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A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO DE JOHN DEWEY: ENTRE O PRAGMATISMO E A DEMOCRACIA
LA FILOSOFÍA DE LA EDUCACIÓN DE JOHN DEWEY: ENTRE PRAGMATISMO Y DEMOCRACIA
JOHN DEWEY'S EDUCATION PHILOSOPHY: BETWEEN PRAGMATISM AND DEMOCRACY
A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO DE JOHN DEWEY: ENTRE O PRAGMATISMO E A DEMOCRACIA
Revista on line de Política e Gestão Educacional, vol. 24, núm. 3, pp. 1484-1497, 2020
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras
Recepção: 20 Junho 2020
Revised document received: 15 Agosto 2020
Aprovação: 30 Agosto 2020
Publicado: 01 Setembro 2020
RESUMO: O filósofo estadunidense John Dewey influenciou fortemente as teorias educacionais no Brasil. Conforme o grande educador brasileiro Anísio Teixeira, pensar a educação a partir de Dewey, requer subordinar-se à premissa democrática que fundamenta sua filosofia da educação, haja vista a estreita relação entre educação e democracia presente em suas obras. No entanto, se faz necessário compreender o que possibilitou ao pensamento do filósofo estadunidense enfatizar tal relação, e apostar em uma educação democrática. Assim, o objetivo do presente ensaio foi buscar investigar como o pragmatismo se configurou como condição fundamental para o pensamento de Dewey acerca da relação educação e democracia. Concluímos que foi o pragmatismo que possibilitou a Dewey fabricar sua filosofia da educação voltada não somente para uma educação democrática, mas uma educação para a democracia.
PALAVRAS-CHAVE: John Dewey, Educação, Pragmatismo, Democracia, Filosofia da educação.
RESUMEN: El filósofo estadounidense John Dewey influyó fuertemente en las teorías educativas en Brasil. Según el gran educador brasileño Anísio Teixeira, pensar en la educación de Dewey, requiere subordinarse a la premisa democrática que subyace en su filosofía de la educación, dada la estrecha relación entre educación y democracia presente en sus obras. Sin embargo, es necesario comprender qué permitió al pensamiento del filósofo estadounidense enfatizar dicha relación y apostar por una educación democrática. Por lo tanto, el objetivo de este ensayo fue investigar cómo se configuró el pragmatismo como una condición fundamental para el pensamiento de Dewey sobre la relación entre educación y democracia. Concluimos que fue el pragmatismo lo que hizo posible que Dewey fabricara su filosofía de la educación centrada no solo en la educación democrática, sino también en la educación para la democracia.
PALABRAS CLAVE: John Dewey, Educación, Pragmatismo, Democracia, Filosofía de la educación.
ABSTRACT: The American philosopher John Dewey strongly influenced educational theories in Brazil. According to the great Brazilian educator Anísio Teixeira, thinking about education from Dewey, requires subordinate to the democratic premise that underlies his philosophy of education, given the close relationship between education and democracy present in his works. However, it is necessary to understand what made it possible for the American philosopher's thought to emphasize such a relationship, and to bet on a democratic education. Thus, the aim of this essay was to investigate how pragmatism was configured as a fundamental condition for Dewey's thinking about the relationship between education and democracy. We conclude that it was pragmatism that enabled Dewey to manufacture its philosophy of education geared not only towards democratic education, but education for democracy.
KEYWORDS: John Dewey, Education, Pragmatism, Democracy, Philosophy of education.
Introdução
No Brasil o filósofo estadunidense John Dewey ficou reconhecido por sua forte influência no movimento denominado Escola Nova. Difundido principalmente pelo educador brasileiro Anísio Teixeira, o pensamento de Dewey foi fundamental para o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, documento este que foi um marco para o projeto de renovação da educação brasileira, cujo um dos principais objetivos foi a democratização do ensino no país, defendendo uma escola pública, laica, obrigatória e gratuita.
