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A Razão Prática da Colegialidade no Supremo Tribunal Federal e os Princípios da Democracia Deliberativa: o Diálogo Importa?
The Practical Reason for Collegiality in the Federal Supreme Court and the Principles of Deliberative Democracy: does Dialogue Matter?
La Razón Práctica de la Colegialidad en el Tribunal Supremo Federal y los Principios de la Democracia Deliberativa: ¿Importa el Diálogo?
Revista Opinião Jurídica, vol. 22, núm. 41, pp. 84-114, 2024
Centro Universitário Christus

Artigo


Recepción: 26 Enero 2024

Aprobación: 14 Noviembre 2024

DOI: https://doi.org/10.12662/2447-6641oj.v22i41.p84-114.2024

RESUMO

Contextualização: As práticas interativas de um órgão colegiado como o Supremo Tribunal Federal afetam diretamente a qualidade e a legitimidade das decisões proferidas, no que concerne tanto à epistemologia dos arranjos institucionais adotados quanto à qualidade da cognoscibilidade do conteúdo deliberado.

Objetivo: O foco deste artigo é o papel do diálogo e da colegialidade, pois pretende contribuir para a reflexão sobre a importância do diálogo no Supremo Tribunal Federal, cujas decisões devem traduzir o consenso alcançado pela instituição por meio da razão prática, adequado ao modelo democrático brasileiro.

Método: Este trabalho tomou por base pesquisas nas quais se expõe a opinião dos próprios ministros acerca das práticas de diálogo dentro do Supremo, examinadas à luz do conceito de democracia deliberativa, modelo político adotado pela Constituição brasileira de 1988. Trata-se de pesquisa bibliográfica.

Resultados: O tipo de experiência deliberativa praticada na Suprema Corte implica o desfazimento do caráter colegiado da Instituição, que é substituído pelo aspecto individualista dos julgadores, o que traz prejuízo à qualidade das suas decisões judiciais, reduzindo-as mais a opiniões pessoais, minimizando a expressão da racionalidade prática daquela instituição.

Conclusões: Defende-se a hipótese de que é necessário assumir o desafio do diálogo autêntico como razão prática de um empreendimento coletivo relevante para refletir um consenso institucional, porque essa é uma perspectiva fundamental para a legitimidade das decisões de um Tribunal Colegiado.

Palavras-chave: Democracia deliberativa, corte constitucional, processo decisório, colegialidade, diálogo.

ABSTRACT

Contextualization: The interactive practices of a collegiate body such as the Federal Supreme Court directly affect the quality and legitimacy of the decisions made, with regard to both the epistemology of the institutional arrangements adopted and the quality of knowability of the deliberate content.

Objective: The focus of this article is the role of dialogue and collegiality, as it aims to contribute to reflection on the importance of dialogue in the Federal Supreme Court, whose decisions must reflect the consensus reached by the institution through practical reason, appropriate to the democratic model Brazilian.

Method: This work was based on research in which the opinion of the ministers themselves is exposed regarding the practices of dialogue within the Supreme Court, examined in light of the concept of deliberative democracy, a political model adopted by the Brazilian Constitution of 1988. This is a bibliographical research.

Results: The type of deliberative experience practiced at the Supreme Court implies the undoing of the collegial character of the Institution, which is replaced by the individualistic aspect of the judges, which harms the quality of their judicial decisions, reducing them more to personal opinions, minimizing the expression of the practical rationality of that institution.

Conclusions: The hypothesis is defended that it is necessary to take on the challenge of authentic dialogue as a practical reason for a relevant collective undertaking to reflect an institutional consensus, because this is a fundamental perspective for the legitimacy of the decisions of a Collegiate Court.

Keywords: Deliberative democracy, constitutional court, decision-making process, collegiality, dialogue.

RESUMEN

Contextualización: Las prácticas interactivas de un organismo colegiado como el Tribunal Supremo Federal afectan directamente la calidad y legitimidad de las decisiones tomadas, tanto en lo que respecta a la epistemología de los arreglos institucionales adoptados como a la calidad de la cognoscibilidad del contenido deliberado.

Objetivo: El objetivo de este artículo es el papel del diálogo y la colegialidad, ya que pretende contribuir a la reflexión sobre la importancia del diálogo en el Tribunal Supremo Federal, cuyas decisiones deben reflejar el consenso alcanzado por la institución a través de la razón práctica, adecuada a las modelo democrático brasileño.

Método: Este trabajo se basó en una investigación en la que se expone la opinión de los propios ministros sobre las prácticas de diálogo en el seno de la Corte Suprema, examinada a la luz del concepto de democracia deliberativa, modelo político adoptado por la Constitución brasileña de 1988. Es una investigación bibliográfica.

Resultados: El tipo de experiencia deliberativa practicada en la Corte Suprema implica la perdición del carácter colegiado de la Institución, que es reemplazado por el aspecto individualista de los jueces, que perjudica la calidad de sus decisiones judiciales, reduciéndolas más a opiniones personales. minimizando la expresión de la racionalidad práctica de esa institución.

Conclusiones: Se defiende la hipótesis de que es necesario asumir el desafío del diálogo auténtico como razón práctica para que un relevante compromiso colectivo refleje un consenso institucional, porque esta es una perspectiva fundamental para la legitimidad de las decisiones de un Tribunal Colegiado.

Palabras clave: Democracia deliberativa, corte constitucional, proceso de toma de decisiones, colegialidade, diálogo.

1 INTRODUÇÃO

Uma das características primordiais atribuídas aos tribunais de justiça é a sua formação colegiada. No caso da Corte Suprema1 e dos tribunais intermediários no Brasil, é um dado da realidade que sigam a forma da colegialidade, a qual demanda uma deliberação coletiva para uma resposta institucional. É uma exigência desse modelo de tomada de decisão judicial a primazia do diálogo autêntico em conformidade com a natureza deliberativa dos tribunais de justiça situados em uma República Federativa cujo modelo democrático é o deliberativo.

A ética da colegialidade exige um determinado ethos que fomente uma interação dialógica entre os julgadores em busca da resposta mais madura possível, que reúna as diversas perspectivas a serem concentradas em uma única decisão de caráter e de peso institucional e cuja transparência não somente consigne os pensamentos vencidos, mas também os considere nas razões que levaram a uma determinada decisão e que devem ser publicizadas.

Ocorre que justamente esse aspecto deliberativo desafia a atenção das teorias normativas e da sociedade como um todo. Com efeito, ao apresentar o ponto de vista dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a publicidade dos julgamentos, especialmente os debates transmitidos ao vivo pela TV e o processo deliberativo e decisório da Corte sob essa influência midiática, e também sobre o papel do ministro relator, Silva (2015, 2018), trouxe a lume certas particularidades dos debates na colegialidade que põem em xeque o próprio processo decisório e deliberativo, pois revelam contradições na natureza da instituição e no papel ético dos ministros.

Sob a forma de entrevista, o autor registra os atos dos ministros, não a partir de elucubrações e de deduções, mas interpretados pelos próprios atores, com base naquilo que eles vivenciam. As respostas colhidas permitem reflexões a respeito do desenho democrático no Brasil na perspectiva da racionalidade prática, revelando que a falta de esforço pessoal para garantir a colegialidade pode gerar o esvaziamento do caráter integrado da instituição e da sua unicidade e fragilizar a legitimidade do órgão judicial mais importante do país.

Um velho problema já apontado por Aristóteles (2009, 2014) nos clássicos A política e Ética a Nicômaco está sempre às voltas quando se trata de política e de ética: o reto funcionamento da sociedade pressupõe, de um lado, instituições e, do outro, virtudes. Uma instituição é uma estrutura social orientada para certos bens (fins), e a virtude é uma qualidade moral de que dispõe a pessoa para alcançar certos bens.

Levanta-se a hipótese de que a finalidade de uma instituição como a Corte Constitucional e os seus procedimentos deveriam partir da razão prática que orienta o alcance de melhores decisões pelos meios que as favorecem. À medida em que se tem por sedimentadas algumas práticas, como o apego demasiado às próprias opiniões e o modelo de publicidade adotado, que trazem implicações pessoais e se refletem no corpo institucional, é necessário retomar as perguntas acerca da finalidade desse órgão julgador e das condutas que são compatíveis com ele. Assim, considerando a figura de um juiz que compõe um órgão colegiado, qual conduta ética lhe seria exigida e o que a favorece? Importa, sobretudo, uma resposta anterior: o diálogo é importante para o telos do exercício jurisdicional de um Tribunal Colegiado?

Para possíveis respostas, parte-se por primeiro do entendimento do STF como um órgão instituído em um modelo de democracia denominado deliberativo, conforme especifica Barzotto (2005), que, auxiliado por teóricos políticos clássicos, analisa a compatibilidade da atual Constituição brasileira com os princípios de uma democracia deliberativa cujos traços primordiais se encontram na fonte aristotélica.

Este artigo se desenvolve na seguinte sequência: na primeira parte, abordam-se a democracia deliberativa e os seus princípios; na segunda, o foco é a postura dos ministros do STF no que diz respeito ao diálogo e ao consenso; na terceira, reflete-se sobre as práticas de deliberação atuais ante a natureza deliberativa do STF a partir da crítica da razão prática, isto é, verifica-se se os meios são compatíveis com o fim almejado (conduta pessoal e prática institucional); por fim, conclui-se pela incoerência no ambiente colegiado, considerando os mecanismos institucionais impróprios e, no mais das vezes, a falta de esforço (virtude) em prol de um empreendimento coletivo, o que implica uma ruptura da própria instituição e redunda na corrupção de sua própria natureza e consequentemente de seus resultados. Por isso, enfatiza-se a importância de se rever o diálogo autêntico para uma efetiva prática deliberativa do exercício jurisdicional por meio de processos decisórios legítimos fundamentados na razão prática.

2 A DEMOCRACIA DELIBERATIVA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988

Para tratar do diálogo na Corte Constitucional, especialmente na dinâmica do julgamento colegiado do STF, adota-se por parâmetro o caráter republicano e deliberativo da democracia cujo conceito é extraído da obra A democracia na Constituição, de Barzotto (2005), sentido corroborado por Baggio (2000), Zaroni (2015) e Mendes (2012). Importa especificar as bases da democracia na qual a maior instância do Poder Judiciário está inserida.

