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O SENSO COMUM NEOLIBERAL OBSCURANTISTA E SEUS IMPACTOS NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
EL SENTIDO COMÚN NEOLIBERAL OBSCURANTISTA Y SUS IMPACTOS EN LA EDUCACIÓN BRASILEÑA
THE OBSCURANTIST NEOLIBERAL COMMON SENSE AND ITS IMPACTS ON BRAZILIAN EDUCATION
O SENSO COMUM NEOLIBERAL OBSCURANTISTA E SEUS IMPACTOS NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Revista on line de Política e Gestão Educacional, vol. 24, núm. 1, Esp., pp. 715-736, 2020
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras
Recepção: 20 Fevereiro 2020
Revised document received: 30 Abril 2020
Aprovação: 28 Junho 2020
Publicado: 01 Agosto 2020
RESUMO: Tomando como referência as ideias de Antonio Gramsci sobre o que seria o senso comum, este artigo apresenta uma análise do senso comum neoliberal obscurantista e seus impactos na sociedade brasileira contemporânea e na educação. Ao contrário de algumas interpretações que separam o obscurantismo político-cultural do neoliberalismo, argumenta-se neste artigo que são duas faces da mesma moeda. A visão de mundo neoliberal, com sua vinculação da ideia de liberdade ao princípio de que a evolução social deva ser regida pela lógica do livre mercado, contém um tipo de racionalidade que conduz às mais irracionais formas de pensamento e de sociabilidade, tornando-se um terreno fértil para a difusão do obscurantismo beligerante.
PALAVRAS-CHAVE: Neoliberalismo, Obscurantismo, Senso comum.
RESUMEN: Tomando como referencia las ideas de Antonio Gramsci sobre lo que sería el sentido común, este artículo presenta un análisis del sentido común neoliberal oscurantista y sus impactos en la sociedad brasileña contemporánea y en la educación. Contrariamente a algunas interpretaciones que separan el oscurantismo político-cultural del neoliberalismo, se argumenta en este artículo que son las dos caras de la misma moneda. La cosmovisión neoliberal, al vincular la idea de libertad con el principio de que la evolución social debe regirse por la lógica del libre mercado, contiene un tipo de racionalidad que conduce a las formas más irracionales de pensamiento y sociabilidad, convirtiéndose en un terreno fértil para la propagación del oscurantismo beligerante.
PALABRAS CLAVE: Neoliberalismo, Oscurantismo, Sentido comum.
ABSTRACT: Based on Antonio Gramsci’s ideas about common sense, this article presents an analysis of obscurantist neoliberal common sense and its impacts on Brazilian contemporary society and education. Contrary to some interpretations that separate political-cultural obscurantism from neoliberalism, it is argued in this article that they are two sides of the same coin. The neoliberal worldview, connecting the idea of freedom to the assumption that social evolution should be ruled by the free market’s logic, contains a kind of rationality that leads to the most irrational forms of thought and sociability, becoming a fertile ground for the spread of belligerent obscurantism.
KEYWORDS: Neoliberalism, Obscurantism, Common sense.
Introdução
Delfim Neto, em entrevista concedida em 25/11/2019 ao Jornal Estadão, afirmou que o governo do Presidente Jair Bolsonaro teria um lado sombrio e um lado iluminado:
A área econômica tem ideias muito boas. As propostas do (ministro Paulo) Guedes são muito boas e a orientação também. Infelizmente, ele tem tido uma grande dificuldade, porque o governo tem dois lados: tem um lado sombrio e tem um outro que é iluminado. O lado sombrio tem feito muita estripulia, mas não tem conseguido atrapalhar de forma eficiente o lado iluminado. Mas o lado iluminado precisa dessa compreensão de que precisamos mobilizar os recursos para produzir o desenvolvimento do Brasil4.
O lado sombrio ao qual se refere Delfim Neto é, na verdade, o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, bem como assessores e ministros, como é o caso do ministro da educação, Abraham Weintraub, um dos muitos seguidores das ideias obscurantistas de Olavo de Carvalho. Não deixa de ser curioso que Delfim Neto faça essa referência a um lado iluminado, que seria o das ideias ultra neoliberais do ministro da economia, Paulo Guedes, que participa de um governo sombrio. Afinal, Delfim Neto foi ministro da Fazenda, da Agricultura e do Planejamento durante governos da ditadura militar que perdurou de 1964 a 1985, um dos períodos mais sombrios da história brasileira no século XX (NETTO, 2014). Teria ele sido, então, parte do lado iluminado do regime ditatorial? Mais importante, porém, são as perguntas: O neoliberalismo pode ser considerado o lado iluminado de um governo? A união entre o assim chamado “livre mercado” e o obscurantismo beligerante é meramente circunstancial? É só uma questão do quanto esse obscurantismo consiga ou não atrapalhar a política econômica?
Neste artigo é defendida a tese de que o neoliberalismo e o obscurantismo são duas faces da mesma moeda e que, portanto, não se sustenta a visão dualista de uma face iluminada e uma face sombria. A ideologia neoliberal não é, porém, apenas uma política de governo, ela vem impregnando a sociedade brasileira desde o final da década de 1980, com a eleição de Fernando Collor de Melo para a presidência da república e, na década de 1990, com a implantação do Plano Real assinado por Fernando Henrique Cardoso. Os governos de Lula e Dilma Roussef continuaram a adotar políticas econômicas que, no essencial, seguiam as diretrizes neoliberais, mesmo que por vezes viessem acompanhadas de medidas de alguma inspiração social-democrata no campo das chamadas políticas sociais. A defesa das diferenças no campo cultural na forma da política das identidades não se constituiu em barreira à difusão da mentalidade neoliberal, ao contrário, aliou-se a ela por meio da ideologia do empreendedorismo que transformou o resgate das culturas locais em nichos de mercado. Insidiosamente o neoliberalismo foi assumindo a função de infraestrutura ideológica, de modus operandi da subjetividade brasileira. É necessário, portanto, analisar-se o que constitui essa visão neoliberal da sociedade e da vida e por quais caminhos ela conduziu o Brasil ao obscurantismo beligerante, com visíveis consequências negativas para a sociabilidade, a cultura e educação em nosso País.
