Artigo
Recepción: 18 Septiembre 2024
Aprobación: 27 Noviembre 2024
DOI: https://doi.org/10.12662/2447-6641oj.v22i41.p147-175.2024
RESUMO
Objetivo: Na sociedade líquida, apenas o indivíduo mantém certa consistência. Sua vontade desejante parece ser a única realidade subsistente significativa. Essa realidade não é outra senão o que ele diz sobre si mesmo. A autonomia individual gera um novo fundamento de legitimidade política, inclusive na geração de “novos” direitos pela lei posta. Sem uma ordem natural, isto é, sem uma realidade pré-existente que dê alcance, fim e medida às nossas ações, a liberdade identifica-se como sendo a mera ausência de obrigações ou vínculos, resta indeterminada, carece de um sentido externo como um "termo" para si mesma e, portanto, não se distingue da vontade que a move. Liberdade e vontade passam a se confundir e, assim, esse novo quadro existencial oferece uma nova fronteira para a lei na captação da real juridicidade humana, ao mesmo tempo em que levanta a discussão acerca da legitimidade dos direitos-desejo como fonte desta mesma juridicidade humana e das tensões geradas para o bem comum.
Metodologia: O estudo do tema proposto desafia a utilização da metodologia realistafenomenológica-hermenêutica, no afã de se compreender a natural juridicidade humana – a qual não consiste numa criação da sociedade ou do poder, mas decorre da própria condição de ser humano – e, assim, colocar luzes mais nítidas e profundas na análise do fenômeno dos direitos-desejo.
Resultados: Esperamos produzir, selecionar e sistematizar referências bibliográficas basilares, indicar potencialidades analíticas e interpretativas aos investigadores do tema dos direitos-desejo que se preocupam com uma formação acadêmica voltada para o justo concreto, de modo a ampliar, por intermédio desta pesquisa, o acervo teórico que configura as fronteiras dessa importante área de estudos no campo do direito, lastreada sobre alicerces teóricos sólidos, críticos, clássicos e atualizados.
Contribuições: A partir de uma investigação jusfilosófica sobre as noções de ser humano, liberdade, vontade, direito e lei, além de suas expressões e identidades, nossa pesquisa tem a intenção de recuperar o estado da arte da real juridicidade humana, uma realidade decorrente da qualidade nomófora do homem, e, como efeito, procurar demonstrar que fundir juridicidade com legalidade voluntarista, premissa dos direitos-desejo, provoca uma série de tensões e abalos no respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Palavras-chave: Ser humano, liberdade, vontade, direitos-desejo.
ABSTRACT
Objective: in a liquid society, only the individual maintains a certain consistency. His desiring will seems to be the only significant subsistent reality. This reality is none other than what he says about himself. Individual autonomy generates a new basis for political legitimacy, including the generation of “new” rights through the law. Without a natural order, that is, without a pre-existing reality that gives scope and measure to our actions, freedom identifies itself as the mere absence of obligations or bonds, remains undetermined, lacks an external meaning as a “term” for itself and, therefore, is indistinguishable from the will that moves it. Freedom and will begin to merge and, thus, this new existential framework offers a new frontier for law in capturing real human juridicity, while at the same time raising the discussion about the legitimacy of desire-rights as a source of this same human juridicity and the tensions generated within the common good.
Methodology: the study of the proposed theme challenges the use of the realistic-phenomenological-hermeneutic methodology, in an effort to understand the natural human juridicity – which is not a creation of society or power, but derives from the very condition of being human – and, thus, to shed clearer and deeper light on the analysis of the phenomenon of desire-rights.
Results: we hope to produce, select and systematize basic bibliographical references, indicate analytical and interpretative potentialities to researchers of the theme of desire-rights who are concerned with an academic training focused on concrete justice, in order to expand, through this research, the theoretical collection that configures the frontiers of this important area of studies in the field of right, based on solid, critical, classical and updated theoretical foundations.
Contributions: based on a legal-philosophical investigation into the notions of human being, freedom, will, right and law, as well as their expressions and identities, our research aims to recover the state of the art of real human juridicity, a reality resulting from the nomophoric quality of man, and, as an effect, seek to demonstrate that merging juridicity with voluntaristic legality, the premise of desire-rights, causes a series of tensions and disruptions in respect for the principle of human dignity.
Keywords: Human being, freedom, will, desire-rights.
RESUMEN
Objetivo: en la sociedad líquida, sólo el individuo mantiene una cierta coherencia. Su voluntad deseante parece ser la única realidad subsistente con sentido. Esta realidad no es otra que lo que él dice de sí mismo. La autonomía individual genera una nueva base de legitimidad política, incluida la generación de “nuevos” derechos por ley. Sin un orden natural, es decir, sin una realidad preexistente que dé alcance y medida a nuestras acciones, la libertad se identifica como la mera ausencia de obligaciones o vínculos, queda indeterminada, carece de significado externo como "término" por sí misma y, por tanto, no se distingue de la voluntad que la mueve. Libertad y voluntad comienzan a confundirse y, así, este nuevo marco existencial ofrece una nueva frontera para que la ley capture la real juridicidad humana, al mismo tiempo que plantea la discusión sobre la legitimidad de los derechos-deseo como fuente de esa misma juridicidad humana y las tensiones generadas en el seno del bien común.
Metodología: el estudio del tema propuesto cuestiona el uso de la metodología realistafenomenológico-hermenéutica, en el deseo de comprender la juridicidad humana natural – que no consiste en una creación de la sociedad o del poder, sino que surge de la condición misma del ser humano – y, por lo tanto, aportando conocimientos más claros y profundos al análisis del fenómeno del derechos-deseo.
Resultados: se espera producir, seleccionar y sistematizar referencias bibliográficas básicas, indicando potencialidades analíticas e interpretativas a investigadores del tema del derechos-deseo que se preocupan por la formación académica centrada en el justo concreto, con el fin de ampliar, a través de esta investigación, la collección teórica que marca los límites de esta importante área de estudio en el campo del derecho, basada en fundamentos teóricos sólidos, críticos, clásicos y actualizados.
Aportes: a partir de una investigación filosófica sobre las nociones de ser humano, libertad, voluntad, derecho y ley, además de sus expresiones e identidades, nuestra investigación pretende recuperar el estado del arte de la real juridicidad humana, una realidad que surge de la nomofórica calidad del hombre y, como efecto, buscar demostrar que fusionar juridicidad con legalidad voluntarista, premisa del deseo-derecho, provoca una serie de tensiones y perturbaciones en el respeto al principio de la dignidad humana.
Palabras clave: Ser humano, libertad, voluntad, derechos-deseo.
1 INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas, notamos um inegável processo inflacionário dos direitos, fenômeno que contribuiu para sua banalização e, hoje, em muitos campos, para seu subsequente descrédito. Não é de estranhar que, por exemplo, a partir da terceira geração de direitos humanos, não haja mais acordo sobre o conteúdo e o alcance das próximas gerações de direitos humanos, que incluem desde os “direitos humanos” dos animais até as pretensões transhumanistas na mesma matéria.
Sabemos que isso se deve às ressignificações dadas ao conceito de “dignidade humana”: o amplíssimo consenso de que goza a noção de dignidade esconde uma discordância fundamental quanto ao seu significado genuíno. Apesar de seu sucesso, a “dignidade humana” não deixou de ser objeto de debate, alimentado, em grande parte, pela amplitude de sua definição e de seu fundamento, a ponto de muitos céticos e pessimistas salientarem que não passa de um mero slogan ideológico, um conceito vago que pretende disfarçar a falta de fundamento objetivo dos direitos humanos ou mesmo uma noção inútil que seria preferível abandonar em favor de uma definição legal. A ambiguidade quanto ao seu significado surge de um desacordo moral mais profundo sobre o que o homem é e o que constitui genuinamente seu valor.
Na linha multissemântica desse conceito, mas no campo dos direitos subjetivos, uma delas defende que indivíduo pode e deve, como cidadão, reivindicar do Estado seu “direito” de satisfazer um desejo que sente ser uma necessidade para o desenvolvimento adequado de sua personalidade no seio social: são os direitos-desejo. A emergência desta nova classe de direitos constitui a prova mais cabal desse processo inflacionário dos direitos, cujo efeito mais sensível foi justamente o de transformar radicalmente todo o sistema de justiça dos direitos humanos.