Sobre o termo democracia deliberativa, Barzotto (2005) toma emprestado o sentido de deliberação da ética de Aristóteles, na verdade, um conceito político aplicado à ética. Esse conceito dizia respeito ao tipo de diálogo exercido no Conselho dos Quinhentos, por homens cuja experiência e cujo conhecimento conferiam-lhes, presumia-se, prudência nas decisões relacionadas às preocupações públicas. O fato é que o termo deliberação (boulesis) pressupõe o diálogo baseado em um juízo racional, “no qual os cidadãos reunidos ponderam os argumentos sobre ações e decisões coletivas, usando um discurso voltado ao futuro que Aristóteles na Retórica classifica como discurso deliberativo” (Barzotto, 2005, p. 44).

Interessa-nos o resgate de alguns elementos conceituais de Aristóteles sobre a República democrática ateniense para enfatizar as ideias que o amadurecimento político nos permitiu manter para o estabelecimento de relacionamentos que favoreçam a troca genuína de opiniões acerca do que se considera um bem compartilhado, um fim comum a perseguir. Veja-se que na Antiguidade, a democracia era uma das três formas benfazejas de governo na qual monarquia, aristocracia e democracia eram caracterizadas pela orientação ao bem comum, distinguindo-se pela quantidade de quem o governa (um, poucos ou muitos); e, por outro lado, a sua corrupção (tirania, oligarquia e demagogia) era marcada pela atitude do auto interesse que contamina o sentido de coesão.

Nessa concepção aristotélica, a amizade é vista como o vínculo político essencial que responde à pergunta: "o que nos torna cidadãos?". A amizade política constitui um corpo político que vai além da utilidade material, alcançando a esfera do bem, daquilo que dá sentido ao que estamos fazendo juntos.

Quando se olha a democracia dos antigos2 (conforme o ideal aristotélico), observase que a cidade era vista como um "recinto sagrado", onde o povo se unia em torno de uma identidade e missão comuns. No entanto, esses laços eram restritos a uma comunidade interna, com a exclusão institucionalizada de mulheres, crianças e estrangeiros, considerados incapazes de participar plenamente da vida política. Essa era uma limitação da época que não deve nos impedir de perceber que, apesar disso, existia a ideia de pertencimento e de cidadania comprometida, sustentados por debates e deliberações que permitiam a cada indivíduo sentir-se representado.

A conexão dessas perspectivas presentes na amizade política, no sentido de coesão e de bem comum estão no DNA da democracia deliberativa com o qual se interpreta a Constituição brasileira no qual o STF está inserido. É nessa ideia que se apoia Barzotto para conceituar a democracia deliberativa, que resulta, portanto, de um tipo específico de atitude e de visão de mundo. A delimitação conceitual desse tipo de democracia é esclarecida quando se consideram outros dois modelos contrapostos – a democracia plebiscitária e a democracia procedimental –, que serão brevemente descritos mais à frente.

O resgate da República ateniense e a filosofia da razão prática reúnem as definições mais adequadas e oportunas para refletir sobre a democracia constitucional brasileira3, máxime quando se pensa na Corte disposta a proteger suas bases fundamentais, nas quais o povo é visto como uma comunidade de pessoas, a justiça faz-se por meio da ideia de império do direito e a finalidade do Estado é dar subsídios para que as pessoas possam autonomamente buscar seu autoflorescimento.

Primordialmente, é necessário salientar que o fundamento desse modelo democrático é a razão prática – um tipo de conhecimento obtido por meio de uma pergunta a respeito das ações humanas, um processo intelectivo natural inescapável, quer se realize de forma articulada e consciente, quer se dê de forma sutil e desapercebida. Diz-se natural porque é o modus operandi do ato de deliberar.

Delibera-se no campo pessoal e no campo institucional acerca das finalidades das ações e dos meios para obter os fins almejados, e mais (a pergunta derradeira): delibera-se sobre o porquê de perseguir tais fins. Trata-se de um ato eminentemente distintivo do ser racional e da razoabilidade de suas ações. Quanto mais articuladas forem as perguntas acerca do “o quê”, do “como” e do “por quê”, mais humanas (racionais) tendem a ser as respostas e as ações decorrentes. No ato de deliberar, almeja-se alcançar a verdade prática, isto é, o desejável, o melhor, dadas as circunstâncias.

Ao discorrer sobre o projeto de uma corte deliberativa, Conrado Hübner Mendes destaca a importância de uma boa pergunta para impulsionar pesquisas intelectuais produtivas. Na teoria constitucional, as perguntas-chave passam pelo conceito de constituição e de controle de constitucionalidade e suas respectivas finalidades e funcionamentos (“o quê?”, “para quê?” e “como?”). A depender dessas respostas, são formadas teorias em direções diferentes. Alinha-se à conclusão do autor sobre a compatibilidade do controle judicial de constitucionalidade com a democracia mesmo diante da estranheza do fato de que juízes não eleitos controlam as práticas dos legisladores eleitos democraticamente pelo povo. Isso se dá porque, na verdade, crê-se no caráter deliberativo desses órgãos ante a sua formação colegiada. Essas cortes são espaços que privilegiam o confronto de argumentos e “se caracterizam, essencialmente, pelo esforço de persuadir e a abertura a ser persuadido por meio de razões imparciais” (Mendes, 2012, p. 54).

Uma vez que a razão prática é o fundamento do modelo democrático, adota-se a concepção de que a ação política é aquela que se utiliza de juízo racional como base de justificação, o que significa dizer deliberar com prudência (phronesis) – uma prática deliberativa que objetiva encontrar a melhor decisão em vista de determinados fins, a qual, em última análise, nos órgãos judiciais será sempre a justiça e o meio de ação, a colegialidade.

É sob essa premissa que se confirma o vínculo entre a democracia deliberativa e a verdade, pois a democracia é realizada por uma comunidade de pessoas racionais, e esse caráter de racionalidade exige justificativas razoáveis para as escolhas de interesse coletivo.

A busca da verdade é própria do ser pensante4. Para tornar mais claro o que seja a razão prática, vale diferenciá-la da razão teórica: observe-se que no caso das ciências naturais, como as fórmulas matemáticas e as leis da física, buscam-se respostas exatas, pois o intelecto está perseguindo a verdade do ente. Porém, quando se trata de ponderação sobre ações e decisões de cunho coletivo – deliberação sobre os meios e fins –, a verdade prática diz respeito à bondade da ação. Qual a melhor decisão diante do caso concreto?

Mendes (2012, p. 16) diz que uma corte constitucional deliberativa “está comprometida com a boa decisão substantiva que se expressa, quando possível e desejável, por meio de uma única voz, ou, quando justificável, em múltiplas vozes, conquanto sejam responsivas e precedidas por contestação pública e interação colegiada”.

Essa inclinação para a busca da verdade prática (boa decisão) contém o paradoxo da incapacidade que cada ser humano, singularmente considerado, enfrenta ao tentar apreendê-la, pois, embora a verdade seja o bem da razão, é impossível para a limitada existência humana compreender a realidade em toda a sua extensão.

Quando Barzotto (2005) afirma a razão prática como fundamento da democracia e do vínculo dessa razão com a verdade, é pertinente que dessa ilação irrompa a pergunta sobre o lugar da verdade na democracia como um espaço plural. Um questionamento sempre atual, com diversas implicações.

Com efeito, Baggio (2000) considera como nó do problema democrático a manutenção da atitude filosófica que agrupa a afirmação da verdade objetiva e a prossecução livre, pessoal e comunitária dela. Logo, existe uma verdade que será alcançada somente por meio de ampla deliberação.

Vale lembrar que a perspectiva do pensamento de Aristóteles, revelada nos primórdios das iniciativas políticas democráticas, apresentava-se como um meio-termo entre o dogmatismo platônico e o relativismo sofista.

De fato, o dogmatismo proclama uma verdade obtida por uma determinada fonte que, tendo um status de autoridade, prescinde do diálogo. Portanto, deliberar não é importante, sendo suficiente a fonte que diz qual é a verdade para todos.

Por sua vez, o relativismo traduz-se em um ceticismo quanto ao alcance de melhores escolhas após um processo dialógico5. Logo, a deliberação é performativa porque há uma descrença em um fim comum a alcançar, reduzindo-se tudo à opinião pessoal.

Quando existe um bem a perseguir, a verdade (pode-se ter em mente a verdade de que toda vida é dotada de igual valor, dignidade e respeito, por exemplo) e a opinião (que sejam expostas ideias pessoais, as mais variadas, e, por vezes, excludentes, a manifestar um resultado sem valor de verdade), individualmente compreendidas, são os dois extremos que confrontam a ideia de democracia deliberativa, ou seja, adotar o modelo dogmático (apenas com base na autoridade formal, por exemplo) ou o cético/relativista trará por resultado um padrão institucional antidemocrático porque contraria a razão prática.

Baggio (2000, p. 116) salienta o fato de que “várias teorias políticas optam por uma ou por outra. Mas é só à custa de mantê-las juntas que se pode dar um fundamento adequado ao ideal democrático”.

Considere-se o pluralismo – característica e valor supremo da sociedade brasileira6 –, que encerra visões de mundo, perspectivas, opiniões diferentes. Quando duas atitudes antagônicas entram em cena, ambas visando a excluírem-se, há duas possibilidades: de um lado, afirmar a certeza da escolha mais adequada sem a necessidade de ouvir quem quer que seja, isto é, defender uma verdade preexistente que prescinde do diálogo (oriunda de uma autoridade incontestável); de outro, negar a existência ou a possibilidade de uma verdade (em outras palavras, negar que haja uma conclusão mais adequada porque qualquer decisão será fruto da opinião de quem tem o poder).

