dois principais elementos como causa. O primeiro referente à maior suscetibilidade desses sujeitos ao consumo leviano por ocasião de sua debilidade física e mental para negociações, e o segundo relacionado de forma específica à dependência e à necessidade de aquisição de determinados produtos e serviços relativos à vida quotidiana e à própria qualidade de vida dos idosos.
Todavia, ainda que a condição agravada da vulnerabilidade não seja uma presunção de ordem absoluta aplicada a todo consumidor idoso (Brasil, 2018), é importante mencionar que sempre, ao se deparar com um idoso consumidor, a conduta do fornecedor deverá ser fulcrada em um maior dever de cuidado, seja para a análise de suas fragilidades, seja em razão da existência dessas (Pasqualotto; Soares, 2017, p. 5).
Diferentemente da vulnerabilidade, a condição de hipervulnerável do consumidor idoso deve ser averiguada de forma casuística, tomando-se por base a análise das circunstâncias capazes de promover o agravamento da fragilidade que caracteriza qualquer consumidor, conjugando esforços interpretativos para que sejam assegurados os preceitos constitucionais da isonomia e da dignidade da pessoa humana.
Falar em superendividamento da pessoa idosa é compreender o complexo sistema capitalista de consumo em que a exploração e o abuso das fragilidades dos sujeitos consumidores se apresentam como ferramenta para o alegado progresso da sociedade contemporânea. No mesmo passo, com fincas a coibir tais abusos, o ordenamento jurídico se molda e ajusta aos fatores sociais para fins de tutelar e resguardar a dignidade daqueles que se apresentam em pé de desigualdade frente ao mercado.
Com isso em mente, o superendividamento do idoso, fenômeno pós-moderno, nada mais representa que um reflexo aos estímulos desmedidos do mercado consumerista em relação aos hipervulneráveis, sendo, desse modo, dever do Direito a criação e a implementação de normativas aptas a rechaçar condutas abusivas.
O superendividamento do consumidor, apesar de temática um tanto quanto recente nos debates acadêmicos e jurisprudenciais brasileiros é, conforme assinalam Efing, Polewka e Oyague (2015, p. 338), um fenômeno social com origens que remontam ao nascimento e à difusão da sociedade de hiperconsumo. Assim, falar em endividamento excessivo da pessoa natural na contemporaneidade é sinônimo de compreender o longo processo de desenvolvimento do sistema capitalista de consumo (Coelho; Ayala, 2019, p. 3).
Com o aumento e a diversificação dos processos produtivos ocasionados pelo majestoso desenvolvimento tecnológico do séc. XX, o consumo passou a apresentar-se à sociedade pós-moderna sob a roupagem da efemeridade, em que a obsolescência e a imediatidade irradiam não apenas sobre os bens produzidos, mas também sobre as próprias ambições dos consumidores que, a cada dia mais, veem-se obrigados a acompanhar o mercado de massas (Barifouse, 2018, p. 2; Fazolli, 2016, p. 40-41).
Essa irreverente vinculação do consumidor a um estado inconsciente de “bem-estar”, em razão do consumo desmedido de bens e serviços cada dia mais modernos, é hoje analisada como obra do manejo das técnicas publicitárias (Bioni, 2015, p. 2; Efing; Bergstein; Gibran, 2012, p. 3). Publicidade que foi capaz de criar e manter a estrutura social do capitalismo de consumo, tornando o consumidor vítima de um modelo sistemático de consumo de bens efêmeros e satisfações fugazes (Fazolli, 2016, p. 41-42).
Mesmo que a publicidade tenha se apresentado como medida eficaz até os dias atuais naquilo que tange à sedimentação de necessidades passageiras na psiquê dos consumidores, fato é que, para manter as engrenagens do capitalismo moderno girando em uma proporção exata entre a colocação de novos produtos no mercado e a destruição destes pelo uso, tornou-se primordial a concessão de crédito às pessoas físicas (Bioni, 2015, p. 2).
Nesse sentido, a ideia da democratização do crédito, surgida nos Estados Unidos, em meados do século XX, como saída consentânea dos problemas sociais enfrentados pelo mundo em razão dos horrores da Segunda Guerra Mundial, correspondeu, diferentemente do esperado, à derrocada direta do poder de compra e do endividamento excessivo da pessoa física (Lima; Cavallazzi, 2016, p. 16).