A expressão “direitos-desejo” tem sido manejada na literatura jurídica por três autores europeus: Aniceto Masferrer1, Grégor Puppink2 e Fernando Yarza3. Eles, cada qual a seu modo, ressaltam a relevância que o desejo tomou no Direito em termos de juridicidade, a ponto de concluírem que, atualmente e em muitas realidades jurídicas, a partir da perspectiva do cidadão, “meu desejo é a lei”. Nesse sentido, segundo tais estudiosos, os direitos-desejo fazem parte dos direitos de quinta ou sexta geração dos direitos humanos e têm levado à reivindicação de direitos derivados que, em alguns casos, não são sequer humanos, dado que seus titulares são a flora ou a fauna terrestres e, em outros, soam pouco coerentes com a condição humana, como o aborto livre, o que, para alguns críticos, constituem-se, em ambos os casos, em direitos desumanos.
Alguns desses direitos, sejam humanos ou deles derivados, seriam o resultado de reivindicações individuais que não careceriam de força normativa natural, como o direito humano dos animais? Outros, por gozarem do apoio de acadêmicos e de suas teorias antropológicas ou jurídicas, como os direitos transhumanos, não seriam um tanto atentatórios à nossa própria dignidade? E outros direitos não seriam o resultado de lobbies poderosos que tentam moldar uma nova ordem jurídica mundial à imagem à semelhança de sua ideologia, como o direito humano à paixão e ao êxtase? Aprofundaremos essas hesitações nos próximos tópicos.
2 A LEI NATURAL
Na ordem da realidade, existe um plano do ser do homem em que ele se manifestase como um ser dotado de razão, vontade e consequente liberdade. Essa órbita é de natureza distinta daquelas esferas de seu ser regidas estritamente por leis físicas e biológicas. Essa esfera do agir humano é conhecida como dimensão da personalidade, em que a pessoa que existe no ser do homem atua com protagonismo e segundo princípios próprios: sua conduta é pautada por atos que nascem de sua autodeterminação ou de decisões tomadas livremente em seu contexto individual, familiar e social.
É um plano da realidade humana que goza de uma índole muito específica, à medida que compreende o homem na totalidade de seu ser – com suas faculdades operativas e funções intelectuais e corporais –, mas tensionada para um agir assentado no discernimento prático4 do bem e do mal em prol de sua realização como pessoa. Assim, a realidade moral –objeto de três grandes ciências práticas, a saber, a Moral, a Política e o Direito – é a esfera do livre agir do homem. A liberdade encontra seu princípio ativo e sua primeira regra de atuação no ser do homem, seu atributo peculiar. A liberdade não faz o homem, porque não lhe dá o ser. Pelo contrário, ela existe e se desenvolve no ser do homem. O ser do homem é livre e, portanto, a liberdade descansa numa dada natureza, que é seu suposto, isto é, sem natureza não haveria liberdade.
Propriamente, essa natureza humana é regra de liberdade, o que equivale a dizer que a liberdade localiza seu sentido e seu alcance no desenvolvimento segundo a natureza, porque, assim, realiza o homem e o aperfeiçoa. Em outras palavras, a natureza do homem é normativa para a livre atuação do homem. Posto isso, a razão humana, quando conhece a natureza do homem, capta o dado normativo dela e emite ditames imperativos: deve-se fazer isso e evitar aquilo. O conjunto de tais ditames da razão humana, que manda, proíbe ou permite um rol de condutas, segundo sua conformidade ou desconformidade com a natureza humana (seu ser e seus fins naturais), é chamado de lei natural.
O agir humano, naquilo que diz respeito à realidade moral, representa o dinamismo do ser do homem – sua estrutura ôntica – rumo a seus fins naturais. Como consequência, está de acordo com a lei natural toda atividade que respeita os fins naturais do homem, dos quais temos conhecimento, porque se manifestam em nós sob a forma de inclinações naturais (inclinatio naturalis). Assim, podemos conhecer a lei natural quando nos damos a conhecer tais inclinações.
Eis as mais importantes e influentes na realidade atual do ser humano:
a) inclinação à conservação do ser. Também conhecida por instinto de conservação. A partir dessa inclinação, deduzimos que a vida, a integridade física e moral do homem são direitos naturais, como também o é a saúde. Assim, o homicídio, o dano físico ou moral, o aborto e o suicídio são contrários à lei natural;
b) inclinação ao matrimônio. Matrimônio fundado no amor entre uma mulher e um homem, aberto à procriação e à educação dos filhos. Dessa inclinação, deduzimos que o “poliamor”, o divórcio, a afetividade como marco regulatório do casamento, o casal homossexual, os métodos contraceptivos artificiais, a família patchwork, o abandono material ou intelectual da prole, entre tantas outras práticas observadas na sociologia familiar, são contrários à lei natural;
c) inclinação à religião. Dessa inclinação, deduzimos o direito à liberdade religiosa na arena privada e pública, à separação entre Igreja e Estado, ao legítimo campo de atuação autônomo do direito canônico, além da laicidade política;
d) inclinação ao trabalho. Dessa inclinação, deduzimos o direito a uma profissão, a um salário justo, à dignidade humana nas relações entre capital e trabalho, à greve, às condições salubres de trabalho e à aposentadoria;
e) inclinação à socialização. Dessa inclinação, deduzimos o direito às várias formas associativas, à subsidiariedade entre Estado e sociedade, às inúmeras formas de governo, à legitimidade do poder constituído de forma justa e à privacidade dessas organizações sociais;
f) inclinação à comunicação. Dessa inclinação, deduzimos o direito à verdade, à boa fama (com seu reflexo penal na presunção de inocência), à liberdade de expressão, à objeção de consciência e ao direito de resposta;
g) inclinação ao conhecimento. Dessa inclinação, deduzimos o direito à cultura, à arte, à educação, ao descanso e à liberdade de ensino.
É evidente que podemos questionar a dita normatividade da natureza humana, já que os outros seres do mundo vivente – dos reinos vegetal e animal –, porque destituídos de razão, vontade e liberdade, agem, compreensivelmente, segundo uma normatividade estrita que lhes é própria, pautada por leis físicas e biológicas, diferentemente do homem, pois dotado justamente daqueles atributos faltantes à árvore e ao cavalo. Parece-nos razoável tratar cada coisa segundo sua própria natureza. Seria estranho jogar tênis com peças de xadrez ou jogar xadrez com um par de raquetes e uma bola. Desse modo, não fazemos, nesses exemplos, qualquer alusão à lei moral, mas à arte que envolve essas coisas.
Com o homem, não se daria o mesmo? Não seria estranho ver um homem a pastar no campo ou resolver conviver entre macacos? Ele poderia fazer isso? Sim, no sentido de uma arte ou técnica5. Ele poderia até desenvolver um metabolismo vegetariano ou mesmo uma nova linguagem para símios. Contudo, no sentido moral, a resposta seria não. Para o homem, agir segundo sua natureza ou ser tratado conforme ela é muito mais que uma arte ou técnica. É uma demanda de sua natureza, que transforma em deveres as condutas que tendem o homem ao cumprimento de seus fins naturais e, em vedações, as condutas contrárias.
O fundamento disso reside na natureza racional do homem. Como o homem é pessoa, sua dignidade, que deriva de seu ser e de seus fins, exige dele um agir e o obriga a ser tratado de uma determinada maneira. As regras daí decorrentes constituem a lei natural. A lei natural supõe que o homem tenha, como efeito de sua liberdade, a faculdade de se autorregular. Como consequência, a lei natural não abraça toda a atividade possível do ser do homem e nem todo o âmbito de incidência das leis.
Como a lei natural é uma lei da liberdade e para a liberdade, ela mesma possibilita aos homens a criação de outra categoria de lei, a saber, a lei positiva, porque posta pelo próprio homem na realidade concreta em que vive e convive. Então, aqui salta aos olhos a função específica da lei natural: ela é o fundamento e requisito de validade de toda ordem política e de todo ordenamento jurídico.
A lei natural, como a metafísica, é inevitável. Existe uma voz que clama na consciência do homem e que revela que, acima de toda legalidade positiva de conteúdo histórico variável, existe outra que se ajusta a uma dada ordem de princípios e de valores absolutos, a imperar indeclinavelmente, mais além vida efêmera e transitiva de que gozam homens e povos. Entendida dessa forma, a lei natural designa os preceitos que orientam e prescrevem os modos universais de preservar com integridade o bem humano, pela via do discernimento prático, feito pela razão, do bem e do mal.