A busca por uma educação democrática, está fortemente associada ao pensamento de Dewey na medida em que o conceito de democracia é fundamental na filosofia da educação deste pensador. Conforme nos lembra Teixeira (2010), pensar a educação a partir de Dewey, requer subordinar-se à premissa democrática que fundamenta a filosofia deste autor. Em um primeiro sentido, democracia e educação associam-se na medida em que somente em uma comunidade democrática o objetivo da educação, a saber, habilitar os indivíduos a continuar sua educação, pode se concretizar (DEWEY, 1978).
Em um segundo sentido, democracia e educação estão associadas quando partimos da constatação de que o ato de educar existe em qualquer grupo social (DEWEY, 1978), e que dada a diversidade destes grupos, ao processo educacional são postas questões que estão subordinadas aos seus modos de vida. Tais questões são (re)direcionadas a partir da constatação de que tipo de ser humano e sociedade são desejados, quais modos de vida são/serão produzidos. Dewey entende a escola como parte inerente da totalidade social, para ele, a escola é como uma pequena comunidade, em que todos os processos de vida não devem ser diferentes dos que estão ao seu redor. Porém, a escola não pode ser uma representação artificial em miniatura da sociedade, pois, para Dewey, “a educação não é uma preparação a priori para a vida; é parte da própria vida” (ARAÚJO, 2019, p. 358). Assim, Dewey inspira pensar não somente uma educação democrática, como também uma educação para uma sociedade democrática, isto é, uma educação para a democracia.
Em cima desta premissa democrática o esforço em buscar uma educação que esteja subordinada aos interesses dos variados grupos sociais, se expressa na tentativa de analisar quais tipos de organização social e educacional dão conta dos interesses comuns entre tais grupos (FÁVERO; TONIETO, 2015). Por isso, podemos entender o porquê Dewey considerava que o problema da educação se trata de um redirecionamento, na medida em que o ato de educar para esse autor é a contínua reconstrução da experiência, seja ela individual ou social (TEIXEIRA, 2010).
Destarte, a ênfase dada na filosofia da educação de John Dewey sobre a mútua relação entre educação e democracia está fortemente ligada à questão da experiência. Se o autor entende que a educação é um ato de reconstrução ou redirecionamento da experiência, somente uma reconstrução que possibilite os modos de vida dos diversos grupos sociais não somente serem transmitidos, mas expandidos, interessa ao campo da (filosofia) educação. Como bem lembra Teixeira (2010), para Dewey o fim da educação é uma vida progressiva, isto é, uma vida em constante ampliação, e esta se amplia na medida em que o conteúdo da experiência se alarga, garantindo ao indivíduo e aos grupos sociais novos sentidos, ao passo em que esta experiência é reconstruída. Como em Dewey a educação não pode se apartar da premissa democrática, a ampliação da vida de cada um deve ser dirigida de modo a garantir a ampliação da vida de todos (TEIXEIRA, 2010).
Ora, se está claro que na filosofia da educação de Dewey, a relação entre educação e democracia é recíproca, não é suficiente para uma tentativa de compreensão interna do pensamento do autor acerca da educação, mencionar que a educação pressupõe a democracia e vice-versa. Se faz necessário compreender o que possibilitou ao pensamento do filósofo estadunidense enfatizar tal relação, e apostar em uma educação democrática. É verdade que o autor buscou justificar os motivos pelos quais ele defende tal concepção e organização da educação e da sociedade, mas entendemos que existe um elemento no pensamento de Dewey que é condição fundamental para a sua concepção de filosofia da educação: o pragmatismo.