Com esse objetivo, é empregado, neste texto, como ferramenta analítica, o conceito gramsciano de senso comum. O primeiro cuidado metodológico deve ser o de não se limitar o significado do conceito ao próprio senso comum, ainda que seja o senso comum acadêmico. O primeiro item deste artigo será, portanto, voltado para a reflexão filosófica sobre o senso comum formulada na obra Cadernos do Cárcere, de Antonio Gramsci, especialmente o volume 1 (GRAMSCI, 1999). No segundo item serão analisadas algumas das principais características da visão de mundo neoliberal e no terceiro item será objeto de análise o obscurantismo beligerante, buscando-se evidenciar que ele está longe de ser um aliado constrangedor para o neoliberalismo, supostamente indiferente às questões ideológicas e focado nos frios números do mercado. A irracionalidade anti-humanista do obscurantismo beligerante é uma consequência absolutamente lógica da racionalidade economicista neoliberal.
O senso comum e as concepções de mundo segundo Antonio Gramsci
Primeiramente é necessário explicitar que, em razão dos limites de tamanho do artigo não será possível neste item dialogar com a extensa bibliografia sobre o pensamento gramsciano e especificamente sobre sua concepção de senso comum. Será apresentada apenas uma interpretação de como Gramsci relacionava o senso comum e a luta hegemônica entre concepções de mundo antagônicas. Conforme explicitado na introdução do artigo, o objetivo dessa breve incursão na reflexão gramsciana sobre o senso comum é o de fundamentar a análise, nos itens seguintes, do senso comum obscurantista neoliberal.
Os autores deste artigo, entretanto, não desconsideram a possibilidade de questionamentos da leitura aqui apresentada a partir de outras interpretações defendidas por estudiosos brasileiros e estrangeiros da obra do pensador sardo.
Para Antonio Gramsci, todas as pessoas formam em sua vida cotidiana uma “filosofia espontânea”, ou seja, uma visão de mundo que, na maioria das vezes, carece de autoconsciência. Segundo Gramsci essa filosofia estaria contida:
1) na própria linguagem, que é um conjunto de noções e de conceitos determinados e não, simplesmente, de palavras gramaticalmente vazias de conteúdo; 2) no senso comum e no bom senso; 3) na religião popular e, consequentemente, em todo o sistema de crenças, superstições, opiniões, modos de ver e de agir que se manifestam naquilo que geralmente se conhece por “folclore” (GRAMSCI, 1999, p. 93, aspas no original).
Pelo fato de todas as pessoas formarem em sua vida cotidiana essa filosofia espontânea, todos seríamos, segundo Gramsci, filósofos, entendendo-se isso, porém, num sentido bastante lato, ou seja, de que todos temos ideias sobre o mundo e a vida. A espontaneidade dessa “filosofia” formada na cotidianidade não é vista por Gramsci como expressão da autonomia intelectual e moral dos indivíduos, mas sim como resultado de uma relação passiva com o mundo que precisa ser superada caso se tenha a perspectiva de conquista dessa autonomia:
Após demonstrar que todos são filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente - já que até mesmo na mais simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está contida uma determinada concepção do mundo - passa-se ao segundo momento, ao momento da crítica e da consciência, ou seja, ao seguinte problema: é preferível “pensar” sem disto ter consciência crítica, de uma maneira desagregada e ocasional, isto é, “participar” de uma concepção de mundo “imposta” mecanicamente pelo ambiente exterior, ou seja, por um dos muitos grupos sociais nos quais todos estão automaticamente envolvidos desde sua entrada no mundo consciente (...), ou é preferível elaborar a própria concepção do mundo de uma maneira consciente e crítica e, portanto, em ligação com este trabalho do próprio cérebro, escolher a própria esfera de atividade, participar ativamente na produção da história do mundo, ser o guia de si mesmo, e não mais aceitar do exterior, passiva e servilmente, a marca da própria personalidade? (GRAMSCI, 1999, p. 93-94, aspas no original).
A questão do senso comum situa-se nessa perspectiva de se partir do pensar espontâneo, da concepção de mundo assimilada sem autoconsciência, para se fazer a crítica e se avançar em direção à elaboração da própria visão do mundo, da atividade autodirigida, da participação consciente na história humana e da transformação da própria personalidade. Esse processo é, ao mesmo tempo, subjetivo e objetivo, individual e coletivo, fazendo parte, na visão de Gramsci, de um conjunto de ações voltadas à elevação generalizada do nível cultural das “classes subalternas” (GRAMSCI, 1999, p. 388) e superação da subordinação do senso comum à ideologia da classe dominante.
A filosofia da práxis, isto é, o marxismo, não pode adotar nem uma atitude elitista, que seria contrária à própria essência de uma visão de mundo socialista, nem uma perspectiva populista na qual o povo é mantido no nível cultural do senso comum:
A filosofia da práxis não busca manter os “simples” na sua filosofia primitiva do senso comum, mas busca, ao contrário, conduzi-los a uma concepção de vida superior. Se ela afirma a exigência do contato entre os intelectuais e os simples não é para limitar a atividade científica e para manter uma unidade no nível inferior das massas, mas justamente para forjar um bloco intelectual-moral que torne politicamente possível um progresso intelectual de massa e não apenas de pequenos grupos intelectuais. (GRAMSCI, 1999, p. 103, aspas no original).
Em que consiste, porém, a superação do senso comum em direção uma concepção de mundo superior? Gramsci não responde a essa pergunta a partir de juízos de valor apriorísticos, mas sim a partir da história humana e das conquistas do pensamento ao longo dessa história:
Pela própria concepção de mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham o mesmo modo de pensar e agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção de mundo, portanto, significa torna-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido pelo pensamento mundial mais evoluído. Significa também, portanto, criticar toda a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificações consolidadas na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que é realmente, isto é, um “conhece-te a ti mesmo” como produto do processo histórico até hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços acolhidos sem análise crítica. Deve-se fazer, inicialmente, essa análise (GRAMSCI, 1999, p. 94, aspas no original).