Na história da filosofia, esse embate entre a existência e a não existência da verdade prática ou entre verdade e opinião também manifestou um antagonismo: em uma ponta, o dogmatismo platônico, defendendo que a verdade na política dispensa o diálogo, pois lhe é preexistente e objetiva, de modo que verdade e opinião são indissociáveis; em outra ponta, a negação pelos sofistas da existência de uma verdade na política, de modo que a linguagem é reduzida à persuasão retórica conforme os interesses dos interlocutores que se expressam por meio de opiniões de caráter subjetivo.

Baggio (2000) toma o julgamento de Sócrates como ícone ilustrativo desse conflito7, ocasião em que se encontrava fixada a discordância entre verdade e política, assim como entre verdade e opinião. Ressalta aquele autor que, na emblemática apologia socrática, há a afirmação de que, mesmo sendo válida e correspondendo à verdade, a opinião pertence a uma ordem diferente, porque não está assentada na autoridade e na segurança que provêm da verdade.

Assim, em um Tribunal de aproximadamente 500 votos, menos de 30 foi a diferença que condenou Sócrates à pena de morte ou à aceitação de um juízo falso, alternativa que lhe foi concedida por seus julgadores para maquiar a flagrante crueldade de suas intenções subjacentes. Alternativa impensada por aquele que defendia haver uma verdade à parte do mundo de aparências.

Aceitando morrer, Sócrates evidenciou a falsidade do julgamento, mostrou a todos como era real a mentira que o condenou. [...] No processo contra Sócrates, são as opiniões de muitos, habilmente dirigidas pelo poder do cidadão, que determinam a sentença, que encaminham o procedimento para a direção desejada pelo poder (Baggio, 2000, p. 114).

Na arena política, no palco do tribunal de justiça ateniense, a direção ordenada pelo poder ditou o andamento das opiniões que se utilizou da erística, e não da dialética. As diferenças presentes nesses dois instrumentos da linguagem são interessantes para o nosso propósito, conforme a explicação de Baggio (2000, p. 114):

A arte dos sofistas, tão semelhante à dialética, por meio da qual os filósofos, depois de Sócrates, procuram a verdade, dela se distingue justamente porque não tem a verdade como fim e como guia: a dos sofistas, observa Platão, não é dialética, mas erística [...]. Uma forma de luta em que os adversários brandem opiniões, as quais, em geral, mascaram interesses; e a dialética, arte da busca da verdade, não tem lugar na política, na qual se desdobra o predomínio da retórica, arte da persuasão. A crítica da ideologia, como se vê, nasceu bem antes de Marx.

No curso histórico da filosofia política, os modernos, como Hobbes, deixaram enfatizada a verdade do ser humano como autointeressado. A partir daí, a única verdade necessária a ser proclamada é a existência do Estado, sob a forma de contrato.

Logicamente, há nessa forma de pensar uma determinada antropologia filosófica, ou seja, uma resposta sobre o que é o ser humano, que reduziu a complexidade de sua natureza à sobrevivência, fundada na desconfiança das relações humanas e em um afastamento do aspecto relacional. Seguindo a esteira desse pensamento, chega-se a um certo individualismo e a uma mútua suspeita. Nessa racionalidade, faltaria fundamento para o consenso acerca da verdade prática na democracia deliberativa, que tem em vista o bem comum. Nesse sentido, termos, como processo cooperativo, boa-fé objetiva, sociedade fraterna, pluralismo, ações solidárias, inclusão social, etc. não passariam de enfeites retóricos.

Essa visão de mundo altera a forma da democracia, pois, se a conclusão da condução da vida social ocorre por meio da luta de interesses expressa nas opiniões, a renúncia ao caráter de verdade não leva à busca do bem comum e da legitimidade da política e do direito. Sendo assim, é pragmático reduzir a democracia à soma dos votos, ao cômputo da maioria, já que a constante suspeita de uns dos outros prevalece sobre o diálogo autêntico mesmo num empreendimento comum.

Barzotto (2005), ao tratar das características de uma democracia deliberativa, diferenciando-a da plebiscitária e da procedimental, esclarece que tanto a verdade dogmática quanto o relativismo sofista se afastam dos princípios da democracia deliberativa, pois aquelas desconsideram o valor do pluralismo e do bem comum no sentido aristotélico e recaem, ou no autoritarismo fundado na fonte única da verdade, ou num subjetivismo tal que confunde o falso e o verdadeiro, ou melhor, nega-lhes qualquer distinção. Nesse caos, a democracia dá-se na praça da demagogia, cujo valor de comunicação é de caráter estritamente técnico, reduzido à mera opinião.

Tanto a democracia plebiscitária quanto a procedimental partem de uma concepção voluntarista da democracia. No voluntarismo, o ser humano é movido principalmente por sua vontade. Nesse caso, a vontade não se move para a obtenção de um bem que foi determinado em conjunto por meio de uma deliberação racional (o bem que direciona a vontade); ao contrário, a vontade determina o bem a perseguir (a vontade que direciona o bem). A concepção voluntarista é restritiva na medida em que desconsidera o caráter racional e deliberativo do ser humano para perseguir a verdade do que o realiza integralmente. Nesse caso, sobra espaço apenas para uma “força de braços” na qual o cenário político democrático é aquela arena de embates citada anteriormente. Essa força de braços tem por resultado a vontade eleita e esta será alçada ao valor de bem (vontade = bem).

Assim, na democracia voluntarista plebiscitária, com base na teoria rousseauniana, adota-se o mito da vontade geral, e o sujeito perde-se no grupo (visão holista do ser humano), sendo parte do todo que, por sua vez, tem a vontade expressa na lei. A individualidade é sufocada e não se pode falar de minoria. A pessoa é consumida pelo todo expresso na vontade geral revelada no cômputo dos votos.

As opiniões contrárias não têm valor nessa concepção democrática. O ideal perseguido é a unanimidade de votos nas assembleias, por isso o voto vencido é um acidente e necessariamente o oposto à verdade, a qual é proclamada na vontade geral – a vontade da maioria. Desse modo, “aquele que faz parte da minoria não interpreta sua derrota como a sujeição da sua vontade particular (que é irrelevante na república) à vontade da maioria, mas como um erro acerca do verdadeiro conteúdo da vontade geral” (Barzotto, 2005, p. 112).

Nesse campo, as justificativas, a eloquência argumentativa e a exposição das razões são todas técnicas comunicativas sem importância, pois em nada contribuem para encontrar a vontade geral. Somente após a soma dos votos é que será conhecido o bem comum8.

Na concepção de democracia procedimental, o bem comum como verdade prática a ser encontrada em comunidade nunca será conhecido por meio da razão e do diálogo porque o ser humano é compreendido como autointeressado e antissocial, desvinculado da comunidade. O relativismo moral leva ao ceticismo da verdade. Não há nada a ganhar no diálogo. O ideal de legalidade é o ponto-chave porque, embora as leis sejam resultado da vontade de uma dada maioria, são elas que podem proteger a minoria da maioria, mas é o caráter individualista que sobressai, não é relevante o caráter comunitário na identidade do sujeito.

Por sua vez, na concepção de democracia deliberativa, harmonizam-se o sujeito e a comunidade à qual ele pertence porque o compartilhamento dos bens humanos os vincula e politicamente se considera o bem comum como objeto do direito. Na política e no direito, a deliberação racional entre as pessoas determina os bens a serem perseguidos.

No pensamento aristotélico, a democracia é concebida “como um empreendimento coletivo voltado à busca da verdade prática que deve orientar a ação política” (Barzotto, 2005, p. 40). Logo, a busca da verdade é necessariamente um empreendimento coletivo. A verdade e a opinião andam juntas num outro tipo de enlace. A verdade revela-se por meio das opiniões9. Na obra Metafísica, o estagirita afirma:

A investigação da verdade é, num sentido, difícil e, em outro, fácil. Isso é indicado pelo fato de que, se nenhuma pessoa é capaz de ter uma adequada apreensão dela, não é possível que todos falhemos na tentativa. Cada pensador faz alguma observação a respeito da natureza e, individualmente, pouco ou nada contribui para a investigação; mas uma combinação de todas as conjecturas tem como resultado algo considerável (Aristóteles, 2016, p. 75, II, 1, 30-35).

Seguindo o mesmo argumento, afirma Barzotto (2005, p. 42): “A verdade política emerge, por assim dizer, do entrechoque de opiniões”.

Uma característica que põe em dúvida a existência de uma verdade prática é o seu caráter mutável. Restrita ao tempo e ao espaço, não universal, pois existe em meio às contingências, a verdade prática é, afinal, a verdade possível de ser alcançada em uma dada realidade.

A intelecção permite a aferição da verdade – ou seja, da ação correta –, da finalidade da ação e dos meios para alcançá-la. No pensamento aristotélico, aquilo que é bom para o ser humano é o que realiza plenamente o seu desenvolvimento, o que é denominado eudaimonia. A deliberação corresponde às escolhas possíveis e mais adequadas para alcançar determinado fim. Assim, no juízo moral, a prescrição da ação dá-se com base na mais adequada correlação entre os meios e os fins.

Não é possível, neste trabalho, esmiuçar as premissas, os conceitos e as consequências que marcaram a história da filosofia política numa e noutra direção sobre quem é o ser humano e os bens que lhe são afins. Optou-se, então, por apontar como correta a concepção de democracia que não se atém à mera opinião e ao poder momentâneo de uma maioria, como destaca Baggio (2000, p. 116), que reconhece também “uma autoridade, que poderíamos chamar de ‘autoridade da fundação’: é o conjunto daqueles princípios universalmente aceitos sobre os quais está alicerçada a sociedade política e que, em geral, estão recolhidos na Constituição de um país ou em documentos equivalentes”. A autoridade não está assentada em uma instituição ou em um cargo, mas na perseguição dos fins que cercam a realização humana integral, a qual tem por base o reconhecimento recíproco da dignidade inerente ao ser pessoa – um ser livre e consciente10.

A democracia deliberativa coaduna-se com a concepção de povo adotada na Constituição brasileira de 198811. A partir dessa premissa, é ditada a forma de relação na sociedade, que pressupõe uma comunidade de pessoas humanas, cujas qualidades de dignidade e de racionalidade, assim como de liberdade e fraternidade, reforçam a necessidade da democracia como deliberativa, ensejando-se que “Todo comando, toda ordem, toda lei, toda sentença, que não puder se justificar racionalmente, de um modo argumentativo, carece de força obrigatória para impor-se a seres racionais. O que é irracional não vincula um ser racional” (Barzotto, 2005, p. 181).