Assim, o presente ensaio parte do pressuposto de que foi o pragmatismo que possibilitou a Dewey fabricar sua filosofia da educação voltada não somente para uma educação democrática, mas uma educação para a democracia. Neste sentido, nosso objetivo foi buscar investigar como o pragmatismo se configurou como condição fundamental para o pensamento de Dewey acerca da relação educação e democracia. Para isso, este escrito foi dividido em três momentos: Num primeiro momento buscamos apresentar o que é o pragmatismo, e como se deu seu desenvolvimento segundo a análise de Dewey; na segunda parte do escrito investigamos como na concepção de educação e democracia do autor se faz presente resquícios e influências do pragmatismo; por fim, na terceira e última parte, tecemos nossas considerações finais.
O pragmatismo como método de avaliação prática
Talvez uma das doutrinas filosóficas mais mal compreendida seja o pragmatismo. O fato de o termo “pragmático” ser fortemente difundido no senso comum, tem contribuído para tal falta de compreensão e associação simples, afinal quem nunca ouviu de alguém que “devemos ser mais pragmáticos”, “mais práticos”, pois “devemos parar de somente pensar e agir mais”. Não somente no campo do senso comum, mas também da própria filosofia, esse tipo de compreensão acerca do pragmatismo existe. Um exemplo disso é a crítica endereçada por Max Horkheimer (2010), o qual entende o pragmatismo como o símbolo do sucesso americano, que expressa a cultura comercial dominante. É como se o pragmatismo fosse uma representação fiel das ambições imperialistas dos Estados Unidos, e um culto ao dinheiro e à máxima capitalista do mais rentável, de uma maior eficácia.
É verdade que o pragmatismo dá ênfase na questão da ação e da prática, pois o termo pragmatismo deriva do grego “pragma/pragmatikôs”, que significa prática, ação, concreto, aplicado, prático, e opõe-se a teórico, especulativo, abstrato. No entanto a prática no pragmatismo nada tem a ver com um certo “tem que dar certo de qualquer maneira”, desde que o rendimento seja satisfatório, ou que os fins sejam atingidos independentemente dos meios. Sobre isso Dewey (2008, p. 120) destaca que:
Diz-se frequentemente do pragmatismo que faz da ação a finalidade da vida. Diz-se também do pragmatismo que subordina o pensamento e a atividade racional a fins particulares de interesse e lucro [...]. Mas o papel da ação é de um intermediário. Para ser capaz de atribuir um significado aos conceitos, uma pessoa deve ser capaz de aplica-los à existência. Ora, é por meio da ação que essa aplicação é tornada possível. E a modificação da existência que resulta dessa aplicação constitui o verdadeiro significado dos conceitos. O pragmatismo está, portanto, longe de ser aquela glorificação da ação por si mesma, o que é considerado como a característica peculiar da vida americana.
Veremos, pois, como surgiu o pragmatismo, e a razão pela qual o mesmo pode ser considerado um método de avaliação prática. Em um texto intitulado de “O desenvolvimento do Pragmatismo americano”, Dewey (2008) destaca que se engana quem considera que o termo “pragmático” é exclusivamente americano, pois este foi sugerido por Kant3 em sua “Metafísica dos costumes”. Mas a origem do pragmatismo, segundo Dewey (2008), volta a Charles Sanders Peirce.
Peirce não pode ser considerado um filósofo no sentido clássico, mas um cientista experimental, haja vista que seu pensamento foi formado na atividade científica de inquirir, investigar, fator importante para o autor considerar o pragmatismo como um método e não como uma teoria (DEWEY, 2008), tornando possível pensar questões filosóficas como questões de experimentações. Neste sentido, Peirce estava ocupado com um método que tivesse a capacidade de avaliar construções teóricas, isto é, com crenças sobre a realidade e hábitos sobre esta, principalmente no domínio das práticas científicas (DAZZANI, 2008). Por isso Dewey (2008) nos lembra que em Peirce, o teor racional de uma palavra (ou de uma ideia) é medida diante de sua relevância sobre a conduta da vida. No pragmatismo de Peirce, o significado de uma proposição encontra-se na maneira que ela torna-se aplicável à conduta humana, o que significa dizer que para o pragmatista o “bem supremo” não está na ação em si mesma, mas no processo pelo qual cada indivíduo se torna capaz de ter hábitos generalizados o máximo possível (DEWEY, 2008). Disso, Dewey conclui que:
[...] há uma escala de aplicações possíveis de conceitos à existência, e daí, a diversidade de significados. Quanto maior a extensão de conceitos, mais estes estarão libertos das restrições que os limitam a casos particulares, mais é possível para nós atribuirmos a maior generalidade de significado a um termo. Assim, a teoria de Peirce é oposta a toda restrição de significado de um conceito à realização de um fim particular, e mais ainda a uma meta pessoal. É ainda mais fortemente oposta à ideia de que a razão e o pensamento devessem ser reduzidos a serem servos de qualquer interesse que fosse pecuniário ou estrito [...] (2008, p. 121).