A lei natural significa, portanto, os princípios da razão prática com base nos quais dá-se um guia cognitivo para as tendências humanas rumo à virtude moral. A lei natural é uma lei da razão prática e, com isso, queremos dizer que se trata de uma regulação da razão prática do homem que estabelece os critérios pertinentes para a condução das tendências e ações humanas e para traçar a diferença entre bem e mal nelas e, por isso, pode ser visto também como o conjunto dos princípios cognitivos da virtude moral, na qual se entrelaçam as dimensões desejante e felicitária do homem.
3 O DESEJO E A FELICIDADE
Elevar certas reivindicações ou interesses meramente individualistas – como, por exemplo, aqueles relacionados à vida, à sexualidade ou à fauna – à categoria de direitos humanos não poderia significar uma descida ribanceira abaixo no marco dessa importante categoria jurídica e, ao cabo, conduzir à crise dos direitos humanos?
Elevar ao nível de direito humano o desejo de ter um filho por qualquer meio e a qualquer custo, como a criopreservação de óvulos e embriões, deixar de ter outro por procedimento abortivo, eliminar um familiar doente e que só dá trabalho, refazer a própria imagem estética, submeter-se a uma cirurgia de redesignação sexual etc., não representariam o descrédito do conceito de direitos humanos? E o mesmo não se daria nas derivações desses direitos, como o direito ao nome social, em prejuízo da experiência jurídica que uma sociedade teria num determinado tempo e espaço? Não haveria um fator de discrímen que qualificaria um direito como autenticamente tal, a fim de afastar meros desejos individualistas da alçada de juridicidade da lei?
Não se trata de menosprezar o papel do desejo na vida humana. O desejo, que não se confunde com a vontade6, é uma parte importante de nossa antropologia – desde que iluminado por uma reta razão –, mas ele não pode ser galvanizante de nosso agir prático, como uma espécie de norte geográfico para orientar a práxis vital do indivíduo. Se ele for hegemônico na dinâmica antropológica razão-vontade-afetos, se tudo na existência de uma pessoa consistir na exclusiva satisfação de todo desejo, haverá o domínio despótico dos desejos nesta dinâmica e, ao cabo, esta satisfação será erigida à condição de razão de fim do indivíduo.
Aristóteles distinguiu entre o desejo razoável – que deve ser levado em consideração como motor da ação humana – e o desejo ilimitado (a hybris), que, além de ser impossível ontologicamente em termos de realização, ainda leva o ser humano à sua perdição existencial mais cedo ou mais tarde. Nessa mesma linha, Aristóteles destacou ser o prazer um elemento importante da felicidade humana, embora bem atrás da virtude.
No nível dos sentidos, convém recordar que o prazer gera a busca de novos prazeres, uma vez satisfeitos os anteriores. O homem é o único animal que, se quiser, pode reiterar seus desejos sem necessidade orgânica. Um sujeito pode vomitar pelo prazer de continuar a comer, como era hábito em Roma, ou tomar um estimulante sexual pelo puro prazer libidinoso, como se dava nas fases de transe do culto à deusa Artemis em Éfeso.
Todavia, na sociedade atual, é difundida a ideia de que o elemento fundamental para a felicidade é o prazer. Quanto maior o prazer, mais felicidade: este é o cerne da filosofia utilitarista, a qual alimenta o pensamento moderno desde Bentham. Aqui, convém esclarecer a questão da moralidade do prazer.
De início, para esclarecer a questão da moralidade do prazer, é necessário afirmar que a felicidade e o prazer não se identificam. Não são intercambiáveis. Como bem assinalou Ricoeur (1997, p. 156), “enquanto os prazeres finalizam e aperfeiçoam uma série de afetos, que são atos e processos isolados e, portanto, parciais, finitos e pontuais, a felicidade implica na realização da plenitude humana e, portanto, tem um sentido integral, definitivo e infinito”.
A antropologia filosófica ensina que a realização humana está na integração, em benefício da unidade do eu, de uma pluralidade de instâncias operativas – razão, vontade e afetos –, cada uma das quais pode supor o prazer, se aceitarmos a definição aristotélica de prazer como o exercício da boa atividade. Entretanto, a felicidade é o efeito da integração unitária de tais instâncias e, logo, felicidade e prazer não são a mesma coisa.
Agora, é muito importante notar que o contraste entre prazer e felicidade não é o contraste entre o mal e o bem, mas entre o bom e o melhor. Não é que o prazer seja ruim, mas, visto desde a felicidade, ele é ontologicamente finito. O que a felicidade transcende é a bondade finita do prazer e, assim, a felicidade, salienta Aristóteles, é o máximo da bondade (finita) do prazer7.
No entanto, por outro lado, o prazer pode se tornar um perigo para a felicidade e, consequentemente, para a moralidade, porque sua instalação, na dinâmica humana, é a de um prazer finito e parcial, tida como resultado de uma atividade isolada, que pode se converter, como argumenta Ricoeur, em uma ameaça à totalidade da dinâmica do agir humano e, consequentemente, à felicidade, que se dá quando o prazer é perseguido exclusiva e diretamente, de maneira a paralisar o próprio gozo da atividade. No exemplo já citado, um romano, de tanto vomitar pelo prazer de comer uma iguaria exótica ou saborosa, perde, em algum momento, o próprio prazer de comer.
O prazer é efeito e não o fim último de uma atividade, órbita exclusiva da felicidade. O prazer, segundo Aristóteles8, é consequente e consome a atividade desenvolvida como uma espécie de ornamento que a ela se adere. Se um bem ou um fim humano determinado pela razão for negado, nossas inclinações não racionais (desejos e impulsos), as quais constituem a base do nosso agir, deixam de ser unificadas por um propósito racional e tornam-se elas próprias o guia último de nosso agir prático em sociedade.
Se não houver uma medida racional a partir da qual nossas inclinações sejam justificadas ou avaliadas – um telos objetivo – elas ficam despojadas de uma referência, que não a da satisfação dos desejos do indivíduo, e, aqui, ele começa a oscilar mentalmente entre o que Freud chamou de “princípio do prazer” (Lustprinzip) e o “princípio da realidade” (Realitätsprinzip).
Em suas formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, Freud alude a esses dois impulsos como os motivos elementares do comportamento humano. Para ele, assim como o ego-prazer não pode fazer nada além de desejar, trabalhar pelo prazer e evitar desprazer, o ego-realidade não precisa fazer nada além de lutar pelo que é útil e se proteger contra o mal. Para Freud (2016, p. 213), “em boa lógica, o princípio do prazer poderia ser chamado também de princípio do desejo, restando ao lado do princípio da realidade na mente de um indivíduo”.
A rigor, para Freud, o princípio do desejo goza de primazia sobre o princípio da realidade, o qual só surge em um segundo momento, como consequência da contradição produzida pela realidade, sem que implique abandono do princípio do prazer, mas assumindo foros de salvaguarda, porque mantém os desejos dentro dos limites estabelecidos pelo instinto de preservação. O motivo autêntico do agir humano consiste, então, em regra, na satisfação dos próprios desejos.
Se o prazer e a autopreservação compõem duas inclinações antropológicas elementares, a ideia de um telos para o indivíduo – o de uma existência vivida de acordo com uma reta razão, uma razão posta em conformidade com a lei natural – é apresentada como um fim que dá propósito ou sentido a essas inclinações, o que não se dá nos animais irracionais. Dito de outra maneira, se a racionalidade humana for eliminada da ordem dos fins, o ego-prazer tende a se expandir até que seja tomado como causa justificante do fenômeno dos direitos-desejo: meu desejo passa a ser a lei.
4 OS DIREITOS-DESEJO, A LIBERDADE E O BEM COMUM
Como chegamos ao nível dos direitos-desejo? Analiticamente, trata-se da resultante de um processo histórico e cultural complexo, o qual, robustecendo sem limites o império da liberdade do indivíduo, provocou o ocaso da noção de bem comum. Na primeira causa, a liberdade existencial foi reduzida à mera liberdade de escolha entre opções indiferentes – cujo efeito, na lei, foi o da maximização do sentido de direito subjetivo – e, na segunda, viver politicamente deixou de ser compartilhar a realização de um mesmo propósito comum, como efeito imediato da atomização social.