Como foi mencionado, essa concepção de mundo que se forma em cada pessoa de maneira espontânea, heterogênea, incoerente e desestruturada, sofre as influências da linguagem, do senso comum e da religião popular. Ocorre que há uma mútua influência entre esses três elementos. Por exemplo, o senso comum é, segundo Gramsci, fortemente influenciado pela religião popular, a qual é diferente das doutrinas religiosas em suas formas mais sistemáticas e institucionalizadas, caracterizando-se, tal como o senso comum, como uma sobreposição de ideias de todo tipo que não mantêm entre si relações de coerência e não constituem um pensamento unitário e lógico. Aliás, é importante também assinalar que o senso comum, do ponto de vista da lógica de pensamento, não alcança o nível do pensamento lógico-formal mais evoluído, muito menos o nível do pensamento dialético. Por esse motivo, Gramsci cogita sobre a necessidade do ensino do pensamento lógico formal, por analogia ao fato de ser necessário o ensino da leitura e da escrita às crianças. Num item sobre a “técnica do pensar”, Gramsci discorre sobre o significado de uma afirmação feita por Engels em seu livro Anti-Dühring, de que a “a arte de operar com os conceitos não é algo inato ou dado na consciência comum, mas é um trabalho técnico do pensamento, que tem uma longa história, tanto quanto a pesquisa experimental das ciências naturais” (Engels apud GRAMSCI, 1999, p. 179), citada num livro de Benedetto Croce. Gramsci anota que a citação deve ser conferida no original para se verificar seu contexto mais geral. O trecho mais amplo no qual se insere essa citação encontra-se no prefácio escrito por Engels em 1885 à segunda edição de seu livro:
Em todo caso, a ciência da natureza está hoje na situação de não mais poder fugir à síntese dialética. A compreensão do pensamento dialético facilitará a síntese, desde que não perca de vista que os resultados, em que se resumem suas experiências, são outros tantos conceitos, e a arte de operar com eles não é nem inata nem dada pelo senso comum ordinário, mas exige uma verdadeira ação do pensamento, que, por sua vez, é possuidor de uma longa história experimental, da mesma forma que a investigação empírica da natureza (ENGELS, 1979, p. 13).
Gramsci comenta que Croce teria se espantado com uma possível reabilitação da lógica formal que estaria implícita à afirmação de Engels. Ocorre que sem o domínio da lógica formal não pode haver o domínio da lógica dialética, já que as relações entre a segunda e a primeira são de superação por incorporação e não de mero abandono. Nesse sentido, a elevação do nível cultural da população em geral não pode deixar de enfrentar o problema de que o pensamento aprisionado ao nível do mais elementar senso comum não chega a dominar a lógica formal como gramática básica do pensamento:
Deve-se ver na afirmação de Engels, ainda que expressa em termos não rigorosos, esta exigência metodológica que é tão mais viva quanto mais a referência subentendida é feita não para os intelectuais e para as chamadas classes cultas, mas para as massas populares incultas, para as quais é ainda necessária a conquista da lógica formal, da mais elementar gramática do pensamento e da língua (GRAMSCI, 1999, p. 181).
Há, portanto, nesse processo de superação do senso comum, uma dialética entre conteúdos e formas do pensamento, sintetizando-se preocupações de ordem política, ética, lógica, epistemológica, psicológica e pedagógica. É por isso que Gramsci não separava a produção de novos conhecimentos da socialização dos conhecimentos já existentes:
Criar uma nova cultura não significa apenas fazer individualmente novas descobertas “originais”; significa também, e sobretudo, difundir criticamente as verdades já descobertas, “socializa-las” por assim dizer; e, portanto, transformá-las em base de ações vitais, em elemento de coordenação e de ordem intelectual e moral. O fato de que uma multidão de homens seja conduzida a pensar coerentemente e de maneira unitária a realidade presente é um fato “filosófico” bem mais importante e “original” do que a descoberta, por parte de um “gênio” filosófico de uma nova verdade que permaneça como patrimônio de pequenos grupos intelectuais (GRAMSCI, 1999, p. 95-96).
Mas essa socialização das verdades já descobertas e sua transformação em base de ações vitais choca-se com a dinâmica essencialmente privatista e competitiva da sociedade capitalista, especialmente nas últimas décadas do século XX e nas duas primeiras décadas deste século XXI em que as reconfigurações do sistema produtivo e as reordenações político-sociais neoliberais têm acentuado o caráter anticoletivo, elitista, desumano, imediatista e inconsequente da sociabilidade capitalista. Não é por acaso que a ideologia neoliberal obscurantista faz todos os esforços possíveis na direção da socialização do irracionalismo que, como explicou Marx, é a forma de pensar mais adequada ao modus operandi da economia capitalista.
As mediações das formas irracionais em que se apresentam e se resumem determinadas condições econômicas não importam nada aos agentes práticos dessas condições econômicas em sua atividade cotidiana, e estes, por estarem acostumados a se mover no interior delas, não ficam nem um pouco escandalizados com isso. Uma absoluta contradição não tem nada de misterioso para eles. Dentro das formas de manifestação que, abstraídas de seu contexto e tomadas isoladamente, são absurdas, eles se sentem tão à vontade quanto um peixe na água (MARX, 2017, p. 1017).
Essa passagem é citada por Lukács em seu livro A Destruição da Razão (LUKÁCS, 1981) ao analisar, no epílogo, o irracionalismo da sociedade capitalista posterior à segunda guerra mundial. Também é mencionada por Karel Kosik em seu livro Dialética do Concreto, no capítulo onde é analisado o que o filósofo tcheco chama de mundo da pseudoconcreticidade (KOSIK, 1976). Essas “formas irracionais” às quais se refere Marx possuem características comuns às várias fases históricas das relações sociais capitalistas e características específicas a cada uma dessas fases. No próximo item deste artigo serão analisadas algumas formas pelas quais essa irracionalidade vem se reproduzindo e se ampliando na fase neoliberal do capitalismo.