Esse é um ponto relevante do pensamento peirceano que inspirou Dewey e seu pragmatismo. Essa característica do pragmatismo acerca da aplicação de conceitos à existência, possibilitou aos pragmatistas, e consequentemente Dewey, conceber que para conhecer uma coisa, não podemos conformá-las às ideias preconcebidas, mas somente seguindo suas próprias indicações, considerando assim uma abertura à alteridade do objeto, indo, portanto, contra um dogmatismo que recusa tal abertura.
É a partir disso que segundo Dewey (2008), William James continua o trabalho iniciado por Peirce. Apesar das claras diferenças entre Peirce e James, principalmente quando o segundo entende que o significado de qualquer proposição pode ser trazido para uma consequência particular, e que quando o mesmo aplica o termo “prático” ele quer dizer algo “particular”, entendendo inclusive que “pragmata” são as coisas em sua pluralidade (DEWEY, 2008), James, assim como Peirce, estava preocupado com as consequências práticas de uma ideia, de um pensamento. Na menção de Dewey (2008, p. 122), James estava preocupado em “[...] estabelecer o critério que habilitaria alguém a determinar se uma dada questão filosófica tem um significado autêntico e vital ou, se ao contrário, ela é trivial [...]”.
O pragmatismo em James então insiste sobre fenômenos consequentes, isto é, sobre as possibilidades da ação (DEWEY, 2008). Isso quer dizer que as ideias não têm de relatar experiências passadas, mas são as bases para (re)organizar experiências futuras, pois se o pragmatismo se prendesse em repetir fatos passados, não teria abertura para possibilidades, liberdade e criação (DEWEY, 2008). Tal consequência pragmática nos leva a considerar um modo de conceber o universo cujo o desenvolvimento não está encerrado, “[...] de um universo que ainda está, nos termos de James, ‘em feitura’, ‘no processo de se tornar’, de um universo até certo ponto ainda plástico” (DEWEY, 2008, p. 126). É esse fato que Dewey considera algo revolucionário na concepção pragmatista de James.
Se James buscou pensar as ideias através de suas consequências práticas, em um mundo que está constantemente “em feitura”, é porque o termo “prática”, para ele designa um ponto de vista, um modo particular de conceber as coisas: “‘prática’ significa que consideramos a realidade, o pensamento, o conhecimento (e também a ação) enquanto eles estão se produzindo. [...] a filosofia de James é uma filosofia do homem que se produz num mundo que está ele mesmo se produzindo” (LAPOUJADE, 2017, p. 11). Por isso, no pragmatismo não existem as coisas feitas, não existe o mundo das essências, das coisas, mas estas estão se fazendo em um mundo de processos, relações, pois ele considera a realidade em seu movimento de devir.