De acordo com Lima e Cavallazzi (2016, p. 16), mesmo que a pulverização do crédito tenha promovido a inserção e a oportunidade de atuação no mercado de consumo de indivíduos, até então, excluídos da vida econômica pós-moderna, é bem verdade que tal mecanismo se deu de forma insidiosa, sob abuso da publicidade e das propagandas nocivas, além da concessão de crédito sem a verificação de qualquer capacidade de reembolso.
Todos esses fatores, unidos à inexistência de qualquer proteção ou conhecimentos básicos de finanças, compuseram o ambiente ideal para a ascensão, em todos os países, do superendividamento (Efing; Polewka; Oyague, 2015, p. 390). Fenômeno que, na contramão à ideia de inclusão do consumidor no mercado por meio da concessão facilitada do crédito, resultou em sua “falência civil” e consequente exclusão total do mercado de consumo (Marques, 2010, p. 3).
No Brasil, a realidade do endividamento excessivo do consumidor pessoa física não é diferente. A implementação do plano real na década de 1990 e o posterior estímulo à aquisição das linhas de crédito popular em meados de 2010, de acordo com Efing, Polewka e Oyague, “[...] levou milhares de famílias brasileiras a se endividarem até o limite de suas possibilidades” (Efing; Polewka; Oyague, 2015, p. 395).
O superendividamento da pessoa física, que, em uma visão simplista do assunto, revela-se como fator individual dentro da sociedade, em sua mais complexa forma, mostra a face diante de um problema estrutural, massivo e de ordem social que compromete não apenas o indivíduo, também a família, as relações comerciais, a reputação e a própria sociedade (Lima; Cavallazzi, 2016 p. 16).
Ainda que existam, no ordenamento jurídico brasileiro pátrio, normas habilmente capazes de tutelar os interesses da classe consumidora (Código de Defesa do Consumidor), para fins de harmonizar as dissonâncias existentes no mercado creditício, fez-se necessária a previsão específica por meio da Lei 14.181, de 1º de julho de 2021, de mecanismos eficazes e limitadores da concessão, até então irrestrita, do crédito às pessoas físicas, leigas e de boa-fé (Benjamin et al., 2021, p. 32).
Essa definição de consumidor superendividado, a despeito de ser taxativamente trabalhada pelo art. 54-A, § 1º, da Lei supra - a ser comentado em momento posterior -, apresenta-se ao ordenamento jurídico como resultado de estudos aprofundados da mais benquista doutrina, em especial pela precursora no assunto, a Professora Marques (2006, p. 256), que, já no ano de 2006, definiu o superendividamento como o comprometimento financeiro integral e duradouro da pessoa física leiga e de boa-fé que possui sob sua titularidade dívidas das quais não pode adimplir sem que comprometa seu próprio sustento ou o mínimo existencial.
De importância equivalente está a contribuição de Bruno Miragem, que, em artigo recente, ao tratar das alterações legislativas promovidas pela Lei do Superendividamento no Código de Defesa do Consumidor, explorou de forma analítica a composição dos elementos textuais presentes na conceituação do superendividamento, de maneira a indicar a existência de pressupostos de ordem subjetiva, objetiva e teleológica, ou como Cláudia Lima Marques define, subjetiva, material e finalística (Benjamin et al., 2021, p. 33; Miragem, 2021).
Naquilo que toca o requisito subjetivo, é possível indicar a necessidade de que a dívida seja contraída por pessoa física e de boa-fé (Miragem, 2021). Relativamente à aplicação da lei apenas às pessoas físicas, constata-se, em mais uma oportunidade, a divisão sistêmica aplicada à falência da pessoa jurídica e ao superendividamento da pessoa natural (Benjamin et al., 2021, p. 35). Quanto à boa-fé, esta é objetiva e “trata-se de nova ordem pública de proteção ao consumidor superendividado” (Benjamin et al., 2021, p. 34), uma vez que institui uma presunção iuris tantum que encontra limite apenas na prova de má-fé ou no dolo do consumidor.
