Artigo
O Golpe de Don Juan: análise da Fenomenologia e das Respostas da Justiça ao Estelionato Sentimental
Don Juan's Scam: analysis of Phenomenology and Justice Responses to Fraud by Intimate Partner
El Golpe de Don Juan: análisis de Fenomenología y Respuestas de Justicia a el Fraude por Pajera Íntima
O Golpe de Don Juan: análise da Fenomenologia e das Respostas da Justiça ao Estelionato Sentimental
Revista Opinião Jurídica, vol. 22, núm. 41, pp. 115-146, 2024
Centro Universitário Christus
Recepción: 09 Marzo 2024
Aprobación: 01 Noviembre 2024
RESUMO
Objetivo: Compreender a fenomenologia e as respostas oferecidas pelo sistema de justiça criminal ao denominado estelionato sentimental, praticado contra a mulher em relações íntimas de afeto.
Metodologia: Análise documental quanti-qualitativa de 39 procedimentos do crime de estelionato praticado por parceiro íntimo contra mulher, no Distrito Federal, em 2019 e 2020.
Resultados: Há um perfil específico de mulheres vitimadas: brancas (53,8%), de meia idade (maioria entre 25 e 44 anos), moradoras de bairros de classe média-alta ou alta (61,9%), com renda econômica acima de 3 salários-mínimos (59%) e profissões estabelecidas; 38,5% dos ofensores tinham outras ocorrências policiais. Em 35,9%, a relação era de até 6 meses. Em 5,1%, o crime foi integralmente praticado pela internet, e, em 20,5%, iniciou-se pela internet. Verificaram-se três gêneros de golpes: indução à entrega de bens (48,7%), gerência abusiva do patrimônio (66,7%) e falsificações (23,1%). As estratégias foram o abuso da relação afetiva (41%), a falsa identidade (35,9%), a imposição de medo/intimidação (35,9%), a simulação de emergência (30,7%), a exigência de cuidado (25,6%) e a falsa oportunidade (15,4%). O valor dos golpes soma a quantia de R$ 2,7 milhões. Em 23,1%, houve exclusão de aplicação da Lei Maria da Penha. Houve pouca proteção pessoal (33,3%) ou patrimonial (7,7%). Em 23,1%, houve denúncia e, em 10,3%, condenação à pena média de um ano e meio. A análise qualitativa revela a existência de relações de gênero neste crime e deficiências na investigação criminal.
Conclusão: O sistema de justiça precisa melhor incorporar a perspectiva de gênero para a investigação, o processamento e o julgamento do crime de estelionato sentimental.
Palavras-chave: Estelionato sentimental+ fenomenologia+ respostas+ relações de gênero+ sistema de justiça.
ABSTRACT
Objective: To understand the phenomenology and responses offered by the criminal justice system to the so-called romance scam, perpetrated against women in intimate relations.
Methodology: Quantitative and qualitative analysis of 39 criminal procedures fraud perpetrated by an intimate partner or family member against a woman, in the Federal District of Brazil, in 2019 and 2020.
Results: There is a specific profile of victimized women: white (53.8%), middle-aged (majority between 25 and 44 years old), residents of upper-middle or high-class neighborhoods (61.9%), with economic income above 3 minimum wages (59%), and established professions. 38.5% of offenders had other police records. In 35.9%, the relationship lasted up to 6 months. In 5.1%, the crime was entirely committed via the internet, and in 20.5%, it began on the internet. Three types of scams were identified: inducing the delivery of goods (48.7%), abusive management of assets (66.7%), and forgeries (23.1%). Strategies used were abuse of the emotional relationship (41%), false identity (35.9%), fear (35.9%), emergency simulation (30.7%), care requirement (25.6%), and false opportunity (15.4%). The total value of the scams amounts to R$ 2.7 million. In 23.1%, the application of the Maria da Penha Law was excluded. There was little personal (33.3%) or patrimonial (7.7%) protection. In 23.1%, there was an indictment, and in 10.3%, there was a conviction, with an average sentence of one and a half years. Qualitative analysis reveals the existence of gender relationships and deficiencies in criminal investigation.
Conclusion: The justice system needs to better incorporate a gender perspective for the investigation and trial of romance fraud crimes.
Keywords: Romance fraud, phenomenology, responses, gender relations, justice system.
RESUMEN
Objetivo: Comprender la fenomenología y las respuestas que ofrece el sistema de justicia penal ante el llamado fraude sentimental, practicado contra la mujer en relaciones íntimas de afecto.
Metodología: Análisis documental cuantitativo y cualitativo de 39 procedimientos por el delito de fraude cometido por pareja o familiar en contra de una mujer, en el Distrito Federal de Brasil, en 2019 y 2020.
Resultados: Hay un perfil específico de mujeres victimizadas: blancas (53,8%), de mediana edad (mayoría entre 25 y 44 años), residentes en barrios de clase media-alta o alta (61,9%), con ingresos económicos superiores a 3 salarios mínimos (59%) y profesiones establecidas. El 38,5% de los agresores tenían otros antecedentes policiales. En el 35,9% la relación duraba hasta 6 meses. En el 5,1% el crimen se perpetró íntegramente a través de Internet y en el 20,5% comenzó en Internet. Se identificaron tres tipos de estafas: inducción a la entrega de bienes (48,7%), gestión abusiva del patrimonio (66,7%) y falsificaciones (23,1%). Las estrategias fueron el abuso de la relación afectiva (41%), falsa identidad (35,9%), miedo (35,9%), simulación de emergencia (30,7%), solicitud de cuidados (25,6%) y falsas oportunidades (15,4%). El valor total de las estafas asciende a R$ 2,7 millones. En el 23,1% se excluyó la aplicación de la Ley Maria da Penha. Hubo poca protección personal (33,3%) o patrimonial (7,7%). En el 23,1% se presentó denuncia y, en el 10,3%, hubo condena, con una pena media de un año y medio. Un análisis cualitativo revela la existencia de relaciones de género y deficiencias en la investigación criminal.
Conclusión: El sistema de justicia necesita incorporar mejor una perspectiva de género para la investigación, procesamiento y juicio del delito de fraude sentimental.
Palabras clave: Fraude sentimental, fenomenología, respuestas, relaciones de género, sistema de justicia.
1 INTRODUÇÃO
A violência doméstica e familiar contra a mulher – VDFCM é um problema grave e estrutural, cujas profundas raízes sócio-histórico-culturais remetem a um modelo patriarcal de organização social. Há compromissos internacionais pelo Estado brasileiro de enfrentar a violência contra a mulher nas esferas privada, comunitária e em suas relações com o Estado (Convenção de Belém do Pará, art. 2º).
Apesar de a Lei Maria da Penha – LMP definir a violência patrimonial como uma das formas de violência contra a mulher (Lei n. 11.340/2006, art. 7º, inciso IV), as instâncias formais de controle usualmente não lhe dão a devida visibilidade (Ximenes; Cavalcanti, 2021). Uma das suas possíveis manifestações é o estelionato sentimental, em que um homem se aproxima de uma mulher e, abusando da expectativa dela de iniciar ou seguir mantendo uma relação romântica, vende a imagem de um parceiro ideal ou de um bom administrador do patrimônio comum a fim de conquistar a confiança da vítima, e então passa a aplicar uma série de estratégias para obter vantagens financeiras. Atualmente, tramita no Senado Federal o PL 2254/2022, com a finalidade de criminalizar especificamente a conduta, com uma pena mais elevada. Todavia, os estudos teóricos sobre esse delito são incipientes e não foram localizadas pesquisas empíricas no Brasil.