Destaca-se a natureza comunitária da verdade filosófica e esclarece-se que, na sociedade política (e aqui se focam as instituições políticas, no caso, a Suprema Corte), marcada pela fragmentação ético-política, pela indiferença dos cidadãos, que se quedam inertes, na qual há pequenos grupos voláteis e partidos de duração efêmera, “o único movimento político realmente necessário é um movimento – de políticos e de cidadãos – que reconstrua as condições de unidade da política, que ilumine novamente as bases e os objetivos comuns” (Baggio, 2000, p. 129).

Nesse caminho argumentativo, evidenciam-se a verdade prática e seu caráter político-teleológico, isto é, dá-se ênfase aos porquês das ações, uma vez que os fins e meios serão determinados a partir das respectivas respostas, e esse processo ocorre por meio do mais amplo diálogo. O paradoxo resultante da debilidade da verdade prática e da sua necessidade para o consenso político é resolvido somente por meio de um arranjo dialógico, no qual os diversos pontos de vista e as várias opiniões são ouvidos, avaliados e criticados12. A verdade prática diz respeito à observação da realidade ante uma escolha a ser feita. Repise-se, não se trata, portanto, da verdade objetiva, científica, trata-se antes daquela que envolve uma decisão a ser tomada, na qual o raciocínio persegue o bom, o melhor ou o possível, considerando as circunstâncias de um caso concreto.

Tendo por base essas premissas acerca do raciocínio prático, segue-se a relação entre verdade, diálogo e democracia: o lugar da verdade na democracia corresponde à natureza do diálogo no campo político e à colegialidade na área das decisões judiciais. Portanto, há uma escolha a ser feita (a verdade prática) na administração do bem público assim como na decisão sobre o que é o direito em determinada situação jurídica.

Seguindo essa linha, é próprio do Estado de Direito como o brasileiro, cuja Constituição consagra expressamente a dignidade da pessoa humana como parâmetro último de suas ações, que a prudência esteja assentada em uma arquitetura teleológica, de modo que a ação boa é aquela que se dirige para o bem do ser humano13.

O ponto fundamental para o nosso argumento é este: como a razão prática aristotélica é teleológica, a democracia proposta consubstancia-se em uma articulação da vida política em que o consenso alcançado pela discussão não é o fundamento do certo ou do errado, mas é a natureza humana, com o telos que lhe é específico e a conduz à autorrealização, que constitui esse fundamento. O consenso será apenas o melhor indício de que se alcançou a verdade na discussão. A natureza apresenta suas exigências ao homem em circunstâncias específicas que ele só pode determinar por meio do diálogo com seus semelhantes, o que torna imperiosa a democracia, o regime em que se está aberto às razões de outrem.

Explica Zaroni (2015) que as instituições de uma democracia deliberativa consideram como modelo a decisão que é tomada por cidadãos livres e iguais (ou por seus representantes), cujas decisões devem ser justificadas por meio da demonstração dos diversos pontos de vista, conhecidos por uma metodologia marcada pela troca de argumentos reciprocamente aceitáveis e cognoscíveis, isto é, passíveis de serem comunicados racionalmente.

Um dado relevante para ser destacado é o local dos argumentos vencidos. Eles não são encerrados de uma vez por todas. A rediscussão do assunto é uma possibilidade viável. A democracia deliberativa permite a discordância e o amadurecimento de temas que, por guardarem alguma plausibilidade, voltam à tona, muitas vezes, trazendo novos dados e novas comprovações.

Nesse sentido, Mendes (2012, p. 64) reforça que a falibilidade e a inescapável perpetuidade da deliberação no espaço público são próprias de uma corte deliberativa:

[...] casos futuros podem reacender as mesmas questões e problemas jurídicos, [...] eventualmente aparecerão novos argumentos que a constrangerão a admitir o erro do passado [...]. Interlocutores devem ser considerados como colegas ou concidadãos de uma comunidade que continuará a conversar a respeito da controvérsia enquanto desacordo persistir.

A deliberação, o diálogo e a razão pública são as bases do controle de constitucionalidade que se dá num empreendimento dialógico num Estado de direito, uma prática constante. Nas palavras de Silva (2009, p. 214), o controle de constitucionalidade também é um processo de diálogo que não se esgota. Diferentemente do sentido jurídico-formal do processo, o “diálogo está sempre aberto a novos argumentos, seja por parte do legislador, seja por parte dos tribunais, seja por parte da sociedade civil” (Silva, 2009, p. 214).

A deliberação como estrutura basilar da democracia requer uma forma determinada de tratamento entre as pessoas, que não são objetos de uma decisão legislativa, política ou judicial, ou indivíduos sujeitos ao exercício arbitrário do poder, mas são tidos como agentes racionais. Esse é o sentido da sociedade fraterna e plural de que fala a Constituição brasileira de 1988, a qual envolve todas as instituições públicas.

Para a incorporação do ideal deliberativo às Cortes Supremas, defende Zaroni (2015, p. 48) a necessidade de “que os procedimentos e as decisões judiciais demonstrem respeito aos membros da sociedade e aos seus múltiplos pontos de vista e, ademais, que as decisões sejam satisfatoriamente fundamentadas, de modo a permitir a compreensão por todos”.

Desse modo, os motivos por que vivemos em comunidade e o porquê de cada instituição são a resposta ética primordial da política e do direito. Por isso, sublinha Zaroni (2015, p. 57), “o consenso alcançado deve ser racional, vale dizer, oriundo da argumentação, num contexto em que as partes, imparcialmente posicionadas, atuam orientadas pelo bem comum”.

No próximo tópico, a investigação acerca da deliberação se dará especificamente no âmbito do STF. Os argumentos críticos traçados até este ponto servirão de parâmetro para observarmos a qualidade do juízo racional na Corte de Justiça mais importante do país.

3 A ÉTICA DA COLEGIALIDADE E AS PRÁTICAS DELIBERATIVAS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Na etimologia da expressão “jurisprudência”, estão unidos dois sentidos: o referente à ciência do direito (jure) e o ligado à prudência (prudentia). Termo originário do direito romano para designar a prudência do direito. A objetividade da lei alia-se à busca da verdade prática, uma atitude que, segundo a prudência, deve conduzir os sujeitos da deliberação a uma situação de colegialidade, um questionando o outro, discutindo em profundidade os assuntos pertinentes, expondo suas opiniões sobre a melhor decisão a ser tomada14.

Partindo-se do pressuposto de que, segundo a Constituição brasileira vigente, a República Federativa do Brasil firma-se numa democracia deliberativa, segue-se que as suas instituições se assentam em uma estrutura dialógica que privilegia o pluralismo e o diálogo.

Nesse contexto, em uma corte cujo exercício jurisdicional é dizer o direito conforme à Carta Magna, a qualidade dos argumentos consiste no seu próprio fundamento de autoridade. Afinal, o que justificaria que juízes não eleitos controlassem os atos daqueles que foram escolhidos no curso do processo democrático e compõem as instituições do Poder Legislativo? Para que seja compatível com a democracia, a força das decisões da corte constitucional reside no caminho argumentativo em dizer o direito com prudência. Por isso, suas justificações devem ser cognoscíveis, claras, lógicas e transparentes para que o embate de argumentos em vias de um consenso não seja reduzido a uma mera soma de votos. O seu locus autenticamente deliberativo seria o seu próprio lastro democrático.

Por conseguinte, a Suprema Corte torna-se um modelo democrático para os demais Poderes da República. Para Zaroni (2015, p. 59), em comparação com o Poder Executivo e o Poder Legislativo, a composição reduzida e o modus operandi dos Tribunais superiores – tanto do STF quanto do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – facilitam a interação entre os deliberantes.

Entende-se, ainda, que o elo proporcionado pelo Direito opera como um fator unificador, pois seus integrantes compartilham do mesmo objetivo: dizer o direito; contribuindo para sua função de “laboratório” de colegialidade para as instituições e para a sociedade. No Legislativo, o próprio ponto de coesão é extenso: a concretização do bem comum, discutido entre os diversos partidos, cujo debate se dá numa arena de interesses diversos que, ainda que legítimos, podem ser bastante contraditórios, inclusive pelas diversas concepções do que seja bem comum e do modo como alcançá-lo.

Conforme veremos na subseção seguinte, tanto o exercício judicante do STF como instituição quanto as ações éticas dos magistrados singularmente considerados não refletem o papel republicano atribuído ao STF como guarda da Constituição, o que pode ser nefasto para o senso democrático, para a legitimidade das instituições e para o espírito de cidadania.

3.1 A DESCRIÇÃO INTERNA DO MODELO DELIBERATIVO DO STF

No artigo denominado “Big Brother is Watching the Court: Effects of TV Broadcasting on Judicial Deliberation” assim como no artigo “Um voto qualquer: o papel do ministro relator na deliberação no Supremo Tribunal Federal”, Silva (2015, 2018) apresenta o ponto de vista dos próprios ministros do STF sobre o processo deliberativo e decisório no qual eles estão inseridos. O primeiro trata sobre os debates transmitidos ao vivo pela TV e a influência midiática no processo deliberativo e decisório da Corte; o segundo aborda o papel do ministro relator ante essas mesmas questões. A metodologia adotada em ambos os trabalhos contribui significativamente para a melhor compreensão do que acontece naquele fórum do ponto de vista da razão prática, pois expõe a racionalidade da práxis de deliberação, revelando as visões individuais (descrição interna) nessa instituição coletiva.

O tema da exposição midiática tem uma relevância peculiar pelo fato de que a publicidade dos atos da Administração Pública – mandamento principiológico constitucional – tem no STF uma sofisticada extravagância e, como será apontado, apresenta resultados, do ponto de vista ético e institucional, contraditórios.