Em relação ao requisito material, ou objetivo, este se aplica às dívidas feitas por meio de relação estritamente consumerista, ou seja, aquela não profissional, tributária ou familiar (Marques, 2010, p. 39). Finalmente, acerca do elemento finalístico, este se debruça no conceito de mínimo existencial e na sua necessidade de preservação, restringindo a aplicação das normas em questão apenas no caso de comprometimento efetivo da subsistência do consumidor (Miragem, 2021).
Existe, ainda, a distinção realizada entre a doutrina a respeito do superendividamento passivo e ativo, sendo o primeiro relativo às vicissitudes da vida, como desemprego, doença, morte, divórcio etc. Já o superendividamento ativo se refere aos indivíduos que “[...] consumiram além das possibilidades permitidas por sua renda” (Efing; Polewka; Oyague, 2015, p. 390), podendo esse consumo exacerbado ser doloso, caso em que a Lei 14.181/2021 se aplica, ou não.
Posto isso, a conclusão a que se pode chegar a partir da presente análise cronológica e substancial a respeito do superendividamento orienta para o aperfeiçoamento da forma na qual as relações de consumo são travadas, bem como a implementação de uma verdadeira política de concessão responsável do crédito unida à regulamentação eficaz da publicidade e da propaganda de maneira a incluir o consumidor na economia de forma duradoura.
O aumento da expectativa de vida do brasileiro é fato notório desde meados de 1990, quando diversos setores da sociedade passaram a experimentar melhora significativa de sua condição econômica por meio da adoção das pautas públicas e de viés social pelos Estados Contemporâneos (Doll, 2016, p. 148). Via de consequência, as alterações enfrentadas no manto social conduziram de forma direta à inserção da pessoa idosa em uma posição considerável dentro do mercado de consumo (Coelho; Ayala, 2019, p. 9).
Com a criação e a implementação de diversos benefícios previdenciários, a velhice deixou de ser vista sob a ótica da pobreza e do desalento para, então, representar uma duradoura estabilidade financeira (Benjamin et al., 2021, p. 353). Por conseguinte, se antes a pessoa idosa necessitava do auxílio de seus familiares em relação às suas finanças, com a guinada dos movimentos sociais, a situação inverteu-se, para fins de situar boa porcentagem dos idosos brasileiros como verdadeiros pilares econômicos em seus núcleos familiares (Martins, 2021, p. 12).
Ocorre que, assim como toda nova relação jurídica, a participação ativa do idoso dentro da sociedade de massa, em especial por ocasião de sua manifesta hipervulnerabilidade, tem sido obra de diversos abusos por parte do mercado de consumo (Coelho; Ayala, 2019, p. 9). Nesse sentido, além das práticas abusivas intentadas em face da totalidade de consumidores, os idosos passaram ainda a serem alvos diretos de uma política inescrupulosa e irresponsável de concessão de crédito (Doll, 2016, p. 155).
Doll (2016, p. 157-162), em interpretação às pesquisas de campo realizadas nos anos de 2006 e 2007 pelo Grupo “Educação e Envelhecimento” da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em conjunto com o Procon São Paulo e a Faculdade de Direito e da Educação da UFRGS, concluiu que, dentre os principais fatores que levam os idosos à situação do endividamento excessivo, estaria a concessão desmedida do crédito na modalidade consignada.
Para o referido autor (Doll, 2016, p. 157-163), apesar da existência de motivações justas por parte da população idosa para a aquisição do crédito, como a necessidade de ajudar familiares, pagar dívidas antigas ou ainda reformar suas residências, o endividamento desmedido do idoso brasileiro encontra fundamento, notadamente, quanto à conjugação de fatores ligados à exploração arbitrária de suas hipervulnerabilidades, por meio do manejo irregular das técnicas publicitárias unidas à ausência de transparência e informações essenciais sobre o produto.
Não bastando tais fatores, as modificações sociais ocasionadas pela eclosão da Pandemia da Covid-19 por todo o globo é, conforme explica a professora Martins (2021, p. 2), fator de grandiosa influência no que toca à compreensão do endividamento estrutural da pessoa idosa, cuja necessidade de aquisição de novas fontes creditórias se mostrou primordial para que o enfrentamento dos efeitos pandêmicos se mostrasse possível.