A presente pesquisa tem o objetivo de compreender a fenomenologia dos casos de estelionato praticado por parceiro íntimo ou familiar e as respostas oferecidas pelo sistema de justiça, à luz da criminologia feminista. Para tanto, realizou-se uma revisão de literatura e a análise documental quanti-quali de processos criminais em que haja a ocorrência do crime de estelionato praticado com contexto da Lei Maria da Penha, no Distrito Federal – DF, durante os anos de 2019 e 2020. O texto apresentará o referencial teórico, a metodologia da pesquisa, a análise dos resultados, cindida em etapa quantitativa e qualitativa (estudo de caso), seguindo-se as considerações finais2. Espera-se lançar luzes sobre um tema ainda pouco explorado no contexto nacional, de forma a melhor orientar políticas públicas para responder ao fenômeno.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
A violência patrimonial é fruto de relações históricas de poder que atribuem ao homem a função de provedor e gestor patrimonial e à mulher a de cuidadora da casa, submissa à autoridade masculina. O progressivo ingresso da mulher no mercado de trabalho e a ampliação das possibilidades de divórcio têm alterado essa divisão clássica, todavia não foram suficientes para a cultura de autoridade masculina de gestão patrimonial (Carmen; Magdalena, 2021). A evolução das relações sociais, com a migração dos relacionamentos para a esfera digital, e a maior independência financeira feminina passaram a gerar novas formas de violência patrimonial contra as mulheres que possuem recursos financeiros.
Apesar de sua gravidade, a violência patrimonial segue um caminho de invisibilidade nas instâncias formais de controle (Ximenes; Cavalcanti, 2021; Maldonado-García et al., 2020). As medidas protetivas de urgência mais indeferidas são as relacionadas a intervenções de natureza patrimonial, e, muitas vezes, o contexto de conflitos patrimoniais é utilizado para indevidamente desqualificar a existência de uma violência baseada no gênero (Ávila; Garcia, 2022). Um exemplo disso é o fato de que o próprio Código Penal brasileiro expressamente afirma, em seu art. 181 (escusas absolutórias), que não se pune a violência patrimonial praticada pelo cônjuge, ascendente ou descendente, se não houver violência física ou grave ameaça, apesar de diretrizes de direito internacional sinalizarem para a necessidade de efetiva responsabilização dessa forma de violência (Ávila; Souza, 2024).
O tema das fraudes praticadas pelo parceiro íntimo teve especial visibilidade após a circulação do documentário “O golpista do Tinder” e passou a ser denominado de “estelionato sentimental” (Rondon Filho; Khalil, 2021; Costa; Tomazzetti, 2022; Fernandes, 2023, p. 208; Coelho, 2023). Também se utilizam expressões como “estelionato afetivo”, “estelionato amoroso”, “estelionato por parceiro íntimo”, “golpe do amor” ou “golpe de Don Juan”3.
Apesar da inexistência de crime específico, a jurisprudência passou a reconduzir a conduta ao crime do art. 171 do Código Penal – CP, considerando que, “quando o agente se utiliza de meio ardil para obter vantagem econômica ilícita da companheira, aproveitando-se da relação afetuosa, está configurado o delito de estelionato” (Distrito Federal, 2018, ementa).
O delito pode ocorrer por relações presenciais ou no âmbito de relacionamentos pela internet, situação conhecida como romance scam (Rondon Filho; Khalil, 2021). Segundo o Federal Trade Commission (2023), nos EUA, em 2022, cerca de 70.000 pessoas foram vítimas de golpes por romances na internet, com perdas totais de 1,3 bilhões de dólares e valores médios de quatro mil dólares. Também é possível acontecer o estelionato quando uma relação conjugal consolidada entra em fase de separação, passando o homem a se apropriar indevidamente do patrimônio comum (Carmen; Magdalena, 2021; Santos; Bugai; Karpinski, 2022).
Por sua forte relação com a suposta autoridade masculina de gestão patrimonial, o crime de estelionato sentimental apresenta terreno fértil para uma análise a partir da criminologia feminista (Mendes, 2024). Há um conjunto de diretrizes que propõem a incorporação da denominada “perspectiva de gênero” como referencial teórico para a crítica do sistema de justiça criminal (ONU Mulheres, 2016; Brasil; COPEVID; COMJIB, 2016; Brasil, 2021). Esse campo teórico procura compreender as relações de poder subjacentes ao gênero nas interações entre homens e mulheres, reconhecer essa desigualdade como uma violência e desconstruir sua normalização histórica, propondo críticas à operatividade do sistema penal para afirmar o direito das mulheres a uma vida livre de todas as formas de violência (LMP, art. 2º).
3 METODOLOGIA DA PESQUISA
Trata-se de análise documental quanti-qualitativa de 39 procedimentos investigativos e judiciais relacionados ao estelionato sentimental, praticado contra vítima mulher no contexto de violência doméstica e familiar. Utilizou-se o recorte temático de inquéritos policiais registrados com a incidência concomitante do crime de estelionato (CP, art. 171) e da LMP, no recorte geográfico do DF, com o recorte temporal de Ocorrência Policial registrada nos anos de 2019 e 2020. Solicitaram-se informações à Polícia Civil do DF, com fundamento na Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), sendo a resposta recebida em 15/02/2023. Os processos foram analisados mediante consulta ao sistema PJe, encerrando-se a consulta em 31/08/2023. Assegurou-se um prazo de dois anos e oito meses após o término recorte temporal, de forma a se permitir avaliar a evolução resposta processual.
A Polícia Civil informou a existência de 58 casos no recorte indicado. Foram excluídos da pesquisa 19 processos pelas seguintes razões: 11 processos não foram digitalizados; 5 estavam em segredo de justiça; 2 tiveram a competência declinada para outra unidade da federação; em 1 caso verificou-se que não se tratava efetivamente de crime de estelionato. Ao final, restaram 39 casos, que integram o corpus. Como limitação da pesquisa, é possível que processos não tenham sido adequadamente registrados nos sistemas da Polícia Civil com a dupla incidência temática. Por se tratar de primeira aproximação ao tema, a amostra revela-se significativa ao estudo exploratório.
Utilizou-se de grelha com informações quantitativas e qualitativas relacionadas aos dados sociodemográficos da vítima, ao tipo de relacionamento, ao tipo de golpe aplicado e à análise de fluxo processual. Não foi produtiva a recolha de dados sociodemográficos do ofensor, diante da elevada quantidade de dados não informados (usualmente relacionamentos afetivos de curta duração com uso de identidade falsa). Para categorização dos golpes e avaliação do resultado, utilizou-se da análise temática (Braun; Clarke, 2006), ilustrada com o estudo de casos paradigmáticos. O resultado processual foi problematizado à luz do referencial teórico da criminologia feminista. Procurou-se identificar, organizar e interpretar temas ou padrões recorrentes nos dados, extraindo-se significados relevantes, à luz da compreensão das relações de gênero subjacentes aos crimes e às respostas oferecidas pelos sistemas policial e de justiça. Para a etapa qualitativa, será feita a análise de 4 casos, de forma a melhor ilustrar os resultados da etapa quantitativa, problematizando-os à luz do referencial.
Em relação à revisão de literatura para a análise dos resultados, optou-se pela revisão integrativa, com combinação de dados da literatura empírica e teórica, a fim de definir conceitos e lacunas. Utilizaram-se as expressões “estelionato sentimental” ou “violência patrimonial” nas bases de pesquisa “Capes Periódicos”, “Scielo”, “Academia” e “Google Scholar”, seguindo-se análise de pertinência temática e relevância, excluindose casos com referência à responsabilidade civil e sem envergadura acadêmica. A Capes Periódicos trouxe um retorno (Rondon Filho; Khalil, 2021), bem como a base Scielo (Ludermir; Souza, 2021). A base Academia trouxe um resultado para estelionato sentimental (Costa; Tomazzetti, 2022) e 27 resultados para violência patrimonial, com 10 repetidos, sendo 5 selecionados pelo critério de pertinência temática e relevância (Ximenes; Cavalcanti, 2021; Maldonado-García et al., 2020; Flores Hernández; Espejel Rodríguez, 2012; Santos; Bugai; Karpinski, 2022; Carmen; Magdalena, 2021). Finalmente, pesquisou-se na base Google Schoolar com a chave “estelionato sentimental”, analisando-se os primeiros 30 trabalhos e selecionando-se um pelo critério de pertinência, envergadura acadêmica e não repetição (Coelho, 2023). Pela data dos trabalhos, verifica-se que se trata de tema de recente aprofundamento acadêmico e limitada produção no Brasil.
4 ANÁLISE DOS RESULTADOS: ETAPA QUANTITATIVA
4.1 DADOS SOCIODEMOGRÁFICOS DA VÍTIMA
A Tabela 1 apresenta a faixa etária da vítima. Verifica-se que a maioria das vítimas está na faixa de 25 a 44 anos, com especial concentração na faixa de 25 a 29 anos.