A “racionalidade irracional” (obscurantista) do neoliberalismo
A influência do neoliberalismo na formação do senso comum brasileiro nas últimas décadas pode ser identificada em vários aspectos do pensamento e das ações das pessoas em seu cotidiano. Um deles é a ideia de que o mercado é o melhor mecanismo de satisfação das necessidades dos indivíduos, que se traduz no generalizado juízo aprioristicamente negativo em relação aos serviços prestados pelas instituições públicas e na também generalizada (embora nunca provada) crença de que a iniciativa privada é mais eficiente e presta serviços de melhor qualidade. Outro elemento do neoliberalismo incrustado no senso comum é a absoluta naturalização e eternização do capitalismo em sua forma atual. As pessoas se recusam a pensar em alternativas e se mostram hostis a qualquer iniciativa de proposição de projetos de outras formas de organização da sociedade e da vida. Ser criativo tornou-se imperativo desde que, porém, a criatividade fique restrita à lógica de mercado, jamais ultrapasse esse limite pois isso será considerado transgressão, patologia e criminalidade. Também faz parte desse senso comum neoliberal a competição adotada como princípio de vida e como valor moral, já que o mundo se divide em “bem-sucedidos” e “fracassados”, sendo os primeiros considerados merecedores do êxito e tomados como modelos de individualidade e de maneira de conduzir a vida. Claro que nessa visão de mundo a medida do sucesso é o dinheiro, o modelo de ser humano é o empresário bem sucedido e o indivíduo que possa ostentar um padrão de vida infinitamente distante das condições materiais de existência da grande maioria das pessoas. Finalmente, um elemento do senso comum neoliberal que está diretamente relacionado à educação escolar é o de que só têm valor os conhecimentos que tenham aplicação prática imediata e, mais do que isso, que sejam úteis para se ganhar dinheiro. Esse utilitarismo, porém, não é necessariamente realista, mesmo numa perspectiva estritamente pragmática. Muitas vezes os conhecimentos que são considerados úteis para se ganhar dinheiro são pura ilusão como é o caso das palestras de autoajuda, dos coachings de empreendedorismo e similares. Esse amálgama de ideias não é isento de consequências éticas, ao contrário, tem um forte impacto sobre os valores que de fato guiam as ações das pessoas, que podem estar em conflito com outros valores que as pessoas dizem que adotam e até mesmo acreditam que adotem. Quando Gramsci afirma que o senso comum não exige coerência isso se aplica tanto à gramática elementar do pensamento como também à questão ética. A multiplicação e o acirramento dos preconceitos, a apologia da violência como forma de solução dos problemas sociais, a celebração das gigantescas desigualdades sociais como merecida recompensa aos “vencedores”, a indiferença para com o sofrimento alheio, a despreocupação com o mundo que será deixado às futuras gerações, são apenas alguns poucos exemplos de juízos de valor contidos em ações e atitudes alimentadas pelo senso comum neoliberal. Essa ética do povo escolhido pode chegar, no limite, ao cultivo do ódio ao “inimigo” e da defesa de seu extermínio, encontrando sua manifestação estética em painéis construídos com cartuchos de balas de armas de fogo.
Esse senso comum estaria em sintonia com as elaborações dos teóricos neoliberais ou seriam distorções da visão de mundo por eles preconizada? Na sequência será argumentado que há uma forte sintonia entre as principais ideias difundidas pelos ideólogos do neoliberalismo e o senso comum contemporâneo, o que demonstra que as estratégias de doutrinação da população adotadas pelos intelectuais orgânicos da classe dominante têm apresentado alto nível de eficácia. É necessário um breve excurso histórico sobre as origens do neoliberalismo antes da apresentação do que postulam seus intelectuais.
Ao longo da história de ascensão da burguesia ao poder e consolidação do capitalismo, o pensamento liberal vai se modificando para se adaptar às necessidades dessa classe social, inicialmente na luta contra o antigo regime e posteriormente no embate com a classe trabalhadora, gerando vertentes de pensamento com denominações diversas, tais como: neoliberalismo, pós-liberalismo, liberalismo conservador, liberalismo social, nova direita, entre outras. Como explica Saviani (1991, p. 78-79) originalmente o termo “neoliberalismo” se referia às abordagens keynesianas, que buscaram responder à crise econômico-social instaurada pela quebra da bolsa de Nova Iorque e pela grande depressão subsequente reconhecendo o papel do Estado e do investimento público como mitigadores dos efeitos sociais dessa crise e propulsores da recuperação econômica. Essa abordagem, embora situada no campo liberal, encampou ideias e teses da social democracia e do “estado de bem estar social”, configurando também uma resposta ao avanço do socialismo no pós-segunda guerra. Com a queda do modelo soviético, o termo “neoliberal” passa a designar o movimento de retomada e mesmo radicalização de algumas das teses clássicas do liberalismo, dando suporte teórico e ideológico a políticas de privatização, desregulamentação, ataque aos sindicatos, etc., que serão a marca de governos como o de Ronald Reagan (1981-1989) nos EUA, Margareth Thatcher (1979-1990) no Reino Unido e, como caso emblemático na América Latina, da sangrenta ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) no Chile.
Vários autores (DERISSO; DUARTE, 2017; GENTILI, 1996; HARVEY, 2007) têm apontado os impactos negativos e os efeitos deletérios das políticas e das “reformas” econômicas e educacionais inspiradas nos princípios neoliberais, sua vinculação à agenda de instituições como o Banco Mundial (BASTOS; ROCHA, 2017, SILVA; SOARES, 2018), a crescente influência de fundações e entidades ligadas ao empresariado na concepção e aplicação dessas políticas (COSTOLA; BORGHI, 2018), os programas educacionais de cunho neoliberal implementados no contexto latino-americano (CARVALHO; RAMALHO; SANTOS, 2019) dentre outros aspectos de grande relevância.
No entanto, esses estudos têm, de certo modo, destacado mais o lado “luminoso” do neoliberalismo, ainda que sob uma perspectiva crítica, apontando a “lógica” e a “racionalidade” neoliberais que estão subjacentes a determinados discursos difundidos no Brasil e na América Latina (KLAUS; LEANDRO, 2020), bem como a influência dessa racionalidade no contexto da escola (TREVISOL; ALMEIDA, 2019) e da formação de professores (SILVA; SOARES, 2018).
Aliás, de modo geral, o neoliberalismo se apresenta no debate educacional como grande defensor da “racionalização”, do melhor aproveitamento de recursos, da busca de maior qualidade, eficiência e eficácia da escola. Esses proclamados elogios à racionalidade, às ações baseadas em evidências científicas, à valorização de técnicos e especialistas, etc., acabam por ocultar os nexos entre os movimentos no sentido da privatização das escolas (ou mesmo sua substituição pelo ensino domiciliar), a aplicação à escola da gestão em moldes empresariais, a disseminação do ensino a distância e da utilização das “novas tecnologias” como substitutos da aula presencial, entre outras ações e o obscurantismo beligerante que se apresenta por meio de iniciativas como o movimento chamado “escola sem partido”, as tentativas de censura de conteúdos em materiais didáticos, o desprezo pelo conhecimento científico e mesmo a defesa da tortura e do assassinato de opositores como política de governo. Para tentar desnudar esses nexos é necessário explicitar alguns elementos da concepção neoliberal de ser humano e de mundo e sua conexão com os processos de alienação do trabalho e da atividade cotidiana nas quais o senso comum se forma e serve de guia para as escolhas individuais.