Em contrapartida a esse novíssimo fenômeno social, é importante rememorar que o Direito vem caminhando, mesmo que a passos tímidos, no sentido de conter o superendividamento da pessoa idosa há mais de uma década1. Preocupação que vem sendo diametralmente construída, a partir de forçosas lutas para a implementação dos direitos de índole social, tal quais aqueles resguardados pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo Estatuto do Idoso.
Nesse diapasão, significativo destaque se dá com relação ao entendimento proferido pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio do REsp 1.783.731 (Brasil, 2019), no qual ficou consignada a preocupação já pungente na sociedade brasileira quanto à necessidade de tutela da pessoa idosa frente à concessão irresponsável do crédito. No caso em apreço, a Relatora Ministra Nanci Andrighi firmou seu entendimento para fim de considerar que a atribuição de critério etário para restringir a contratação de empréstimos consignados para pessoas com mais de 80 anos não poderia ser vista como uma causa plausível de discriminação.
Tal entendimento, em que pese ao contemporâneo, de vez que datado do ano de 2019, representa, de maneira expressa, a inquietação do Direito no que toca à criação e à implementação de normativas suficientemente aptas a proteger os setores mais vulneráveis da sociedade, em especial, aqueles que são acometidos pela chamada hipervulnerabilidade e acabam, dessa maneira, sendo os mais suscetíveis aos aliciamentos e às manobras do mercado.
Expostas tais predileções, é possível concluir que, não obstante a ampliação de legislações protetivas dos vulneráveis nos últimos anos, naquilo que toca ao superendividamento da pessoa idosa, apenas com a criação da Lei nº 14.181/2021, é que se pode falar na aplicação concreta de meios eficazes à diminuição dos malefícios ocasionados pela concessão indiscriminada de crédito, notadamente daquele destinado ao consumidor idoso.
Após anos de intensos debates legislativos sobre o Projeto de Lei 283/2012 por diversos setores da sociedade civil brasileira, foi promulgada pelo Presidente da República a Lei nº 14.181/2021, a qual alterou o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto do Idoso para aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento.
Conforme exposto no capítulo anterior, a condição de superendividamento é um problema grave, pois exclui indivíduo da sociedade de consumo ao incluir seu nome nos bancos de dados dos órgãos de restrição ao crédito (como Serasa e SPC, por exemplo). Além disso, a ausência dessas pessoas consumindo produtos e serviços representa um entrave para a retomada da economia, principalmente depois das sequelas causadas pela pandemia de Covid-19 (Martins, 2021, p. 2).
O texto do Projeto de Lei 283/2012 apresentava a seguinte justificativa, em sua exposição de motivos:
O Projeto de Lei ora apresentado objetiva atualizar o Código de Defesa do Consumidor (CDC), incluindo normas principiológicas referentes ao importante tema da concessão de crédito ao consumidor - que é base das economias de consumo nos países industrializados e agora está em ascensão no Brasil - e ao consequente tema da prevenção do superendividamento dos consumidores, problema comum em todas as sociedades de consumo consolidadas e saudáveis. Trata-se de temas novos, oriundos do pujante e consistente crescimento econômico brasileiro e da democratização do acesso ao crédito e aos produtos e serviços em nosso mercado. As normas propostas visam a preparar o mercado e a sociedade brasileira para os próximos anos e reforçam os direitos de informação, de transparência, de lealdade e de cooperação nas relações que envolvem crédito, direta ou indiretamente, para o fornecimento de produtos e serviços a consumidores, assim como impõem um standard atualizado de boa-fé e de função social destes contratos, em virtude da entrada em vigor do Código Civil de 2002 (Brasil, 2012).
Pelas razões declinadas no prelúdio legislativo acima, era evidente a necessidade de criação de uma lei que promovesse alterações no Código de Defesa do Consumidor, com a finalidade de tratar essa realidade e prevenir sua ocorrência em determinados casos. Nas palavras de Cláudia Lima Marques, “o estado de superendividamento é um fenômeno social, econômico e jurídico, que necessitava de algum tipo de ‘tratamento’, de ‘saída’ ou solução pelo Direito do Consumidor” (Benjamin et al., 2021, p. 28).