Com efeito, o design de publicização dos atos dos Tribunais Constitucionais varia: de uma restrição quase absoluta, havendo Cortes com total proibição de registros audiovisuais, a outras com alguma moderação, permitindo registros escritos. No caso do STF, o modelo adotado permite a transmissão ao vivo pela própria instituição dos “momentos mais sensíveis do seu processo de tomada de decisão” (Silva, 2018, p. 437, tradução nossa).

À parte os argumentos positivos ou negativos acerca da exposição midiática a que os ministros estão sujeitos, interessa o ponto de vista dos próprios juízes sobre suas práticas deliberativas, uma visão pouco conhecida, inclusive pela peculiaridade do pensamento de cada um sobre os papéis desempenhados. Por isso, serão destacadas aqui algumas respostas registradas no artigo “Big Brother is Watching the Court: Effects of TV Broadcasting on Judicial Deliberation” cujos autores não são revelados15. Essa é a fonte principal dos comentários a seguir, que serão cotejados com o outro artigo acima mencionado.

Primeiramente, vale explicitar que as sessões plenárias de julgamento no STF são uma sequência de leituras compridas, nas quais os juízes expõem suas razões sobre determinado assunto em apreciação. Duas questões são levantadas: a falta de debate sobre os pontos de vista controversos (uma vez que as justificativas já estão previamente escritas) e a resistência dos juízes a mudar a própria opinião. A influência midiática tem aqui seu papel no distanciamento do livre debate ante o inflacionamento do ego e da vaidade.

De fato, questionados sobre os estudos que apontam uma diminuição na mudança de opinião dos juízes e sua resistência aos argumentos contrários supervenientes quando já foram expostos ao público, Silva (2018, p. 443, tradução nossa) registra:

Em geral, os ministros claramente argumentaram que acham difícil mudar uma opinião expressa publicamente. E aqueles que disseram estar abertos a mudar de opinião em algumas situações geralmente sugeriram que os outros ministros não estariam abertos a mudar de opinião tão facilmente [...]. A ‘natureza humana’ é frequentemente mencionada como a razão para tal dificuldade16.

A desvalorização do debate parece insculpida nas colunas da instituição quando se permite a exposição pronta dos argumentos pelos juízes, por meio da leitura dos seus respectivos pareceres, sem que tenha havido um momento prévio de livre discussão. A esse respeito Silva (2018, p. 444, tradução nossa) destaca a fala do Ministro C:

Juízes não voltam atrás em suas palavras. Seria diferente sem a assistência do público e, portanto, sem o risco de uma reconsideração ser vista como um embaraçoso retrocesso. Porque é isso que está realmente em jogo, uma postura de autodefesa [...]. Em alguns casos, percebi que se determinado assunto fosse discutido previamente [privadamente], a justiça poderia ter mudado de opinião.

Fala-se em brigar pelo voto e em defender seu ponto de vista a “qualquer preço” (Silva, 2015, p. 191) como decorrência do apego às próprias opiniões redigidas previamente, e alguns ministros veem essa atitude como natural, como um reflexo do zelo profissional. Porém, a preponderância da erística, e não da dialética demonstra a irrelevância atribuída ao debate e à opinião dos demais, inclusive a do relator, que seria o sujeito que mais teria conhecido os detalhes do caso em julgamento.

Parece evidente que a intensificação da exposição midiática do STF, no qual a vaidade e o consequente individualismo encontram espaço de inflamento, deixa à mostra a fragilidade viciosa da natureza humana, como mencionado em algumas falas dos ministros. O impacto negativo desse modelo de publicidade é verificado na maioria dos casos. Um dado é que as sessões são mais longas, menos dinâmicas e menos eficientes, como revelam os seguintes depoimentos relatados por Silva (2018, p. 447, tradução nossa):

Os juízes só querem ler sua opinião escrita anteriormente. Ninguém quer ser superado na deliberação [...]. Os juízes não são anjos, são homens, e a vaidade humana está aí. Acho que isso leva a opiniões escritas desnecessariamente longas. Não é à toa que a Suprema Corte dos Estados Unidos nem mesmo permite tirar fotos na sessão plenária. É verdade, sem dúvida, que a transmissão ao vivo da sessão plenária faz prevalecer o amor pela própria imagem sobre o amor pela imagem da Corte.

Outro aspecto é a redução do consenso nas decisões, o que se expressa na diminuição das vezes em que simplesmente um ministro acompanha o voto do relator. Não é que as discussões sobre pontos controversos tenham aumentado, até porque isso seria um ganho para a deliberação; no caso, o que conta é poder ler suas razões na íntegra porque as câmeras estão ligadas. A conclusão pode até ser a mesma do relator, mas será lida. Quanto maior a repercussão social, mais longos serão os textos17.

O derradeiro tópico da entrevista descrita no artigo de Silva (2018, p. 450-454) versou sobre a possibilidade de sessões privadas de deliberação, não previstas atualmente no Regimento da Corte, que tem sido ventilada nos últimos anos. A discussão sobre esse momento prévio às sessões plenárias é bastante ilustrativa do argumento deste trabalho, que visa responder à pergunta sobre a importância do diálogo numa corte colegiada.

Um espaço de deliberação anterior às sessões plenárias, ainda que seja para discutir não o mérito, mas ao menos a dinâmica da sessão oficial, especialmente nos casos mais polêmicos, é benquisto por alguns ministros, saudosos das antigas “sessões do conselho”. Outros relataram preferir algo mais informal, e outros ainda se manifestaram contrários.

A informalidade desse tipo de reunião representaria uma espécie de resgate do diálogo mais espontâneo, consistindo num momento oportuno para a discussão de aspectos formais sobre a dinâmica do plenário e a definição da agenda e mesmo, especialmente, poderia consistir numa “conversa preliminar para conhecer melhor as posições dos seus colegas” (Silva, 2018, p. 451, tradução nossa).

Não se trata de um momento de votação e de decisões, trata-se antes de um momento para conhecimento dos diversos pontos de vista, no qual os juízes poderiam analisar a diversidade possível de argumentos contrários, o que ocorreria sem formalidades, longe das câmeras, pois não seria uma sessão pública. A fala do ministro apontada por Silva (2018, p. 451, tradução nossa) é contundente quanto à positividade desses encontros:

[...] às vezes, depois de ouvir os argumentos de outros ministros, você poderia perceber que seu ponto de vista não estava certo, ou pelo menos que sua interpretação poderia ser diferente. Esse tipo de coisa era comum [...]. Mas agora tem um problema: os ministros atuais são muito individualistas. [...] Cada um manteria a sua opinião como se guardasse uma joia preciosa. Não houve troca de ideias.

Está clara a ênfase no diálogo, na deliberação com uma confrontação de ideias diversas para se extrair o consenso de eficiência, no qual a maturação de pensamentos dá-se por meio da exaustiva reflexão com base na exposição clara das ideias e no desapego das próprias opiniões.

Contudo, há também os que entendem de modo diferente e apresentam argumentos em defesa de sua contrariedade. Entre as razões dos que se manifestam contrários, há “um certo temor de que alguns ministros sejam indevidamente influenciados por outros” (Silva, 2018, p. 452, tradução nossa).

É curioso constatar, entretanto, que mesmo os juízes contrários a esse tipo de reunião concordam que essa possibilidade poderia fomentar uma cultura (ethos) diferente de deliberação, com argumentos mais diversificados. Note-se a fala do ministro B: “Claro, seria um tipo diferente de debate. O raciocínio seria outro. A construção da decisão seria mais plural, muito mais participativa” (Silva, 2018, p. 453, tradução nossa).

Os que se manifestaram favoráveis às antigas reuniões do conselho enfatizaram a virtude das decisões resultantes das discussões, afirmaram que eram decisões melhores devido ao confronto de pensamentos: “Conheço alguns ministros que vieram à sessão do conselho com um parecer e saíram com outro por causa das discussões. Quer dizer, [se não houvesse reunião do conselho] eles ficariam sabendo [do assunto] no plenário, só de ouvir falar” (Silva, 2018, p. 453, tradução nossa).

A repercussão negativa nos sujeitos principais da primordial instituição em defesa da Constituição é notável. Dentre esses efeitos negativos, o autor ressalta “individualismo exacerbado, decisões demoradas, incapacidade de ouvir outras opiniões com a mente aberta e de mudar de opinião, se necessário” (Silva, 2018, p. 454-455, tradução nossa).

O oposto do consenso (como unidade na diversidade) é o individualismo, presente na fala do juiz B: “Mas agora há um problema: os ministros atuais são muito individualistas” (Silva, 2018, p. 451, tradução nossa).

Desse contexto individualista, decorre também o receio de ser influenciado pelos argumentos opostos, e essa razão também foi levantada em oposição à proposta de encontro de diálogo informal. Temer a manipulação e a influência dos posicionamentos alheios demonstra uma incoerência quanto ao sentido da deliberação, cujo significado etimológico indica a necessidade da análise das opções existentes a fim de decidir a partir da séria reflexão acerca delas18.

Ficou evidente, nos artigos de Virgílio Afonso da Silva, que, na perspectiva da descrição interna dos juízes, há um descontentamento generalizado com a falta de colegialidade no STF que se reflete também no modelo de publicidade adotado.

É interessante observar um último ponto: o ethos institucional. O que leva os juízes a sujeitar-se a determinadas práticas – mesmo divergindo delas, como a excessiva exposição midiática –, que tem prejudicado o valor da colegialidade e o confronto entre opiniões discordantes? Embora a maioria perceba mais efeitos negativos do que positivos na prática deliberativa do STF, parece ser um consenso que essas mesmas práticas sejam consideradas irreversíveis.

Nas entrevistas, especialmente na fala dos antigos ministros, ficou claro que a prática atual não é a mesma adotada nos primeiros decênios após a Constituição de 1988. O diálogo era mais presente, e não havia a prática dos votos previamente redigidos. Uma das razões suscitadas é o efeito da TV Justiça, como foi visto. Ao tomar posse como ministro do STF, o sujeito encontra ritos deliberativos e modos de agir instalados há décadas, firmados pela tradição e pelo regimento interno.