Sendo assim, o pensamento pragmático de James, por exemplo, nos possibilita a conceber as ideias não mais como representação da realidade, mas como um processo pelo qual a mente se produz (LAPOUJADE, 2017). Assim é considerado qualquer coisa, seja ela uma filosofia, uma religião, uma ideia social, ou um modo de pensar a organização social. Estas não são mais avaliadas diante de um certo grau de coerência interna, mas a partir de suas consequências práticas, isto é, aquilo que elas fazem funcionar. Por isso nos lembra Lapoujade (2017) que tanto em James como em Peirce, o pragmatismo não é uma filosofia, mas um “método de avaliação prática”, bem como uma ferramenta de construção, pois ele nos auxilia a fazer escolhas que favoreçam a ação e o pensamento, escolhas que nos permita considerar o mundo em seu devir. Para James então, o pragmatismo é definido como um método democrático (LAPOUJADE, 2017), na medida em que ele invoca um pluralismo, aposta em um mundo dotado de constantes novos possíveis, renunciando a unidade, em nome da multiplicidade, favorecendo a expansão da vida.
O pragmatismo de Peirce e James influenciou fortemente o pensamento de Dewey. Quando o autor entende que o pragmatismo é um método que serve para o homem entrar em relação com o meio que está inserido, afim de transformá-lo para seus interesses individuais, como também dos diversos grupos sociais, está avaliando uma ideia, modo de pensar ou o modo de vida destes a partir de suas consequências práticas (SOUZA, 2010). Neste sentido, apesar de “herdar” noções fundamentais do pragmatismo de Charles Sanders Peirce e William James, Dewey o ampliou na medida em que sua filosofia traz consigo questões educacionais, políticas e sociais como elementos fundamentais.
O pragmatismo nas concepções de educação e democracia de Dewey
Na tentativa de analisar como o pragmatismo enquanto um método de avaliação prática, é uma condição essencial para Dewey pensar a educação e a democracia, devemos sempre lembrar, como destacamos no tópico anterior, que enquanto método, fundamentalmente o pragmatismo nos auxilia a fazer escolhas que privilegiam a ampliação da vida dos indivíduos e dos diversos grupos sociais - entendemos que é assim que Dewey o concebe e faz uso do mesmo em sua filosofia.
Para investigarmos como em sua concepção de educação o pragmatismo está presente, é oportuno iniciar a partir do que autor entende como sendo os objetivos da educação. Para Dewey (1978), qualquer atividade deve ter objetivo, e com a educação não é diferente. Na concepção do autor, um objetivo deve surgir de dentro de uma atividade, e não de fora, isto é, um objetivo deve ser imanente à atividade. Decorre disso que um objetivo existente tem que ser decorrente das condições existentes naquela determinada atividade, levando em consideração o que já está em andamento, o que está se produzindo (DEWEY, 1978). Sendo assim, para o autor estadunidense um objetivo nada mais é do que um esboço provisório, pois ao tentar realizá-lo, este é posto à prova, o que irá dizer se ele é adequado, dando conta da continuidade da atividade, até o ponto de surgirem novas condições que indiquem a necessidade de revisar o objetivo, acrescentando-lhe ou subtraindo-lhe algo. Por isso, para Dewey (1978) um objetivo é experimental, na medida em que ele cresce e é modificado na ação, tendo a capacidade também de alterá-la.
O autor enfatiza que os objetivos educacionais, seu modo de operar, nada tem de particular, não diferenciando, portanto, de qualquer outro tipo de ocupação. A título de imagem, Dewey (1978) dá os exemplos de um fazendeiro e um professor. Um fazendeiro lida com condições que envolvem diversos elementos: chuva, sol, insetos, geada, solo, plantas etc., o que significa que ele deve levar em consideração a particularidade de cada elemento, de modo a produzir uma relação de composição entre eles. Isso significa dizer que a atividade agrícola tem como referência para traçar seus objetivos as condições supracitadas, pois são elas que ao mesmo tempo conduzem a atividade e seus objetivos e são reconduzidas por estes objetivos (constantemente revisitados).
