Artigo

Protestantismo e Positivismo Jurídico: a Transformação do Conceito de Direito pela Reforma Luterana

Protestantism and Legal Positivism: the Transformation of the Concept of Law by the Lutheran Reformation

Protestantismo y Positivismo Jurídico: la Transformación del Concepto de Derecho por la Reforma Luterana

Daniel Damasceno
Ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), BR
Gustavo César Machado Cabral
Núcleo de Estudos sobre o Direito na América Portuguesa (NEDAP), BR

Protestantismo e Positivismo Jurídico: a Transformação do Conceito de Direito pela Reforma Luterana

Revista Opinião Jurídica, vol. 22, núm. 41, pp. 1-33, 2024

Centro Universitário Christus

Recepción: 01 Agosto 2024

Aprobación: 17 Octubre 2024

RESUMO

Contextualização: A Reforma Protestante foi o primeiro grande movimento contra a tradição jurídico medieval vigente no Ocidente desde o Império Romano. Os reformadores, ao fundarem um positivismo religioso ou teológico de raiz cristã – erigido primordialmente sobre fontes positivas –, lançaram as bases para o surgimento de um positivismo jurídico, fenômeno estranho ao paradigma anterior e sem precedentes históricos na forma de pensar a totalidade do direito, devido à experiência inédita do monismo das fontes.

Objetivos: Avaliar os impactos da Reforma na ascensão e na consolidação do positivismo jurídico a partir do século XVIII, a fim de confrontá-lo com o paradigma anterior. Para isso, será apresentada, de forma breve e reduzida, a teoria clássica do direito, construída ao longo de milênios, cujo principal herdeiro se encontra na tradição escolástica do pluralismo jurídico medieval, bem como o fenômeno do monismo teológico desencadeado pela revolta religiosa contra a Igreja Católica Apostólica Romana, com pauta nos estudos de suas consequências para a legislação positiva e o direito natural.

Método: Esta pesquisa tem natureza qualitativa e exploratória, partindo de uma revisão bibliográfica da literatura acerca do tema mediante um estudo histórico das principais fontes primárias sobre o assunto.

Resultado: Como desdobramento dessa doutrina reformada, o pensamento jurídico ocidental, que era profundamente baseado na filosofia aristotélico-tomista, passou a ser influenciado pela recém-criada Teologia Protestante, particularmente por Martinho Lutero e por juristas protestantes, como Philipp Melanchthon e Johann Oldendorp.

Contribuição: Este artigo contribui para a compreensão da influência desses personagens – muitas vezes esquecidos – na formação do conceito moderno de Direito, enfocando especialmente na sua relação com o Positivismo Jurídico, que nascerá e se consolidará nos séculos seguintes. Concluiu-se que as premissas teológicas postas por Lutero e seus discípulos estiveram no centro do que ficou conhecido como essa corrente típica da Modernidade, e, sem elas, esta linha de pensamento jurídico dificilmente teria encontrado solo fértil para se desenvolver.

Palavras-chave: Direito e teologia+ reforma protestante+ positivismo jurídico.

ABSTRACT

Background: The Protestant Reformation was the first major movement against the medieval legal tradition in force at the West since the Roman Empire. The reformers, by founding a religious or theological positivism with Christian roots – built primarily on positive sources – laid the foundations for the emergence of a legal positivism, a phenomenon foreign to the previous paradigm and without historical precedent in the way of thinking about the totality of law, due to the unprecedented experience of the monism of the sources.

Objectives: To evaluate the impacts of the Reformation on the rise and consolidation of legal positivism from the eighteenth century onwards, in order to confront it with the previous paradigm. To this end, the classical theory of law, built over millennia and whose main heir is found in the scholastic tradition of medieval legal pluralism, as well as the phenomenon of theological monism triggered by the religious revolt against the Roman Catholic Church, will be presented, in a brief and reduced way, studying its consequences for positive legislation and natural law.

Method: This research has a qualitative and exploratory nature, starting from a bibliographic review of the literature on the subject through a historical study of the main primary sources on the matter.

Result: As a result of this reformed doctrine, Western legal thinking, which was deeply grounded on an Aristotelian-Thomist philosophy, was also influenced by other the newborn Protestant Theology, particularly by Martin Luther and Protestant jurists like Philipp Melanchthon and Johann Oldendorp.

Conclusion: This paper contributes to the understanding of the influence of these characters – often forgotten – on the formation of the modern concept of Law, focusing particularly on its relationship with the after-called Legal Positivism, which will be born and consolidated in the following centuries. The theological assumptions put forward by Luther and his disciples were at the core of what became known as this typical current of Modernity, and, without them, such line of legal thought would hardly have found fertile soil to develop.

Keywords: Law and theology, protestant reformation, legal positivism.

RESUMEN

Fundamentos: La Reforma Protestante fue el primer gran movimiento contra la tradición jurídica medieval vigente en Occidente desde el Imperio Romano. Los reformadores, al fundar un positivismo religioso o teológico de raíces cristianas – construido principalmente sobre fuentes positivas – sentaron las bases para el surgimiento de un positivismo jurídico, un fenómeno ajeno al paradigma anterior y sin precedentes históricos en la forma de pensar la totalidad del derecho, debido a la experiencia inédita del monismo de las fuentes.

Objetivos: Evaluar los impactos de la Reforma en el auge y consolidación del positivismo jurídico a partir del siglo XVIII, para confrontarlo con el paradigma anterior. Para eso, se presentará, de forma breve y reducida, la teoría clásica del derecho, construida a lo largo de milenios y cuyo principal heredero se encuentra en la tradición escolástica del pluralismo jurídico medieval, así como el fenómeno del monismo teológico desencadenado por la revuelta religiosa contra la Iglesia Católica Romana, estudiando sus consecuencias para la legislación positiva y el derecho natural.

Método: Esta investigación tiene un carácter cualitativo y exploratorio, partiendo de una revisión bibliográfica de la literatura sobre el tema a través de un estudio histórico de las principales fuentes primarias sobre el tema.

Resultado: Como resultado de esa doctrina reformada, el pensamiento jurídico occidental, que estaba profundamente basado en la filosofía aristotélico-tomista, llegó a ser influenciado por la recién creada teología protestante, particularmente por Martín Lutero y por juristas protestantes como Philipp Melanchthon y Johann Oldendorp.

Aporte: Este artículo contribuye a la comprensión de la influencia de estos personajes – muchas veces olvidados – en la formación del concepto moderno de Derecho, centrándose especialmente en su relación con el Positivismo Jurídico, que nacerá y se consolidará en los siglos siguientes. Las premisas teológicas planteadas por Lutero y sus discípulos estuvieron en el centro de lo que hoy se conoce como una corriente típica de la Modernidad, y, sin ellas, esta línea de pensamiento jurídico difícilmente habría encontrado terreno fértil para desarrollarse.

Palabras clave: Derecho y teología, reforma protestante, positivismo jurídico.

1 INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a moderna historiografia jurídica tem enfatizado a aproximação entre Direito e Teologia, que marcou o fenômeno jurídico durante muitos séculos e se consolidou no Ocidente com as revoluções liberais. Se a secularização avançou a ponto de ter naturalizado o isolamento da religião de certas dimensões das relações humanas, como o Direito e a política, isso não significa que o mundo tenha seguido essa forma desde tempos imemoriais. Muito ao contrário, a secularização tem uma história que pode ser reconstruída, e este artigo pretende contribuir com esse debate ao lançar um olhar sobre a Reforma Protestante como um marco nesse processo.

Durante grande parte da Idade Moderna, a Teologia ocupava um lugar de destaque na disciplina jurídica, seja porque os teólogos morais eram versados em Direito para a resolução de conflitos de consciência dos fiéis, seja porque se entendia que a sociedade, enquanto parte da natureza e de uma ordem transcendente, era ordenada por Deus, de modo que o Direito, isoladamente, ocupava um local de menor importância dentro da hierarquia das disciplinas.

A contemporaneidade foi marcada por uma visão muito difundida entre os juristas de que o Direito não seria mais um saber subordinado e condicionado por outros ramos do conhecimento, afirmando-se como uma ciência autônoma e autossuficiente, sem limites rígidos fixados por outras disciplinas. A teoria jurídica moderna encampou, majoritariamente, essa separação absoluta entre Direito e Teologia, como se não fosse possível constatar influências entre os dois campos.

Este texto chama a atenção para a centralidade da doutrina reformadora de Martinho Lutero nesse processo, por força da sua defesa da separação da Teologia das outras ciências práticas, já que ela não necessitava de divagações especulativas nem de auxílio humano por ser essencialmente divina. O fato de Lutero e os demais reformistas terem partido da dualidade entre o reino divino e o terreno, submetido a uma autoridade civil e regido pelo direito positivo, fez que intérpretes contemporâneos defendessem que a Reforma tratava Direito e religião como sem grande interpenetração, reduzindo o embate reformista a uma “guerra de religião”. Essa visão reducionista impediu a verificação de que a concepção luterana da existência de dois reinos e, por conseguinte, da relação entre Direito e fé, estava, em verdade, fazendo surgir não apenas uma nova Teologia, mas propriamente uma nova ciência política e uma nova forma de se pensar o Direito (Berman, 2006, p. 63).

A tentativa de relacionar a superação do conceito de arte jurídica pelo protestantismo com o surgimento do positivismo jurídico tem sido refletida nas últimas décadas. Durante anos, a doutrina jurídica de Lutero não foi devidamente explorada muito em razão de ele não ter construído um corpo doutrinário sistemático a partir do qual seja possível avaliar as consequências das suas pregações. No entanto, como Lutero se ocupou de assuntos temporais, por exemplo, ao pregar em seus sermões, e como muitos desses materiais chegaram até a contemporaneidade, viabilizou-se um olhar para essa dimensão.

Nesse sentido, este artigo parte da combinação entre a revisão da literatura produzida sobre o tema e a análise dos textos de Lutero para contribuir com uma reflexão sobre o papel da Reforma Protestante nesse processo de secularização que acabou culminando no positivismo jurídico. Para atingir esse objetivo, o trabalho traçará um paralelo histórico entre a herança do Direito Romano na gestação de um pensamento sobre a justiça, a tradição do pluralismo jurídico medieval e a formação de uma ideia de monismo teológico desencadeada pela Reforma religiosa, cujas consequências para a noção de direito positivo e de direito natural serão debatidas a seguir. Ao final, será avaliado o impacto dessa doutrina na ascensão e na consolidação do positivismo jurídico a partir do século XVIII, confrontando com o paradigma anterior.