Foge ao escopo deste texto fazer uma síntese do pensamento neoliberal em suas diversas vertentes e nuances. Com a finalidade de indicar caminhos para a discussão do tema deste artigo, serão focalizadas algumas ideias do economista Milton Friedman, um dos principais representantes da chamada “escola de Chicago”, cujo pensamento forneceu suporte teórico ao modelo econômico e educacional implantado de modo mais acentuado no Chile e constitui umas das referências do ministro da Economia do governo Jair Bolsonaro, Paulo Guedes.
No seu livro Capitalismo e Liberdade (FRIEDMAN, s/d) o autor começa por rejeitar a famosa afirmação de John Kennedy em seu discurso de posse: "Não pergunte o que sua pátria pode fazer por você - pergunte o que você pode fazer por sua pátria". Para Friedman as duas perguntas estão equivocadas pois,
Para o homem livre, a pátria é o conjunto de indivíduos que a compõem, e não algo acima e além deles. O indivíduo tem orgulho de sua herança comum e mantém lealdade a uma tradição comum. Mas considera o governo como um meio, um instrumento - nem um distribuidor de favores e doações nem um senhor ou um deus para ser cegamente servido e idolatrado. Não reconhece qualquer objetivo nacional senão o conjunto de objetivos a que os cidadãos servem separadamente. Não reconhece nenhum propósito nacional a não ser o conjunto de propósitos pelos quais os cidadãos lutam separadamente (p. 5).
Essa concepção de país e sua penetração no senso comum ajudam a compreender a aparente incoerência de grupos que pregam o patriotismo, usam intensamente símbolos nacionais e slogans como “Pátria Amada”, “Brasil acima de todos”, ao mesmo tempo que apoiam a venda de empresas públicas, a entrega de recursos naturais como o petróleo e as florestas a interesses privados, inclusive estrangeiros, aceitam a subserviência explícita a outros países, etc. Tais ações se mostram justificadas pelas alegadas vantagens que poderão trazer a esses indivíduos, como: novos empregos, aumento da renda ou quaisquer outras vantagens ou benefícios pessoais mais imediatos. Possíveis consequências negativas dessas decisões para o futuro do país não são consideradas, já que não existe um projeto de longo prazo a ser concretizado e objetivos tais como: reduzir as desigualdades, melhorar a educação, a saúde e a segurança são remetidos para a esfera da responsabilidade e do esforço individual.
Nessa lógica, para que serve o governo? Para Friedman
O governo é necessário para preservar nossa liberdade, é um instrumento por meio do qual podemos exercer nossa liberdade; entretanto, pelo fato de concentrar poder em mãos políticas, ele é também uma ameaça à liberdade. […] Sua principal função deve ser a de proteger nossa liberdade contra os inimigos externos e contra nossos próprios compatriotas; preservar a lei e a ordem; reforçar os contratos privados; promover mercados competitivos (p. 5).
Questões como: a preservação da vida, da saúde e dos direitos humanos, garantia de acesso à educação de qualidade e outras não fazem parte, portanto, das funções do Estado na lógica neoliberal. No campo das políticas educacionais isso cria um aparente paradoxo: ainda que proponham uma série de iniciativas no sentido de ajustar a escola e o os sistemas de ensino aos interesses empresariais e a às demandas do mercado, a pretexto de melhorar sua eficiência, essas iniciativas acabam na prática por inibir, desorganizar e tornar ineficaz a ação do poder público, de modo a reforçar junto aos trabalhadores a ideia, já amplamente disseminada no senso comum, de que o Estado é ineficiente e corrupto e cabe aos indivíduos e famílias buscarem por conta própria e no setor privado a solução para seus problemas.
Assim como o governo, a educação teria uma função limitada na concepção neoliberal, embora imprescindível, uma vez que
Uma sociedade democrática e estável é impossível sem um grau mínimo de alfabetização e conhecimento por parte da maioria dos cidadãos e sem a ampla aceitação de algum conjunto de valores. A educação pode contribuir para esses dois objetivos (p. 49).
No entanto, tudo que ultrapassa esse mínimo de conhecimento e foge aos valores “amplamente aceitos” pode ser caracterizado como doutrinação e ameaça à liberdade de pensamento e de crença dos alunos e suas famílias:
A linha que deve existir entre a necessidade de estabelecer uma base comum de valores para garantir a estabilidade de uma sociedade, de um lado, e o trabalho de doutrinação inibindo a liberdade de pensamento e de crença, de outro, é mais uma dessas fronteiras vagas, mais fáceis de citar do que de definir (p. 51).
É possível perceber a convergência desses pressupostos com os preceitos do obscurantismo beligerante que tenta atribuir às famílias e aos alunos como indivíduos a prerrogativa de denunciar conteúdos e comentários dos professores que contrariem suas crenças religiosas e concepções políticas. Também fica evidenciada a relação entre esses pressupostos e a intenção de tornar rarefeitos os conteúdos escolares a fim de manter os estudantes, sobretudo das camadas populares, limitados ao senso comum, às crenças religiosas inculcadas pela família e aos valores dominantes na sociedade capitalista.
Como deveria funcionar a educação escolar na perspectiva de Friedman? O autor apresenta sua conhecida proposta dos vouchers:
O governo poderia exigir um nível mínimo de instrução financiada dando aos pais uma determinada soma máxima anual por filho, a ser utilizada em serviços educacionais "aprovados". Os pais poderiam usar essa soma e qualquer outra adicional acrescentada por eles próprios na compra de serviços educacionais numa instituição "aprovada" de sua própria escolha (p. 51).