A Tabela 2 traz o perfil étnico-racial da vítima documentado nos processos, especialmente no prontuário civil, no boletim de ocorrência e no formulário de avaliação de risco. Verifica-se que, em um terço dos casos, não houve anotação e, entre os casos com anotação, a maioria das vítimas é branca.
A Tabela 3 indica o local de residência da vítima e o correlaciona com a renda média neste local, conforme a categorização do censo CODEPLAN (Distrito Federal, 2021). Verifica-se que 35,9% das vítimas residem em locais de renda média-alta (renda domiciliar média de R$ 6.845,95) e 25,6% em locais de renda alta (média de R$ 15.159,22).
A Tabela 4 apresenta a estimativa de renda das vítimas, indicando que 59% das vítimas recebiam mais que três salários-mínimos – SM por mês. Essa estimativa foi realizada considerando a renda informada e as informações socioeconômicas que permitissem uma aproximação (emprego, local de residência).
A Tabela 5 traz a profissão das vítimas, indicando que um quarto delas eram aposentadas ou empresárias. Também, é possível notar que 23% das vítimas eram profissionais de saúde (enfermeiras, psicólogas, técnica em enfermagem, bióloga, fonoaudióloga, médica veterinária). Essa prevalência significativa permite levantar a hipótese de que, em razão da alta demanda profissional derivada da pandemia, mulheres profissionais de saúde sofreram significativo desgaste emocional, ensejando maior vulnerabilidade a golpes praticados no âmbito das relações afetivas.
Verifica-se que os registros policiais de estelionato sentimental se concentram em um perfil de vítima: são majoritariamente mulheres brancas, de meia idade, moradoras de bairros de classe média-alta, com profissões estabelecidas e renda econômica. Esses achados se alinham com outras pesquisas internacionais nesse tipo de crime (Coelho, 2023). O perfil é substancialmente distinto dos casos de violência doméstica física grave, majoritariamente contra mulheres negras de classe baixa (Ávila et al., 2020).
Em relação aos ofensores, a obtenção de dados socioeconômicos restou prejudicada, diante da elevada quantidade de campos não informados. Todavia, foi possível analisar, com a informação do CPF do investigado, quanto à existência de registros de outras ocorrências policiais, verificando-se que, em 30,8% (n=12), o ofensor já tinha registros policiais antes do caso, em outros 7,7% (n=3), apesar de não haver prévio registro, houve ocorrência policial posterior, de forma que, em 38,5% (n=15), havia outros registros policiais antes ou houve após o caso. Em 10,3% (n=4), não havia informação de CPF do ofensor. Esses dados sinalizam elevado percentual de casos de ofensor habitual. Dois ofensores praticaram o delito contra vítimas distintas durante o período da pesquisa (um deles será analisado no estudo de caso, adiante).
4.2 VÍNCULO COM A VÍTIMA E TIPOS DE GOLPES
A Tabela 6 indica o vínculo entre ofensor e vítima. Considerou-se a natureza da relação no momento da consumação do crime. Em apenas um dos casos (2,6%), houve relação afetiva homossexual.
A Tabela 7 informa quanto ao tempo de relacionamento da vítima com o ofensor. Verifica-se que, em 35,9% dos casos, tratava-se de uma relação afetiva recente, com até 6 meses. Todavia, a maioria dos casos ocorreu em uma relação já de média ou longa duração, contexto de uma relação afetiva real seguida do aproveitamento das relações de gênero para a obtenção da vantagem ilícita pelo homem.
Em apenas 5,1% (n=2) dos casos, o relacionamento ocorreu integralmente pela internet e, em 20,5% (n=8), o relacionamento iniciou-se pela internet e avançou para as relações pessoais. Estudos internacionais sinalizam que haveria “uma verdadeira epidemia do fenômeno de golpes afetivos pela internet” (Coelho, 2023, p. 108). Todavia, a pesquisa contraria a representação de que o scamming seja a forma mais usual de estelionato sentimental (ao menos, os que são registrados em Delegacia de Polícia no DF); também não se pode desconsiderar que um número significativo de mulheres deixa de reportar os casos às autoridades por vergonha ou descrença na possibilidade de recuperarem seus valores (Rondon Filho; Khalil, 2021).
O crime de estelionato sentimental possui como pressuposto manter a vítima em uma representação falsa ou enganosa com a finalidade de obter vantagem patrimonial (Coelho, 2023). A Tabela 8 apresenta uma categorização do tipo de golpe. Não raro houve uso de mais de um tipo de golpe em cada caso, de sorte que o somatório excede 100%. Identificaram-se três gêneros de golpes: indução da vítima à entrega de bens, gerência invasiva dos bens da vítima e falsificações. Na indução, é a própria vítima quem entrega os seus bens ao ofensor; na gerência abusiva, a vítima não entrega diretamente o bem, mas o poder de gerir; e, na falsificação, a vítima nada entrega, é o ofensor quem dela toma fraudulentamente. A entrega de bens ocorreu com presentes ao próprio estelionatário ou mediante intervenção de terceiros (considerados abusivos ante a relação afetiva fraudulenta ou dos valores excessivos) ou em contexto de empréstimos (normalmente em contexto de supostas urgências, como se verá adiante). Na gerência invasiva de bens, o ofensor recebe da mulher a autorização para gerir seus bens, usualmente em razão de representações sexistas que colocam o homem como responsável pela gestão patrimonial, e abusa da confiança para causar prejuízo à mulher (apropriação de valores para serem utilizados em outros negócios, procuração para gerir os bens da vítima, acesso a senhas bancárias ou cartões, disposição exclusiva de bens móveis). As falsificações podem ocorrer de forma material (fraudar assinaturas) ou ideológica (houve dois casos de omissão de informações ou de inserção de dados falsos em procuração de alienação de imóvel, para excluir a participação da mulher). Verificase que as espécies mais usuais de golpes foram a solicitação de empréstimos e a apropriação de valores para serem utilizados para outros pagamentos (ambos em 41% dos casos), seguidos do acesso a senhas e cartão bancário, ou dados financeiros da vítima (35,9%).
Para aplicar os golpes, houve o uso de diferentes estratégias de engano, conforme Tabela 9. Caso sejam somadas as subespécies de falsa relação afetiva, esta foi a estratégia mais usual de golpes (43,6%), sendo que, em 35,9% dos casos, houve uso de falsa identidade, como uso de nome falso, mentira sobre a profissão (afirmando-se servidor público, policial ou empresário) ou a nacionalidade. Em seguida, vem o abuso da dependência afetiva (41,0%), correspondendo aos casos em que o autor condicionava a exigência de vantagens à confirmação do amor pela vítima. Usualmente houve expressões, como “te amo demais”, “vamos viver juntos para sempre”, “amor, confia em mim”, “precisamos disso para termos uma vida juntos”, “você é a mulher da minha vida”. Trata-se da sedução para vencer a resistência e concretizar a fraude. Verificaram-se casos de abuso da vulnerabilidade emocional, como vítima em luto ou depressão. A exigência de cuidado (25,6%) e a simulação de uma emergência (30,7%) também apareceram como estratégias significativas. Apesar de o crime de estelionato não ter presente a ameaça e sim o engano (caso contrário, seria uma extorsão, crime mais grave), o medo e a intimidação faziam parte da estratégia de engano em 35,9% dos casos, indicando a deficiência das estruturas dogmáticas criminais para captar as nuances das relações de gênero.
Ao todo, o valor dos golpes informados pelas vítimas soma a quantia de R$ 2.736.758,00 (dois milhões, setecentos e trinta e seis mil, setecentos e cinquenta e oito reais). A faixa de valor dos golpes mais usual (moda) foi de 15 a 20 mil reais (com 15,4% dos casos), a média dos golpes foi de R$ 70.173, 28 (setenta mil, cento e setenta e três reais e vinte e oito centavos) e a mediana foi de R$ 10.000,00 (dez mil reais). Em 7,7%, o valor do golpe foi superior a R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais) e o caso com o maior valor foi de R$ 792.000,00 (setecentos e noventa e dois mil reais). Nesse episódio, o ofensor teria transferido para si, de forma fraudulenta, a maioria das cotas de sociedade empresária da qual a vítima fazia parte.