2 A TEORIA CLÁSSICA (E ARTÍSTICA) DO DIREITO

Na conhecida definição de Ulpiano, colhida do Digesto, jurisprudência (iuris prudentia) é a ciência do justo e do injusto (iusti atque iniusti scientia)1 (Brasil, 2017, p. 65). Ela constituía uma força criativa, e os próprios romanos o reconheciam quando caracterizavam o ius civile como aquilo que, sem ter sido escrito, vem composto pelos prudentes (quod sine scripto venit compositum a prudentibus)2, e arrolavam entre suas fontes a autoridade dos prudentes (prudentum auctoritate) (Brasil, 2017, p. 69) e as suas respostas (responsa prudentium).

Prudência, na clássica definição tomista, largamente influenciada pela perspectiva aristotélica, é a virtude que consiste na escolha correta dos meios adequados para alcançar um fim3 (Aquino, 2006, p. 124-125), seja para realizar uma ação, seja para tomar uma decisão. É um saber prático, e não teórico, porquanto seu conhecimento está nos atos humanos específicos, auxiliando o agente a decidir a melhor alternativa entre as várias soluções possíveis para o caso.

Tendo em vista esses conceitos, ver-se-á, a seguir, como o processo de formação jurídica ocidental se desenvolveu.

2.1 O DIREITO ROMANO E A VIRTUDE DA JUSTIÇA

Sob a influência de Aristóteles, a Roma clássica teve o cuidado de pôr em relevo a definição de justiça (iustitia) que tem por objeto próprio atribuir a cada um o que lhe é devido (ius suum cuique tribuere). Aceitou a doutrina, expressa no Digesto, de que o direito deriva da justiça; que a jurisprudência é a ciência do justo e do injusto; e que o direito é aquilo que é justo. O direito clássico é, acima de tudo, obra dos doutores que buscam o justo por natureza – ou, mais precisamente: resultado do trabalho dos jurisprudentes (Villey, 2005, p. 71-72).

O paradigma sapiencial do ius, com preocupação imediata sobre a adequação prático-normativa da solução proposta, não admitia que o jurisconsulto se limitasse a replicar acriticamente os pareceres (responsa) dados a casos pretéritos. Os romanos sabiam que cada caso é único e que uma solução adequada não resulta necessariamente de uma operação lógica, em que as soluções precedentes são assumidas como premissas para um silogismo. Os critérios transmitidos pela tradição eram vistos pelo jurista como um complexo de aquisições casuísticas de uma experiência passada que teria de ser no caso considerada e, doravante, continuada, mas não como um sistema acabado de critérios abstratos, desvinculados de qualquer experiência judicial subjacente e dotados de um sentido normativo geral que permitisse uma pura aplicação, à maneira da teoria da subsunção (Machado, 2019, p. 50).

De fato, o jurisconsulto romano encontrava regras quando buscava critérios para a solução do caso novo. Mas essas regulae não passavam de simples expressões generalizadas das soluções dadas aos casos anteriores, de maneira que só adquiririam valor para o caso atual se, por analogia, fosse aplicável solução similar ao anterior (Machado, 2019, p. 50-51). Logo, as várias fontes formais nem sempre seriam suficientes para os casos novos, de modo que a prática jurídica, terreno fértil para os jurisconsultos, acabava funcionando como a principal estrutura de solução de problemas. Mais importante do que um sistema normativo preestabelecido, a longa experiência jurídica romana buscou principalmente soluções práticas (Kelly, 1999, p. 45-57).

Assim, os juristas exerciam um papel central nesse processo. Para os antigos, jurista era aquele que “dedica-se a desvelar o que é justo nas relações sociais, na sociedade; é, por assim dizer, o técnico da justiça, o que sabe do justo e do injusto” (Hervada, 2006, p. 10). Conforme o modo romano de ver as coisas, direito não era aquilo que o jurista encontra pronto em uma regra, mas o que ele procura para solucionar um caso. O ius é, sobretudo, aquele específico critério que, caso a caso, se encontra para desatar as complicações da experiência humana concreta, cuja abstração é rara (Machado, 2019, p. 52).

Não é incomum, contudo, que os manuais de direito contemporâneo tendam a apresentar as leis (leges) como a fonte fundamental do direito romano, correspondendo a uma transposição indevida da teoria moderna das fontes jurídica para o passado (Villey, 2005, p. 66), em um claro anacronismo. Associar as concepções de Direito em Cícero e Aristóteles, tão relevantes para se entender esse legado, a um conceito moderno de Direito, como se ius (Direito) fosse reduzido a lex (lei), é um erro. Nessa tradição, a perspectiva é distinta: pouco importa quem a produz, sendo muito mais relevante o que a regra deve ser em sua essência, isto é, na sua substância, a fim de elevar-se a lex.

Lex é o oposto do que se vai se operar na cultura jurídica moderna, em que a noção de lei, pelo contrário, é extremamente rígida e formal. Não lhes interessa prioritariamente o conteúdo da lei porque ela se caracteriza como ato de império, pela manifestação de vontade daquele investido do respectivo poder político, “motivo pelo qual o que conta é somente o órgão que a produz, pois é sobretudo o órgão que confere a uma certa regra a qualidade de lei” (Grossi, 2014, p. 168).

Nesse sentido, a tradição romanística foi constituída com bases mais plurais. A fonte primária do direito romano era a própria natureza das coisas, e não a lei. A imagem de que os jurisconsultos moldavam suas soluções jurídicas ao modo moderno, por meio de axiomas e deduções, com coerência e uniformidade – ainda que houvesse influência estoica –, é equivocada. Os juristas romanos não temiam a contradição nem a dialética: eles discutiam opiniões, adaptavam respostas às circunstâncias, corrigiam o texto por equidade; enfim, buscavam encontrar o justo concreto (Villey, 2005, p. 72-73). Se os códigos civis modernos herdaram alguma coisa da experiência romana, certamente foram os seus institutos, e não o seu espírito e a sua prática jurisprudencial – tão bem preservada e desenvolvida pela tradição escolástica medieval.

Com a Queda de Roma, os textos da lei romana compilados no século VI pelo imperador bizantino Justiniano se perderam. Apenas foram redescobertos cinco séculos depois no Ocidente, tendo sido analisados e sintetizados, no auge da revolução papal gregoriana, por um novo método – mais tarde chamado de “escolástica” – de conciliar contradições em textos autoritativos e derivando conceitos gerais das regras e dos casos diferentes estabelecidos nos textos (Berman, 2006, p. 5).

2.2 O PLURALISMO JURÍDICO DA ORDEM MEDIEVAL E A TRADIÇÃO ESCOLÁSTICA CASUÍSTA

Uma das principais ferramentas para entender as diferenças entre o Medievo e a Modernidade é o engajamento jurídico dos teólogos morais, que lidavam com a alma do fiel sujeita às regras e às disciplinas sociais4. O fato de que religiosos se preocupavam com questões legais pode parecer surpreendente (Decock, 2013, p. 25), dado que o homem moderno parece ter sido incapaz de fugir da tendência de subestimar o impacto da consciência religiosa na história da civilização ocidental (Weber, 2004, p. 167). Como afirmou um dos mais importantes teólogos morais do período, Francisco Suárez (1548-1617), o Direito pertencia à Teologia, na medida em que obriga na consciência do fiel (Suárez, 1612, p. 1-5).

O tema da salvação da alma era a principal preocupação das pessoas viventes nas sociedades primitivas cristãs. Essa questão está fundada na antropologia dualista de diferenciação entre corpo e alma (homo ex corpore et anima constat). Não apenas o corpo, mas também a alma está sujeita ao poder jurisdicional. Tal visão antropológica do homem estava profundamente enraizada nas mentes ocidentais até a ascensão do pensamento iluminista no século XVIII (Decock, 2013, p. 26).

A necessária subordinação do corpo à alma, do Estado à Igreja, reside no fato de que o temporal deve estar sempre submetido ao espiritual – que é atemporal e eterno. Portanto, diferentemente da concepção moderna, influenciada pelo Leviatã hobbesiano, os medievais não aceitavam que o poder estatal – cuja finalidade é o bem comum terreno – pudesse ingerir no poder sobrenatural da Igreja – cujo fim é a salvação sobrenatural –, por violar a ordem natural das coisas.

Graças ao esforço dos canonistas, o direito romano foi fortemente integrado à Igreja. Esse Direito era, no catolicismo, uma das principais fontes de conhecimento e de respeito universais. Não era coisa de menor importância, mas um valor fundamental. É o que professavam os teólogos católicos, sobretudo da escola tomista: o direito era, em última instância, uma ordem desejada e pensada por Deus sobre o conjunto da criação – embora profanas as fontes do saber jurídico (Villey, 2005, p. 310).

Tomás de Aquino se inspirou em fontes pagãs, desde Platão e Aristóteles até Cícero e Sêneca, para a formulação das quatro virtudes cardeais – justiça, prudência, fortaleza e temperança –, que compõem os pilares da ética ocidental (Villey, 2005, p. 341). Por sua vez, os manuais dos confessores eram recheados de termos jurídicos, e os sacerdotes expressamente considerados juízes em um tribunal autônomo, intitulado corte da consciência (forum internum) (Cabral, 2020). Seus atos eram considerados similares aos judiciais e eram chamados a ter o mesmo conhecimento de um juiz (scientia judicis), tanto que houve a tendência de considerar as decisões prolatadas pelo sagrado foro de Roma (praxis Sacrae Poenitentiariae) como um precedente judicial (Decock, 2013, p. 55).

A convivência e a concorrência de diversos sistemas jurídicos autônomos e de diversas jurisdições independentes dentro de cada comunidade política5 ajudaram a viabilizar a supremacia do direito dentro dessa mesma sociedade. Nesse contexto, a ideia de direito comum (ius commune) é essencial para compreender a noção de pluralismo que marcou os períodos tardo-medieval e moderno, contemplando uma forma de se pensar o direito que alcançou grande parte de Europa cristã e se centrou nas universidades, na interpretação de fontes do direito romano justinianeu e do direito canônico e teve nos juristas, classe tecnicamente treinada e cuja presença foi crescente, atores muito relevantes. Um direito comum que convivia, influenciando e sendo influenciado, nem sempre de maneira tão harmônica, com outras ordens normativas – os chamados direitos próprios (ius proprium) – caracterizava a inexistência de uma pretensão centralizadora, unificadora e excludente em apenas uma dessas ordens (Cabral, 2019).

Levando em consideração os juristas enquanto pessoal tecnicamente apto, deve-se refletir no papel da interpretação dessas fontes como central na elaboração de ordens jurídicas em que os textos escritos exerciam forte relevância. Nesse sentido, a distinção entre uma hermenêutica teológica e outra jurídica, cujo caráter não era tão marcadamente científico e teórico, mas muito mais acentuado pelo comportamento prático correspondente ao serviço do juiz ou do clérigo ordenado, é antiga (Gadamer, 1999, p. 31). Tanto para o Direito quanto para a Teologia, é notória a tensão existente entre o texto posto – da lei ou da revelação – e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto da interpretação (Gadamer, 1999, p. 461).