Nesse modelo, a decisão sobre os conteúdos curriculares e formas de ensino ficaria sob total controle das famílias, uma vez que:
Se os investimentos atuais em instrução fossem postos à disposição dos pais independentemente de para onde enviassem seus filhos, ampla variedade de escolas surgiria para satisfazer a demanda. Os pais poderiam expressar sua opinião a respeito das escolas diretamente, retirando seus filhos de uma escola e mandando-os para outra - de modo muito mais amplo do que é possível agora (p. 52).
Para o autor, deixar as famílias usarem o subsídio público para pagar pelos “serviços” educacionais traria uma vantagem adicional de induzir os pobres a terem menos filhos dada a perspectiva de terem que arcar com parte do custo da sua educação (p. 45). O que se depreende dessas teses é a ideia de que os trabalhadores que vivem em situação de miséria ou pobreza são os verdadeiros responsáveis pela sua própria condição. Corroborando essa ideia, o Ministro Paulo Guedes afirmou em entrevista que “um menino, desde cedo, sabe que ele é um ser de responsabilidade quando tem que poupar. Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo” (FSP, 3/11/2019).5
Embora Friedman admita que as primeiras etapas do ensino deveriam contar com financiamento público (ainda que por meio de vouchers e de uma “saudável” competição entre escolas públicas e privadas pelos recursos), nas etapas posteriores e sobretudo no ensino superior o autor defende que o investimento deve vir somente das famílias, uma vez que se trata de obter depois um retorno por meio de salários melhores. Ao expor seus argumentos, revela aspectos importantes da sua concepção sobre o ser humano e o lugar do trabalhador na sociedade capitalista.
Trata-se de uma forma de investimentos em capital humano precisamente análoga ao investimento em maquinaria, instalações ou outra forma qualquer de capital não humano. Sua função é aumentar a produtividade econômica do ser humano. Se ele se se tornar produtivo, será recompensado, numa sociedade de empresa livre, recebendo pagamento por seus serviços - mais alto do que receberia em outras circunstâncias. Essa diferença no retorno é o incentivo econômico para o investimento de capital - quer sob a forma de uma máquina quer em termos de ser humano (FRIEDMAN, s/d, p. 56).
As considerações do autor indicam que, para ele, a relação entre o trabalhador e a máquina, do ponto de vista do capital, é mais que mera analogia, o sistema de financiamento baseado nos atuais em contratos de valor fixo que têm juros altos pelo fato de que o capitalista tem mais dificuldade para tomar de volta o investimento, ao contrário de um bem físico, que é dado em garantia.
Se for feito o mesmo empréstimo para aumentar o poder ou capacidade produtiva de um ser humano, não se pode evidentemente obter garantia comparável. Num Estado em que não existe escravatura, o indivíduo que representa o investimento não pode ser comprado ou vendido. Mesmo se pudesse, a segurança não seria a mesma (p. 57).
A proposta do autor é um contrato em que o estudante universitário vende uma parte dos seus ganhos futuros, sendo que Friedman avalia que isso seria vantajoso para ambas as partes, embora tais contratos possam “ser considerados escravidão parcial” (p. 58). É possível perceber novamente um aparente paradoxo do neoliberalismo: em nome da defesa absoluta da liberdade individual de fazer trocas no mercado, torna-se aceitável até mesmo a escravidão ou semiescravidão, desde que seja contratada de modo “voluntário” pelas partes.
Esse aparente paradoxo se explicita mais claramente quando Friedman discute a relação entre a liberdade econômica e a liberdade política:
A História somente sugere que o capitalismo é uma condição necessária para a liberdade política, mas, evidentemente, não é uma condição suficiente. A Itália fascista e a Espanha fascista, a Alemanha em diversas ocasiões nos últimos setenta anos, o Japão antes da Primeira e da Segunda Guerra Mundial e a Rússia czarista nas décadas anteriores à Primeira Guerra Mundial, constituem claramente sociedades que não podem, de modo algum, ser consideradas como politicamente livres. Entretanto, em cada uma delas, a empresa privada era a forma dominante da organização econômica. É, portanto, claramente possível haver uma organização econômica fundamentalmente capitalista e uma organização política que não seja livre. Mesmo nessas sociedades, os cidadãos tinham uma cota de liberdade maior que a dos cidadãos dos modernos Estados totalitários como a Rússia ou a Alemanha nazista, nos quais o totalitarismo econômico aparece combinado com o totalitarismo político. Mesmo na Rússia czarista, era possível para alguns cidadãos, sob determinadas circunstâncias, mudar de emprego sem ter que solicitar permissão a uma autoridade política, porque o capitalismo e a existência da propriedade privada permitiam algum controle sobre o poder centralizado do Estado (p. 9).
Nessa lógica, regimes ditatoriais e fascistas que prenderam, torturaram e assassinaram milhares de pessoas inocentes tiveram pelo menos o “mérito” de manter a empresa privada e a liberdade econômica. Não é de se estranhar, portanto, que Friedman e seus “Chicago boys” tenham assessorado a implantação de políticas econômicas neoliberais pela sangrenta ditadura comandada pelo general Augusto Pinochet no Chile. Não é por acaso também que Hayek, outro grande ideólogo do neoliberalismo tenha expressado sua avaliação positiva desse experimento histórico em entrevista concedida ao professor colombiano de economia Diego Pizano Salazar:
- Diego Pizano: Na América Latina, as ideias de Friedman se associam particularmente com a política econômica do governo do Chile. - Hayek: Correto. Estive há algum tempo no Chile e descobri que o país está sendo administrado por membros do seminário de Friedman! - Diego Pizano: Que impressão você teve da situação chilena? Você considera que as ideias de Friedman estão operando bem no nível da prática? - Hayek: O sistema econômico está funcionando muito bem e a recuperação é extraordinária. Não tive oportunidade de conhecer em detalhe o sistema de controle político para ter uma opinião séria sobre ele. Porém, do ponto de vista econômico, o sistema é agora muito mais livre do que havia sido por muitos anos. Também creio que o tratamento que a imprensa internacional tem dado ao Chile é escandaloso (SALAZAR, 1980, p. 38-39).