4.3 INCIDÊNCIAS PENAIS E COMPETÊNCIA
Em 38,5% dos casos (n=15), houve concurso entre o estelionato e outra infração penal. Conforme a Tabela 10, os crimes de ameaça e injúria foram as infrações penais mais usuais praticadas em conjunto com o estelionato, em um quinto dos casos cada. Usualmente as ameaças e ofensas são estratégias utilizadas pelo ofensor para desestabilizar psicologicamente a vítima, de forma a fazê-la aceitar suas determinações, ou ainda uma estratégia posterior ao golpe para dissuadir a mulher de registrar ocorrência policial. Quando uma mulher desafia a representação sexista de gestão masculina do patrimônio e resolve exigir seus direitos, isso pode gerar uma escalada de violências, sendo estratégia recorrente para o homem manter seus privilégios quando mulheres decidem acionar a proteção legal (Maldonado-García et al., 2020; Ludermir; Souza, 2021).
Apesar de os crimes terem sido praticados no âmbito de relação íntima de afeto, em 23,1% (n=9) dos casos, houve declínio de competência à Vara Criminal, com a exclusão de aplicação da LMP. Nesses casos, a relação entre ofensor e vítima era: namorado (n=4), ex-companheiro (n=2), ex-namorado (n=1), companheiro (n=1) e irmão (n=1).
A Tabela 11 indica os motivos utilizados pelos magistrados para excluir a aplicação da LMP, sendo o mais usual o argumento de “falta de motivação de gênero” (52,9% dos declínios). Em 17,6% dos casos declinados, afirmou-se expressamente que apenas a configuração patrimonial do crime não permitiria a aplicação da LMP. Essa argumentação deixa de reconhecer as relações de gênero subjacentes à violência patrimonial, a qual está expressamente prevista na LMP (art. 7º, inciso IV; art. 24). Em apenas um caso, houve o declínio em razão de a ofensora ser do sexo feminino. A posição de vulnerabilização feminina possui natureza objetiva e estrutural, produto de séculos de práticas preconceituosas, que são interiorizadas e replicadas pelas mulheres, não se limitando apenas ao gênero do ofensor (Zanello, 2018).
4.4 PROTEÇÃO À MULHER
Em dois terços dos casos (66,7%, n=26), a mulher solicitou medidas protetivas de urgência. Todavia, o juiz deferiu a proteção apenas em metade dos pedidos e um terço do total de casos (n=13). Em apenas três casos (11,5%), houve deferimento de alguma medida cautelar de proteção patrimonial à mulher, sendo um caso como medida cautelar prevista no CPP (arresto de veículo, com o fim de garantir o ressarcimento à vítima), e em dois casos de medidas protetivas (LMP, art. 24, consistente na determinação de restituição de bens de propriedade da vítima – um veículo e um celular). Em mais um caso (2,6%), houve o deferimento de proibição de aproximação e contato com a mulher com fundamento no CPP, diante da recusa de aplicação da LMP ao feito. Em nenhum caso houve requerimento de prisão preventiva do ofensor.
4.5 RESULTADO DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
Conforme a Tabela 12, apenas 23% das ocorrências registradas geraram oferecimento de denúncia. As motivações dos arquivamentos dos inquéritos estão na Tabela 13, sendo que ocorreu de, em um mesmo caso, utilizar-se mais de uma fundamentação.
Verifica-se que o motivo de arquivamento mais usual foi a insuficiência de provas (87,5%). Em diversos casos, considerou-se que haveria apenas a palavra da vítima contra a palavra do ofensor. Em muitas situações, o Ministério Público promoveu o arquivamento do IP sem a Polícia realizar diligências que eram possíveis de serem cumpridas, ao argumento de que o transcurso do tempo inviabilizaria o esclarecimento. Por exemplo, em um dos casos, a vítima deixou um CD na delegacia contendo elementos informativos, todavia a mídia respectiva não foi extraída e juntada aos autos, de forma que o arquivamento não considerou essas informações. A pesquisa avaliou que, em 47,6% (n=10/21) dos arquivamentos por insuficiência de provas, ainda havia diligências que poderiam ser realizadas antes do arquivamento.
Em 29,2% (n=7) dos casos, houve arquivamento por ausência de representação inicial ou sua retratação. Nesses casos, a mulher justificou sua posterior ausência de interesse no processo porque o ofensor não voltou a incomodá-la (57,2%, n=4/7) ou porque ele realizou o ressarcimento do prejuízo (42,8%, n=3/7).
Houve arquivamento pela atipicidade da conduta, considerando se tratar de mero ilícito cível em um quinto dos casos (20,8%). Em relação aos dois casos em que houve reconhecimento de atipicidade por aplicação do princípio da insignificância, o valor do golpe foi estimado em R$ 7,00 e R$ 60,00.
Houve aplicação da escusa absolutória que reconhece a inexistência de punição ao crime patrimonial praticado pelo cônjuge na constância do relacionamento, conforme previsto no art. 181, inciso I, do Código Penal, em um quinto dos arquivamentos (20,8%). Há entendimento doutrinário pela revogação tácita dessa escusa absolutória pela LMP e sua incompatibilidade hierárquica com a Convenção de Belém do Pará e a Convenção CEDAW da ONU (Ávila; Souza, 2024). Todavia, o STJ possui precedente reconhecendo a continuidade da vigência da norma (Brasil, 2014).
Nos 5 casos em que foi aplicada a escusa absolutória, o vínculo entre as partes era: namorado (n=1), companheiro (n=3) e ex-companheiro (n=1). No caso de namorado, o Ministério Público promoveu o arquivamento considerando que haveria indícios de que haveria união estável (este caso corresponde ao Caso 2 do estudo de caso, adiante). No caso do ex-companheiro, ele subtraiu cártulas bancárias durante a constância da relação e as utilizou fraudulentamente após o término da relação. Em ambas as situações, não se tratava propriamente da situação legal de escusa absolutória.
A investigação do estelionato é mais complexa que os crimes usuais no contexto de VDFCM, por envolver uso de internet, transações bancárias e falsa identidade. Todavia, em apenas 4 casos (10,3% do total), a investigação criminal avançou com uma atuação mais qualificada, com o deferimento de alguma medida cautelar investigativa, conforme indicado na Tabela 14.
4.6 RESULTADO DA AÇÃO PENAL
Em relação aos 9 casos em que houve ajuizamento de denúncia, 77,8 % (n=7) correram no Juizado de violência doméstica, e 22,2 % (n=2) na Vara Criminal Comum. A Tabela 15 apresenta o resultado processual no momento da análise dos casos.
Verifica-se que, em dois casos, houve celebração de suspensão condicional do processo. As condições estabelecidas foram a prestação pecuniária no valor de 10 salários-mínimos e, em outro caso, a participação em grupo reflexivo para homens autores de violência, além das demais condições legais genéricas. Avaliou-se que, em ambos os casos, os ofensores estavam cumprindo as condições no momento da pesquisa.
Em todos os 4 casos em que houve prolação de sentença, houve a condenação. Isso significa que, após dois anos e oito meses do término do recorte temático, a condenação corresponde a 10,3% dos registros policiais, 44,4% das denúncias e 100% das sentenças de mérito. Caso se considere que a aplicação da SCP é também uma forma de “punição”, verifica-se que apenas 15,4% dos registros policiais resultaram em responsabilização.
4.7 TEMPO DE ANDAMENTO DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL E DO PROCESSO
A Tabela 16 indica o tempo de andamento da investigação criminal de todos os casos, desde o registro da ocorrência policial até o momento do recebimento da denúncia ou da homologação judicial do arquivamento. Verifica-se que, em 53,8% dos casos, a investigação foi concluída em até 2 anos.