Durante o processo de tramitação do referido Projeto de Lei, a doutrina consumerista afirmava que sua aprovação representaria um grande passo na prevenção do superendividamento e na reinserção do consumidor na sociedade, pois estabelecia deveres aos fornecedores de crédito no momento da oferta, bem como instituía mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do fenômeno (Efing; Polewka; Oyague, 2015, p. 407).
Com a aprovação do Projeto de Lei 283/2012 e sua consequente promulgação na Lei 14.181/2021 para prevenir e tratar a problemática do superendividamento do consumidor, resta à sociedade compreender suas principais disposições normativas e saber como o novo diploma legislativo afeta a situação da pessoa idosa endividada - cujo tema é objeto central deste estudo.
Talvez a principal novidade de vertente axiológica inserida no CDC por meio da Lei nº 14.181/2021, refira-se à disciplina do estímulo à concessão do crédito responsável e do respeito ao mínimo existencial do consumidor. Com redação dada pelo novo diploma legislativo, o art. 6º, inciso XI, do CDC estatui que é “direito básico do consumidor a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial”.
Atualmente, tanto a doutrina (Benjamin et al., 2021, p. 24; Gagliano; Oliveira, 2021) como a jurisprudência (Distrito Federal, 2018) nacional tratam o crédito responsável como um princípio. Dessa forma, sendo o princípio jurídico um estado ideal a ser alcançado por uma determinada comunidade, o princípio do crédito responsável corresponde a um importante mandamento legal a ser observado no momento da oferta e da contratação de financiamentos, empréstimos e outros serviços de crédito oferecidos no mercado de consumo.
Sem sombra de dúvidas, a melhor maneira de prevenir o superendividamento é por meio do crédito responsável, com a avaliação da capacidade de reembolso do consumidor, para instituir a cultura do pagamento e combater práticas abusivas contra idosos, analfabetos e pessoas com vulnerabilidade agravada, combatendo o assédio de consumo (Benjamin et al., 2021, p. 65).
Visando a dispor sobre um verdadeiro estado ideal a ser realizado e seu caráter preventivo, Gagliano e Oliveira (2021) conceituam o princípio do crédito responsável como “a norma que direciona o ordenamento jurídico em favor de práticas negociais saudáveis abrangentes das mais variadas formas de crédito”.
Os mesmos autores (Gagliano; Oliveira, 2021) ainda estatuem que o referido princípio é caracterizado pelo atendimento de três diretrizes basilares:
A primeira mira o Poder Público. Cabe-lhe direcionar seus atos normativos, suas políticas públicas e suas atividades de fiscalização no sentido de reprimir práticas que contrariem o crédito responsável. A segunda dirige-se aos credores. Há um dever jurídico dos credores de não fornecer créditos irresponsáveis, assim entendidos aqueles que, por um exame prévio do caso concreto, não são factivelmente pagáveis pelo devedor. Esse dever jurídico tem conexão com o dever de boa-fé objetiva, que exige comportamento ético de todos os particulares. Um dos desdobramentos da boa-fé objetiva é o duty to mitigate the loss, segundo o qual o credor tem o dever de cooperar com o devedor e adotar um comportamento que não estimule o aumento da dívida. Em síntese, o credor não deve estimular o endividamento imprudente do devedor. A terceira endereça-se aos próprios devedores. O devedor tem o dever jurídico de adotar um comportamento de prudência ao contrair dívidas, buscando abster-se de assumir compromissos além de sua capacidade de pagamento (Gagliano; Oliveira, 2021).
De modo semelhante, a busca pela preservação do mínimo existencial do consumidor, destacado no artigo em comento, representa um importante avanço no combate ao superendividamento, uma vez que visa a garantir a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) e auxilia na promoção dos núcleos de irradiação de direitos, eleitos pela Constituição Federal, em seu art. 3.º, inc. III (Canela Júnior, 2011).