A mesma coisa acontece com o educador. Para Dewey (1978) é absurdo o professor traçar objetivos que não condizem a com as reais condições dos alunos, pois os objetivos colocam ao professor a responsabilidade de realizar as observações, possíveis antecipações e rearranjos que são exigidos pela continuidade da atividade educativa. Podemos considerar que um bom objetivo é aquele que permite o enriquecimento da atividade em questão (sendo então um objetivo imanente), enquanto um mau objetivo é aquele que ao ser exterior à atividade, deixa de lado as condições particulares e reais daquela atividade, diminuindo sua força.
Ora, podemos ver o caráter puramente pragmático que Dewey dá a tal questão do objetivo, quando ele utiliza o exemplo que citamos acima. Quando ele destaca que o objetivo da educação não tem nada de diferente do objetivo de uma atividade agrícola, o autor considera isso no âmbito pragmático. Dewey não quer dizer que se trata da mesma atividade, com os mesmos objetivos, mas que para realizar as mesmas, deve ser considerado o caráter pragmático dado pelas condições singulares de cada ocupação. O modo de operar deve ser o mesmo no sentido de considerar as atividades enquanto elas estão se fazendo, garantindo as características singulares destas.
Entendemos que é esse caráter pragmático que possibilita Dewey (1978) considerar que a educação em si não tem objetivos, pois apenas os envolvidos nos processos educacionais têm objetivos, e não uma ideia abstrata de educação. Decorre disso que os objetivos da educação são múltiplos, variados, pois esta diz respeito a diversos indivíduos e grupos sociais. Assim, lidar com uma ideia abstrata de educação é desconsiderar as múltiplas singularidades que envolvem e que criam as condições reais que devem ser observadas e redirecionadas na atividade educativa. É justamente o pragmatismo enquanto método de avaliação prática que permite Dewey (1979) pensar a multiplicidade envolvida na educação, ao invocar nesta sua premissa democrática. Observemos isso de maneira mais atenta.
Em suas obras “Vida e Educação” e “Democracia e Educação: introdução à filosofia da educação”, Dewey (1978; 1979) destaca que a educação enquanto reconstrução da experiência, se trata de compreender o presente, com suas questões políticas, culturais e sociais, por exemplo, observando e analisando suas novas configurações e desafios com o objetivo de melhorar o presente e possivelmente o futuro, na medida em que o mundo é um permanente “está por se fazer”. Diante disso, para o autor, a educação depende fundamentalmente dos modos de vida dos diversos indivíduos e grupos sociais que constituem a sociedade. A atividade educativa deve então ser baliza diante dos modos de vida com o objetivo de potencializá-los, de modo que a educação variará mediante a qualidade de vida dos grupos sociais. Isso significa dizer que:
Nossa concepção [de educação] deve basear-se em sociedades que existam realmente, de modo a obtermos alguma garantia da exequibilidade de nosso ideal. Mas, por outro lado, o ideal não pode limitar-se apenas a reproduzir os traços que encontramos na realidade. O problema consiste em extrair os traços desejáveis das formas de vida social existentes e empregá-los para criticar os traços indesejáveis e sugerir melhorias (DEWEY, 1979, p. 88).
Com isso, Dewey nos adverte que uma educação democrática, não diz respeito à uma escola perfeita, nem a reprodução do que já existe, mas na tentativa de projetar através dos múltiplos modos de vida dos indivíduos e grupos sociais, a ampliação e intensificação destes, levando em conta as contingências da vida associada (FÁVERO; TONIETO, 2015). Podemos também considerar que em Dewey tanto a ideia de democracia está imbricada com as questões de conscientização que se caracterizam como compromisso histórico. É partir duma inserção crítica na história, assumindo o homem uma posição de sujeito (SANTANA; LUCINI, 2018).