No pensamento jurídico medieval, o príncipe aparece não como uma figura que cria o Direito, mas o diz (ius dicit); e aflora aquela noção fundamental de iurisdictio (“dizer o direito”)6, que vê o príncipe como o intérprete de uma dimensão preexistente e sobreordenada, cuja interpretação se dá secundum naturam iustus dictus, quer dizer, o justo segundo a natureza das coisas: a circunstância de estar inscrito nos fatos e não na vontade dos homens (Grossi, 2014, p. 116-117). A interpretatio não era redutível a um processo meramente matemático. Pelo contrário, era um ato de vontade e de liberdade do intérprete. Segundo um ensinamento corrente por toda a escola dos glosadores, interpretação exige correção; igualmente, corrigir significa entender, mas também acrescentar (Grossi, 2014, p. 203). Os mestres medievais são intérpretes e não exegetas; mediadores entre o texto antigo e a realidade que lhes é contemporânea; tão presos à exigência da efetividade a ponto de jamais hesitarem, sequer por um momento, em violar palavras em função das necessidades da vida circundante (Grossi, 2014, p. 247). Esse caráter dinâmico mostra como interpretar, mais do que conhecer, é criar: dar um sentido atual ao texto.

A interpretação não produz o sentido sozinha, a partir de sua imaginação, mas o elabora com base e sob a égide de um texto dotado de autoridade soberana. A ciência jurídica se combina, então, em dois momentos inseparáveis: o momento de validade, com a criação do texto legal, e o momento de efetividade, representado pela construção doutrinal e jurisprudencial em torno dele. Ela não pode ser concebida longe do texto a ser interpretado, mas tampouco o texto pode ser considerado algo além de uma necessária referência formal. Interpretar é declarar, como também complementar, corrigir e modificar. Apresenta dois objetos diante de si: formalmente, o texto; substancialmente, os fatos. É mediadora entre estes e aquele, em uma função tipicamente criadora e construtora do direito (Grossi, 2014, p. 278).

Essa mentalidade casuísta visava a resolver o caso trabalhando, particularmente, em torno das circunstâncias concretas. Não hesitava em se afastar das leis quando elas não se encaixavam no caso específico. Reconhecia-se que o ideal de governar com poucas leis gerais era difícil de se alcançar e que era impossível elaborar uma regra para comuns que cobrisse todos os eventos futuros. Aliás, leis abrangentes demais podiam até dificultar a melhor resolução da lide. Essa convicção se consolidou no aforismo “não há regra sem exceção”, que teve repercussão popular e longa sobrevivência no discurso comum, marcando a ideia de falibilidade da norma (Tau Anzoátegui, 2021, p. 319-323).

O essencial para o jurista medieval não é a fidelidade ao texto, à maneira do exegeta, mas o cumprimento da sua missão de edificador de uma ordem jurídica adequada aos fatos presentes, graças ao costume e à equidade. À medida que o tempo passa e que a ciência do direito se torna consciente do próprio papel, das próprias responsabilidades e do próprio peso, não há dúvidas quanto ao distanciamento substancial do texto – antes, obrigatório – quando necessário (Grossi, 2014, p. 279-298).

A experiência jurídica medieval deve ser pensada como marcada pelo pluralismo de ordens jurídicas e de jurisdições, em que o Direito, antes de ser norma e comando, é ordem social, nascendo nesses grupos sociais como autoproteção. A Idade Moderna, ao contrário, foi marcada por uma lenta transição do pluralismo ao monismo jurídico, em que um único agente – o Estado – passa a ser o produtor oficial da ordem normativa. Se o pluralismo seguiu marcando esses séculos (Cabral, 2019), ironicamente caracterizados por Hespanha (1994) como “as vésperas do Leviatã”, muitas mudanças acabaram levando a uma série de mutações que se materializaram no monismo e, consequentemente, no positivismo jurídico enquanto tese central predominante da modernidade emergente das revoluções liberais. O protestantismo lançou as bases fundamentais para essas transformações ao romper com a pluralidade das fontes.

3 A REFORMA PROTESTANTE E O DIREITO POSITIVO

Schmitt (2015, p. 43) afirmou que todos os conceitos significantes da moderna teoria do Estado não passam de conceitos teológicos secularizados, seja por causa do seu desenvolvimento histórico, seja por força da sua estrutura sistemática, o que torna imprescindível a consideração desses conceitos para uma abordagem sociológico-jurídica. Não à toa, a recente historiografia tem atribuído cada vez mais um papel de destaque para o surgimento do protestantismo, que influenciou o modo como os ocidentais enxergam o mundo nos últimos cinco séculos (Gregory, 2012 p. 1).

Reforma Protestante é o nome que se dá à grande revolução religiosa do século XVI, que destruiu a unidade da cristandade medieval e criou uma nova Europa de Estados soberanos e Igrejas separadas, perdurando, com pequenas alterações, até a Revolução Francesa (Dawson, 2014, p. 107). Ela surge não apenas como uma revolta contra os desvios da Igreja Católica Romana, mas como a constituição de uma nova sociedade. Seus efeitos foram tamanhos que historiadores como Harold Berman a retratam como uma das mudanças centrais que o fenômeno jurídico atravessou no Ocidente, ao lado da revolução que resultou no surgimento do direito canônico e do direito comum, a partir do século XI.

A doutrina teológica de Lutero da Lei e do Evangelho, da justificação apenas pela fé, do sacerdócio universal dos crentes, do sola Scriptura, dentre outros, mostrou-se uma força pujante para desconstruir as normas e as formas tradicionais da Idade Média tardia. Mas, vista em termos radicais, ela levanta mais questionamentos do que respostas aos problemas teológicos medievais. A complexa reconstrução doutrinária veio a ser conhecida pelo nome de teoria dos “dois reinos” (Zweinreichelehre), que influenciou teólogos e juristas luteranos7 – pelo menos em linhas gerais – a fundar o direito, a política e a sociedade em termos explicitamente evangélicos (Witte Jr., 2004, p. 87-88).

Enxergar nesse período as raízes do positivismo jurídico não deixa de contrariar a opinião corrente. Ele costuma ser apresentado como produto singular da cultura científica do século XIX, cujo expoente máximo se encontraria na doutrina homônima de Augusto Comte. Há ainda quem vá mais longe e chegue até Thomas Hobbes (Coyle, 2003), mas raramente recuam a antes do século XVII. Já Villey (2005, p. 234-235) remonta até o século XIV, na filosofia nominalista de Guilherme de Ockham (1285-1347) – o que não é de se estranhar, já que Lutero se considerava ele próprio um discípulo do “mestre de Occam” (Hahn; Wilker, 2018, p. 196).

O fato é que há um vácuo na compreensão da Reforma, que acaba resultando em uma compreensão de que os movimentos religiosos parecem desvinculados de qualquer significado político-jurídico. Todavia, conforme argumenta Dawson (2014, p. 43), o problema não deve ser verificado somente na teologia enquanto distante da cultura e da história. As mudanças que se seguiram à Reforma não são apenas obras das igrejas e dos teólogos, são também obras dos príncipes e dos filósofos.

A teologia se apresenta, assim, como uma preciosa chave para compreender os acontecimentos jurídicos modernos, dado que, até então, ela exercia forte influência na formação do imaginário dos juristas. Ignorar, pois, os elementos históricos que caracterizaram a transição do Medievo para a Idade Moderna significam perder grande parte do seu significado, pela redução dos fatos a partículas da realidade. Com o apoio de Witte Jr. (2004, p. 29), convidamos o leitor a ter uma visão binocular da Reforma, prestando atenção tanto na sua dimensão teológica quanto na jurídica.

3.1 A DOUTRINA DOS “DOIS REINOS” DE MARTINHO LUTERO (1483-1546)

Em 1517, Lutero publica suas 95 teses e constrói as premissas da Reforma, exteriorizadas nos cinco “sola”, a partir de uma subversão da concepção católica – até então reinante – de submissão da consciência à razão. Abandona a primazia da razão em detrimento do elemento da consciência, adotando a concepção de que a capacidade racional do homem de distinguir o bem do mal depende essencialmente do seu espírito – o qual, por sua vez, está corrompido pelo Pecado Original (Berman, 2006, p. 73-75). O que se iniciou com uma crítica ao tráfico de indulgências, logo se transformou em um ataque frontal aos ensinamentos da Igreja de Roma (Skinner, 2004, p. 3).

No seu tratado Da liberdade de um cristão (1520), Lutero inicia com o seguinte paradoxo: “Um cristão é o senhor sobre todas as coisas, e não sujeito a ninguém”; “Um cristão é o servo de todas as coisas, e sujeito a todos”. A antinomia determina a dualidade da vida do cristão: primeiro, a libertação da alma pela fé; segundo, a submissão do indivíduo à existência corporal e social. Assim, separa radicalmente a vida espiritual da vida temporal, de modo que nada que o homem faça na sua esfera natural possa atingir a salvação da alma (Voegelin, 2014, p. 296-299). Cada cristão é, ao mesmo tempo, santo e pecador, justo e reprovável, salvo e perdido (Witte Jr., 2004, p. 94).

O argumento de que o poder secular se legitima exatamente por ser ordenado por Deus é desenvolvido na pregação À nobreza cristã da nação alemã acerca da reforma do Estado Cristão (An den Christlichen Adel deutscher Nation). Lutero subverte o status quo vigente ao defender que não há, do ponto de vista bíblico, qualquer espécie de distinção entre os membros religiosos e os demais cristãos. Nesse sentido, todo aquele que venha a ser batizado em Cristo é em si mesmo legítimo sacerdote, razão pela qual eventuais distinções espirituais entre o clero e os leigos se operam somente no âmbito da ocupação que exercem no reino secular (Luther, 1520, fol. 4v-5v).

Assentada essa premissa igualitária, Lutero (1520, fol. 5v-6) sustenta que cabe somente às autoridades seculares, por seu legítimo ofício, fazer uso da espada e da vara para punir os que fazem mal – inclusive, se necessário, o próprio clero – e proteger os piedosos. Assim, a autoridade política secular (Obrigkeit), o príncipe e os seus conselheiros, a alta magistratura devem assumir as responsabilidades legais que anteriormente estavam sob a jurisdição da Igreja Católica Romana (Berman, 2006, p. 6). Aqui estão as bases para a doutrina dos “dois reinos” ou dois regimentos (zwei Reiche), cuja separação absoluta – do celeste e do mundano – vai constituir um elemento central para o fortalecimento do Estado nacional e da legislação positiva (Prodi, 2005, p. 250).