Essa é mesma lógica que leva setores da sociedade brasileira, inclusive da classe trabalhadora, a apoiar defensores da ditadura militar: a ilusória percepção de terem obtido melhoria das condições financeiras e de consumo nesse período, mesmo com as muitas restrições à liberdade, torturas e mortes6. Os pressupostos do neoliberalismo, ao reduzirem a liberdade humana ao ato de vender a força de trabalho para comprar mercadorias ou comprar essa força de trabalho para ampliar o capital conduzem os indivíduos a aceitarem processos de desumanização que podem até mesmo naturalizar a morte de milhares de pessoas como uma necessidade para “manter a economia funcionando”, como vem acontecendo durante a pandemia do COVID-19. A imersão nesse mundo da “pseudoconcreticidade” em que essas trocas se apresentam cria o terreno fértil para que o neoliberalismo, com sua celebração do egoísmo e da mesquinhez, possa penetrar no senso comum e dificultar a superação das condições objetivas que colocam a humanidade frente a crises financeiras, ecológicas e sanitárias cada vez mais agudas e ameaçadoras.
Há mais um elemento da teoria neoliberal que precisa ser aqui abordado por estar conectado diretamente ao fenômeno do irracionalismo. Trata-se da concepção neoliberal da capacidade humana de compreensão da realidade. Hayek expressava claramente sua tese de que a inteligência humana não é capaz de dirigir conscientemente o desenvolvimento da sociedade e da própria natureza humana e que, portanto, o melhor a se fazer é confiar no processo de evolução espontânea, o que justificaria, por consequência, a confiança no desenvolvimento produzido pelo mercado e pela competição econômica. Querer construir deliberadamente uma sociedade melhor do que aquela em que vivemos seria, nesse sentido, um erro decorrente da incompreensão dos limites do conhecimento:
Estou consciente que o mundo no qual vivemos é o resultado de um processo de evolução que não podemos controlar. Podemos tentar interferir nele (tinker with it, para a usar a expressão de Popper); isto é, podemos tratar de melhorá-lo aqui e ali, porém o desenvolvimento global escapa a nossas possibilidades. Os alemães têm uma boa palavra para descrever isso, Machbarkeit7, que expressa a noção que se pode construir o mundo de acordo com um projeto. Esta noção está essencialmente equivocada e isso fica muito claro se se entende como a mente humana e a totalidade da civilização se desenvolveram. O mundo em que vivemos não foi planejado por nenhuma inteligência em particular e o ser humano não tem a capacidade para tê-lo planejado de forma inteligente (HAYEK, apudSALAZAR, 1980, p. 43, grifo do autor).
Para Hayek, portanto, a capacidade humana de conhecimento e compreensão da realidade limita-se às ações voltadas ao ambiente imediatamente à volta dos indivíduos. A realidade social como totalidade não é acessível à nossa inteligência, o que torna inviável e, portanto, irresponsável, qualquer tentativa de direção consciente dos rumos da sociedade. Tudo o que nos resta é criar formas de impedir qualquer restrição à liberdade de mercado e à evolução espontânea da sociedade. É o que poderia ser chamado de uma racionalidade que vai pouco além da ponta do nariz de cada indivíduo.
O obscurantismo beligerante
Nesse contexto de profundo arraigamento da visão de mundo neoliberal no senso comum de boa parte da população brasileira, vem se acirrando, nos últimos anos, as manifestações do obscurantismo com uma ostensiva entonação bélica, que se mostra não apenas na apologia do uso de armas de fogo pelo cidadão comum, como também pelas agressões físicas e verbais a pessoas que se tornam inimigas de determinados grupos sociais apenas porque expressam suas posições em relação a assuntos polêmicos ou a atitudes de determinados líderes políticos. Por essa razão esse obscurantismo pode ser adjetivado como beligerante.
Embora esse tipo de obscurantismo tenha características próprias à atualidade, como o uso das redes sociais e das “fake news”, trata-se de um fenômeno já antigo na história das sociedades. O caso “clássico” de obscurantismo foram os tribunais da Inquisição que condenaram Giordano Bruno à morte na fogueira (SILVEIRA, 2018) e obrigaram Galileu Galilei a apresentar uma humilhante abjuração (BAIARDI; SANTOS; RODRIGUES, 2012). O século XX foi tão pródigo em obscurantismos de direita e de esquerda que seria impossível apresentar aqui todas suas manifestações. Serão inevitáveis, porém, algumas breves considerações sobre os significados do termo “obscurantismo”.
Segundo dicionário Aulete online, os significados de obscurantismo são: “1) estado de quem se acha na escuridão; 2) falta ou recusa de instrução; ignorância; 3) tendência política a dificultar o progresso intelectual ou o acesso do povo tanto à ciência como às artes, com o fim de explorar suas crendices e superstições”8.
A falta de instrução não caracteriza necessariamente obscurantismo a não ser num sentido social mais amplo, relacionado à desigualdade das condições sociais para a escolarização das pessoas. Nesse caso poderia ser afirmado que a sociedade que não se esforça para permitir uma boa escolarização de todas as pessoas é geradora de obscurantismo. Já a recusa à instrução pode ser consequência de atitudes obscurantistas ou de experiências educacionais anteriores mal sucedidas e frustrantes. Embora seja comum se considerar ignorância como sinônimo de obscurantismo, isso não corresponde ao processo histórico de avanço do conhecimento, que é movido exatamente pela consciência de que existem aspectos da realidade que ainda não são conhecidos, que estão no campo de nossa ignorância e que desejamos e precisamos que passem ao campo do conhecido. Nesse caso a ignorância não se torna um obstáculo ao avanço do conhecimento, nem mesmo à difusão do conhecimento já existente. Quando, porém, há um esforço deliberado para que o conhecimento não avance ou para que as pessoas não tenham acesso aos conhecimentos já existentes, ou seja, um esforço para a manutenção da ignorância, temos o fenômeno do obscurantismo, tal como na terceira definição apresentada pelo citado dicionário. Cabe, porém, acrescentar a essa definição que o obscurantismo não luta apenas contra a ciência e a arte, mas contra qualquer ideia, atividade, atitude, visão do mundo que possa incentivar as pessoas a questionarem se a sociedade e a vida poderiam ser diferentes do que são na atualidade. O obscurantismo quer eternizar relações de poder que são favoráveis a determinados setores da sociedade e, para isso, precisa difundir preconceitos sobre qualquer pessoa, grupo ou linha de pensamento que possa pôr em questão essas relações de poder. A luta do obscurantismo contra o conhecimento é sempre uma luta política e socialmente reacionária, é uma reação à possibilidade de mudanças profundas nas estruturas e nas dinâmicas de uma sociedade.