A Tabela 17 informa quanto à média de tempo de andamento da investigação criminal (do registro de ocorrência até a decisão final de homologação do arquivamento ou recebimento da denúncia) de acordo com o resultado processual, excluindo os casos de investigação não concluída ao tempo da pesquisa. Verifica-se que, nos processos que evoluíram para um arquivamento por insuficiência de provas, a investigação demorou muito mais do que nos processos que evoluíram para uma sentença condenatória. Aparentemente, há uma correlação entre a celeridade na conclusão das investigações e o sucesso da persecução penal. Também é possível levantar a hipótese de que processos especialmente complexos, de investigação mais lenta, têm menor probabilidade de sucesso.
Em relação aos dois casos com SCP, o tempo médio entre o recebimento da denúncia e o acordo foi de 356 dias, enquanto em relação aos 4 casos com sentença penal condenatória, o tempo médio entre o recebimento da denúncia e a sentença foi de 522 dias, ou seja, a SCP acelera a resposta pelo sistema de justiça, por realizar-se em fase inicial do procedimento.
A Tabela 18 apresenta o tempo de pena fixado nas 4 sentenças penais condenatórias, valor de indenização à vítima e respectiva média.
5 ANÁLISE DOS RESULTADOS: ETAPA QUALITATIVA
A fim de complementar e ilustrar a etapa quantitativa, procederemos ao estudo qualitativo de quatro casos que são emblemáticos quanto aos tipos de golpes aplicados e aos resultados processuais, sendo um de relação afetiva pela internet seguida de solicitação de valores para supostas emergências (em investigação), outro de gestão abusiva do patrimônio da vítima (arquivado) e dois casos envolvendo um mesmo estelionatário, de breve relacionamento de sedução para receber valores financeiros (com condenações). Apesar de os processos serem públicos, preferiu-se utilizar nomes fictícios. Os casos serão apresentados e, em seguida, discutidos.
5.1 ANTÔNIA BUSCA UM PRÍNCIPE ENCANTADO NA INTERNET
Antônia, uma médica de 42 anos5, conheceu o estelionatário por meio de rede social, iniciando um relacionamento afetivo a distância. Ele sempre usava um telefone fixo de Maryland, EUA, alegava ser americano e trabalhar como engenheiro nas Filipinas. Durante a relação, ele passou a chamar Antônia de sua “noiva”, trocando mensagens afetivas, e conseguiu que Antônia lhe enviasse fotos íntimas. Após algum tempo de relacionamento, informou à vítima que estava em viagem nas Filipinas, que seu cartão de crédito americano teria sido bloqueado naquele país, que o desbloqueio demoraria alguns dias e que estaria em uma emergência no exterior, necessitando urgentemente de um empréstimo de Antônia, para regularizar seu contrato no país. Para supostamente comprovar à vítima sua identidade e alegações, o ofensor chegou a compartilhar com ela cópia de sua identidade, contrato de trabalho e os dados de acesso de sua conta bancária, em que se verificava haver um saldo bancário de mais de um milhão de dólares, que estariam “bloqueados”. Para liberar os valores, pediu para Antônia empréstimo de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), mas a vítima transferiu apenas R$ 2.000,00 (dois mil reais) para a conta bancária de uma mulher brasileira, que iria intermediar a resolução do problema. Posteriormente, para custear despesas relacionadas à liberação de documentos do contrato de trabalho solicitados pelo Governo Filipino, o ofensor solicitou mais valores, porém Antônia se recusou a realizar novas transferências. A vítima consultou um amigo engenheiro e recebeu informação de que o contrato apresentado pelo namorado não seria verídico. O estelionatário passou a exigir prova de fidelidade de Antônia, pressionando-a para que conferisse a ele acesso à sua conta do Facebook. Antônia cedeu ao pedido, todavia, logo após, percebeu que não conseguia mais acessar seu próprio perfil, assim Antônia decidiu registrar a ocorrência policial. Durante seu depoimento na delegacia, a ofendida expressou medo do que o ofensor poderia fazer com suas fotos íntimas e com a informação quanto ao seu CPF.
A autoridade policial requisitou consulta aos Sistemas Policiais a respeito da mulher titular da conta bancária para a qual a vítima transferiu os valores e localizou um endereço em São Paulo e sua qualificação. Como o número de telefone utilizado pelo investigado era internacional, as forças policiais não conseguiram solicitar seus dados cadastrais, ante o prognóstico de burocracia na cooperação internacional.
As autoridades de persecução penal obtiveram autorização judicial para quebra de sigilo bancário, de dados telemáticos da mulher titular da conta bancária e de dados de WhatsApp do ofensor. Todavia, em relação aos dados de WhatsApp, a empresa informou que o número utilizado pelo investigado não era válido, não fornecendo informações.
No curso do processo, o Ministério Público requereu e o juízo decidiu quanto ao afastamento da aplicação da Lei Maria da Penha a esse caso, pois se considerou que não haveria uma relação afetiva real, mas simulada pelo ofensor, e a pessoa que recebeu as transferências bancárias seria uma mulher, o que não indicaria vulnerabilidade de gênero pela vítima. Diante disso, o processo foi encaminhado à Vara Criminal.
A investigação criminal avançou para a análise dos dados bancários da mulher destinatária da transferência, pelos quais se verificou que ela recebeu vários depósitos e realizou transferências vultosas para outras pessoas. A investigação foi redirecionada para localizar e interrogar essas pessoas, estando nesse estágio até o momento de realização da pesquisa. O inquérito policial já tramita há 4 anos e 7 meses, sem novos avanços.
5.2 JOAQUINA E A GESTÃO INVASIVA DE SEU PATRIMÔNIO PELO COMPANHEIRO
Joaquina, uma mulher preta, de 33 anos, empregada de um centro comercial, conheceu o estelionatário onde ela trabalhava e mantiveram uma relação de namoro por cerca de um ano. Desde o início, ele dizia estar à procura de relacionamento sério, querer ter filhos com a vítima e levá-la para viagens. Inicialmente, durante os encontros, o ofensor pagava as contas e aparentava ter boa condição econômica, dizendo à vítima que era funcionário da Receita Federal, inclusive mostrando crachá do órgão público e informando que obtinha renda extra por meio de operações financeiras.
Certo dia, o ofensor convidou a vítima para morar com ele, sob a condição de que ela não levasse sua filha mais velha, sugerindo que a menina ficasse com a genitora da vítima, a qual deveria ser remunerada pelos cuidados. A vítima sacou R$ 2.300,00 (dois mil e trezentos reais) para o pagamento, sendo que o namorado se apoderou dos valores para fazer os pagamentos, mas não o fez. Em seguida, o namorado insistiu que Joaquina vendesse objetos de sua própria casa, para que comprassem mobília para a nova residência. A vítima realizou o pedido e repassou os valores ao namorado, que se apropriou parcialmente dos valores.
No mesmo mês, o ofensor levou a vítima ao banco novamente e a fez retirar 06 (seis) folhas de cheques em branco e sem assinatura e apoderou-se delas, afirmando que eram para caução do aluguel da casa que alugariam para o casal.
Após receber esses valores e cártulas bancárias, o namorado começou a progressivamente se ausentar da convivência com Joaquina, informando que a mãe dele sofrera um derrame, estava internada e precisava de seu auxílio presencial. Ele insistiu que a vítima deixasse seu emprego para receber o FGTS e dedicar-se ao novo relacionamento. Apesar de o empregador dela não haver concordado, Joaquina pediu demissão.
Joaquina finalmente se mudou para a casa prometida, oportunidade em que o namorado pediu a ela para assinar vários documentos no cartório, que foram assinados na confiança de que ele estaria realizando gestões em favor do casal. O namorado nunca se mudou para o novo imóvel, sequer chegou a pernoitar no domicílio, ao argumento de que precisava cuidar da genitora doente.
Joaquina conseguiu um novo emprego, tendo o namorado a convencido para que entregasse a ele todos os seus cartões bancários, cartão-alimentação e seu salário, pois caberia a ele administrar as finanças da relação. Contudo, ele se apropriava dos valores, não pagava todas as despesas e deixava a vítima em situação precária. Quando a vítima decidiu trazer suas filhas para morarem no domicílio, o investigado reclamou do aumento dos gastos.
Diante da não presença do namorado e da apropriação de bens, Joaquina decidiu romper a relação. Porém, logo depois, percebeu que entraram 5 cheques em sua conta bancária que não haviam sido por ela assinados, estes foram emitidos sob as ordens do ofensor durante o relacionamento. O prejuízo total de Joaquina foi estimado em, no mínimo, em R$ 25.000,00 (vinte e cinco mil reais).