Repudiada a ideia de que o clero constitui uma classe distinta dotada de privilégios e jurisdição especial, constrói-se o cenário para a defesa da teoria dos dois reinos e da necessidade de obediência, por todo cristão, à autoridade secular. A fé pessoal, a graça divina e a Bíblia eram os principais agentes do processo de justificação individual perante Deus, rejeitando-se qualquer papel intermediário desempenhado pela Igreja como guia da consciência humana (Decock, 2013, p. 46). Nesse sentido, é exemplar a resposta que Oldendorp dá à sua pergunta sobre onde estão as normas de direito natural: esculpidas no coração e na consciência humana por Deus, cabendo aos homens, caso tenham dúvidas sobre a conformidade das suas ações com o direito natural, recorrer aos Mandamentos da Lei Divina (Oldendorp, 1539, p. 26).

Essa doutrina não representa apenas uma ruptura com o tomismo, mas uma vigorosa rejeição da elevada visão aristotélica das virtudes e das capacidades humanas, as quais haviam sido recentemente popularizadas pelos humanistas. O retorno ao agostinismo da primeira Idade Média, com ênfase na natureza humana decaída, não pode ser visto dissociado do seu débito nominalista: a insistência ockhamiana de que os mandamentos divinos devem ser obedecidos porque são ordens de Deus, e não porque são bons em si mesmos – dados por um Legislador racional (Skinner, 2004, p. 4-5).

No escrito chamado Da autoridade secular, até que ponto devemos obedecê-la (Von weltlicher Obrigkeit, wie weit man ihr Gehorsam schuldig sei), Lutero busca fundamentar, de maneira sólida, “a lei secular e a espada”, para que ninguém duvide que a autoridade secular está no mundo única e exclusivamente por permissão e vontade de Deus (Luther, 1523, fol. 127-127v). Ele acreditava que os dois reinos eram regidos por duas autoridades. O reino terrestre era governado pela Lei, ao passo que o reino celeste seria pelo Evangelho. Ambos eram definitivamente formas da autoridade e da revelação de Deus. Mas eles precisavam ser cuidadosamente distinguidos. A Lei era uma autoridade da Espada, cujos elementos são a coerção, a servidão e a restrição. O Evangelho era uma autoridade da Palavra, a qual promete amor, liberdade e caridade. Nesse mundo de espaço e tempo, as duas autoridades são necessárias e exercem submissão aos cristãos, embora a primeira deva ceder em caso de conflito (Witte Jr., 2004, p. 91).

Dessa estrutura dualista da humanidade derivam as regras de conduta cristã com relação ao poder temporal na sociedade. Em primeiro lugar, não há nenhum poder da espada entre cristãos porque não há necessidade dela: os cristãos vivem pacificamente em companhia, sob a realeza de Cristo. Todavia, embora o fiel não deva usar a espada por si mesmo, deve submeter-se à autoridade civil escrupulosamente, por caridade. É que esse poder é de grande utilidade para seus concidadãos, que precisam dele para a estabilidade do governo e a sua segurança (Voegelin, 2014, p. 310-311).

Rejeita, assim, o ensinamento medieval das “duas espadas”8, desde a bula pontifícia Unam Sanctam (1302) do Papa Bonifácio VIII, que sustentava a proeminência espiritual do clero e do direito canônico em relação à autoridade temporal do magistrado e da lei civil, bem como a unidade da sociedade cristã (Denzinger; Hünermann, 2007, n. 873). A igreja invisível, congregação dos fiéis (congregatio fidelium), não teria “espada”, tampouco poder legislativo e jurisdicional. Apenas o Estado possui autoridade legal de reforçar leis positivas para o governo deste reino terrestre (Witte Jr., 2004, p. 110). Desse modo, o poder político não é guardião apenas das relações do indivíduo com o próximo, mas também da relação do cristão com Deus, contida nos primeiros preceitos do Decálogo, já que detém toda a jurisdição sobre a terra (Prodi, 2005, p. 277).

Destituída a Igreja do seu poder espiritual, cuja presença é prescindível para a salvação dos fiéis, está aberto o caminho para que haja uma inversão na antropologia dualista católica: não é mais o corpo que está subordinado à alma, mas sim – em função do pecado – o contrário. Transposto esse raciocínio para a política, não é mais o Estado que deve estar subordinado à Igreja, e sim o exato posto. Não surpreende que o calvinista Grócio (1639), no seu tratado De imperio summarum potestatum circa sacra, tenha defendido que a autoridade política soberana não estende o seu poder apenas aos problemas civis, mas também religiosos – uma vez que é responsável por todas as relações entre os homens na esfera do visível (Grócio, 1639 apudProdi, 2005, p. 258-259). Em suma: o poder sagrado não tem vez neste mundo profano.

Com efeito, o grande feito reformador de Lutero consiste em atacar o respeito humano pela autoridade dos argumentos, especialmente de Aristóteles e do papado romano, que ficaram profundamente debilitados (Gadamer, 1999, p. 417). Nem a autoridade do magistério papal nem o apelo à tradição (traditio) podem tornar criativa a atividade hermenêutica, cuja tarefa primeira é defender o sentido exato do texto contra toda imposição9. A Reforma proporciona, assim, o florescimento de uma hermenêutica que deve ensinar a usar “corretamente” a tradição, a partir do uso de métodos históricocríticos.

Conforme Gadamer (1999, p. 274-275), a pressuposição da hermenêutica bíblica é o princípio escritural da Reforma. O ponto de vista de Lutero reside na ideia de que a Sagrada Escritura é “autointerpretável” (sui ipsius interpres). Não se necessita mais da tradição para lograr uma compreensão adequada dela mesma, tampouco de uma técnica interpretativa ao estilo da antiga retórica, já que sua literalidade possui um sentido unitário (scopus), que deve ser intermediado por ela própria (sensus literalis), a partir do seu conjunto (contextus). As Escrituras são a palavra de Deus, e isso significa que seu corpo mantém primazia absoluta sobre a doutrina dos que o interpretam (Gadamer, 1999, p. 491).

Não obstante Lutero tenda a afirmar que o sentido literal é o único que sustenta a sua teologia, é errôneo supor que a sua importância enquanto exegeta seja seu foco na análise literal da Bíblia. Conforme Hahn e Wilker (2018, p. 233), sua relevância consiste na substituição do tradicional significado quádruplo (literal, alegórico, anagógico e tropológico) das Sagradas Escrituras pelo método dialético de exegese.

Com isso, a linguagem perde os seus significados simbólico e analógico, significando apenas aquilo que as palavras representam (Hahn; Wilker, 2018, p. 232). Não por acaso, a reforma teológica e eclesiástica de Lutero se transformou rapidamente em reforma da lei, do Estado e das instituições. A desconstrução do direito canônico em nome do Evangelho deu espaço para a reconstrução da lei civil pela força do Evangelho (Witte Jr., 2004, p. 3). Afinal, a derrocada de uma tradição não pode vir desacompanhada de uma nova instituição.

3.2 A JUSTIÇA REFORMADA OU A DESNATURAÇÃO DO DIREITO

Lutero se viu obrigado a escrever, ainda que indiretamente, sobre o Direito. A revolta dos camponeses contra o senhorio foi um fato histórico que demandou do reformador traçar linhas gerais sobre a autoridade do poder civil. Consequentemente, a sua doutrina não pode ser entendida com reflexos apenas teológicos, mas também jurídicos, cujo desenvolvimento doutrinal ficou a cargo de seus discípulos10.

A filosofia jurídica luterana deve ser entendida como uma descontinuidade dos ensinamentos católicos-romanos. O ataque à filosofia jurídica medieval veio de uma tradição que os juristas escolásticos haviam estabelecido desde a antiguidade clássica. Sem embargo, os reformadores luteranos introduziram mudanças revolucionárias nessa tradição (Berman, 2006, p. 73). Os magistrados luteranos traduziram o novo Evangelho protestante em lei civil. Juristas e moralistas evangélicos começaram suas teorias sobre o direito, a política e a sociedade de onde Lutero parou, sendo preciso que seus discípulos adaptassem esta doutrina às circunstâncias do tempo. Ele influenciou, diretamente, pelo menos três juristas de seu tempo: Philip Melanchthon, Johannes Eisermann e Johann Oldendorp, os quais foram responsáveis por ver a Bíblia como a mais elevada fonte do direito no reino terreno (Witte Jr., 2004, p. 9, 18, 116 e 169). No século seguinte, Samuel Pufendorf será o nome mais influente dos seus seguidores11.

Embora o direito não tenha nenhum papel na economia da salvação, os usos civis da lei são úteis para restringir o pecado e ensinar a teologia divina (Witte Jr., 2004, p. 11). O magistrado e a sua retidão não representam apenas a autoridade e a majestade divina, como também exercitam o julgamento divino e combatem o pecado humano. “Príncipes e juízes são os arcos e flechas de Deus” (Witte Jr., 2004, p. 111). A lei civil positiva encontra, então, abrigo na lei divina positiva – em especial, o Decálogo, que será a base da doutrina moral calvinista (Skinner, 2004, p. 10). Em várias passagens, Melanchthon deixa claro o lugar do Decálogo como a lei mais importante para reger as ações humanas perante Deus (Melanchthon, 1542, p. 64), explicando o direito natural aos homens e obrigando os governantes a seguirem o seu conteúdo ao criarem as suas normas (Melanchthon, 1542, p. 167-168).

Os juristas luteranos – Melanchthon, Eisermann e Oldendorp – ressaltaram que o magistrado estava obrigado a obedecer à lei, desde que não fosse contrária ao direito divino. Eles enfatizaram a importância de leis escritas e publicadas, o que servia, em parte, para restringir trapaças e caprichos legais. Havia uma preocupação pela aplicação correta da lei, em face do que eles entendiam por “depravação interpretativa” causada pela escolástica. O direito positivo é fundamental para a vida na cidade, consistindo em decisão do magistrado baseada na provável (não necessária) razão natural (Melanchthon, 1542, p. 81-82). Não se deve esquecer da ênfase em que o direito era providência do Estado e não da Igreja (Witte Jr., 2004, p. 173-179). Aqui se inicia, ainda que incipientemente, um movimento para a estatização do direito.

A Reforma quebra o dualismo que se forma no Medievo de duas hierarquias oficiais, dois sistemas legais oficiais: o da Igreja e o dos poderes seculares. Nos estados protestantes, a Igreja passou a ser concebida como uma força invisível, apolítica, ajurídica – sendo a única soberania, a única lei, a do Estado laico. Os reformadores eram céticos quanto ao poder do homem de criar uma lei humana que refletisse a lei divina e explicitamente negaram que é tarefa da Igreja desenvolver essa doutrina. Tal ceticismo possibilitou o desenvolvimento de um positivismo jurídico cristão, que trata a lei como sendo em si mesma moralmente neutra pelo simples exercício do poder político (Berman, 1959, p. 94).