Por isso, hoje, falamos de um “direito irrestrito ao aborto”, “direito à eutanásia”, “direito a ter um filho por barriga de aluguel”, “direito de redesignação sexual”, “direito humano” das espécies animais em vias de extinção, etc., sem que se leve em consideração os efeitos práticos de tais “direitos” no universo do bem comum de uma sociedade.
No âmbito da liberdade, muitos dos desejos, além de atentarem contra algumas demandas naturalmente normativas – direito à vida, à dignidade da pessoa humana, etc. –, chocarem-se frontalmente contra a dinâmica antropológica em muitos níveis – dimensão sexual, cultural e familiar – ou serem extensivamente aplicados a situações carentes antropologicamente – ausência do elemento humano –, enfraquecem, a longo prazo, a capacidade de liberdade humana.
A liberdade, em sua órbita moral, é uma espécie de autocontrole adquirido que tem dois aspectos: o domínio dos desejos e a elevação ao bem comum. No homem, em oposição ao animal irracional, a exclusiva atenção ao próprio bem constitui uma efetiva servidão, porque a vontade humana, na qual a razão é pressuposta, goza de uma liberdade transcendental que lhe confere a capacidade de passar do bem privado ao bem comum e para integrar – não para negar – o segundo ao primeiro, instalando-o assim em um nível superior, ao que, necessariamente, ampliam-se os horizontes da capacidade de liberdade do indivíduo.
Em outras palavras, o autodomínio dos desejos permite ao indivíduo abrir-se ao bem comum – campo em que liberdade moral se descortina em liberdade política – assunto que desenvolveremos logo em seguida. Nessa dinâmica, a liberdade moral do homem só é valorizada por referência a um projeto comum, isto é, somente é avaliada como uma boa ou uma má liberdade na medida em que seus influxos e derivações favoreçam ou prejudiquem a realização do bem comum em sociedade.
É a aspiração a um bem comum – a um bem superior ao simples bem individual de cada um – o que torna (Macintyre, 1990, p. 197) “possível e necessário dispor de um modo de valorar moralmente as disposições e aptidões particulares da liberdade na práxis humana”. Sendo o homem social por natureza, sua condição social ou de membro de uma comunidade não pode ser eliminada ou suspensa quando refletimos sobre a liberdade humana.
Os diversos âmbitos – pessoal, profissional, familiar, estético, lúdico, etc. – em que o homem alcança tais graus de liberdade moral particular estão configurados em função do ethos arquitetônico e integrador que a polis produz e que se ordena ao bem comum político. Ser bom em termos de liberdade moral em cada um desses âmbitos parciais é o mesmo que administrar com excelência cada um deles para o máximo bem comum, o que, em última análise, significa ser um excelente cidadão: livre e comprometido com os destinos da comunidade política.
A síntese pessoal das várias perfeições morais do sujeito realiza-se praticamente na forma de excelência como cidadão, isto é, na forma de perfeição moral que corresponde ao homem em razão da sua condição citadina, a condição integradora das demais condições ou identidades que possa ter, pois é a condição que o homem adquire como membro da comunidade política, apta a integrar todas as outras anteriores.
Se, como pressuposto na ideia de direitos-desejo, entende-se a liberdade como a mera eleição de bens indiferentes, ao cabo, concebe-se a liberdade como um bem em si mesmo. Na linha de Mill (2002, p. 139), aprimorada séculos depois por Nozick (2020, p. 19), basta escolher para alguém ser livre, independentemente do bem escolhido, que pode, muitas vezes, consistir em um mal objetivo.
Conforme essa concepção de liberdade dos direitos-desejo, cada um seria livre para escolher o que quisesse, desde que os demais não fossem prejudicados. Dessa forma, todos os valores seriam igualmente bons para quem os escolhesse livremente, e o que tornaria uma ação correta seria o fato de ela ser escolhida livremente, assim, faria brotar a autenticidade do indivíduo no seio social.
Essa visão da liberdade sofre de várias objeções:
a) supõe a mais pura bondade da natureza humana para que seu agir espontâneo e livre sempre seja bom, o que se choca frontalmente com a experiência da inclinação ao mal que existe no homem desde sua origem e, uma vez ignorada, dá lugar a graves problemas na esfera da educação, da política, da ação social, dos costumes e, no caso dos direitos-desejo, da lei;
b) resulta na negação de valores objetivos, porque o único valor passa a ser a autenticidade no ato de escolha. Em termos morais, toda ação será relativa aos valores subjetivos adotados pelo indivíduo, e viver de acordo com esses princípios, normatizados pelos direitos-desejo, é a coisa certa a se fazer. A coerência subjetiva é mais valorizada do que o acerto objetivo de minha ação livre tensionada em prol do bem comum;
c) com o tempo, o pendor pela individualidade, que está na raiz dessa coerência subjetiva, acaba por se converter em individualismo e atomismo sociais, sem mais espaço para valores solidários ou mesmo pelo zelo do bem comum.
No mais, a visão de fundo dos direitos-desejo esquece que:
a) algumas ações humanas – e não todas – são fruto do mero exercício da liberdade de eleição ou escolha;
b) a eleição pode ser acertada ou desacertada, porque podemos eleger bem ou mal. Nem a espontaneidade e nem a autenticidade asseguram o acerto da escolha, porque necessitamos de uns critérios objetivos, lastreados em nossa natureza, para eleger segundo uns bens humanos aceitos e assumidos livremente9;
c) agir acarreta consequências e, em razão disso, é preciso ter em conta a ética da responsabilidade, segundo a qual nosso atuar influi em nossa esfera e na do outro, de sorte que, com nossas eleições ou escolhas, fazemo-nos melhores ou piores e a sociedade, por ricochete, aprimora-se ou degrada-se.
Em suma, em termos de exercício da liberdade, sendo nossa natureza o que nos torna seres sociais, a conformidade do agir com ela, as ações mais adequadas e perfeitas de nossa natureza serão encontradas nas melhores ações plasmadas pela melhor forma possível de vida social e, como efeito, repercutirão em prol do bem comum.
E o que é o bem comum? Falar, hoje, de bem comum parece ser uma quimera, sobretudo se levarmos em consideração os profundos desacordos morais que campeiam em nossas sociedades, o que levou Rawls (1971) a sugerir seu consenso entrecruzado como resposta e Habermas (1998) sua teoria da ação comunicativa como solução, este partindo do pressuposto que, se as ideias de verdade, liberdade e justiça inscrevem-se de forma quase transcendental nas estruturas da fala cotidiana, então, como a linguagem organiza a sociedade, logo, seria possível um livre consenso mediante o emprego de um discurso motivante das pretensões de validade das mais diversas opiniões acerca dos bens do mundo da vida.
Contudo, a quimera é apenas aparente. Cada comunidade é constituída para um fim ou bem comum. No caso de algumas comunidades intermediárias, o fim perseguido é uma realidade diferente da comunidade maior a que pertence, por isso, uma vez alcançado o fim, a comunidade cessa, porque busca um objetivo limitado, ocasional ou externo. Esse objetivo é uma atividade circunscrita e não é a própria comunidade maior.
Não é o caso da polis, já que a comunidade política não é uma comunidade com um objetivo específico, mas uma comunidade de vida. Ser membro da polis consiste em partilhar um modo de vida comum e, por não se ordenar a algo diferente de si mesma, só pode ser ordenada à própria perfeição. A polis não tem outra finalidade senão ela mesma, isto é, seu progressivo aperfeiçoamento como polis, como forma de vida plenamente humana. O bem comum político nada mais é do que o bem ou a perfeição da polis, ou seja, o bem ou a qualidade da vida comum na vida política.
Aquino (1995) afirma que o bem comum é “comum não por comunicação genérica ou específica, mas por comunicação de finalidade, isto é, enquanto fim comum10”. O bem comum não é comum por se participar dele em função do atendimento de umas qualidades ou de uns atributos, mas em razão de um propósito comum. Bem comum é fim comum.
O bem comum político, que é a própria qualidade da vida política, não é apenas uma característica que pode ser objetivamente afirmada acerca do modo de viver de uma pluralidade de indivíduos, mas é, permanentemente, a finalidade desse modo de viver como modo de viver em comum. Viver politicamente é compartilhar a realização de um mesmo propósito comum, que nada mais é do que o desenvolvimento e o florescimento desse modo de vida.