No momento do registro da ocorrência, a vítima não sabia o nome completo do ofensor ou seu endereço, tampouco conhecia familiares dele. Durante o relacionamento, o namorado fazia uso frequente de álcool e tinha comportamento fisicamente agressivo com Joaquina.
Após o registro policial, a vítima apresentou dados de transferências bancárias, mencionou locais os quais o investigado costumava frequentar e juntou fotos do estelionatário. Todavia, após diligências, a polícia não conseguiu localizar e identificar o ofensor, o que inviabilizou a realização de exame grafotécnico quanto aos cheques emitidos. Ao final, o inquérito tramitou por 03 (três) anos e 01 (mês) e foi arquivado por insuficiência de provas quanto à identidade do ofensor, bem como se argumentou que haveria incidência da escusa absolutória que impede a punição do cônjuge, argumentando-se que haveria indícios de possível relação de união estável (mesmo o estelionatário nunca ter chegado a efetivamente coabitar com a Joaquina).
5.3 EMÍLIA E CATARINA SÃO SEDUZIDAS POR JUAN
Emília, mulher parda, de 19 anos, atendente de comércio, conheceu Juan, de 24 anos, em um aplicativo de relacionamentos, e, após o primeiro encontro, já iniciaram uma relação de namoro. Ele se apresentou a ela como um conhecedor de aplicações financeiras. Após 18 dias de namoro, Juan convenceu Emília a dar-lhe R$ 150,00 (cento e cinquenta reais), sob a promessa de que os valores triplicariam em um mês. Em seguida, convenceu-a a entregar-lhe o aparelho celular para instalação de aplicativo de investimentos. Todavia, quando Emília contatou Juan para saber quando seu celular seria devolvido, ele a bloqueou e não mais respondeu suas mensagens.
Uma semana após ter dado o golpe em Emília, Juan já iniciou nova relação afetiva com Catarina, uma mulher branca, estudante, de 18 anos, que conheceu em um bar, onde ele tinha livre acesso e afirmava ser um dos sócios. A relação com Catarina rapidamente evoluiu de encontros casuais para um pedido formal de namoro. Juan novamente se apresentou como um conhecedor de aplicações financeiras, convencendo a vítima a realizar investimentos dessa natureza. Aproveitando-se da relação de confiança derivada do namoro, Juan apropriou-se do cartão bancário da vítima, dizendo que a próxima aplicação deveria ser feita diretamente na empresa, oportunidade em que realizou gastos com o cartão. Finalmente, Juan convenceu Catarina a realizar lhe um empréstimo. Durante o relacionamento, o autor chegou a comparecer à residência da vítima e a conhecer seus genitores, com o fim de ganhar sua confiança. Juan tentava convencer Catarina a pedir dinheiro emprestado e a usar o cartão de crédito dos genitores, dizendo que ela não deveria falar dos supostos investimentos para nenhum familiar. Sempre que era cobrado sobre os valores devidos, ele se zangava e pressionava a vítima dizendo “você não confia em mim”, até que, após algum tempo, a vítima percebeu que caíra em um golpe. No total, Juan apropriou-se de mais de dois mil reais de Catarina.
Na delegacia, Catarina manifestou interesse na concessão de medidas protetivas de urgência, as quais foram indeferidas pelo juízo, sob o argumento de que o ilícito seria de natureza meramente patrimonial, supostamente “sem motivação de gênero”. Apenas na audiência de instrução e julgamento, já mais de dois anos após os fatos, houve o deferimento da medida protetiva de urgência.
No processo criminal de Emília, Juan confirmou que namoravam, alegou que perdeu o celular dela, que se dispôs a pagar o prejuízo, mas supostamente ela teria informado que não desejaria receber. No processo criminal de Catarina, apresentou defesa semelhante, alegando que realizou os gastos com autorização da vítima, dispôs-se a devolver os valores, mas, com o término do relacionamento, Catarina o teria bloqueado e supostamente se recusado a receber os valores.
Tanto no caso de Emília como de Catarina, a investigação criminal consistia, basicamente, das declarações da vítima e dos documentos bancários que elas apresentaram, seguidos do silêncio do réu. Em ambos os casos, o Ministério Público denunciou Juan por estelionato em contexto de violência doméstica contra a mulher. O tempo de tramitação do inquérito policial (dos fatos ao recebimento da denúncia) foi de apenas 5 meses no caso de Emília, e de 1 ano e 8 meses no caso de Catarina. Ao final, o Juizado condenou Juan às penas de 01 (um) ano e 02 (dois) meses de reclusão, para cada um dos crimes, em regime aberto. Também foi fixada indenização à vítima na condenação criminal, nos valores de 1 e 2 salários-mínimos, respectivamente. Todavia, no caso de Emília, a Defesa recorreu e o TJDFT reduziu a indenização para apenas R$ 500,00 (quinhentos reais).
5.4 RELAÇÕES DE GÊNERO NO ESTELIONATO SENTIMENTAL: DEPENDÊNCIA AFETIVA, EXIGÊNCIA DE CUIDADO E GESTÃO MASCULINA DO PATRIMÔNIO
Em todos os casos apresentados, o ofensor procurou confundir a vítima com urgências, janelas curtas de oportunidades imperdíveis ou invocando o poder de gestão masculina do patrimônio. Claramente as relações de gênero favoreceram a prática do golpe.
O caso de Antônia é um caso clássico de romance scam, o ofensor simulou falsa identidade na internet, fez promessa de casamento e trouxe uma narrativa de tragédia para obter socorro da vítima. Esse argumento mobiliza sentimentos de cuidado na mulher, sob o pressuposto de que ela tem o dever de “investir” na relação, ajudando o futuro companheiro. Como visto na pesquisa, em 41% dos casos, houve empréstimos ao ofensor e, em 30,7%, houve simulação de uma emergência.
No caso de Joaquina, o namorado expressamente invocou o poder masculino de gestão do patrimônio do casal. O ofensor também utilizou como técnica do golpe o abuso psicológico, ao tentar afastar a vítima de seus familiares e, inclusive, de sua fonte de renda, bem como informou falsa identidade profissional, estratégias usuais em contextos de estelionato sentimental (Coelho, 2023). Sendo Joaquina uma mulher preta, há possível intersecção de gênero e raça, gerando maior vulnerabilidade afetiva; a confiança e a esperança no relacionamento eram tamanhos que o ofensor não revelou sua identidade e a relação se estendeu por cerca de um ano, mesmo com sinais mais claros de possível abuso financeiro.
Os casos de Emília e Catarina ilustram o estelionato sentimental habitual, consistente nas investidas pelo “Don Juan” em múltiplos relacionamentos de curta duração, seguidos da solicitação de vantagens indevidas às mulheres, aqui com uso da estratégia de promessas de investimentos de elevado retorno. O início da relação afetiva mobilizou sentimentos gendrados de se entregar ao novo amor, e o ofensor expressamente colocava em xeque a ausência de confiança plena como sinônimo de falta de amor. Como visto (Tabela 8), em 48,7% dos golpes, o ofensor diretamente exige confiança financeira pela mulher como prova do amor.
As relações de gênero são construções sócio-histórico-culturais, que estabelecem o homem como o centro de autoridade nas relações afetivas e familiares e atribuem à mulher uma posição secundária de submissão. As representações sociais sexistas atribuem aos homens o poder de administração dos bens móveis e imóveis do casal, situação que historicamente remonta ao pátrio poder romano (Maldonado-García et al., 2020). Ainda hoje, práticas culturais tradicionais em contextos rurais excluem mulheres da herança familiar (Flores Hernández; Espejel Rodríguez, 2012). A divisão sexual do trabalho atribui às mulheres as funções não remuneradas de cuidado e trabalho doméstico ou, ainda quando trabalham, recebem salários mais baixos que os dos homens (Ludermir; Souza, 2021). A gestão masculina do patrimônio conjugal possui relação direta com a manutenção de contextos de violência doméstica e de precarização da vida das mulheres (Ludermir; Souza, 2021). Como consequência, muitas mulheres ficam presas em relações violentas em razão de sua dependência financeira ou pelo medo de perderem direitos patrimoniais (Santos; Bugai; Karpinski, 2022).