É importante destacar que o mínimo existencial é a garantia (e direito fundamental) que independe de expressa previsão na Carta Magna brasileira para ser reconhecido, visto que já decorrente da proteção da vida e da dignidade da pessoa humana (Sarlet, 2007, p. 8). Inclusive, há quem reconheça que tal garantia constitui o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais; núcleo este blindado contra toda e qualquer intervenção por parte do Estado e da sociedade (Sarlet, 2007, p. 8).
Estando expresso pela primeira vez no CDC, esse direito fundamental pode ser conceituado como um conjunto de deveres materiais a serem realizados por parte do Estado com a finalidade de proporcionar ao cidadão uma vida digna e, especialmente no que diz respeito ao consumidor, preservar seus balanços financeiros ao prevenir e tratar o estado de endividamento (Efing; Pinto, 2022, p. 3), nos termos relatados anteriormente.
Ainda, como relembra Sarlet (2007, p. 7), o mínimo existencial não pode ser confundido com o que se tem chamado de “mínimo vital” ou um “mínimo de sobrevivência”, pois este último “diz com a garantia da vida humana, sem necessariamente abranger as condições para uma sobrevivência física em condições dignas, portanto, de uma vida com certa qualidade”. Na visão do referido autor, é preciso, de forma mais profunda, esse novo direito fundamental expresso no CDC, já que “não deixar alguém sucumbir à fome certamente é o primeiro passo em termos da garantia de um mínimo existencial, mas não é - e muitas vezes não o é sequer de longe - o suficiente” (Sarlet, 2007, p. 7).
Em suma, tanto o princípio do crédito responsável como a garantia da preservação do mínimo existencial do consumidor, incluídos pela Lei nº 14.181/2021 no art. 6º, inciso XI, do CDC, como direitos básicos do consumidor, representam um importante avanço para garantir a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) e evitar a exclusão da pessoa natural da sociedade de consumo, em razão do estado de superendividamento.
A Lei nº 14.181/2021 acrescentou no Título I (“Dos direitos do consumidor”) do CDC o “Capítulo VI-A” para realizar a prevenção e o tratamento do superendividamento do consumidor. Nele, ganha destaque a proteção conferida à parte mais vulnerável na relação de consumo no momento da oferta do crédito, por meio do combate ao assédio de consumo e do dever de informar do fornecedor, com a finalidade de prevenir o endividamento da pessoa natural.
Logo no art. 54-A, parágrafo primeiro, do CDC, o novo diploma legislativo estabeleceu que o superendividamento consiste na “impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação”. Da simples leitura do dispositivo, verifica-se a presença dos elementos subjetivos, dos materiais e dos finalísticos na definição legal do estado de superendividamento (Miragem, 2021), conforme exposto em momento anterior.
Além de trazer o conceito desse fenômeno, os artigos seguintes deste novo capítulo do CDC tratam, de modo mais profundo, a prevenção do superendividamento do consumidor, ganhando ênfase a situação do idoso e de outras pessoas com vulnerabilidade agravada, por intermédio da regulamentação da oferta e da publicidade do crédito.
O art. 54-C, inciso IV, do CDC estatui que é vedado, expressa ou implicitamente, na oferta de crédito ao consumidor, publicitária ou não, “assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio”. Trata-se de norma que inaugurou no CDC a figura do combate ao “assédio de consumo”.
O “assédio ao consumo”, nas palavras de Claudia Lima Marques, caracteriza-se por:
[...] estratégias assediosas de marketing muito agressivas, que pressionam os consumidores e o marketing focado em grupos de pessoas ou visando (targeting) a grupos de consumidores, muitas vezes, mais vulneráveis do mercado, como os idosos, analfabetos, doentes ou em estado de vulnerabilidade agravada” (Benjamin et al., 2021, p. 264).
Dito em outras palavras, o “assédio ao consumo” visa a pressionar o consumidor hipervulnerável, como é o caso do idoso, a contratar o fornecimento de produto ou serviço.
Com a expressa proibição desse tipo de conduta, objetiva-se, em adição de criar uma proteção “qualificada” para as pessoas idosas e demais hipervulneráveis contra o “assédio ao consumo”, diminuir ou acabar com as ofertas abusivas feitas para os idosos nas ruas, por telemarketing ou, até mesmo, em seus próprios domicílios (Brasil, 2020).