A qualidade da vida política mede-se pela riqueza de seu conteúdo, pela quantidade e pela qualidade dos bens que nela são compartilhados, pelas atividades que a compõem e é medida também pela facilidade com que se participa desses bens e pelo grau de sua efetiva universalização. O bem comum é um bem plural e inclusivo, ou seja, é a integração e a organização de uma pluralidade de bens. A polis é um todo internamente diverso, e, portanto, seu bem ou perfeição é, igualmente, um bem composto e articulado por uma pluralidade de bens.
A sociabilidade humana implica que o homem alcance sua atualização ou florescimento moral no seio da comunidade política. O bem humano é um bem comum. Os melhores e mais adequados bens do homem são os bens comuns, bens que só se realizam e se possuem em comum, isto é, são bens cuja realização consiste no aprimoramento das comunidades às quais o homem pertence. Quanto mais perfeito é um ser – ontológica e moralmente – mais capaz é do comum e mais comum é o seu próprio bem. A polis é a forma perfeita e arquitetônica da sociedade humana e, então, na perfeição da polis, o bem comum político será o supremo bem humano, o mais perfeito e abrangente.
Esta é uma ideia presente, de forma clara e sustentada, tanto em Aristóteles como em Tomás de Aquino. Para Aristóteles, o “fim da política é o próprio bem humano11”. E o bem da polis é o maior bem entre os bens propriamente humanos. Na mesma linha, Aquino (1995) aponta ser “a política a ciência máxima ativa e diretiva, apta a dirigir todas as demais, pois a política tem, por objeto, o último e perfeito bem do homem e o bem de um homem singular não tem caráter final último, mas é ordenado ao bem comum da comunidade perfeita12”. Dito de outra forma, o fim último do homem não é alcançável como bem individual.
O bem comum e o bem particular distinguem-se formalmente, como o todo e a parte, e tanto o bem do homem como das comunidades menores, como a família, são ordenados ao bem comum da polis como a parte para o todo, como o imperfeito para o perfeito. Esse princípio é repetido com insistência por Tomás de Aquinos13, e dele são tiradas numerosas conclusões éticas e políticas14. Também para Aristóteles, todas as comunidades fazem parte da comunidade política, e o fim dessas, de índole apenas parcial, é “ordenado ao da polis, de índole global15”.
A virtude da parte “deve ser considerada em relação à virtude do todo16”. Se o homem faz parte da polis, a bondade ou virtude do homem será definida em relação à bondade da polis, em relação ao bem comum. Com efeito, o “homem bom ou virtuoso é aquele que está bem-disposto para o bem comum17”. A virtude é um apetite racional para o bem, um modo prático de ser que nos dispõe corretamente em relação ao bem comum.
A pessoa virtuosa é caracterizada pelo fato de que seus desejos estão dispostos de forma equilibrada, segundo a reta razão. À luz disso, o desejo de um determinado bem é tido como correto se for tensionado ao bem comum, isto é, se aquele bem for desejado, com eficácia e precisão, como parte do bem comum. Quanto mais perfeito é um ser e quanto mais moralmente perfeito é o homem, mais tende para o comum. Por isso, como efeito contrário, a ascensão do fenômeno dos direitos-desejo provoca o retrocesso da ideia de bem comum.
A virtude ou a perfeição moral não consiste, estritamente falando, em buscar o bem alheio acima de seu próprio. A virtude leva aquele que a possui a desejar o melhor bem que pode ser seu. Amar um bem é ser capaz de captar o que é verdadeiro e operativamente seu, como fonte de sua própria perfeição ou, em última instância, como sua própria perfeição. O homem virtuoso ama mais e melhor, porque, realmente, tem, como seu, o melhor bem possível e isso significa “que se ama mais e melhor18”.
O progresso moral não consiste em passar do amor a si mesmo ao amor exclusivamente aos outros e nem mesmo consiste, estritamente falando, em amar os outros mais do que a si mesmo. Por isso, fora do bem comum, fica muito difícil compartilhar os bens comunitários da verdade, da justiça e da liberdade, porque, à luz da premissa dos direitos-desejo, a liberdade fagocita os outros dois bens e ocupa o assento que é próprio e exclusivo do bem comum.
Nesse sentido, o bem comum pode ser definido como o conjunto de condições civilizacionais que permitem ao indivíduo e à comunidade a que pertence atingirem sua perfectibilidade de um modo mais completo e adequado. Em sua dimensão temporal, podemos dizer que o bem comum gira em torno de três grandes princípios: o respeito pela pessoa e por seus direitos inalienáveis, o bem-estar comunitário dos indivíduos, das famílias e das sociedades intermediárias e a ordem política justa.
E é composto pelos seguintes sub-princípios:
a) bem particular e bem comum não se contrapõem: é preciso superar as aparentes contradições, a fim de otimizar ambos os bens, sob pena de anulação de uma das dimensões humanas, a pessoal ou a social;
b) igualdade dos sujeitos sociais ante o bem comum: os cidadãos situados no mesmo plano não podem ser privilegiados ante os outros e, nos demais, deve ser haver atenta observância a critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade;
c) limitação dos bens particulares ante as demandas do bem comum: no exercício dos direitos, como a propriedade, podem ser impostas certas e proporcionadas restrições desde que tenham, como razão final, o atendimento às demandas comunitárias;
d) gradualidade no implemento do bem comum: o bem comum deve redundar no benefício do conjunto de cidadãos, não do mesmo modo e no mesmo grau, motivo pelo qual os principais beneficiários devem ser os mais débeis e os mais necessitados nos distintos níveis vitais;
e) rol de valores concretos: evidentemente, matizados pela concreticidade e pela historicidade humanas, tais bens devem ser discernidos e assinalados sempre em prol da tutela daqueles três grandes eixos;
f) respeito à lei natural: se o bem comum está ligado ao exercício das faculdades operativas humanas na práxis social, como efeito lógico, é imprescindível que sua concretização deve respeitar os ditames da lei que rege tais faculdades, a saber, a lei natural, tema que não trataremos aqui por ultrapassar os limites da temática proposta.
Por isso, um ambiente político em que todas as considerações éticas foram expulsas em nome da primazia dos direitos-desejo, mais cedo ou mais tarde, esse mesmo ambiente voltaria contra a própria liberdade, porquanto o "vácuo ético" geraria nos cidadãos um conjunto de hábitos antissociais e anti-solidários que acabariam por inviabilizar o respeito à liberdade alheia e o cumprimento das regras de ordem e de justiça que permitem que os conflitos que inevitavelmente surgem entre pessoas livres sejam resolvidos de forma civilizada. Os mais fortes – o darwinismo social – acabariam prevalecendo e seria o advento do estado de anomia. A história da Revolução Francesa ou a passagem do bolchevismo para o stalinismo podem servir como exemplos históricos.
Toda lei promove o valor incorporado às ações que prescreve e desqualifica, o que está expresso nas ações que proíbe. A espécie de sociedade que exista ou de indivíduos que são seus cidadãos será um reflexo, em grande medida, das leis nela em vigor. Uma lei é moralmente positiva quando seu cumprimento aprimora ou facilita nos cidadãos um desenvolvimento virtuoso de si.
Ao contrário, uma lei é moralmente negativa quando o acostumar dos indivíduos ao que a lei dita os piora como pessoas, indispõe-os e os incapacita para o bem comum, como ocorre nos direitos-desejo. Essa espécie de lei é mais prejudicial para a sociedade quando mais cidadãos a cumprem e mais o conteúdo desta lei se torna habitual entre eles. Foi o que vimos em todos os ordenamentos jurídicos dos regimes totalitários – socialismo, fascismo e nazismo – do século XX. Por suposto, a lei deve somente e tão somente regular os atos dos indivíduos que afetam mais clara e diretamente o bem comum e que a maioria deles está em condições de cumprir ou de se omitir.
A lei não pode marcar, para a vida política, um nível de excelência que supõe, como condição, um grau de virtude, disposição e capacidade moral dos cidadãos que, na verdade, só se verifica em uns poucos santos ou iluminados. Fazer isso seria contraproducente e, ao se tentar criar uma espécie de paraíso terrestre, transformaria a vida em um inferno social, pois a vida política se tornaria impossível ou insuportável para a maioria dos membros da comunidade. A lei deve veicular o mínimo ético necessário e prudente para se exigir publicamente dos cidadãos, e, por isso, “meu desejo” nem sempre pode “ser a lei”, já que nem sempre nossos desejos, por mais autênticos que sejam, dialogam com a ética, a prudência e a transcendência horizontal.