Segundo Zanello (2018), as relações de gênero interiorizam nas mulheres dois dispositivos de controle, o dispositivo materno e o dispositivo amoroso. Pelo dispositivo materno, mulheres são condicionadas a cuidar (dos filhos, dos companheiros, dos familiares), portanto, a serem um ser para os outros e não um ser para si. Segundo o dispositivo amoroso, mulheres são condicionadas a estar em uma relação afetiva, de forma que o “ser amada” e estar bem colocada na “prateleira do amor” faz parte central do ethos feminino (Zanello, 2018, p. 87). Afirma: “para as mulheres, o amor diz respeito à sua identidade, como experiência vital. O amor, em nossa cultura, apresenta-se como a maior forma (e a mais invisível) de apropriação e desempoderamento das mulheres” (Zanello, 2018, p. 83).
Durante muito tempo, o Direito expressamente atribuiu ao homem o poder de administrar o patrimônio familiar, cabendo à mulher a função de cuidadora dos filhos e anciãos. Ao se submeter à autoridade masculina, a mulher se torna digna de ser por ele protegida. Nesse sentido, “o matrimônio é das mulheres e o patrimônio é dos homens” (Flores Hernández; Espejel Rodríguez, 2012, p. 8). Apenas com a Constituição de 1988 se elevou a nível constitucional o princípio da igualdade plena entre homens e mulheres.
Conforme Flores Hernández e Espejel Rodríguez (2012, p. 8), “o controle do patrimônio familiar pelo homem inevitavelmente coloca em suas mãos a autoridade para tomar decisões, e o coloca como o controlador, com direitos de propriedade sobre mulheres e crianças”. Mesmo após sua revogação, essas instituições jurídicas de poderio masculino de gestão patrimonial persistem nas representações sociais, criando dispositivos de controle que condicionam as mulheres a aceitarem como natural o poder masculino, bem como fomentam violências disciplinares às mulheres que contra elas se rebelam. Assim, não confiar na gestão patrimonial masculina significaria não amar totalmente o homem, por não se entregar a ele, colocando em xeque o objetivo feminino de estar em uma relação afetiva.
A gestão patrimonial masculina naturalmente retira das mulheres o poder de conhecimento sobre as informações relevantes quanto ao patrimônio, levando-as a confiar naquilo que o homem lhes afirma. Esse conhecimento permite aos homens ocultar bens ou negar à mulher sua parte na divisão dos bens adquiridos durante a união (Carmen; Magdalena, 2021).
Especificamente no caso de Antônia, as relações de internet potencializaram as ferramentas para o estelionatário localizar uma vítima, descobrir informações de sua vida privada em redes sociais, montar uma cilada digital, bem como transferir recursos financeiros digitais para canais de difícil rastreamento (Rondon Filho; Khalil, 2021).
Para além do prejuízo financeiro, esses golpes geram feridas emocionais graves, em razão da desilusão sentimental e da vergonha da mulher perante familiares por ter entregado valores significativos a um enganador. Assim, esta também é uma forma de violência psicológica, o que, muitas vezes, inibe o reporte do crime às autoridades diante da vergonha e da autoculpabilização (Rondon Filho; Khalil, 2021; Costa; Tomazzetti, 2022). Como visto, em 35,9% dos casos, houve um contexto de medo ou intimidação (Tabela 9) e, em um quinto dos casos, houve concurso do estelionato com o crime de ameaça (Tabela 10).
O reconhecimento da existência de relações de gênero nos casos de estelionato sentimental problematiza o afastamento da incidência do sistema protetivo da LMP em praticamente um quarto dos casos (23,1%, cf. Tabela 11).
5.5 DEFICIÊNCIAS NA PERSECUÇÃO PENAL DO ESTELIONATO SENTIMENTAL
Os resultados processuais dos casos sinalizam o elevado risco de ausência de resposta pelas instâncias formais e as graves dificuldades associadas à investigação criminal do estelionato sentimental.
Em relação ao caso de Antônia, a investigação exigiria complexas técnicas de quebra de sigilos em internet e rastreio de depósitos bancários, com o elevado risco de as informações se perderem rapidamente, tornando a investigação do estelionato praticado pela internet especialmente complexa. Sem a necessária especialização do corpo policial para a célere investigação em meio digital, as chances de sucesso serão diminutas.
No caso de Joaquina, diligências importantes para a qualificação do ofensor não foram prontamente realizadas. Não consta dos autos que tenha sido solicitado à vítima a indicação de testemunhas, nem foram interrogadas pessoas supostamente envolvidas, como os familiares da ofendida e seus antigos colegas de trabalho. Tampouco foi solicitado à vítima a juntada de capturas de tela ou outras mídias mostrando o namorado com dados que pudessem levar à identificação. Ademais, como a vítima informou contas bancárias e o número de telefone do agente, teria sido possível a intimação de empresas e órgãos públicos competentes para compartilhar as informações afetas ao titular desses dados, ou seja, após 3 anos e 1 mês de investigações, o caso foi arquivado, apesar de ainda haver diligências possíveis para seu esclarecimento.
Os dados indicam que 61,5% dos 39 casos analisados foram arquivados, com baixa utilização das ferramentas de medidas cautelares investigativas, como interceptação telefônica, quebra de sigilo de internet, bancário, fiscal ou telefônico (em apenas 10,3% dos casos). Em quase metade dos casos em que o Ministério Público promoveu o arquivamento por insuficiência de provas, ainda havia diligências possíveis de serem realizadas.
Apresentou-se problemática a persistente aplicação da regra do Código Penal de 1940, que estabelece que não se punem os cônjuges que praticam crimes patrimoniais sem violência, a qual esteve presente em um quinto dos arquivamentos. Trata-se de tolerância institucional à violência patrimonial contra as mulheres.
Também foram verificadas valorações divergentes sobre a palavra da vítima e necessidade de maior incorporação da perspectiva de gênero pelos profissionais do sistema de justiça (Brasil, 2021). Enquanto em muitos casos houve arquivamento por insuficiência de provas, porque se tratava de versões contrapostas, nos casos de Emília e Catarina, essas mesmas provas foram suficientes para sustentar uma acusação e condenação.
Apesar das diretrizes relacionadas à necessidade de proteção processual à mulher (ONU Mulheres, 2016; Brasil; COPEVID; COMJIB, 2016; Brasil, 2021), em apenas metade dos casos em que a vítima solicitou medidas de proteção pessoal elas foram deferidas e, em apenas três casos (7,7%), houve alguma preocupação no deferimento de medidas de proteção patrimonial.
Esses achados indicam que as chances de a mulher ter suas expectativas de proteção, ressarcimento e responsabilização contempladas ao acionar o sistema policial e de justiça são diminutas. Há uma rota crítica para as mulheres que experimentam violência patrimonial (Carmen; Magdalena, 2021).
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa de análise documental de 39 casos de estelionatos sentimental ocorridos no DF, durante os anos de 2019 e 2020, verificou que há um perfil específico para as mulheres que denunciam o crime: mulheres brancas (53,8%), de meia idade (maioria entre 25 e 44 anos), moradoras de bairros de classe média-alta ou alta (61,9%), com profissões estabelecidas e renda superior a três SM (59%). Chama a atenção que quase um quarto das vítimas eram profissionais de saúde, o que exige políticas públicas específicas a este público.
A conquista da autonomia financeira é tida pelo movimento feminista como um pressuposto para a emancipação das mulheres. Todavia, verifica-se que o patriarcado organiza novas estratégias para seguir precarizando a existência das mulheres que desafiam os tradicionais estereótipos de gênero, ao conquistarem a autonomia financeira. Abusando de dispositivos gendrados que incutem às mulheres papéis de cuidado ou de centralidade no investimento em relações afetivas, estelionatários inescrupulosamente abusam de relações afetivas para obterem vantagens patrimoniais ilícitas. O prejuízo nos 39 casos analisados soma 2,7 milhões de reais. Apesar de claramente haver um abuso sobre as relações de gênero para o estelionato sentimental, em 23,1% dos casos, houve afastamento da aplicação do sistema protetivo da LMP.