Existe também outro possível significado para o termo obscurantismo que se refere à linguagem. O citado dicionário Aulete online, apresenta como um dos significados para o adjetivo “obscuro” o seguinte: “de difícil compreensão, confuso, ininteligível”9. Nesse caso, obscurantismo seria um fenômeno sociocultural no qual determinados discursos são elaborados de maneira a serem compreendidos por poucas pessoas e para produzirem a impressão de que são mais complexos e profundos do que realmente são e que somente pessoas com elevado nível de conhecimento e inteligência podem dominá-los. Os dois fenômenos podem estar conectados em certos contextos, como é o caso da tecnocracia econômica no capitalismo financeiro atual. Os economistas tornaram-se uma casta que fala uma linguagem dominada apenas por eles, o que impede a sociedade de debater democraticamente as políticas econômicas.
Mas Defim Neto, Paulo Guedes e outros intelectuais neoliberais poderiam argumentar que não procede a tese de conexão intrínseca entre o neoliberalismo e o obscurantismo. E poderiam citar em seu apoio (se tal citação não fosse inconveniente para seus interesses políticos num determinado momento) um postscript intitulado Why I’m not conservative que integra o livro The Constitution of Liberty (HAYEK, 2011). Nesse artigo o autor critica justamente a atitude obscurantista de rejeição apriorística de novos conhecimentos que pareçam ameaçar as crenças das pessoas:
Pessoalmente, acho que a característica mais censurável da atitude conservadora é sua propensão a rejeitar novos conhecimentos bem fundamentados, porque não gosta de algumas das consequências que parecem resultar deles ou, para colocar sem rodeios, seu obscurantismo. Não negarei que os cientistas, tanto quanto as demais pessoas, são dados a modismos e que temos muitos motivos para sermos cautelosos em aceitar as conclusões que tiram de suas últimas teorias. Mas as razões de nossa relutância devem ser racionais e devem ser mantidas separadas do fato de lamentarmos que as novas teorias perturbem nossas crenças queridas. Posso ter pouca paciência com aqueles que se opõem, por exemplo, à teoria da evolução ou às chamadas explicações “mecanicistas” dos fenômenos da vida simplesmente por causa de certas consequências morais que a princípio parecem derivar dessas teorias, e menos ainda com aqueles que consideram irreverente ou ímpio fazer certas perguntas. Ao se recusar a enfrentar os fatos, o conservador apenas enfraquece sua própria posição (HAYEK, 2011, p. 526).
É preciso, porém, entender que quando Hayek se refere nessa passagem a novos conhecimentos, ele tem em mente a aqui já mencionada restrição da capacidade humana de conhecer. De forma alguma os novos conhecimentos podem se dirigir à totalidade social ou fundamentar algum projeto de reorganização da sociedade. No plano social, de acordo com Hayek, o que as pessoas podem conhecer é aquilo que aprendem com ações individuais bem sucedidas que vão constituindo as instituições e a cultura, que não nasceram de planos conscientes. Isso fica bem claro no quarto capítulo desse livro, intitulado Freedom, Reason and Tradition (HAYEK, 2011, p. 107-132). Para o autor, a sociedade evolui por imitação de ações bem sucedidas que vão também se constituindo em regras de conduta que assumem a forma de tradições culturais que precisam ser seguidas sob pena de se perderem os avanços espontaneamente acumulados na sociedade. Já que nossos conhecimentos e nossa inteligência são incapazes de compreender o funcionamento da sociedade em seu todo, não seguir as regras que foram se formando a partir das ações bem sucedidas é colocar em risco a evolução. Também cabe não esquecer o que significa uma ação bem sucedida dentro da visão de mundo capitalista: trata-se de uma ação que resulte em ganhos econômicos. E quando Hayek se refere às boas instituições que surgiram espontaneamente na história humana o grande modelo é o mercado. Mais do que isso, o “livre mercado” é, para Hayek, a força civilizatória por excelência, que gera o progresso da humanidade até mesmo contra a vontade dos próprios seres humanos (HAYEK, 2011, p. 104).
A própria ideia de liberdade, que os neoliberais tanto dizem defender, transforma-se em autonegação, já que os seres humanos devem entregar a sorte da humanidade a um organismo, o mercado, que se lhes apresenta como um ser misterioso, possuidor de vida própria e sujeito do processo civilizatório. Encontramos aí outra forma de obscurantismo: a afirmação de que sempre agimos às escuras e, por essa razão, devemos confiar no mercado que, no fim das contas, fará com que a humanidade evolua mesmo contra sua própria vontade e a despeito da limitada capacidade humana de compreensão daquilo que resulta de nossas próprias ações. Não deixa de ser uma atitude de fé quase mística em algo que ultrapassaria os limites da razão humana.
Considerações finais
Dessa concepção da história humana, do conhecimento e dos mecanismos produtores de desenvolvimento não pode resultar outra visão de educação que não seja a de preparar as pessoas para a permanente adaptação às mudanças impostas pelo mercado à cotidianidade dos indivíduos. Não por acaso, no que se refere aos currículos escolares, nas últimas décadas houve um forte deslocamento do foco sobre conhecimentos teóricos para o foco na construção de competências e de conhecimentos derivados de práticas (WHEELAHAN, 2010).
Quais as possibilidades de a educação escolar brasileira engajar-se no esforço pela superação do senso comum obscurantista neoliberal? Os autores deste artigo entendem que a perspectiva que apresenta possibilidades mais efetivas de êxito é a organização de ações coletivas de valorização do trabalho docente como uma indispensável atividade de socialização do conhecimento em suas formas mais elaboradas e mais ricas, nas ciências da sociedade e da natureza, na arte e na filosofia. Os professores e as professoras têm sido estigmatizados como suspeitos da intenção de doutrinação das crianças e dos jovens brasileiros. É tempo de se mostrar que todos temos sido doutrinados pela ideologia neoliberal obscurantista e que a educação escolar, ao contrário do que afirmam os obscurantistas, é essencial para difusão de uma visão do mundo e da vida pautada no princípio de que a plena humanização de todas as pessoas é uma condição imprescindível à construção de um futuro sustentável para a humanidade.
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Notas