Como se depreende facilmente, no mundo ocidental, em que prevalece, na comunidade política, a rule of law, o cumprimento das leis forja hábitos e costumes. As leis não se circunscrevem a fazer bons cidadãos desde o ponto de vista da conduta externa, mas influem na moralidade do ser do homem ao contribuir para a conformação de suas competências, habilidades e excelências em favor do bem comum.
Assim, as leis não são indiferentes acerca da formação e do comportamento moral do homem. Influem, enorme e pedagogicamente, no afã de se criar ou não bons traços de caráter no cidadão, mesmo que, para o estrito cumprimento da lei, a intencionalidade seja irrelevante, pois, afinal, posso observar a lei por respeito social, amor à pátria, à justiça ou ao dever, medo à sanção normativa, temor à própria imagem, para não ter constrangimentos posteriores, escrupulosidade, etc., e não simplesmente por viver a virtude da justiça, embora isso torne mais fácil a observação da mesma lei.
Divorciar a legalidade da moralidade é impossível, e isso não é bem captado pelo fenômeno dos direitos-desejo. Os mundos político e moral – e o legal também – formam uma unidade por composição, na medida em que têm suas instâncias próprias e autônomas, embora comunicáveis entre si, e gozam de uma relação mútua inexpugnável.
A pretensão de se positivar um direito-desejo pelo simples fato de vir justificado pelo “desejo que sinto como imprescindível para o desenvolvimento de minha personalidade como cidadão de uma comunidade política” é simplesmente insustentável, porque o assento dos valores do ser do homem nunca está vacante e as leis, que exteriorizam certas condutas sociais, acabam por buscar nesse núcleo moral mais profundo – a natureza humana – a fonte das ações que merecem a chancela legal e aquelas que são insuscetíveis de endosso legal.
Repetimos a hesitação que abre esse tópico: como chegamos ao nível dos direitosdesejo? Responder a esta questão exige referir-se à transição do pensamento medieval para o moderno, período em que se perdeu a ideia de natureza humana e, consequentemente, de bem comum, passando-se de uma ética universal e teleológica para outra individualista e imanentista, regida pela autonomia da vontade de cada indivíduo.
Nesse novo paradigma filosófico-cultural, o direito passa a proteger uma liberdade que não corresponde necessariamente à existência de bens comuns a cada ser humano, mas salvaguarda a livre escolha de cada indivíduo – quanto mais opções, mais liberdade! – e, assim, a eleição individual torna-se o critério fundamental na estipulação dos bens humanos, hoje, galvanizada pelo império do desejo.
Dessa forma, entende-se que cada indivíduo se realiza e se sente mais livre não na medida em que adere livremente à verdade ou ao bem, comum a todo ser humano – uma bela ideia, mas, segundo o paradigma dos direitos-desejo, falsa, porque a verdade e o bem são inexistentes ou incognoscíveis –, mas ao que é autenticamente escolhido pela vontade desejante, e, como efeito, o verdadeiro e o bom corresponderiam ao que cada indivíduo elege, livremente, em sua realidade vital, independentemente das eventuais tensões e dos abalos provocados no entrechoque social.
5 O DESCAMINHO NA NOÇÃO DE NATUREZA HUMANA E O ANIQUILAMENTO DE SUA DIMENSÃO TELEOLÓGICA
A categoria “bem comum” de uma comunidade política sempre se baseou na ideia de natureza humana19, oriunda de Aristóteles, marcada pelos atributos da universalidade e da teleologia. Esses traços característicos da natureza não foram admitidos pelo nominalismo, principal corrente escolástica a partir do século XIV, segundo o qual os universais ou conceitos não seriam reais, na medida em que o único real eram os seres individuais e materiais, e, como efeito, a natureza humana não existiria, somente as pessoas ou realidades individuais.
Ockham (1990, p. 99), com sabemos, afirmava que nem toda natureza tem um fim, apenas aquela dotada de autoconsciência. Essa ideia deu origem ao advento do mecanicismo. Descartes desenvolveu essa ideia e, sob a influência de Platão, rejeitou a unidade aristotélica da natureza humana, distinguindo entre res cogitans e res extensa20. O dualismo entre natureza e razão – em que a natureza passou a ser comumente entendida a partir de uma perspectiva meramente física – permeou todo o pensamento moderno.
Todas as teorias modernas do Estado – teorias que reduzem o Estado a um mero fenômeno de poder – partiram de uma interpretação não teleológica da natureza. Por exemplo, no caso de Hobbes (2023, p. 180) e Rousseau (2018, p. 29), o “estado de natureza” original seria concebido como algo oposto à dimensão social do homem e, como uma realidade temporária, existiria apenas no princípio de tudo, sendo superado pelo contrato social felizmente.
Para Hobbes (2023, p. 111) – ao contrário de Aristóteles, que definiu a natureza humana por seu caráter político –, a legitimidade do Estado adviria de seu dever de preservar a sobrevivência e a segurança de indivíduos isolados que viveriam em um ambiente de violência insuportável em que o homem seria o lobo do homem (homo homini lupus) e que, em prol da emancipação individual, teriam decido, motivados pelo medo, celebrar um acordo ou pacto pelo qual, renunciando ao seu direito à autodefesa, transfeririam todo seu poder e direitos a um soberano, e, dessa maneira, os homens restariam finalmente livres.
Também ao contrário de Aristóteles, Rousseau (2018 p. 78) pensava que os indivíduos poderiam ser cidadãos e apresentava as noções de natureza e razão como incompatíveis e a raiz dessa incompatibilidade residiria na noção não teleológica da natureza humana. Para Rousseau, o homem é, por natureza, um indivíduo sem linguagem e sem sociabilidade, e, portanto, sua socialização implicaria abandonar sua natureza.
Embora Kant tenha tentado superar os reducionismos de Hobbes e Rousseau, ele não só não conseguiu superar aquele dualismo, como nem tampouco recuperou a noção teleológica de natureza. Em sua visão antropológica (Kant, 2015, p. 187), ao estabelecer uma distinção entre as perspectivas fisiológica (natureza que age sobre o homem) e pragmática (o homem que, com sua liberdade, age sobre a natureza), a natureza é apresentada como desvinculada da liberdade humana, quase tanto como se deu com Hume, em sua visão cindida da realidade entre o ser e o dever-ser, em que um salto coerente de um enunciado descritivo para um prescritivo seria impossível.
A dicotomia cartesiana entre res cogitans e res extensa contribuiu para o advento de pensadores que concentraram suas reflexões no puro elemento espiritual ou pensante – como Sartre (2015, p. 150), para quem o homem tem uma liberdade irrestrita – e outros que focaram no estrito elemento físico ou material – como Darwin (2018, p. 69), que define e caracteriza o homem principalmente por sua dimensão física ou biológica. Outros filósofos ou pensadores levaram o dualismo cartesiano às suas últimas consequências. Nessa linha, vale mencionar – sem prejuízo de possíveis nuances – Nietzsche (2005, p. 77) e Freud (2016, p. 208), figuras cuja influência se faz até hoje presente.
As categorias aristotélicas e, sobretudo, as tomistas, que permitem distinguir a lei natural da lei positiva e atribuem à razão humana a capacidade de descobrir bens comuns a todo ser humano são destruídas, se forem admitidos os três postulados seguintes:
a) s natureza humana não existe realmente ou, se existe, refere-se apenas à res extensa, o que se torna um obstáculo para o homem crescer como pessoa e aprimorar suas próprias escolhas livres
b) a liberdade humana não provém da natureza humana, que se reduz ao substrato físico de cada indivíduo, tornando inconcebível que o homem possa agir livremente graças à sua natureza;
c) a natureza humana não possui uma dimensão teleológica que permita à razão humana compreender a finalidade e os limites de sua vida e de suas escolhas livres.
Se a natureza humana se refere para além do aspecto físico ou biológico do homem, então é razoável sustentar que o comportamento animal não pode servir de modelo para o comportamento humano, e, sem uma concepção teleológica da natureza humana, o significado do bem comum torna-se impossível.