O Direito perde o seu lugar de prestígio – e é esse descrédito que levará a uma concepção restrita, diminuída e limitada do Direito. A sua depreciação reside no fato de que ele em nada contribui para a salvação do fiel, diferentemente da visão católica. Com isso, a virtude moral da justiça, tal qual concebida pelos pagãos e revigorada por Tomás de Aquino, é relegada ao campo puramente temporal, porque a verdadeira justiça – aquela descrita segundo as Escrituras, e não mais a justa distribuição dos bens – é que justifica o homem (Villey, 2005, p. 310-312).

A finalidade do Direito é reduzida, portanto, a um objetivo transitório e instrumental: a repressão civil dos pecadores para preservar a ordem terrena. Com forte tendência agostiniana, Lutero pensa o Direito sobretudo sob o aspecto repressivo penal. O que desapareceu dessa concepção, em comparação com a tradição clássico-medieval, é a noção particular de justiça: a atribuição de cada um o que é seu (suum cuique tribuere). A arte do jurista, o “sacerdote da justiça” (sacerdos justitiae) – segundo a fórmula romana –, esvazia-se em Lutero. A justiça reveste-se de um sentido completamente diferente, que não tem mais lugar neste reino passageiro onde se situa o Direito. Não é mais do Direito que se preocupa Lutero, mas em servir a moral e a política, para salvaguardar a ordem temporal da perversão dos maus (Villey, 2005, p. 315-316).

Vista como uma teoria positivista, a filosofia jurídica luterana enxerga o Direito como a vontade do legislador expressa em um sistema de regras apoiado por sanções coercitivas, cuja função principal é preservar a ordem social. Melanchthon (1542, p. 82-83) escreveu que a “política” – que também chamou de “Estado” e às vezes “Obrigkeit” – é o método de criar uma ordem legítima dentro da comunidade, por meio de leis para governar propriedades, contratos e outros assuntos. Berman (2006, p. 97-98) enxerga nessa construção um esboço do que será a noção alemã de Rechtsstaat (“Estado de Direito”).

Para serem plenamente eficazes, salientaram Melanchthon e Oldendorp, tais leis devem ser promulgadas, previsíveis, geralmente aplicáveis e vinculativas tanto às autoridades políticas como aos seus súditos. Eles rejeitam a definição tomista de que “a lei é a reta razão ordenada ao bem comum” (Lex nihil aliud est quam quaedam ordinatio rationis ad bonum commune), a qual conferiria uma sacralidade injustificada tanto à lei quanto à razão. Logo, um decreto legalmente promulgado do soberano é lei, ainda que seja arbitrário em seu propósito e efeito. Esse argumento foi desenvolvido por Oldendorp (1529) no seu opúsculo Wat billich un recht ys, no qual estabelece uma aproximação essencial entre o direito natural e o direito concreto, de modo a enxergar justiça (Gerechtigkeit) na ordem positiva. Assim, a filosofia jurídica luterana aceitou a premissa básica do que, séculos mais tarde, constituirá o positivismo jurídico, que o Direito e a moral são fortemente distintos um do outro, e de que a lei que é não deve ser confundida com o que a lei que deveria ser (Berman, 2006, p. 98).

Em suma, a justiça deixa de ser vista em seu sentido prático e distributivo para se transformar em uma aceitação rendida da ordem vigente, cuja razão reside no fato impositivo da Providência divina. É nesse sentido que Villey (2005, p. 361-362) qualifica de “positivista” a doutrina de João Calvino: a justiça da lei não é mais condição de sua validade - o que importa é a justiça formal, porque a sua validade decorre da autoridade que procede. Toda lei humana deve ser obedecida porque é vontade do príncipe, cuja autoridade é de direito divino. No mesmo sentido, a lei vale por sua fonte, seja qual for seu conteúdo material. Pouco importa a conformidade do texto com a opinião dos juristas. Em últimas palavras, a fonte do direito é um mandamento arbitrário, ao qual só resta obedecer (Villey, 2005, p. 328-330).

Contudo, isso não significava que o fiel pudesse desobedecer ao direito positivo, pois o poder do príncipe é de direito divino, cabendo a ele ordenar a boa convivência da cidade. Eis a razão para a aparente contradição do luteranismo em relação à lei positiva: a liberdade do cristão no trato com Deus - sem intermédio da Igreja ou de uma hierarquia eclesiástica (sacerdócio universal dos crentes) - não encontra amparo na ordem externa estabelecida pela sociedade. Enquanto parece rejeitar a lei, o direito e os juristas em nome da consciência privada, a contraposição entre dois reinos estanques faz, na verdade, da lei positiva humana o único instrumento para impor uma ordem mundana no reino do pecado, com o seu poder de coerção externa (Prodi, 2005, p. 252). É o poder temporal do príncipe que garantirá a persecução do bem comum, já que o poder espiritual de Deus pertence a outro reino.

O conceito de Direito moderno está em germinação nessa redução do Direito a uma técnica de repressão a serviço de uma ordem e na ruptura praticada entre Direito e justiça. A sanção torna-se um de seus aspectos essenciais, e a coerção está no centro do fato jurídico. O direito deixa de ser concebido como algo a ser buscado e descoberto (id quod justum est). Pois, não há mais lugar para a justiça terrena: só a justiça divina - que é o Reino de Cristo - é acessível pela fé, nunca pela inteligência humana. As leis - sejam divinas, sejam temporais - só cabem ser respeitadas. Toda a teoria do direito, sua definição e suas fontes, sofrerá os efeitos dessa cosmovisão (Villey, 2005, p. 316-317).

Essa concepção reduz o Direito a um conjunto de comandos, e o seu produtor é a autoridade dotada de poderes eficazes de coação. Ao fazer essa identificação, sofre-se um afastamento da realidade social que lhe deu origem e na qual vive, não tomando conta de que o Direito tem na sua historicidade e contingência um componente extremamente importante; é dizer, o fato de consistir na própria dimensão da vida em sociedade, expressão natural e inseparável da comunidade a que pertence a sua história, em toda sua plenitude (Grossi, 2014, p. 23).

Mesmo modificada pelo humanismo, o Direito, antes da Reforma, pressupunha a diversidade de jurisdições eclesiásticas e seculares, cada uma com seus próprios textos legais. O objetivo do método escolástico era construir princípios a partir das regras e das decisões específicas encontradas nos textos. As contradições poderiam ser toleradas na cristandade ocidental, na qual jurisdições concorrentes se baseavam em textos diferentes. No entanto, não seria tão facilmente tolerado em uma ordem legal unificada de principado ou reino que governasse a igreja e o Estado dentro de cada território, tal qual foi introduzido pela Reforma. Portanto, percebe-se que a nova ciência jurídica serviu à causa política principesca (Berman, 2006, p. 127), sendo decisiva para a formação de um direito público adequado à realidade do Sacro Império a partir do século XVII, como demonstrou Stolleis (2017).

Não surpreende que a tradição moral protestante, em contraponto à católica, se caracterize pela relativa escassez de referências teológicas além do Evangelho e do Antigo Testamento, por força da condenação luterana quanto à simbiose entre Direito e moral existente no catolicismo. Isso está precisamente claro na obra De Conscientia do teólogo puritano William Ames (1576-1633), na qual não há quase nenhuma citação à lei romana ou canônica, em marcante contraste com os teólogos morais. O uso do direito canônico e da “jurisprudência papal” foi, inclusive, ironizado por muitos reformadores (Decock, 2013, p. 47-49).

Por outro lado, a reação católica se deu por meio de teólogos, como Domingo de Soto, Luís de Molina, Francisco de Vitória e Leonard Lessius, que reafirmaram a conexão entre Direito e Teologia tão criticada pelos luteranos. Os religiosos católicos davam conselhos espirituais fiando-se tanto no Evangelho quanto na filosofia pagã e no direito comum, por acreditarem que a consciência do fiel poderia ser melhor desvendada (autoconhecimento) e desenvolvida pela expertise clerical, seguindo a lição tomista de que a graça aperfeiçoa a natureza, e, por conseguinte, a autoridade aperfeiçoa a liberdade – e isso inclusive no Novo Mundo, a fim de auxiliar o processo de conversão dos nativos nas novas áreas habitáveis (Duve; Danwerth, 2020). Afinal, se, para os protestantes, a consciência individual era juiz de si mesma, para os católicos era o confessor o seu julgador (Decock, 2013, p. 46-47).

Ainda que brevemente, outra vertente protestante também deve ser mencionada. Tratou-se do esforço calvinista de eliminar completamente o dualismo da vida secular e eclesiástica e de governar as comunidades cristãs pela lei bíblica. Embora relativamente curta, a teocracia puritana deixou sua marca importante, por exemplo, na história jurídica e teológica americana (Berman, 1959, p. 95). Contra a tradição escolástica, a reforma calvinista empenha-se em edificar uma moral cristã purificada de qualquer citação mundana, é dizer, livre de toda a referência humana, pois está totalmente submetida ao texto da Sagrada Escritura. É uma virada histórica de singular envergadura, cuja repercussão terá consequência capitais sobre o Direito (Villey, 2005, p. 343), para a construção de uma teoria jurídica monista limitada ao exame do texto, como corolário do princípio formal da Reforma (Sola scriptura), em contraposição à pluralidade de fontes da ordem medieval.

Na medida em que a teologia da Reforma apela a esse princípio para a interpretação unitária das Escrituras, continua presa a uma pressuposição, cujo fundamento é dogmático. Pressupõe que a própria Bíblia é uma unidade. Julgada a partir do ponto de vista histórico, a que se chegou no século XVIII, também a teologia reformista é dogmática e adota o caminho de uma interpretação privada da Sagrada Escritura que tivesse em mente o conjunto relativo de uma escritura, sua finalidade e sua composição, cada vez em separado (Gadamer, 1999, p. 276).

A novidade está no monismo do estudo das leis divinas, ao excluir a doutrina dos filósofos pagãos sobre os quais a escolástica havia encontrado um sistema moral bem mais completo e robusto, assim como na atitude calvinista de obediência literal às regras morais, no afastamento dessa moralidade da razão humana como obra autônoma e independente de Deus, na submissão incondicional aos mandamentos divinos oriundos da vontade de Deus e promulgados nas Escrituras (Villey, 2005, p. 348). Há uma redução da moral à Bíblia e, por conseguinte, do direito às leis escritas.