Contudo, embora esse fator exerça uma influência significativa, não deixa de haver uma flagrante contradição do ponto de vista da razão prática. A racionalidade do processo de decisão é duvidosa, especialmente quando os meios destoam da finalidade colegiada e deliberativa a que o STF deveria amoldar-se a fim de perseguir a prudência judicial de suas decisões, isto é, a verdade prática – a melhor decisão no caso concreto.

3.2 A IMPORTÂNCIA DA DELIBERAÇÃO E AS PRÁTICAS DO PROCESSO DECISÓRIO NA SUPREMA CORTE

Decidir sem deliberar tem um custo alto para a legitimidade democrática do STF, pois afeta diretamente as decisões proferidas, seja porque perderão em qualidade material, seja porque refletirão, na sua forma, um agregado de decisões singulares, e não institucionais.

Com base na opinião dos ministros, foi possível notar o fraco desempenho deliberativo na Corte Constitucional brasileira, marcada por procedimentos institucionais e éticos contrários à sua própria natureza de órgão colegiado.

A partir desse dado, uma perspectiva pessimista poderia reforçar a tese dos críticos ao controle de constitucionalidade no sentido de concluir que esses Tribunais, na verdade, não têm um potencial deliberativo ou alcançam patamares muito rasos de dialogicidade19 e, portanto, não estariam aptos a garantir o controle de constitucionalidade por uma legitimidade democrática diferenciada.

Um reflexo desse mesmo problema está na formação dos precedentes. Bogossian e Almeida (2017) levantam a suspeita de que as decisões no Supremo se dão por meio de práticas que impossibilitam a extração de um fundamento coletivo, mesmo quando resultam numa decisão consensual. O comentário do ministro Gilmar Mendes registrado no artigo intitulado “É possível falar em precedente ‘do Supremo’?” ilustra a dificuldade de identificar os fundamentos determinantes da decisão colegiada justamente pelo caráter exageradamente individualista adotado: “Por mais que a gente possa dizer ‘ah, o fundamento determinante, a ratio decidendi deve vincular’, mas nós temos essa dificuldade. Quer dizer, de fato, o que que é fundamento determinante? Especialmente diante da nossa técnica de julgamentos de votos autônomos” (Bogossian; Almeida, 2017, p. 116).

Bogossian e Almeida (2017) apresentam três formas de interpretar essa crise institucional: a interpretação negacionista, que não concebe a possibilidade de expressão institucional no Supremo, portanto, a Corte não seria capaz de produzir uma fundamentação coletiva; a interpretação agregacionista, segundo a qual a possibilidade de coletividade dependeria da garimpagem dos pontos em comum nos argumentos das decisões individuais; a intepretação delegacionista, consoante a qual a expressão “de acordo com o voto do relator” indica que os fundamentos do relator são considerados determinantes e expressão da instituição.

Em seu artigo “Deciding without Deliberating”, Silva (2013) defende uma interpretação da crise deliberativa no STF que não é nem otimista, nem pessimista (tampouco agregacionista ou delegacionista). O autor não parte do pressuposto de que a natureza deliberativa das cortes colegiadas transforma a potencialidade dialógica numa realidade certa, garantindo uma postura colegiada de seus juízes; tampouco é cético em relação à possibilidade dialógica da razão prática.

De acordo com a interpretação realista de Silva (2013), a má condução dos arranjos institucionais do STF, embora seja um dado da realidade, não é necessariamente determinante a ponto de transmutar a natureza colegiada daquele órgão. O potencial deliberativo continua presente, ainda que somente em potencialidade. As práticas adotadas devem moldar-se à finalidade da Instituição – ser um fórum de deliberação, por excelência.

O que diferencia um tribunal autenticamente deliberativo de outro cujos resultados são meramente agregativos (soma de votos) depende das práticas estabelecidas no processo decisório. Uma questão de meios e fins. Quais são os meios mais adequados para um empreendimento que se pretende coletivo?

Para que o STF se mostre como locus de deliberação racional, a proposta de Silva (2013, p. 559, tradução nossa)20 é assim formulada: “Quanto mais as regras organizacionais internas e as práticas costumeiras de um determinado Tribunal funcionarem como incentivos para a deliberação racional, mais legítimo será o controle de constitucionalidade exercido por esse Tribunal”.

A democracia deliberativa na qual as Cortes de Justiça estão assentadas exige o bom desempenho deliberativo e o esforço de colegialidade para o bom desenvolvimento do exercício de revisão judicial.

A qualidade argumentativa dos Tribunais é diretamente proporcional à legitimidade do controle de constitucionalidade realizado por Cortes cujos membros não foram eleitos democraticamente.

As respostas encontradas para a pergunta “por que deliberar para decidir?” demonstram que as melhores decisões são as que satisfazem as condições do diálogo autêntico para alcançar os objetivos da deliberação. Entre esses objetivos, Silva (2013) destaca dois que são suficientes para serem explorados neste trabalho. O primeiro objetivo diz respeito ao conhecimento de informações sobre o tema que será objeto de uma decisão. O conhecimento é inegavelmente preferível à ignorância. Quanto mais informado estiver o juiz, maior a probabilidade de julgar mais acertadamente. O segundo objetivo a ser alcançado com a deliberação é a superação dos limites da razão humana. Ainda que os deliberantes tenham compartilhado as informações a respeito do assunto a decidir (objetivo um), os pontos de vista adotados podem ser diversos.

Assim, o compartilhamento das informações objetivas (relatório histórico, dados, estatísticas etc.) e a exposição dos pontos de vista, dos referenciais teóricos ou práticos que orientam o juízo moral sobre a questão têm o objetivo de superar as limitações da razão humana, trazendo o benefício da elucidação mútua.

A consequência dessa prática enseja decisões constituídas com argumentos prudentes com base em perspectivas plurais, podendo haver harmonização de posições com aparente ou real contradição porque há espaço para a Ecriatividade, nas palavras de Silva (2013, p. 563, tradução nossa)21: “somente os procedimentos deliberativos podem fomentar a criatividade para novas e coletivas construções de soluções”.

Se esses são os objetivos primordiais da deliberação, vale questionar quais seriam as suas condições de realização e se os arranjos institucionais e a disposição pessoal dos ministros da Suprema Corte, com base na entrevista registrada na subseção anterior, são capazes de favorecer sua função de unidade institucional, transformando em ato o que o órgão colegiado tem em potência.

Para analisar o impacto das regras institucionais e das condutas dos ministros no desempenho deliberativo do STF, Silva (2013) recorre ao estudo de caso juntamente com a descrição de algumas regras e condutas tomadas nas situações expostas para demonstrar que atualmente o processo decisório é essencialmente agregativo, uma soma de votos.

Existem diversas variáveis que influem na qualidade do processo decisório, inclusive um forte componente anímico de disposição interior e vontade, além de regras institucionais a inspirar (ou não) uma cultura dialógica. É isso que o autor visa a demonstrar quando cita algumas regras estabelecida há décadas (desde a criação do STF) que mais obstaculizam a própria natureza da instituição e cujos efeitos podem ser assim resumidos: 1) a irrelevância da opinião do ministro relator; 2) a falta de comunicação entre os ministros; 3) a possibilidade de interrupção da sessão plenária antes da manifestação de todos os juízes; 4) a manutenção em privado de informações que poderiam ou deveriam ser compartilhadas; 5) a ausência de troca de ideias.

O primeiro apontamento refere-se ao papel do ministro relator que apresenta aos outros dez ministros, previamente à sessão, somente aquilo que já era, em regra, do conhecimento público: o relatório com as informações processuais do caso. Porém, a sua conclusão com a exposição de motivos e a solução encontrada passam ao largo da ciência prévia dos ministros, que elaboram seus respectivos pareceres sem qualquer conhecimento do ponto de vista do relator22.

Como foi verificado na subseção anterior, os ministros declararam ser impossível a alteração de voto depois que seus pareceres estão prontos, especialmente quando lidos publicamente.

Para contextualizar, é válido registrar que a deliberação na Corte Suprema ocorre em uma reunião comumente denominada de “sessão plenária”, a qual se desenvolve sem que haja distinção clara entre sessão de deliberação e julgamento e sessão pública, é tudo uma coisa só. Nessa reunião, desenrola-se uma sequência de leitura de opiniões previamente elaboradas que serão todas publicadas (forma de publicação seriatim), mesmo quando a decisão é unânime. Não se trata de uma sessão de discussão de argumentos, mas de uma sessão de leituras de pareceres.

A partir dessa descrição, compreendem-se os pontos 1) e 2) acima listados: a opinião do relator não é considerada porque os ministros tomam sua decisão sem conhecê-la; a opinião dos demais colegas é igualmente irrelevante para a tomada da própria decisão, que já está pronta no momento da sessão, não havendo grandes possibilidades de alteração depois da sequência de leituras uma vez que todos estão apegados aos próprios argumentos.

A comunicação entre os ministros dá-se, portanto, sem que haja disposição e vontade de uma escuta efetiva.

O item 3) refere-se à falta de igualdade de relevância na opinião dos ministros dada a ordem de leitura preliminarmente estabelecida (após o ministro relator, prossegue-se conforme o tempo de casa, do mais novo para o mais velho), pois a sessão pode ser interrompida a qualquer momento (segundo o regulamento do STF), o que significa que os pareceres que já foram lidos têm prevalência sobre os demais. Isso fica mais evidente em determinadas situações, por exemplo, quando a sessão foi interrompida após a leitura de seis votos favoráveis à constitucionalidade de determinado estatuto ou quando há a valorização do voto de minerva.

Como já salientado, na ideia central da democracia deliberativa, está a compreensão de povo como uma comunidade de pessoas que gozam do seu status cívico de agentes racionais em posição de igualdade e de liberdade de modo que, quando as razões levantadas forem de cunho público, por fins e princípios compartilhados, devem ser igualmente consideradas. Contudo, como se vê, esse princípio democrático é desprestigiado no próprio regramento do STF.

Os itens 4) e 5) referem-se ao que foi tratado no início desta subseção a respeito do compartilhamento de informações e de opiniões que constituem o próprio objetivo da deliberação, aquilo que tem o condão de tornar as decisões melhores. Conforme a descrição das sessões plenárias e com base no que foi relatado pelos próprios ministros, verifica-se que essas condições para a boa deliberação estão ausentes.