A ideia de que não pode existir nenhum bem comum, porque os homens nada mais partilham do que uma res extensa que ameaça restringir a res cogitans, que se supõe ser uma liberdade irrestrita e não sujeita a instâncias naturais anteriores, tem consequências importantes não só no campo jurídico, mas também nas ciências sociais em geral, e, em particular, na teologia moral, filosofia moral, filosofia política e ética social.
No âmbito jurídico, objeto de nossas reflexões, essa doutrina filosófica teve consequências tanto no direito público como no privado. De início, duas noções diferentes substituíram a de “bem comum”, nomeadamente, “interesse público” e “utilidade pública”. Além disso, o significado de algumas noções jurídicas interdisciplinares, como “bons costumes” ou “moralidade pública”, tão relevantes durante séculos, foram paulatinamente esvaziadas de significado, porque, de fato, não são compatíveis com uma concepção de ordem jurídica em que a noção de bem comum desapareceu em todos os indivíduos que partilham a mesma natureza.
Se não há mais bem comum, a liberdade converte-se em valor absoluto, e os fins do direito alteram-se radicalmente, convertendo-se em mero instrumento do Estado para mediar os efeitos das escolhas individuais diferentes, quando não antagônicas, às vezes, porque não sopesam os impactos negativos na comunidade política e, para tutelar essa liberdade absoluta, o mesmo Estado adota o princípio do dano de Mill, segundo o qual o ente estatal só pode exercer seu poder sobre os indivíduos contra sua vontade para evitar danos a terceiros.
Em sentido contrário, se não houver dano, o Estado não deverá interferir nas decisões individuais, porque pautadas pelo vetor da liberdade: a sexualidade, o matrimônio, a família, a vida nascente, a dignidade humana, os direitos humanos, enfim, todas essas realidades passam a ser “instituições-casca”, pois passam a comportar qualquer visão particular de vida boa.
A sexualidade perde sua matriz biológico-genética em prol de uma liberdade civil paradigmática (“nome social”); o matrimônio abre-se a qualquer tipo de enlace que nem sempre responde às demandas de reprodutibilidade geracional (união homossexual); a noção de família privatiza-se segundo modelos culturais e empíricos (poligamia e poliamor); a tutela do feto dá lugar aos direitos sexuais e reprodutivos (aborto, barriga de aluguel e fertilização in vitro); a dignidade humana dá lugar a uma dignidade mundana (eutanásia) e os direitos humanos perdem seu estatuto original e específico e vão sendo banalizados, inflacionados ou deturpados em prol de direitos desumanos (direitos transhumanos e direito ao êxtase).
A razão disso tudo é facilmente compreensível, pois se, a res extensa (matéria ou corpo) é inferior à res cogitans (espírito ou alma) e a racionalidade humana implica um exercício de liberdade ou autonomia moral não sujeito a qualquer instância anterior, isso significa que as escolhas pessoais não devem ser restringidas por condições, deveres ou normatividades de qualquer natureza, salvo se, no limite, atentarem contra o princípio do dano de Mill.
Nessa ótica, muitas coisas que podem ser boas para um indivíduo podem não o ser para outro, e, ao cabo, o que temos são apenas indivíduos com suas próprias vidas particulares e sem qualquer essência que os una em termos anímicos. Além disso, as decisões políticas de Estado devem ser, na medida do possível, independentes de qualquer concepção particular de vida boa, na medida em que todas as concepções são moralmente equivalentes.
Esses postulados convergem para, desde a negação da ideia de natureza humana, o aniquilamento da noção de bem comum, porquanto o que importa é o império da liberdade mais absoluta possível. Como bem observou Sandel (2005, p. 122), “se o eu é anterior aos seus fins, então, o direito deve ser anterior ao bem”. E, se o direito antecede o bem, logo, por que não criar, por intermédio de minha vontade desejante, meus próprios bens pela lei?
6 ANALÍTICA DOS DIREITOS-DESEJO
Agora que sabemos como chegamos ao nível dos direitos-desejo, podemos dar um passo adiante e analisar sua disposição de fundo e características. No primeiro ponto, os direitos-desejo se assentam em uma perda do sentido da realidade, quando não em sua rejeição ou desprezo e, no segundo, uma vontade autocentrada tensionada para a satisfação legal dos desejos. Em suma, querer é poder.
Os avanços tecnológicos fizeram o homem pensar que tudo é possível e que ele é a medida de todas as coisas, sendo, assim, preferível transformar a natureza e a realidade do que conhecê-la. A técnica reflete a ideia de que o limite reside na capacidade do Homo faber. Seriam os próprios limites do “poder” e da “capacidade” desse homem transformador que determinariam as fronteiras de seu próprio querer. Em suma, a vontade não deveria ter outra limitação senão a impossibilidade portanto, se a tecnologia permite algo, nada nem ninguém deveria impedir esse homem de o fazer se assim o desejar.
Qual é a consequência dessa visão de mundo? O embotamento da ideia de natureza humana e de sua dignidade. Algumas chaves de leitura podem explicar isso, todas elas profundamente atreladas ao liberalismo moral:
a) hipertrofia da própria subjetividade: distorce a percepção da realidade, que não é cognoscível senão por meio do crivo dos próprios interesses, ambições ou desejos. Essa subjetividade exacerbada leva a uma concepção narcisística da própria vida, a qual leva a ver o outro como um rival ou concorrente, na medida em que ele pode ser um impedimento para a satisfação do próprio eu. Como o “eu” e o “tu” não têm mais nada em comum, a “tolerância” é exigida como requisito pragmático indispensável para a coexistência. Se se vislumbrasse uma base comum, o “tu” deixaria de ser visto como inimigo, e isso permitiria que a tolerância fosse substituída pela cooperação, mas, para isso, seria necessário reconhecer a existência de uma realidade comum que transcende o meu “eu” e o teu “tu”, desafiando-me, na medida em que isso gera um limite aos meus desejos, às minhas ambições e aos meus caprichos. Como a ambição humana é insaciável, mas, ao mesmo tempo, se reconhece que alguns limites são necessários, optamos por aqueles que tenham, como suporte, algum mecanismo de consenso, consubstanciado em uma lei que deve ser a expressão da vontade geral. O consenso e o direito estabelecem-se, portanto, em limites mais formais que materiais, mais processuais que substantivos, porque, em realidade, se tudo pode mudar, nada é permanente, e, se a realidade não contém nada de permanente, é preferível ignorar, desprezar ou rejeitar a realidade. Isso nos permite viver sem limites, salvo aqueles – sempre autorreferenciais – que queremos nos impor a cada momento;
b) exaltação de si: como consequência da hipertrofia da subjetividade, está relacionada à ideia de que o homem não nasce, faz-se, tanto física como espiritualmente, por intermédio da realização de suas tendências sensíveis (desejos e impulsos);
c) felicidade individualista: ao se negar a existência de parâmetros comuns a todos os seres humanos para alcançar uma vida feliz, esta deve ser buscada de forma individualista, evitando-se que outros impeçam ou dificultem o caminho escolhido, o que gera profundos desacordos entre realidade, pensamento e palavra;
d) linguagem manipulável: a fala deixa de se referir a ideias ou conceitos que se encontram na realidade. A conexão entre palavra-ideia-coisa desaparece, e as palavras começam a ser usadas para conceitos que não têm qualquer ligação com a realidade, quando não contradizem a própria realidade. Nietzsche já disse que, enquanto a gramática for mantida, Deus existirá, pois as palavras sempre se referem à realidade. Assim, aborto passa a ser chamado de interrupção da gravidez, eutanásia de morte indolor, sexo de gênero, abortivo de pílula do dia seguinte, amor de afeto e assim por diante.
Dessa maneira, a realidade, uma vez ignorada, desprezada ou rejeitada, é substituída por uma liberdade entendida como autonomia absoluta de escolha e por uma vontade humana que, recolhida e centrada em si mesma, eleva a satisfação dos desejos à categoria de direitos, colocando o direito em uma posição de subserviência legiferante desta nova forma de compreender a condição humana.