Ainda que a teoria da interpretação do Direito no ius commune tenha se preocupado com o que ficou conhecido, desde o período, como interpretação restritiva (Schröder, 2012, p. 52-58), foi com a Reforma Protestante que se consolidou a busca por uma análise hermenêutica preocupada com uma literalidade textual; se antes o texto era ponto de partida da interpretação, nesse momento, ele passou a ser visto também como o esgotamento da interpretação. Em breve, os textos não serão mais o objeto, mas os limites mesmos de toda e qualquer interpretação jurídica. O que era um diálogo profundo pela descoberta do justo natural se transforma em um monólogo estéril para a reprodução de sentidos já dados.

Mais tarde, será preciso indagar se esse “sentido teológico” da exegese bíblica – de compreender os textos a partir deles mesmos – se justifica também com relação à hermenêutica jurídica; ou se, pelo contrário, não trará em si certa insuficiência que necessitará ser completada por um fio condutor de caráter criativo.

3.3 A DECADÊNCIA DO DIREITO NATURAL

Estando envolta na escuridão, a razão humana torna-se um instrumento deficiente e incapaz de prover a adequada compreensão do “direito natural” que busca acessar. Sendo impossível utilizar-se da razão, ante a verificação de um cenário no qual tanto ela quanto a consciência estão maculadas pelo pecado, Lutero conclui que é apenas por meio da fé que se torna acessível ao homem compreender os princípios de direito natural e então aplicá-los (Berman, 2006, p. 73-74).

Embora preconize ser a fé a estrutura utilizada para que se conheça o direito natural, não é necessário, na filosofia luterana, que o indivíduo compreenda esses princípios nem os aplique efetivamente nas suas relações interpessoais para obter a salvação. Na visão reformada, a salvação decorre única e exclusivamente do ato de fé, porquanto está regida pelo Reino Divino. Já o direito natural e seus princípios, assim como o direito civil e comum, foram ordenados diretamente por Deus para regular um principado distinto – o reino terrestre –, não funcionando como caminho de salvação por Cristo (solus Christus). A obediência ao direito natural e ao civil não resgata os homens de seus pecados, nem promove a salvação. O que os leva a Cristo é apenas a fé. Surge, então, o princípio material da Reforma: o sola fide (Albuquerque; Cabral, 2020, p. 22).

Lutero define a Lei de Deus como o conjunto de normas ordenadas por Deus na criação, inscritas nos corações das pessoas e escritas nas páginas da Bíblia. Ele chamou isso indistintamente de “lei natural”, “lei da natureza”, “lei divina”, “lei da consciência”, “lei inerente”, dentre outras denominações; e as derivou diretamente de Deus (Witte Jr., 2004, p. 113-115). O direito natural passa a ser a lei divina revelada, que, segundo a teologia agostiniana tradicional, substitui a lei natural pagã, cujo conteúdo havia sido inserido nos corações por Deus, mas da qual as consciências corrompidas só têm agora um conhecimento obscuro. O direito natural seria, portanto, a lei promulgada nas Sagradas Escrituras, especialmente no Decálogo. Desviado do seu sentido autêntico – a natureza humana –, o direito natural nada mais é do que a obediência às leis divinas positivas (Villey, 2005, p. 319-320). Aí está plantada a base para o jusnaturalismo moderno, que confunde lei natural com lei divina12.

Teologicamente, a concepção de Direito luterana diferia da escolástica, pois ele considerava o direito civil, o direito natural e o direito divino ordenados por Deus apenas para o domínio terrestre e não para o celeste. A lei não integrava a realidade objetiva de Deus, nem entendia que a lei era ordenada por Deus como uma maneira de levar as pessoas a se unirem a ele. Essa união dependia apenas da fé (sola fide), cujo conteúdo era revelado apenas nas Escrituras (sola Scriptura). Desse modo, todas as leis, incluindo os Dez Mandamentos, foram ordenadas por Deus para o homem decaído, como meio de ajudálo a cumprir seu chamado.

O direito natural permanece, assim, como ponto de referência no pensamento luterano, mas se dá um passo para o seu isolamento e superação enquanto realidade histórica e concreta: o poder e, por consequência, o Direito agem na esfera temporal, que se encontra sob o domínio dos príncipes; distante, portanto, da esfera eterna no Reino de Deus (Prodi, 2005, p. 250-251). Logo, a única lei importante para a salvação da alma do fiel é a lei divina positiva, consubstanciada no Evangelho, sendo indiferente o conteúdo do direito civil ou canônico, que deve, porém, ser obedecido.

Por isso, questões morais complexas sobre o Direito e os seus possíveis desdobramentos, diante do caso concreto, são deixadas de lado para fiar-se apenas nos mandamentos sagrados: as leis divinas positivas. Não importa mais investigar os motivos das coisas e as suas exceções, tal qual fez, por exemplo, Tomás de Aquino em sua Suma Teológica, pois o importante é tão somente ater-se ao cumprimento da lei revelada (Villey, 2005, p. 359-360).

A lógica desse sistema teológico convida a não reconhecer outras fontes jurídicas além das leis positivas – e, em primeiro lugar, as leis positivas divinas. Foi o retorno às Escrituras como fonte primordial do direito que o reformador, na linha dos procedimentos agostinianos, pregou inicialmente. Nisso, participa das tendências comuns em seu tempo de voltar às raízes bíblicas, para além das glosas medievais e dos doutores morais escolásticos (Villey, 2005, p. 323).

No mesmo momento em que o direito natural goza do seu triunfo, ao ser elevado ao status de lei divina, ele perde sua aplicabilidade prática, já que está restrito às leis imutáveis prescritas na Bíblia. Ocorre, então, uma “sacralização” do direito natural, que não mais remete à ordem da natureza das coisas – como entendiam os romanos e os medievais –, mas simplesmente à vontade divina (voluntarismo).

Diferentemente dos protestantes, os teólogos católicos não tratavam a “Nova Lei” (o Evangelho) como suficiente para decidir quais obrigações uma pessoa deveria preencher em uma situação concreta para fazer a vontade de Deus, substituindo, inclusive, o Direito. Os teólogos morais tinham uma compreensiva e sistemática visão dos diferentes corpos de lei que regiam o comportamento humano, implicando que o Evangelho não era considerado a única fonte de moralidade. A doutrina moral pós-tridentina reforçou isso ao enfatizar que pensar de modo diverso significaria cair em heresia (Decock, 2013, p. 82).

Após o Concílio de Trento, foi fortalecida a convicção católica de que a espiritualidade e a moralidade não poderiam operar sem uma articulação conjunta com as normas legais. O sacramento da confissão tornou-se judicializado no exato momento em que a distinção entre a resolução dos casos de consciência e a decisão do foro jurisdicional perdia seu poder dentro da tradição moral protestante. Isso deu força ao revigoramento da síntese da filosofia patrística-escolástica que, ao lado do direito romano-canônico, caracterizou os manuais dos confessores medievais, cuja mistura de argumentos teológicos e judiciais construía uma literatura compreensiva, sistemática e doutrinal (Decock, 2013, p. 56).

Na concepção católica, defendia-se existir uma distinção entre a capacidade de aprender, de natureza intelectiva, denominada de Synderesis, e a chamada Conscientia, caracterizada como a habilidade de pôr em prática, em determinadas circunstâncias concretas, os princípios de direito natural de que se tinha conhecimento abstrato. A primazia era conferida à razão, entendida como instrumento de acesso ao âmbito do direito natural (Berman, 2006, p. 75).

Isso não significou um desprezo da tradição católica quanto aos textos escriturais, já que eles eram fonte primária do verdadeiro conhecimento religioso, pois, revelados por Deus. Acreditava-se, porém, que os textos bíblicos deveriam ser entendidos à luz da tradição apostólica e do magistério eclesiástico, já que continuam abertos ao desenvolvimento doutrinal para a melhor compreensão do mistério da Revelação – como no caso dos dogmas papais, que trazem verdades da fé não contidas explicitamente nas Escrituras, por dedução teológica. Se a exegese pretende também ser teologia, deve reconhecer que, sem a fé da Igreja Romana, a Bíblia permanece como um livro selado: pois, a tradição, antes de fechar o acesso às Escrituras, abre-o. É dizer, a Bíblia não podia ser interpretada privadamente, fora da tradição que a circunscrevia.

Com efeito, na história da filosofia jurídica, a Reforma se apresenta como um prolongamento do esforço nominalista, dando continuidade ao movimento de regresso ao agostinismo medieval, bastante crítico do direito natural. Abandona, junto à escolástica franciscana, as contribuições humanísticas da escola tomista; rejeita a teoria artística do direito, herdada da filosofia grega pelos romanos; amputa a ética das virtudes morais, em sua obsessão pelo retorno às fontes escriturais. São essas as principais notas que conduziram ao positivismo moderno (Villey, 2005, p. 363-364).

O movimento protestante pregou uma “volta às origens” na análise bíblica, afastado de quaisquer impurezas pagãs. Mais tarde, de igual modo, os positivistas vão pregar a “pureza” do texto legal, que precisa ser interpretado aquém da opinião e da consulta dos doutores da lei, em uma postura de desprezo com a tradição oral e “extraoficial”. O monismo teológico protestante se opõe ao pluralismo jurídico medieval – o qual não pode mais subsistir sem uma base transcendental que o sustente. É essa anomia moderna que cumpre aos iluministas destruir, trazendo o direito para o campo da cientificidade.

Caberá a Christian Tomasius, no início do século XVIII, dar o último passo rumo ao juspositivismo: em sentido estrito e próprio, apenas à lei positiva compete a definição de “lei” – enquanto comando jurídico dirigido a todos (Cabral, 2016). Já o direito natural é confinado à tarefa de “conselheiro” da filosofia moral e da ética, com a consequência muito prática de subordinar não apenas a Igreja, mas também a ciência do direito ao poder do príncipe (Prodi, 2005, p. 448).

4 ASCENSÃO E CONSOLIDAÇÃO DO POSITIVISMO JURÍDICO

Existe forte divergência sobre quando o positivismo se iniciou, até porque foi muitos mais um fenômeno jurídico espontâneo do que uma teoria criada e formulado por um só autor. Na virada do século XVIII, formou-se um grupo crescente de juristas com ideias próprias do iluminismo, cuja nítida tendência era voltada à aplicação direta e sem ambiguidades das leis, livre de interpretações, glosas ou comentários que pudessem relativizá-las ou alterá-las. A lei deveria falar por si mesma, tão simples e clara que não haveria dúvida pelo mais rude dos aldeões (Ruiz, 2018, p. 90). Como resumiu Schröder (2012, p. 203-204), em importante estudo sobre a história da metodologia jurídica, a lei passou, no início do século XIX, a ser encarada não como a mais importante das fontes, mas sim como a única fonte do direito.