A troca de ideias não ocorre no STF, e isso se dá em virtude dos procedimentos adotados, que transformam o momento deliberativo numa leitura seriada de pareceres, o que retira das sessões a possibilidade de uma autêntica troca de pontos de vista, de um mútuo esclarecimento de ideias. Essa crítica pode ser atestada “pelo fato de as opiniões escritas individuais muito raramente mencionarem os argumentos apresentados por outros juízes” (Silva, 2013, p. 582, tradução nossa)23.

Por fim, retoma-se o tema do excesso de publicidade que ocorre no STF, que pode ser considerado como outra prática contraproducente para uma cultura dialógica. Na medida em que o modelo de publicidade adotado pelo STF tem implicações pessoais, que se refletem no corpo institucional, ele pode ser um prejuízo, em última análise, para a democracia.

É necessário, pois, retornar à pergunta acerca da finalidade desse órgão julgador e das condutas necessárias para alcançá-la. Assim, considerando a figura do juiz, inclusive o juiz do Supremo, qual conduta ética favorece as melhores decisões?

4 CONCLUSÃO

Para abordar o tema do diálogo no Supremo Tribunal Federal, adotou-se o caráter republicano e deliberativo como modelo de democracia, cujo fundamento de justificação para as ações institucionais é a razão prática, uma vez que a ordem constitucional se centra na acepção de povo como uma comunidade de pessoas que fazem uso do poder por meio de deliberação racional.

Uma vez que a busca da verdade é própria do ser pensante, referir-se à razão prática indica a ação de pessoas racionais ao perseguirem uma verdade que será o resultado de uma escolha prática, tanto mais relevante quanto relacionada ao caráter público do bem.

Considerando a limitação da inteligência humana e o pluralismo como valor supremo da sociedade brasileira e considerando as pessoas como seres pensantes e racionais, o princípio dialógico deve ser enfatizado. A orientação dessa dialética é teleológica - em busca do bem comum e em busca da decisão tomada com ciência e prudência.

Ante uma determinada decisão a ser tomada, no campo político e jurídico, os atores em jogo têm diante de si duas outras atitudes antagônicas possíveis que expressarão um determinado modelo de democracia. Em uma ponta, que remonta à origem do relativismo sofista e segue a concepção moderna voluntarista de democracia, está a atitude que nega o alcance de uma verdade objetiva, pois o subjetivismo dos atores envolvidos conduz a uma desconfiança nas relações humanas: a consciência de cada um não é a expressão de um ponto de vista acerca de uma verdade, mas fruto de suas emoções e vontades. A vontade enseja não justificações, mas a imposição de si. Na outra ponta, encontra-se a atitude mais soberba do que cética, que tem origem no dogmatismo platônico e não encontra um meio-termo entre opinião e verdade. A verdade existe, mas é pessoal, e o diálogo é desnecessário.

No primeiro caso, a linguagem é restrita à persuasão retórica conforme as predileções dos interlocutores - uma atitude cética; no segundo caso, a verdade é preexistente e objetiva, está na mente de quem a pensa, por isso dispensa o diálogo - uma atitude soberba.

A ilustração dessa realidade na “Apologia de Sócrates” (Platão, 2015) leva à constatação de que o uso da erística, e não da dialética nos debates públicos, ao excluir a racionalidade e abandonar a verdade como própria da natureza humana, nega a autêntica comunicação entre os sujeitos de direito. Essa postura condena o sistema político e jurídico à tirania de quem se vale apenas do próprio pensamento.

A partir da perspectiva da razão prática, buscou-se refletir sobre a ênfase dada ao diálogo como papel de legitimação das decisões proferidas no STF, registrando-se o modelo de regras das sessões plenárias em vigência na Corte Constitucional, expondo-se a função dos debates na colegialidade e o manejo da dialética de opiniões divergentes na qual se evidenciou a postura ética dos ministros no processo decisório.

A necessidade de uma ampla discussão sobre questões públicas é própria da arena da democracia no modelo deliberativo, que permite a boa competição entre as ideias. É bom que os melhores argumentos prevaleçam após terem sido discutidos exaustivamente num debate dialético no qual a própria convicção é interiormente questionada após ser compartilhada. Os argumentos insustentáveis tendem a ser afastados, ainda que temporariamente.

A deliberação está profundamente enraizada na tradição da filosofia socrática e aristotélica, na qual os argumentos são provados conforme são expostos e discutidos conjuntamente. Uma forma de conceber a Suprema Corte é tomá-la analogamente como uma praça pública de argumentos dialéticos, uma miniarena que mantém um intercâmbio de influência com o processo democrático.

Como foi visto, o objetivo da deliberação é, ao fim e ao cabo, a produção da melhor decisão, que proporciona segurança jurídica, pois se assenta em bases legítimas. No processo deliberativo, cada ator volta-se para a construção de argumentos plausíveis e justificáveis o suficiente para convencer e proporcionar consenso institucional. Uma ideia suficientemente convincente pode levar a uma concordância, seja do ponto de vista formal, seja do ponto de vista material.

Ainda que uma boa ideia prevaleça e a ideia minoritária seja derrotada, num ambiente democrático, a opinião da minoria não é excluída ad eternum da arena porque tende a retornar sempre que o respectivo tema vier à tona. Uma vez que a relação argumentativa tem em comum a busca da verdade prática – com o peso das circunstâncias –, às vezes, é necessário o decurso de certo tempo para que uma ideia compartilhada por uma minoria possa ser amadurecida e robustecida com a comprovação de dados e informações atualizadas e possa configurar-se como a melhor decisão em um momento posterior.

Porém, o dado da realidade é que as práticas deliberativas institucionais e a ética dos magistrados precisam ser remodeladas para que sejam a expressão de um consenso institucional e não se restrinjam à individualidade dos ministros exposta em suas respectivas rationes decidendi.

Uma grave contradição entre os quesitos primordiais do STF como instituição e a postura pessoal dos seus juízes resulta do fato de que o modelo de publicidade e de processo deliberativo que eles julgam adequado é o mais distante da realidade e de que se aceita como irreversível, o que mina a colegialidade institucional e a ética da magistratura.

Além do impacto do modelo de publicidade do STF na postura dos ministros, em que se destacou a vaidade, outro reflexo comprometedor foi o acirramento do individualismo, o que ficou mais evidenciado na resposta dos juízes à proposta do encontro prévio ao plenário – que seria um momento no qual os argumentos que circundam o mérito da questão a ser decidida poderiam ser expostos a fim de contribuir para o amadurecimento do julgamento de cada um.

A prática do voto previamente redigido prejudica a justificação do julgamento firmado, porque ela se dá não para os demais, mas retoricamente para si mesmo. Em um espaço no qual o diálogo não é estimulado, a colegialidade é superficial, comprometendo o exercício jurisdicional em prol de processos decisórios legítimos.

A transgressão do empreendimento coletivo acaba por implicar a ruptura da instituição, corrompendo-lhe a própria natureza. Não se coadunando com a democracia deliberativa, essa transgressão identifica-se com a democracia procedimental ou com a democracia plebiscitária. Ora, em ambas, o pluralismo e o bem comum não são considerados.

Os resultados aproximam-se de um modelo tirânico de política, no qual os mais fortes preponderam sobre os mais fracos, predominando os que têm melhor articulação política e os que se preocupam com o favorecimento de um público externo. Tantos outros mecanismos não institucionais encontram espaço nesse modelo, em que se vê esvaziado o sentido do diálogo.

Com efeito, a escuta autêntica é uma virtude. A legitimidade das decisões proferidas por Cortes de Justiça de constituição colegiada é mais facilmente compreendida quando se pensa nos benefícios em cadeia produzidos, especialmente se o processo de deliberação é o mais amplo e participativo possível, máxime em temas que envolvem controvérsias morais. A iniciativa individual deveria ceder espaço à colegialidade e refletir um posicionamento institucional no qual a figura do agente é o Tribunal e não os seus juízes.