Já o art. 54-D, inciso I, do CDC proclama que, na oferta de crédito, previamente à contratação, o fornecedor ou o intermediário deverá, entre outras condutas, “informar e esclarecer adequadamente o consumidor, considerada sua idade, sobre a natureza e a modalidade do crédito oferecido, sobre todos os custos incidentes, observado o disposto nos arts. 52 e 54-B deste Código, e sobre as consequências genéricas e específicas do inadimplemento”.
O referido dispositivo reforça o dever de informação pré-contratual, proveniente do princípio da boa-fé objetiva, que deve reger as relações contratuais de crédito (Benjamin et al., 2021, p. 275). Ademais, o dever de esclarecimentos sobre o crédito ofertado para os consumidores idosos impõe uma especial cautela do fornecedor para assegurar que todas as informações foram compreendidas (Benjamin et al., 2021, p. 277).
Isso porque a publicidade que se aproveita da deficiência da compreensão do idoso, ou que se utiliza de qualquer modo dessa condição, para empurrar-lhe produtos e serviços, é qualificada como espécie de publicidade abusiva (CDC, art. 37, § 2º), pois não respeita valores éticos socialmente reconhecidos (Miragem, 2016, p. 134). Como exemplo dessa violação ao consumidor idoso, Bruno Miragem relembra das “[...] recentes contratações de empréstimos financeiros com pagamento consignado em folha, permitidos pela autarquia responsável pelos benefícios e proventos de aposentadorias da Previdência Social” (Miragem, 2016, p. 136).
Vale consignar interessante julgado oriundo do Tribunal de Justiça de São Paulo (2022), o qual proferiu decisão no sentido de condenar uma instituição financeira e uma loja de colchões à restituição, em dobro, das quantias cobradas a título de empréstimo consignado celebrado entre a consumidora idosa e o Banco, por intermédio da loja. No acórdão, ficou comprovado que a contratação do financiamento para compra do colchão se deu de maneira abusiva, de má-fé, mediante violação do dever de informar, uma vez que a idosa adquiriu o bem por meio de empréstimo bancário, mesmo possuindo saldo suficiente em sua conta bancária para pagamento integral do produto.
Desse modo, visando a estabelecer um tratamento legal mais detalhado para o momento da publicidade e da oferta de produtos ou serviços no mercado de consumo, a Lei nº 14.181/2021, com o fim de prevenir o superendividamento de pessoas idosas hipervulneráveis, representou grande avanço para o consumidor ao acrescentar, no CDC, dispositivos dirigidos aos fornecedores, como o art. 54-C, inciso IV, e o art. 54-D, inciso I, que, respectivamente, proíbem condutas de assédio no marketing e estabelecem deveres de informação e esclarecimento na fase pré-contratual.
É importe mencionar também que a Lei nº 14.181/2021 acrescentou no Título III (“Da defesa do consumidor em juízo”) do CDC o “Capítulo V” com objetivo de tratar sobre a conciliação no superendividamento. Nele, são apresentados uma série de dispositivos que estabelecem um procedimento judicial específico com o propósito de garantir a repactuação das dívidas do consumidor de forma consensual com o fornecedor de produto ou serviço.
Segundo o art. 104-A do CDC, a requerimento do consumidor superendividado pessoa natural, o juiz poderá instaurar processo de repactuação de dívidas, com vistas à realização de audiência conciliatória, presidida por ele ou por conciliador credenciado no juízo, com a presença dos credores, na qual o consumidor apresentará proposta de plano de pagamento preservado o mínimo existencial e as garantias e as formas de pagamento originalmente pactuadas.
Assim, o plano de pagamento será feito com a participação de todos os implicados em uma audiência a ser realizada, em bloco, entre devedor e credores, de forma a não comprometer o mínimo existencial do consumidor e não prejudicar excessivamente a sua renda e condições de vida digna, até mesmo, para que haja o bom cumprimento do acordo.
Destaca-se, ainda, o importante papel que o juiz ou o conciliador possui nessa audiência judicial, pois, como ensina Bertoncello (2015, p. 122), ele “facilitará essa aproximação com os credores e, acima de tudo, será o veículo pacificador e redutor da frequente confusão mental que o devedor se encontra quando acometido da condição de superendividado”.