Tratados dos séculos anteriores já se preocupavam em acabar com a pluralidade de opiniões, determinando, por meio da lei, qual a opinião mais condizente com a razão seria definitiva. Foi o caso, por exemplo, de Pedro de Simón Abril, que, no fim do século XVI, apresentou proposta de “clarificar” o emaranhado jurídico baseado em diferentes opiniões e estabelecer um novo corpo de leis que fosse o único critério de decisão sobre controvérsias jurídicas. Ele estabelecia uma nítida oposição entre os legisladores e os glosadores: enquanto os primeiros queriam que o povo conhecesse as leis para que fossem cumpridas, estes pretendiam que os súditos não as entendessem, para que fossem consultados sobre o seu entendimento acerca delas (Ruiz, 2014, p. 79-80). Mesmo em Portugal, essa preocupação se tornou central no século XVIII, com a edição da chamada Lei da Boa Razão, em 1769.

A expressão “direito positivo” (ius positivum, iustitia positiva) data da escolástica humanística de Chartres, em seguida, aparecendo em Pedro Abelardo, nos glosadores e na filosofia de Tomás de Aquino; praticamente todos os teólogos morais escolásticos adotaram essa terminologia em seus manuais. É a tradução do grego díkaion nomikón, porque a essência das leis (nómoi) de onde deriva o justo consiste no fato de serem dispostas positivamente (legem ponere). No sistema clássico do direito natural, embora exista um justo que deriva da lei – o justo positivo –, ele é apenas uma fonte subsidiária, já que a primeira fonte do direito é a ordem da natureza das coisas, da qual o trabalho jurisprudencial (iurisprudentia) extrai regras jurídicas. O positivismo jurídico, pelo contrário, é a doutrina que exalta o direito positivo, a ponto de edificar sobre a lei – e somente sobre ela – o conjunto da ordem normativa (Villey, 2005, p. 236).

Após a Revolução Francesa, a lei passou a adquirir um caráter quase sagrado na França. Única e verdadeira expressão da soberania nacional e da vontade geral, ela era infalível e emancipadora, pois fruto da deliberação popular, com a consequência de que, inclusive em face de lacunas, os magistrados nada faziam do que somente aplicar o direito. Fora dela, reinavam somente o arbítrio e a insegurança. Foi esse espírito de reduzir todo o direito ao texto legal que influenciou a Europa, em grande medida, até a metade do século XX (García de Enterría, 1995, p. 121-124).

A filosofia do racionalismo, do individualismo e do utilitarismo, que sustenta a nova ciência jurídica francesa, estava intimamente ligada à rejeição da doutrina católica, por um lado, e, por outro, a forte crença em um Deus Criador que dotou a humanidade do dom da razão e do poder de usar sua liberdade. Nessa cultura jurídica, entendia-se que a interpretação identificava o trabalho do jurista, na medida em que consistia na aplicação da lei logo após havê-la interpretado e descoberto nela a resposta procurada. Se o direito estava contido na lei, era possível e até desejável que o juiz se convertesse em um especialista de um ramo dessa ciência específica (Vigo, 2012, p. 193-194). Para essa visão, a legalidade do Direito permitiria a imparcialidade da sentença, que se baseara exclusivamente na letra da lei, e não no sentimento do juiz.

O núcleo do positivismo jurídico reside, portanto, na tese que admite como Direito apenas aquilo que os homens de uma sociedade histórica tenham estabelecido como tal, não reconhecendo juridicidade a algo que se estabeleça como um limite insuperável para as fontes sociais que criaram integralmente esse direito. É uma doutrina que reconhece como norma jurídica apenas as formalmente válidas, promulgadas por uma autoridade devidamente investida de poder, sem preocupação com o seu conteúdo ontológico ou moral e com a sua efetiva observância por parte dos membros da sociedade.

Séculos depois da Reforma, mais especificamente na Revolução Francesa, os usos dos argumentos são desautorizados pela autoridade da lei escrita. Tal qual a retórica dos escolásticos, a doutrina dos juristas é desprezada em favor da eloquência textual. Do mesmo modo que os protestantes acreditam que só há um único Legislador – que é Deus –, os positivistas também vão defender que só há um legislador, que é o Estado. Se a lei divina é positiva, por consequência lógica, a lei humana também só pode estar positivada. O protestantismo funda um positivismo religioso – baseado no dogma da sola Scriptura – que tão logo será transposto para o mundo jurídico.

A interpretação também vai ser profundamente afetada, já que – tal qual na teologia – os argumentos de autoridade pouco ou nada importam, valendo mais a inquirição sobre o sentido preciso do texto posto. Não é surpreendente que os métodos da exegese bíblica sejam transpostos para o Direito, de modo que o intérprete possa utilizálos com tal precisão que descubra o sentido oculto e verdadeiro do texto13.

A influência de Lutero aqui é clara, para quem o príncipe deveria governar com um gládio e exercer seu poder divino sobre súditos, sob o qual só restava obedecer. Da mesma forma que Lutero limita as fontes teológicas à Bíblia (sola Scriptura), os positivistas vão limitar as fontes jurídicas à lei, em um caminho que levou à sedimentação da tese do monismo estatal. Isso é resultado lógico de uma visão luterana do Direito que não enxerga nele um elemento relevante para a salvação das almas. O Direito assume uma missão burocrática e repressiva, garantindo a ordem legal estatuída, e não mais focada na justiça concreta. Assim é construída uma teoria jurídica que não se preocupa mais com o conceito medieval de Direito, que era a arte do bom e do justo (ius est ars boni et aequi).

Assim como não podemos rejeitar a contribuição da teoria cristã do direito natural para o desenvolvimento do Direito, tampouco podemos rejeitar a contribuição do “positivismo cristão”. Após mais de quatro séculos de história em que a Igreja e o Estado tinham conseguido juntos cristianizar a lei em uma medida notável, Lutero vai defender que o desenvolvimento do direito positivo é tarefa das autoridades seculares – o Estado, e não da Igreja como tal. Um positivismo protestante que separa a lei da moral e encontra a sanção final da lei na coerção política (Berman, 1959, p. 94-95).

Todavia, as leis positivas, em última instância, não valem por si mesmas só porque são promulgadas pelos homens e a eles se dirijam, já que o seu conteúdo não pode contrariar a lei divina revelada por Deus nas Escrituras, cuja desobediência é garantida pelo direito de resistência à tirania estatal (Albuquerque; Cabral, 2020, p. 30). Nesse aspecto, a amoralidade do juspositivismo kelseniano, desenvolvida só no século XX, é uma postura estranha ao protestantismo germinal e marca específica do subjetivismo epistemológico moderno.

Tampouco a doutrina luterana do direito natural, desenvolvida pelo discípulo Melanchthon, abre espaço para um sistema dedutivo no qual todas as regras são obtidas por uma razão geométrica derivada de princípios absolutos. Esta é uma ideia racionalista moderna que não encontra correspondência no século XVI (Scattola, 2001, p. 111). Ressaltadas essas diferenças, pergunta-se: como sustentar a decorrência entre esses fenômenos intelectuais? É simples: o ponto fulcral aqui é perceber como aquele fenômeno jurídico não pode ser totalmente dissociado deste outro religioso.

Ambos adotam a mesma posição existencial de obediência e serventia ante o direito posto, algo inexistente no paradigma anterior. O aperfeiçoamento do ser humano pela justiça deixa de ser o fim do Direito, para este se transformar apenas em um conjunto de normas que devem ser cumpridas para a boa organização da sociedade. O Direito perde sua finalidade transcendental e se converte em um mero instrumento de poder, por meio da adesão externa dos cidadãos. Tanto protestantes quanto positivistas cumprem as leis não porque sejam justas em si mesmas, mas porque são atos emanados de uma autoridade superior legalmente constituída. Essa é a mudança de postura intelectual que permitirá o surgimento de uma nova ideologia jurídica.

Essas são as principais implicações da Reforma na teoria do Direito, a provar que a religião exerceu forte influência na teoria jurídica moderna, de tal forma que seus efeitos podem ser sentidos até hoje. De todo modo, é evidente que a Reforma não pode ser entendida como um movimento racionalista que buscava reduzir o Direito à literalidade da lei – tal qual os iluministas franceses –, mas sim como a mais influente e brutal investida contra o arcabouço jurídico acumulado e preservado desde a Roma antiga até a Idade Média tardia. Se o nominalismo do século XIII, enquanto escola filosófica concorrente ao tomismo, sequer chegou a apresentar uma ameaça à tradição da Igreja católica, as doutrinas reformadas foram suficientes para abalar suas estruturas.

Dessa forma, a doutrina jurídica luterana foi uma fonte importante na definição de lei do positivismo jurídico moderno como a vontade do Estado expressa em regras e imposta por sanções coercitivas (Berman, 2006, p. 76), em especial, a ideia de que o direito poderia estar contido no texto legal. “Não há base alguma nas Escrituras”, e “isso é facilmente refutado por um texto das Escrituras”, é um recurso retórico frequentemente utilizado por Lutero para provar que a lei canônica, a opinião dos teólogos e a autoridade papal estavam erradas, criando doutrina e inovando onde não havia regras estabelecidas claramente. Daí para acabar com a opinião dos jurisconsultos sobre a lei é um salto, resultando uma confusão entre os campos próprios do direito natural (razão prática) e da teologia revelada (razão especulativa).

Ao final desse processo, o velho “caos” pluralístico jurídico medieval é substituído por um modelo legal extremamente rígido: a lei agora está vinculada ao aparato do poder estatal e tende a se confundir com a legislação. E assim começa um longo período de legalismo: a própria lei, como expressão de uma vontade soberana, torna-se um objeto de adoração, cujo conteúdo é de menor importância. Essa atitude profundamente confiante em relação à lei continuou a ser muito influente até o passado muito recente, e as críticas a essa perspectiva começaram a ecoar mais fortemente apenas há alguns anos (Grossi, 2010, p. 69).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos últimos anos, historiadores do Direito têm dado mais atenção às relações entre lei e religião ao longo da formação da tradição jurídica ocidental. Durante o Medievo e a Idade Moderna, Direito e Teologia tiveram uma relação quase simbiótica, e teólogos morais (muitas vezes até mais frequentemente do que os próprios juristas) exerceram um protagonismo no processo de criação do Direito.

Por que, então, estudar a influência do cristianismo protestante na teoria jurídica ocidental dos últimos séculos? Primeiro, porque somos herdeiros dessa tradição intelectual, e nossa lei é produto dessas influências. Não se pode entender o que são as instituições jurídicas contemporâneas se não se sabe como elas se tornaram o que são, a partir de suas origens. Restringir-se apenas ao presente e esquecer-se da gênese e da contingência dos fenômenos sociais, inclusive jurídico-políticos, é um erro. Segundo, porque a religião tornou-se assunto privado dos indivíduos; em grande parte, deserdou do discurso legal. E, hoje, não é mais evidente que as crenças hodiernas fundamentais substituíram as crenças religiosas primitivas sob as quais nossas instituições repousam (Berman, 2006, p. 10).