Contudo, os equívocos dos direitos-desejo saltam aos olhos, porque:
a) demonstram ausência de zelo pela ontologia do ser humano;
b) partem de um subjetivismo exacerbado que dificulta ou impossibilita a convivência social justa, ordenada, livre e pacífica;
c) colocam o dado contingente acima do permanente;
d) promovem uma sociedade descomprometida e desprovida de vínculos orgânicos pessoais, familiares e comunitários;
e) atribuem juridicidade vinculante à satisfação de quaisquer desejos humanos – e não somente das demandas normativas oriundas da natureza humana e dos desejos razoáveis (na expressão aristotélica) – por mais caprichosos ou espúrios que sejam;
f) defendem uma concepção de dignidade humana lastreada na mais pura liberdade de escolha, desatrelada de qualquer dimensão de responsabilidade e mesmo da lei natural;
g) não concebem que esses “direitos” possam ser limitados ou proibidos por lei, pois isso significaria uma interferência indevida na esfera privada do indivíduo;
h) pretendem legitimar estes “direitos” por intermédio de algum mecanismo institucional de natureza consensual;
i) não raro, violam os direitos fundamentais de terceiros;
j) restringem significativamente o exercício dos direitos humanos de primeira geração, graças aos quais foram colocados limites ao poder do Estado em face do indivíduo.
Tudo parece indicar que, em termos de lei positiva, as necessidades normativas da condição humana devem ter precedência sobre os desejos desarrazoados. Todavia, como isso pode ser verificado, se a própria realidade é ignorada, desprezada ou rejeitada e o homem se vê como a medida de todas as coisas, cujo efeito é o de obscurecer a ideia de natureza humana e de sua dignidade, em prejuízo da noção de bem comum?
Não pretendemos dar uma resposta para essa legítima dúvida, até em razão dos limites deste trabalho intelectual, porque demandaria longas digressões nos campos do conhecimento da antropologia filosófica, ética social, filosofia política, filosofia do direito, filosofia da educação e filosofia da história. Contudo, não nos esqueçamos de que o direito é coisa de seres humanos como seres racionais e, também, “irracionais”, e ele tem sido, ao longo da história da humanidade, desde a Grécia Antiga pelo menos, testemunho tanto de uma coisa quanto de outra.
Por isso, parece-nos, então, que o primeiro passo da resposta está em repensar e atualizar a riqueza da tradição daqueles campos do conhecimento para moldar, esperançosamente, o futuro dos fundamentos da realidade jurídica do ser humano – ir para além do direito e, depois, para este retornar – à luz de um ethos que respeite sua natureza humana – captável cognitivamente –, considere a lei natural e lhe proporcione as condições comunitárias necessárias – materiais e anímicas – para o primado de sua humanidade, sempre tensionado em favor do bem comum historicamente situado.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A reivindicação de novos “direitos”, como expressão de vontades desejantes, pode abalar não só os direitos e as liberdades fundamentais relativos aos bens humanos básicos – vida, liberdade, trabalho, consciência, expressão, religião, associação, propriedade, segurança –, mas também a própria genuinidade dos direitos humanos, porque, em um ambiente comunitário descompromissado, atomizado e utilitarista, só se aceitam desejos e não convicções ou ideias permanentes que possam “limitar” o indivíduo, o qual não só não conhece fronteiras no exercício daquela vontade desejante, como acaba por se contentar em satisfazer seus instintos mais básicos, aqueles que são objeto de gozo instintivo dos animais irracionais e que não correspondem ao que de melhor há em nossa natureza.
Aqui, convém recordar que os desejos, dentro da dinâmica antropológica, devem ser tensionados em prol de uma existência vivida de acordo com uma razão iluminada pela lei natural e em prol do bem comum, sem nos esquecermos de que a natureza humana pode ser manejada, também, como uma instância de apelo moral no tema dos direitos-desejo.
Em um ambiente comunitário de satisfação normativa de desejos mais díspares possíveis – meu desejo é a lei –, fica muito difícil se propor algum tipo de racionalidade jurídica, na medida em que o descolamento da realidade é, mais cedo ou mais tarde, inevitável. Por isso, acreditamos que uma possível solução para essa nova fronteira da lei depende de nós: superar nossa incapacidade de pensar no bem para além do direito.
Hoje, os únicos bens que o indivíduo conhece são os poderes indeterminados que cada direito protege, direitos que se originam no indivíduo exclusivamente, e todos os outros bens que têm sua origem fora dos indivíduos permanecem como sendo estranhos, inconcebíveis e indefensáveis. Pior ainda, presumem-se como bens inimigos da liberdade individual, porquanto limitariam sua atuação. Todavia, sempre existiram, existem e existirão muitos bens para além do indivíduo: o bem da família, da cultura, do patrimônio, da economia, da religião, do meio ambiente, etc.
São bens comuns e relacionais, necessários ao florescimento pessoal do indivíduo. Esses bens o ultrapassam, muitas vezes, preexistindo e sobrevivendo a ele. O indivíduo os possui na medida em que deles participa, e a experiência civilizacional ensina que a acumulação indeterminada de bens individuais não só não é suficiente para compor esses bens comuns, mas tende, antes, a corroê-los.
Muitas vezes, encontramo-nos sozinhos em nossa própria autonomia, incapazes de determinar o que é bom para nós e nem de participar em um bem para além de nós mesmos. Além dos excessos históricos do Estado, outros – como a globalização selvagem, a crise migratória, o déficit ecológico, o transhumanismo e a governança mundial que atropela as legítimas identidades nacionais – vieram à tona.
Mais numerosos e menos perceptíveis, esses novos excessos aparecem hoje e ameaçam não só nossa liberdade, mas nossa humanidade, à medida que geram processos graduais de despersonalização do indivíduo. E, se nem mesmo os direitos humanos parecem vigorosos para nos defender destes novos excessos, precisamente porque não são capazes de conceber o bem para além dos desejos individuais, quanto mais as derivações desses direitos, como acontece com os direitos subjetivos.
Esses novos excessos inviabilizam os indivíduos, até mesmo, da assunção do controle de seu ambiente econômico, cultural, político e natural. Ao fazê-lo, ameaçam nossa humanidade de forma ainda mais radical que os excessos estatais, somado ao fato de que, até mesmo, o sistema de proteção dos direitos humanos parece cúmplice em face de cada um desses excessos: cada vez que se esquece do homem como um espírito encarnado aprofunda, ao mesmo tempo, a dinâmica do homem despersonalizado.
Consequentemente, é necessário procurar uma resposta humana a esses novos excessos para além dos direitos do indivíduo, em prol do resgate da medida do homem: uma medida que procure um todo no qual os seres humanos possam voltar a fazer parte, no qual possam se organizar para nele mostrarem toda a bondade, beleza e verdade da pessoa humana, apesar de suas debilidades e misérias. Essa procura, para além do direito, estende-se a todas as dimensões da existência humana, sobretudo na ordem política, econômica, cultural e espiritual, a fim de se reavivar a prioridade ontológica da pessoa.
Essas ordens constituem bens comuns, tanto melhor porque permitem a plenificação de quem deles participa, conferindo uma reta medida à existência individual e às suas pretensões legais. Redescobrir-se como parte de um todo introduz uma modalidade de humildade e leva a pensar, na ordem considerada, em termos de bens individuais e comuns – e não de direitos – e a renunciar à falsa liberdade determinada por uma vontade desejante, assumindo positivamente a própria responsabilidade em relação aos outros e ao bem geral da comunidade em que se vive.
Como participante de bens que o ultrapassam, o homem abre-se à recuperação, paradoxalmente, da humanidade de sua existência. Um indivíduo enraizado em sua fé, família, trabalho, cultura e comunidade é muito mais humano do que aquele que se considera “emancipado” de seus vínculos, que mais lhe parecem grilhões existenciais. O desejo de participar do todo é diametralmente oposto à pretensa primazia absoluta das vontades desejantes dos indivíduos sobre seu entorno, a qual se encontra no princípio dos direitos-desejo.
Tal desejo testemunha, em face dos excessos, sejam estatais, sejam oriundos de outras fontes, a persistência da natureza humana e exige que seu ambiente existencial a ele se adapte, a fim de respeitar a humanidade imutável que é o homem. Também, ajuda a discernir entre um desejo razoável e um desejo ilimitado, na conhecida dicotomia aristotélica, de sorte a recordar ao indivíduo que nem toda vontade desejante responde a uma necessidade autenticamente humana por isso, nem sempre meu desejo deve ser a lei.
REFERÊNCIAS
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Notas
Notas de autor