Para Dewey (1979), a avaliação de uma sociedade democrática deve ser submetida a dois critérios: “são variados os interesses compartilhados, isto é, os interesses comuns? São livres e intensas as relações com outras formas de associações?”. O primeiro diz respeito aos interesses comuns como fontes de direções sociais, enquanto o segundo busca garantir as readaptações mediantes às novas situações criadas pelas relações entre os diversos grupos sociais, pois os interesses próprios de um grupo não podem privar a plena relação com outros grupos, reorganizando os próprios grupos. Assim:
Quanto ao aspecto educativo, observaremos primeiro que a realização de forma de vida social em que os interesses se interpenetram mutuamente e em que o progresso, ou readaptação, é de importante consideração, torna a comunhão democrática mais interessada que outras comunhões na educação deliberada e sistemática [...] (DEWEY, 1979, p. 95).
É neste sentido que Dewey (1979) considera a democracia como formas de vida associadas em mútua comunicação. Isso significa dizer que uma sociedade democrática, é aquela que possibilita a abertura de pontos de contato entre indivíduos e grupos socias, com a supressão de barreiras de classe, raça, gênero e território nacional que impedem a ampliação dos diversos modos de vida (DEWEY, 1979). Uma sociedade democrática deve ser cheia de canais distribuidores de mudanças, buscando educar os indivíduos no sentido de ampliar a possibilidade de ação mediante as linhas que se delineiam no presente e futuro da sociedade.
É necessário entender que a democracia em Dewey está em uma dimensão ética, e, portanto, pragmática, pois a democracia não ocorre devido à uma inclinação de uma suposta essência humana para tal, mas é buscada por sua consequência prática na medida em que para o autor, se trata do modo de vida que permite que os diversos indivíduos e grupos de uma sociedade tenham suas existências ampliadas, mais ricas. Por isso a grande ênfase em uma educação democrática e uma educação para a democracia. Na medida em que na concepção deweyana de educação esta diz respeito à reconstrução da experiência, de modo a garantir sua expansão, se trata então de uma atividade que pode contribuir para o projeto democrático, pois se a democracia não está inscrita na essência humana, existe o esforço humano por redirecionar a experiência para esse modo de vida democrático.
Diante disso, é evidente que Dewey opta pelo ideal democrático no âmbito da educação e do social por suas consequências práticas. A avaliação que o filósofo estadunidense opera da sociedade e da educação, está relacionada segundo o seu objetivo de nos fazer aderir a um determinado modo de vida (o democrático). O pragmatismo permitiu a Dewey não buscar a pretensão de pensar modelos de sociedade e educação universais, haja vista que em sua concepção, a direção que a sociedade e a educação tomam é imanente às singularidades envolvidas, portanto, são direções múltiplas que rejeitam a universalidade. Daí a necessidade que Dewey teve em invocar o pragmatismo para possibilitar conceber uma educação e um modo de vida que busque pensar as variações e movimentos constantes da sociedade. Nas palavras de Anísio Teixeira (2010, p. 65) “[...] nesta civilização em perpétua mudança, só uma teoria dinâmica da vida e da educação pode oferecer solução adequada aos problemas novos que surgem e que surgirão”. E foi justamente o pragmatismo que possibilitou Dewey produzir uma filosofia da educação dinâmica, ou poderíamos dizer, da intensidade, na medida em que toma para si o imperativo ético de criar condições para a expansão dos diversos modos de vida.
Considerações finais
Iniciamos o presente artigo com a ideia destacada por Anísio Teixeira, que para pensar a educação (e a sociedade) a partir da filosofia da educação de John Dewey, se faz necessário submeter-se à premissa democrática que fundamenta seu pensamento, na medida em que só em uma democracia o objetivo da educação (a reconstrução da experiência, habilitando os indivíduos a continuar sua educação, isto é, o alargamento do horizonte de experiência) pode se efetivar. No entanto, como buscamos demonstrar no decorrer dos tópicos anteriores, o que dá as condições de Dewey conceber a educação a partir de um ideal democrático foi o método do pragmatismo. Neste sentido, podemos refazer a ideia de Anísio Teixeira e afirmar que pensar a educação a partir Dewey só é possível submetendo-se ao caráter pragmático de sua teoria.