Ainda hoje, a noção dominante junto a muitos juristas é que a interpretação é apenas uma atividade puramente cognitiva, cujo intérprete é um autômato sem vontade nem liberdade própria. Até os jusfilósofos culturalmente mais abertos que tentam resgatar uma visão hermenêutica mais complexa falham ao reafirmar o dogma da legalidade estrita (Grossi, 2014, p. 202). Nota-se, assim, uma das importações do paradigma protestante de reverência incondicional ao texto e da sua completude na análise do Direito, da qual não cabe ao intérprete intervir criativamente sobre ele.

Ao longo do século XX, a religião desafiou as suposições céticas da academia ocidental de que a disseminação da razão iluminista e da ciência eclipsaria lentamente o sentido do sagrado e da superstição. Todas as grandes tradições religiosas se esforçaram para chegar a um acordo sobre a lei, estabelecendo um equilíbrio entre o racional e o místico, o profético e o sacerdotal, o material e o espiritual. Toda tradição jurídica luta para vincular suas estruturas e processos formais às crenças e aos ideais de seu povo. Direito e religião são esferas distintas da vida humana, porém existem em constante interação entre si. Seja qual for o novo paradigma do estudo jurídico, ele precisará levar em consideração as fontes religiosas e as dimensões do Direito (Witte Jr., 2005, p. 445-446).

A modernidade, profundamente secularizada, tende a menosprezar ou reduzir a importância que a religião exerceu e continua exercendo na formação do imaginário jurídico presente. É preciso combater essa postura historiográfica que nega a influência da Teologia sobre o conteúdo positivo do Direito, visto que os teólogos exerceram um papel de destaque no período pré-moderno ao escrever sobre o Direito pelas suas implicações práticas na vida dos fiéis. Ignorar a sua participação na construção do conceito de direito moderno é amputar parte do conhecimento jurídico sobre o presente. Isso, evidentemente, não significa uma postura de conversão religiosa por meio do Direito, mas, tão somente, um processo de reconhecimento quase genealógico dos componentes dessa modernidade em que nos inserimos – e assim, evidentemente, entender essa relação entre Direito e Teologia se torna imprescindível.

A influência que o pensamento protestante exerceu na construção do saber jurídico moderno não é de pequena monta. As premissas teológicas lançadas por Lutero estão profundamente ligadas ao que futuramente veio a ser chamado de positivismo jurídico. Embora não tenha se dedicado prioritariamente ao Direito, isso não significa que suas doutrinas deixaram de ser transpostas e replicadas por seus discípulos na esfera jurídica. Juristas luteranos desenvolveram uma nova filosofia jurídica que combinava uma teoria positivista do direito – como um corpo de regras formais expresso na vontade de um legislador – com uma teoria natural de aplicação das regras – recorrendo à consciência divinamente iluminada do juiz protestante (Berman, 2006, p. 8).

Outros desdobramentos desta pesquisa poderão comprovar, por exemplo, os rastros de influência dessa doutrina sobre o originalismo norte-americano, propulsor do método histórico-textual de interpretação jurídica, e as diferenças com a experiência casuísta nas colônias latino-americanas, cujos influxos da segunda escolástica são marcantes no seu modo de pensar e entender o direito dialeticamente, para além das tradicionais divergências entre os sistemas de common law e civil law.

Nesses termos, conclui-se que a Reforma foi o primeiro grande movimento contra a tradição jurídico medieval vigente no Ocidente. Os reformadores, ao fundarem um positivismo religioso ou teológico cristão – erigido sobre fontes positivas –, lançaram as bases para o surgimento de um positivismo jurídico, fenômeno estranho ao paradigma anterior e sem precedentes históricos na forma de pensar a totalidade do direito, à exceção dos sofistas. Longe de significar um produto próprio do seu tempo – impulsionado pela filosofia racionalista e teísta vigente na época –, o positivismo jurídico é o resultado de um processo de maturação iniciado desde a Revolta Protestante, que forneceu as bases para que essa teoria viesse a ser desenvolvida posteriormente. Não que o protestantismo tenha influenciado única e exclusivamente esse fenômeno jurídico moderno, mas que é um dos seus principais marcos fundacionais.

Entretanto, a secularização da lei e o surgimento de uma teoria positivista do Direito são apenas um dos lados da contribuição da Reforma para o conceito de Direito. Agregue-se a sua libertação da doutrina teológica e da influência eclesiástica direta, fundando uma ciência autônoma (Berman, 1959, p. 94). Como bem observou Villey (2005, p. 307), a filosofia do Direito nunca deixou – nem mesmo hoje – de estar ligada à teologia. A simbiose entre Direito e religião foi muito intensa. Portanto, o impacto da Reforma Protestante na tradição jurídica ocidental deve ser visto não apenas como um episódio do passado, mas como uma memória viva que influencia tanto o presente quanto o futuro (Berman, 2006, p. 12). Com sua ignorância, quem perde são os juristas na descrição das realidades nas quais estão inseridos.

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Notas

O presente artigo teve sua versão inicial escrita pelo então orientando Daniel Damasceno entre 2020 e 2021, durante e depois da disciplina de História do Direito e Pensamento Jurídico no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), sob a orientação do professor Gustavo Cabral. Após a revisão do professor, com acréscimos e comentários, foi feita uma nova correção e aprimoramento do texto pelo autor principal, com o incremento dos argumentos e da bibliografia, chegando assim à sua versão final.
1 Dig., I, I, 10, § 2.
2 Dig., I, II, 2, § 5.
3 ST, I-II, q. 57, a. 4.
4 Grossi (2014, p. 48) aponta quatro características fundamentais para a compreensão da ordem jurídica medieval, sem as quais o leitor moderno correrá o risco de inexatidão: i) a incompletude do poder político, que não era onipotente muito menos onipresente; ii) a autonomia do direito, marcada pela relativa indiferença do poder político por ele; iii) o pluralismo jurídico, acentuado pela diversidade de ordenamentos locais, sem hierarquia de fontes; iv) a factualidade e historicidade do direito, cuja experiência jurídica era viva e presente.
5 A particularidade da Idade Média tardia é a ordem abrangente que se torna multifacetada, articulada em uma pluralidade de ordenamentos conviventes e autônomos. A ordem jurídica do Medievo é um mundo fundado e construído na noção fundamental e característica de concorrência de uma diversidade de sistemas jurídicos, pressupondo o respeito e a dependência de um pelos outros, sem pretensões dominadoras (Grossi, 2014, p. 277).
6 “Dizer o direito” não significa criá-lo, mas pressupô-lo já criado e formado; significa explicitá-lo, torná-lo manifesto por meio da aplicação (Grossi, 2014, p. 162). Sobre a formação desse conceito, cf. Costa (2002).
7 Ressalte-se que essa doutrina influenciou também, em alguma medida, tanto calvinistas como anabatistas (Witte Jr., 2004, p. 89). As repercussões da revolução luterana alemã foram sentidas em toda a Europa, inclusive em países que permaneceram católicos, como França, Espanha e Áustria (Berman, 2006, p. 8).
8 Para aprofundar no contexto da teoria da plenitudo potestatis papae, cf. Barnabé (2010).
9 Paradoxalmente, o retorno às Escrituras não foi visto pelos reformadores como um abandono da tradição cristã para uma abertura ao arbítrio individual. Era um rompimento contra a “arbitrariedade” aristotélico-escolástica e o restabelecimento de uma tradição que estava senão enterrada pela autoridade papal. Lutero estava tão ocupado com o seu ódio ao intelectualismo que considerou a ruptura com o edifício escolástico um regresso ao significado primitivo e original da primeira Cristandade, com pouco espaço para dissensões. Surpreende como ele não previu que, ao abrir a interpretação da Bíblia para todos os fiéis, estava liberando o caminho para uma anarquia de opiniões conflitantes de difícil resolução (Voegelin, 2014, p. 277-279).
10 Ao contrário de alguns críticos, Witte Jr. (2004, p. 4) argumenta que a transição da teologia para o direito não foi uma corrupção da mensagem original de Lutero, mas o seu inevitável desenvolvimento.
11 O humanista Johann Apel (1486-1536) talvez foi o primeiro jurista a aplicar a hermenêutica protestante ao direito e apresentá-la como um conjunto integrado de princípios e conceitos dos quais as várias regras legais são logicamente derivadas. Ele se propôs a fazer no direito o que seus colegas haviam feito em teologia: sintetizar os princípios e os conceitos de uma forma bastante diferente daquela que aparecia nos textos originais e foi estabelecida pelos escritos oficiais anteriores (Berman, 2006, p. 115).
12 Essa confusão já é encontrada inclusive em Melanchthon. Seguindo o exemplo de Lutero, ele transformou a filosofia moral e jurídica tradicional do Ocidente ao subordinar a lei natural – que é discernível e distorcida pela razão humana corrompida – ao Decálogo – que é revelado pela fé –, fazendo da Bíblia, e não da razão, a fonte básica e o resumo de toda a lei natural. Em contraposição, a maioria dos escritores católicos romanos confiava nos Dez Mandamentos não para desenvolver uma lei natural para a vida civil externa, mas para desenvolver uma lei moral para a vida espiritual interior (Berman, 2006, p. 79-80; Scattola, 2001, p. 102). Para mais sobre a noção de direito natural em Melanchthon, cf. Scattola (1999, p. 29-55).
13 A partir do século XIX, a hermenêutica procura pôr a descoberto o sentido original dos textos, por meio de um procedimento de correção quase artesanal, cuja importância decisiva para o desenvolvimento dessa disciplina auxiliar reside no impulso reformador de Lutero e Melanchthon para a interpretação da Bíblia (Gadamer, 1999, p. 274). O método histórico-crítico pretende extrair o sentido primitivo do texto a partir da análise de elementos linguísticos, de gêneros literários, de contextos históricos e da mentalidade da época (Sitz im Leben). Suas raízes filosóficas – mais do que exegéticas – remontam ao nominalismo do final da Idade Média, quando surgiram maneiras alternativas de ler as Escrituras, estranhas não apenas à Igreja e sua tradição, mas às formas clássicas de interpretar os textos. Liberta-se, assim, da autoridade teológica da Igreja e do criticismo da tradição (Hahn; Wiker, 2018).

Notas de autor

Editora responsável: Profa. Dra. Fayga Bedê

https://orcid.org/0000-0001-6444-2631

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