REFERÊNCIAS

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NOTA DE COAUTORIA

O presente artigo teve sua versão inicial escrita pela orientanda de doutorado Chiara Costa Soares no Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPA, sob orientação do professor Dr. Victor Sales Pinheiro. Este realizou a revisão do texto contribuindo também nas respostas elaboradas para atender às ressalvas de aprovação prévia da Equipe Editorial.
1 Adota-se, neste trabalho, o conceito de corte de Conrado Hübner Mendes para quem supremas cortes e cortes constitucionais têm um denominador comum: o poder de declarar a inconstitucionalidade de leis e atos (Mendes, 2012, p. 54).
2 O tema da liberdade dos antigos e da liberdade dos modernos pode ser esclarecedor para uma observação mais ampla da realidade, especialmente quando o assunto é deliberação a qual pressupõe liberdade de expressão, comportamentos racionais e atitude de escuta. Em comparação com as cidades estados gregas marcadas pela coesão entre os cidadãos, mas excludente com os demais, na modernidade, as cidades se tornaram multiétnicas e abertas ao novo, menos focadas na tradição e mais voltadas para o futuro, permitindo a liberdade de expressão, criatividade e iniciativa. Contudo, apesar da valorização do ser pessoa como ser único – o que constitui um bem e um direito democrático -, a liberdade dos modernos pode também correr o risco de se corromper e ser vista como um valor apenas individual, desvinculada dos outros, que resume o sentido de liberdade à exigência de ausência de intervenção estatal e de vínculos interpessoais. Isso pode levar a um afastamento de qualquer um que possa ameaçar a vontade própria, resultando em uma sociedade em que a indiferença e o interesse próprio prevalecem, ameaçando a coesão comunitária. Benjamin Constant, um dos teóricos do liberalismo político, também advertiu sobre os perigos de uma liberdade excessivamente focada nos interesses particulares, que poderia resultar em indiferença pelos bens comunitários e renúncia à participação política. Para ele e outros pensadores liberais, como François Guizot e Alexis de Tocqueville, a participação na vida política é essencial para sustentar as liberdades individuais – o que pressupõe a ideia de diálogo e deliberação. Eles viam o individualismo exacerbado como um risco para a liberdade, pois poderia levar a uma sociedade descoordenada e vulnerável ao surgimento de regimes autocráticos. Tratamos desse tema no artigo “A fraternidade como lei natural da alteridade: uma reflexão de Chiara Lubich sobre a racionalidade prática e o bem comum em tempos de pandemia” (Soares, 2022, p. 133-134).
3 Salienta Barzotto (2005, p. 175) que a “democracia constitucional brasileira não é a reedição atualizada da república aristotélica”, mas esta tem definições cujos sentidos originais claramente precisam ser resgatados, pois são as bases conceituais nas quais se sedimentam os princípios constitucionais hodiernos.
4 O ser humano é um ser racional inclinado para a busca da verdade, tal como anuncia a Ética de Aristóteles (2014, p. 223, VI, 2, 1139b): “as partes intelectuais têm como função alcançar a verdade, o que nos leva a concluir que as virtudes de cada uma são aqueles estados que melhor as sustentarão para alcançar a verdade”. Portanto, o bem da razão é a verdade.
5 Diante de uma verdade moral ou política (aquela obtida por meio de conceitos compartilhados), a postura relativista tende a questionar tal verdade colocando a opinião pessoal no mesmo patamar. Quando se diz que o relativismo traduz-se em um ceticismo, visa-se a evidenciar que dar à opinião o lugar de verdade redunda na negação da existência dessa última. O raciocínio é este: o relativismo moral afirma que conceitos de certo e errado são moldados por contextos culturais, rejeitando a noção de normas morais universais. Essa perspectiva leva a um ceticismo quanto à possibilidade de verdades universais, questionando a existência de princípios éticos aplicáveis a todas as culturas e tempos. No entanto, a discussão se torna mais complexa ao considerar valores frequentemente vistos como universais, como o respeito à vida e a condenação da tortura de inocentes, que muitos acreditam transcender barreiras culturais. O relativismo enfrenta uma crítica lógica ao tentar universalizar a ideia de que não existem verdades universais, resultando em uma contradição performativa (aquela que pretende afirmar que verdade universais não existem ao mesmo tempo em que está nesse mesmo ato proferindo um conteúdo que se pretende ser uma verdade universal). Assim, embora o relativismo contribua com uma visão sobre a diversidade cultural, ele é desafiado pela noção de princípios éticos universais, ressaltando a contínua busca por compreender se existem verdades morais aplicáveis a toda a humanidade.
6 Em seu preâmbulo, a Constituição brasileira de 1988 traz o compromisso de instituir um Estado Democrático, no qual se asseguram o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, que busca a solução pacífica das controvérsias.
7 Com a ironia que lhe era própria, mesmo num momento trágico, e talvez especialmente por isso, Sócrates aponta para a confusão criada pela persuasão retórica que distancia a verdade da realidade: “por pouco não perdi a noção da minha própria identidade tal a persuasão com que discursaram [meus acusadores]” (Platão, 2015, p. 135).
8 A ideia de bem comum destoa da tradição jurídica clássica tomista. A concepção teleológica de Aquino indica que a vontade segue o bem; para Rousseau, a vontade (geral) determina qual bem será perseguido. “O povo não quer algo porque isto é bom, mas é bom porque o povo quer” (Barzotto, 2005, p. 129). A crítica ao pensamento rousseauniano também pode ser esclarecida pela distinção que o genebrino faz entre a vontade de todos e a vontade geral: para Rousseau, aquela pode errar, já esta última, nunca (conforme Abbagnano, 2018, p. 1204). Ora, segundo a democracia deliberativa, diferentemente da plebiscitária, não é a soma dos votos que revela a verdade (bens compartilhados). Quando se pensa em nível constitucional, sobre o que justifica uma comunidade política e suas instituições, o valor do consenso consiste na indicação de que, naquele momento, naquelas circunstâncias, os meios encontrados parecem ser os mais adequados para se perseguir o bem comum que é anterior à vontade de quem quer que seja. O bem direciona a vontade, não o contrário.
9 Em sentido diverso do platônico, que distingue a opinião da verdade de forma categórica, explica Nussbaum (1995, p. 335, tradução nossa) que “unicamente podemos ter a verdade dentro do círculo das aparências, porque somente nele podemos comunicar, e fora dele não nos é possível sequer referir”.
10 Sobre a crítica ao critério de autoridade para justificar a aplicação dos precedentes judiciais pelo STF, Shayane Paixão e Rosalina Costa fazem uma análise interessante. As autoras apontam ainda o problema de o STF produzir como resultado de seus julgamentos a expressão de embates, e não de diálogos, não garantindo assim “a unidade interpretativa do direito” (Paixão; Costa, 2023, p. 412).
11 De acordo com a concepção da Constituição brasileira, o sujeito da democracia pode ser interpretado como aquele que, preservando sua singularidade, age como comunidade. Assim, quando o artigo 1.º, parágrafo único, confere todo o poder ao povo, o significado de povo é atribuído à comunidade de pessoas humanas que têm em consideração o aspecto individual de sua dignidade de pessoa humana (art. 1.º, III) e seu aspecto comunitário, conforme se infere dos termos “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos” (preâmbulo) e “sociedade solidária” (art. 3.º, I). Afasta-se aqui uma concepção holista de pessoa – consumida pela coletividade – ou individualista, na qual a vontade e o desejo de quem os consegue impor aos outros são a matriz das escolhas feitas.
12 Popper (2010, p. 399, tradução nossa) afirma: “Discutir as coisas racionalmente significa falar das coisas a fundo, com o objetivo de averiguar o que há de verdadeiro ou falso; assim como aquilo que está mal ou está bem; ao mesmo tempo que torna irrelevante, na medida em que é humanamente possível, a questão de quem está equivocado e quem tem razão”.
13 Para Barzotto (2005, p. 43), “se assumimos que o ser humano possui um ‘telos’, uma finalidade, e este fim é o seu bem, o seu pleno desenvolvimento (eudaimonia), as opiniões e os juízos em matéria moral e política passam a ser passíveis de serem avaliados como verdadeiros ou falsos”. Aquilo que corresponde à realização de sua finalidade é o critério para avaliar o que seja bom. Assim, para a finalidade de aprovação em um teste de conhecimento, estudar o tema abordado é o bom a ser feito. Um bom enxadrista reúne atributos de paciência, perspicácia e pensamento objetivo.
14 Barzotto acentua que a virtude hermenêutica própria para mobilizar a razão prática na aplicação do direito, interpretando fatos e textos legais conforme o sentido de justiça, é a prudência e que a “tarefa do jurisconsulto romano – e a do jurista contemporâneo – é atribuir a cada um (direito como prática) o que lhe é devido (justiça), mediante um exercício da razão prática/prudência” (Pessôa; Barzotto, 2023, p. 5).
15 As entrevistas ocorreram entre 2011 e 2013, com ministros na ativa (identificados pelas letras de A a I) e aposentados (identificados pelas letras de N a U), num total de 17 entrevistados, cujas respostas foram classificadas e sistematizadas. As perguntas das entrevistas versaram sobre temas, como o papel do relator de justiça, a dinâmica da deliberação, o poder de revisão judicial, o valor do consenso, interrupções durante o processo deliberativo, colegialidade, publicidade e transmissão televisiva e opinião pública, entre outros, com enfoque nos casos polêmicos, de apelo moral, os quais mais chamam a atenção social.
16 Nas palavras do ministro H: “[...] na nossa área, principalmente quando você é um estudioso [...], você inconscientemente acredita ou tende a acreditar que só você tem a palavra final. Então, não é fácil [mudar de opinião]” (Silva, 2018, p. 443, tradução nossa). O ministro G, por sua vez, confessou: “Vou dar minha opinião mais sincera. É praticamente impossível reconsiderar uma opinião, e não apenas porque muito tempo foi gasto estudando o assunto, e isso pode ter criado algum grau de persuasão. Não podemos ignorar que um juiz é um ser humano. É muito difícil mudar de ponto de vista, especialmente em uma área [...] em que não há nada completamente certo ou completamente errado. Esse pode ser o lado negativo do modelo que a Corte tem adotado de escrever pareceres [antes da sessão de deliberação]. O que eu tenho notado é que é cada vez menos comum alguém reconsiderar sua opinião” (Silva, 2018, p. 443, tradução nossa).
17 Quando se pensa na importância do ministro relator, especialmente pela usual expressão “acompanho o voto do relator”, deve-se destacar que isso não ocorre quando a opinião pública é atraída, nesses casos, o voto do relator tende a ser um voto qualquer.
18 Registra Silva (2018, p. 452, tradução nossa) a fala do juiz H: “É uma questão de independência técnica: um juiz não deve, digamos, deixar que outras pessoas o monitorem, manipulem e influenciem”.
19 Vale a pena conferir o texto de Arguelhes e Ribeiro (2018), que utilizam o termo “ministrocracia” para referir-se ao poder político individual dos ministros, os quais, recorrendo às próprias regras institucionais, sobrepõem suas opiniões singularmente consideradas ao caráter coletivo da instituição da qual fazem parte.
20 No original: “The more the internal organizational rules and customary practices of a given court may function as incentives for rational deliberation, the more legitimate the judicial review exercised by this court”.
21 No original: “Only deliberative procedures can foster the creativity for new, collective constructed, solutions”.
22 Na verdade, nem mesmo o relatório é ordinariamente lido, conforme se verifica na fala de um dos ministros, que diz: “[...] na grande maioria dos casos, os ministros não leem o relatório, basicamente porque há muito serviço para ler, mas também pelo fato de que muitos relatórios são muito extensos [...] na prática, o relatório acaba não exercendo a sua função” (Silva, 2015, p. 189).
23 No original, a sentença completa é: “The absence of a true exchange of ideas and arguments may also be perceived by the fact that the individual written opinions only very rarely mention the arguments put forward by the other justices. If all justices write their opinions at the same time, an exchange of ideas cannot take place”.

Notas de autor

Editora responsável: Profa. Dra. Fayga Bedê

https://orcid.org/0000-0001-6444-2631



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