Apesar da filosofia da educação de Dewey acenar para um modelo de sociedade e um modelo de educação, a saber, uma sociedade democrática e uma educação para a democracia, podemos enfatizar que não se trata, como diria o próprio autor, de uma noção abstrata, mas uma sociedade e uma educação que se faz com o modo de vida dos indivíduos, acompanhando o fluxo de experiências destes. Isso significa dizer que o modelo democrático proposto por Dewey é puramente pragmático, não se deixando levar aos universais, apesar de tratar acerca dos interesses comuns de uma sociedade e da educação, o que confere a tal modelo um caráter de errância e de movimento.
Destarte, é necessário afirmar que quando Dewey entende que a sociedade e a educação devem estar submissas à sua premissa democrática no sentido de pensar os interesses comuns e a comunicação entre os diferentes grupos sociais, não significa dizer que as relações entre os indivíduos de uma sociedade se baseiam na semelhança ou na identidade. Pelo contrário, quando definimos uma comunidade baseada no comum, é a noção de que existe um campo de experiências comum aos indivíduos que os põem em constante contato, relações, e que tais relações permitem aos indivíduos trazerem para dentro da comunidade suas diferenças, acolhendo-as não no sentido de submetê-las à uma suposta identidade do grupo, mas sim que estas são fatores de redirecionamento, alargamento e enriquecimento dos modos de vida da comunidade.
No contexto da educação, se o pensamento de Dewey é submetido ao crivo pragmático, uma teoria da educação pautada em sua filosofia, precisa denunciar qualquer instância que possui a pretensão de falar em nome desse comum, criando condições que possibilitem os próprios indivíduos produzir e possuir esse comum. Isso significa dizer que a invenção de novas formas de experimentar o processo educacional, novos espaços e tempos, são produzidos na relação comum entre os indivíduos e grupos inseridos nos espaços-tempos da educação. Neste sentido, tais indivíduos e grupos, não são concebidos diante de uma normatividade, de um dever ser, mas diante de suas potências, isto é, diante do que podem. Com isso, a principal questão pragmática para a educação então não seria determinar o que devem fazer os indivíduos, mas buscar explorar o que podem os corpos destes.
Decorre disso que, uma educação democrática não pode se propor a saber antecipadamente o que pode um indivíduo, o pré-definindo diante de competências gerais e aprendizagens pré-definidas, pois um indivíduo só sabe do que é capaz diante da experimentação. Uma educação baseada no pragmatismo de Dewey se propõe a oportunizar possibilidades de experimentações para que os indivíduos possam experimentar novas maneiras de entrar em relação, ampliando suas experiências, possibilitando assim uma produção do comum e a singularização.
Nesta concepção, as experiências educativas podem ser os lugares onde torna-se possível assegurar a produção de encontros organizados de forma ética e democrática. Uma das grandes potências em conceber a educação desta forma está em possibilitar encontros nas atividades educacionais que resultem em uma nova produção do comum, na medida em que os indivíduos comunicam conhecimentos diferentes, bem como compartilham de suas capacidades de produzir algo de forma conjunta, o que expressa que esse compartilhar é mais potente do que experiências solipsistas. Neste sentido, a ética e a política da educação é a organização dos encontros entre os indivíduos, não no sentido de pré-definir tais encontros, mas de buscar junto com estes, formas de se abrir à diferença, gerando novas potências, até porque o comum é algo que só pode existir no compartilhamento entre os indivíduos.
Assim, entendemos que a dimensão pragmática do pensamento de John Dewey, pode trazer implicações produtivas para uma teoria da educação que busque, como diria o próprio autor, ser um dos canais de mudanças e acrescentamos, de resistência, presentes na sociedade contemporânea, sobretudo frente ao avanço de ideais e políticas neoliberais que põe em risco a educação e nossa democracia.
AGRADECIMENTOS
Este artigo foi apoiado com recursos do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe - PPGED/UFS, do Programa de apoio ao Pesquisador à Pós-Graduação - PROAP e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.
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Notas