Em 35,9% dos casos, o golpe ocorreu em uma relação afetiva recente, de até 6 meses. A pesquisa indicou que o romance scamming (praticado inteiramente pela internet) foi residual (5,1%), apesar de, em um quinto dos casos, o relacionamento ter se iniciado na internet e prosseguido para a vida real. Verificou-se que os golpes estão centrados em enganar a vítima para ela entregar bens (48,7%), em falsificações materiais ou ideológicas (23,1%), ou em abusar do poder de fato que os homens ainda postulam para administrar o patrimônio do casal, antes, durante e após o relacionamento (66,7%).
A pesquisa documentou que as mulheres receberam proteção pessoal em apenas um terço dos casos e proteção patrimonial em apenas 7,7%. Em 23,1% dos casos, houve denúncia e, em 15,4%, houve algum tipo de responsabilização (SCP ou condenação). Em um décimo dos casos, houve condenação, à pena média de um ano e meio. A insuficiência de provas foi o principal argumento de arquivamento das investigações e, em geral, são casos em que a atuação policial se prolongou por mais tempo em comparação aos demais em que houve acusação pelo Ministério Público. Um quinto dos arquivamentos considerou que o golpe não teria configuração criminal, mas seria mero ilícito cível, e um quinto dos arquivamentos aplicou a escusa absolutória do Código Penal de 1940, que estabelece que não se pune o cônjuge que pratica crime patrimonial sem violência. Apesar da complexidade investigativa em razão do uso de internet ou transações bancárias, apenas um décimo dos casos teve medidas cautelares investigativas.
Há uma intervenção lenta. O tempo médio das investigações criminais que foram arquivadas por falta de provas foi de 708 dias, e, no contexto de sentença penal condenatória, a investigação durou 367 dias, seguidas de mais 522 dias de tramitação do processo.
O estudo revela que há uma rota crítica às mulheres que sofrem violência patrimonial, com baixa concretização do direito fundamental de acesso à justiça no contexto de estelionato sentimental, bem como que persistem resistências em se reconhecer as relações de gênero nesse nicho de criminalidade. Até Themis segue sendo enganada por Don Juan.
REFERÊNCIAS
ÁVILA, Thiago Pierobom de; GARCIA, Mariana Badawi. Análise quanto aos diferentes padrões decisórios de medidas protetivas de urgência nos Juizados de Violência Doméstica do Distrito Federal. Revista do MPDFT, n. 12, p. 85-133, 2022.
ÁVILA, Thiago Pierobom de; MEDEIROS, Marcela Novais; CHAGAS, Cátia Betânia; VIEIRA, Elaine Novaes; MAGALHÃES, Thais Quezado Soares; PASSETO, Andrea Simoni de Zappa. Políticas públicas de prevenção ao feminicídio e interseccionalidades. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 10, n. 2, p. 375-407, 2020.
ÁVILA, Thiago Pierobom de; SOUZA, Renee do Ó. Inconvencionalidade das imunidades patrimoniais no âmbito da violência doméstica e familiar contra mulher. In: FLACH, Michael Schneider (Org.). Direito Penal Contemporâneo: Escritos em Homenagem aos 40 Anos da Nova Parte Geral do Código Penal. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2024. p. 186-199.
BRASIL (Secretaria de Políticas para as Mulheres); COPEVID (Comissão Nacional de Promotores de Justiça de Violência Doméstica); COMJIB (Conferência de Ministros da Justiça Ibero-americanos). Diretrizes nacionais de investigação criminal com perspectiva de gênero: princípios para atuação com perspectiva de gênero para o ministério público e a segurança pública do Brasil. Madri: EuroSociAL, 2016.
BRASIL. Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero. Brasília: CNJ e ENFAM, 2021.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. RHC 42.918/RS. Relator: Min. Jorge Mussi, 5ª T., j. 5 ago. 2014.
BRAUN, Virginia; CLARKE, Victoria. Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, London, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006.
CARMEN, Diana Deere; MAGDALENA, León. De la potestad marital a la violencia económica y patrimonial en Colombia. Revista de Estudios Socio-Jurídicos, v. 23, n. 1, p. 219-251, 2021. DOI: https://doi.org/10.12804/revistas.urosario.edu.co/sociojuridicos/a.9900
COELHO, Maria Heloísa Castelo Branco Barros. O crime de estelionato sentimental e a constitucionalidade da sua tipificação à luz do direito à propriedade e da dignidade da pessoa humana. 2023. 129 f. Dissertação (Mestrado em Direito Constitucional) – Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, Brasília, 2023.
COSTA, Marli Marlene Moraes da; TOMAZZETTI, Letícia da Fontoura. O estelionato sentimental virtual: uma nova forma de violência contra as mulheres. In: COSTA, Marli Marlene Moraes da; SCHWINN, Simone Andrea (Org.). Temas emergentes em gênero e políticas públicas. São Paulo: Pimenta Cultural, 2022. p. 124-144.
DISTRITO FEDERAL. Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2021. Brasília: CODEPLAN, 2021. Disponível em: https://pdad2021.ipe.df.gov.br. Acesso em: 14 nov. 2023.
DISTRITO FEDERAL. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Acórdão 1141866. Apelação 20170710039550, rel. Des. Carlos Pires Soares Neto, rev. George Lopes, 1ª T. Criminal, j. 29/11/2018. Diário de Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 18 dez. 2018. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/tj-df/1209740892. Acesso em: 14 nov. 2023.
FEDERAL TRADE COMMISSION. Romance scammers’ favourite lies exposed. 2023. Disponível em: https://www.ftc.gov/news-events/data-visualizations/data-spotlight/2023/02/romance-scammers-favorite-lies-exposed. Acesso em: 14 nov. 2023.
FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Lei Maria da Penha: o processo penal no caminho da efetividade. São Paulo: JusPodivm, 2023.
FLORES HERNÁNDEZ, Aurelia; ESPEJEL RODRÍGUEZ, Adelina. Violencia patrimonial de género en la pequeña propiedad (Tlaxcala, México). El Cotidiano, n. 174, p. 5-17, 2012.
LUDERMIR; Raquel; SOUZA, Flávio de. Moradia, patrimônio e sobrevivência: dilemas explícitos e silenciados em contextos de violência doméstica contra a mulher. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 23, e202126, p. 1-25, 2021.
MALDONADO-GARCÍA, Viviana Leonor; ERAZO-ÁLVAREZ, Juan Carlos; POZOCABRERA, Enrique Eugenio; NARVÁEZ-ZURITA, Cecilia Ivonne. Violencia económica y patrimonial. Acceso a una vida libre de violencia a las mujeres. Iustitia Socialis: Revista Arbitrada de Ciencias Jurídicas, v. 5, n. 8, p. 511-526, 2020.
MENDES, Soraia da Rosa. Criminologia feminista: novos paradigmas. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2024.
ONU MULHERES. Diretrizes nacionais feminicídio: investigar, processar e julgar com perspectiva de gênero as mortes violentas de mulheres. Brasília: ONU, SPM/PR e Senasp/MJ, 2016.
RONDON FILHO, Edson Benedito; KHALIL, Karina Pimentel. Scammers: estelionato sentimental na internet. Revista Direito e Justiça: Reflexões Sociojurídicas, Santo Ângelo, v. 21, n. 40, p. 43-57, 2021.
SANTOS, Kátia Alexsandra dos; BUGAI, Fernandade Araújo; KARPINSKI, Mônica. “Você é seu próprio lar”: sobre moradia e violência patrimonial contra mulheres. Revista NUPEM, Campo Mourão, v. 14, n. 32, p. 100-115, 2022.
XIMENES, Angela Virgínia Brito; CAVALCANTI, Vanessa Ribeiro Simon. Descortinando invisibilidades: violência patrimonial e a fixação de alimentos para vítimas de violência doméstica. In: VASCONCELOS, Adaylson Wagner Sousa de (org.). Direito: ramificações, interpretações e ambiguidades. Ponta Grossa: Atena, 2021. p. 241-253.
ZANELLO, Valeska. Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação. Curitiba: Appris, 2018.
NOTA DE COAUTORIA
Notas de autor