No entanto, caso não haja a conciliação entre credores e devedor, o art. 104-B do CDC estatui que o juiz, a pedido do consumidor, instaurará processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório e procederá à citação de todos os credores cujos créditos não tenham integrado o acordo, porventura, celebrado.
Tal dispositivo representa um importante avanço para o consumidor superendividado conseguir, efetivamente, quitar suas pendências, mesmo que parcialmente. De acordo com Miragem (2021), “é precisamente desta providência, que viabiliza o recebimento de, ao menos, parte substancial da dívida pelos credores, de onde resulta a identificação de uma cultura de pagamento da dívida pela nova lei, ao invés de sua prorrogação indefinida no tempo”.
É interessante mencionar que esse procedimento conciliatório judicial, por ser endereçado para os consumidores em estado de superendividamento, também pode - e deve - ser seguido pelos idosos em situação de hipervulnerabilidade que não estejam conseguindo pagar suas dívidas. Ora, “o idoso fragilizado e superendividado deve ser protegido, deve poder conciliar com todos seus credores e não ser discriminado” (Martins; Marques, 2020).
Portanto, todos os dispositivos trazidos pela Lei nº14.181/2021, os quais estabelecem um procedimento judicial específico com o propósito de garantir a repactuação das dívidas do consumidor de forma consensual com seus credores, devem, também, ser utilizados pelo idoso endividado em situação de hipervulnerabilidade, como notória medida para quitação dos débitos sem comprometer o mínimo existencial.
Com o advento da pós-modernidade, o consumismo passa a ser um verdadeiro atributo do tecido social, influenciando a vida de todos, ainda que, muitas vezes, despercebido e involuntário, gerando uma necessidade de as pessoas adquirirem mercadorias para satisfazer suas aspirações cada vez mais individuais.
Tal modo de viver influencia sobremaneira a vida das pessoas idosas, as quais passam a ser reconhecidas como sujeitos hipervulneráveis, ou seja, pessoas que, em virtude de fatores biológicos, psicológicos e, até mesmo, sociais, possuem uma fragilidade, ou melhor dizendo, vulnerabilidade mais acentuada em relação aos demais indivíduos.
Dessa forma, além dos desafios cotidianamente enfrentados pelos idosos em razão de suas inaptidões físicas e mentais decorrentes da idade, eles passaram ainda a serem alvos diretos de uma política inescrupulosa e irresponsável de concessão de crédito, fato que os levou ao superendividamento. Esse fenômeno, por sua vez, consiste na impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, sem comprometer seu mínimo existencial.
Não obstante a ampliação de legislações protetivas dos vulneráveis nos últimos anos, como é o caso do próprio CDC, naquilo que toca ao superendividamento da pessoa idosa, apenas com a criação da Lei do Superendividamento (Lei n. 14.181/2021) é que se pode falar na aplicação concreta de meios eficazes à diminuição desse fator estrutural que aborda a sociedade brasileira.
A exemplo disso, está a inclusão, no art. 6º, inciso XI, do CDC, do crédito responsável como princípio corolário à preservação do mínimo existencial do consumidor, representando, assim, um importante passo para garantir a dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal) e evitar a exclusão da pessoa natural da sociedade de consumo, em razão do superendividamento.
Ainda, visando a estabelecer um tratamento legal mais detalhado para o momento da publicidade e da oferta de produtos ou serviços no mercado de consumo, a Lei nº 14.181/2021, com o fim de prevenir o superendividamento de pessoas idosas hipervulneráveis, representou um grande avanço para o consumidor ao acrescentar no CDC dispositivos dirigidos aos fornecedores, como o art. 54-C, inciso IV, e o art. 54-D, inciso I, que, respectivamente, proíbe condutas de assédio no marketing e estabelece deveres de informação e esclarecimento na fase pré-contratual.
Por fim, é importante mencionar que a Lei incluiu no CDC um procedimento conciliatório judicial para a repactuação das dívidas aos consumidores em estado de superendividamento, de modo que tal rito também pode - e deve - ser seguido pelos idosos em situação de hipervulnerabilidade que não estejam conseguindo pagar suas dívidas.