Dossiê Migrações Internacionais na Sociologia Contemporânea - Apresentação
Migrações Internacionais na Agenda Sociológica Contemporânea
International Migration on The Contemporary Sociological Agenda
Migrações Internacionais na Agenda Sociológica Contemporânea
Plural – Revista de Ciências Sociais, vol. 27, núm. 1, pp. 05-08, 2020
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH-USP
Recepção: 11 Outubro 2019
Aprovação: 30 Março 2020
O tema das migrações internacionais parece ter se inscrito de modo crescente e irreversível na agenda do planeta, seja nos moldes de fluxos mais tradicionais sul-norte, seja conformando novos fluxos de orientação sul-sul.
Segundo informações da Organização das Nações Unidas (ONU), jamais o planeta abrigou tantos indivíduos residindo fora de seus países de nascimento. Esse número só cresce: em 2019 atingiu 272 milhões, 14 milhões a mais que 2017 e 51 milhões a mais que em 2010. Em 2019, migrantes internacionais somaram 3,5% da população do planeta enquanto eram apenas 2,8% em 2000 e 2,3% em 1980. Mulheres e crianças representam respectivamente 48% e 14% do contingente total de migrantes internacionais, enquanto 60% são trabalhadores. Em termos de distribuição, por volta de 31% do total de indivíduos migrantes residem na Ásia, 30% na Europa, 26% nas Américas e apenas 3% na Oceania. Encontram-se compreendidos nestas cifras não apenas os que migram por escolha, mas também os que foram forçados a migrar (cerca de 70 milhões de pessoas).1
O Brasil não passa ao largo de tais tendências, mesmo que abrigue um número relativamente ainda modesto - porém crescente de migrantes internacionais. Nos últimos anos, por exemplo, assiste-se à predominância dos fluxos migratórios que aportaram ao país com origens localizadas no chamado “Sul Global” (entre eles angolanos, congoleses, bolivianos, venezuelanos, colombianos e argentinos), invertendo a lógica secular de migração oriunda, principalmente, do hemisfério Norte.
O presente número da Plural se abre com uma breve, porém instigante, entrevista com David Bartram, professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Leicester, no Reino Unido. O Prof. Bartram é também secretário do Comitê de Pesquisa sobre ‘Migração Internacional’ da International Sociological Association (ISA) e coeditor do Journal of Happiness Studies. Após destacar a relevância de se estudar migrações internacionais para a compreensão do mundo atual, Bartram destaca o papel das conexões sociais, ao mesmo tempo em que se diz estimulado para trabalhar na interseção entre estudos migratórios e estudos de felicidade. Além disso, Bartram opina sobre como vislumbra os potenciais impactos do BREXIT sobre o atual regime de cidadania europeia. Vale a pena conferir.
Em seguida, os primeiros dois artigos discutem aspectos distintos relacionados à nossa política migratória recente. Como sabemos, em 21 de novembro de 2017, entrou em vigor no país a Nova Lei de Migração, de feitio mais condizente com uma regulação mais atenta aos direitos humanos, e que substituiu o antigo Estatuto do Estrangeiro, cuja inspiração em muitos sentidos preconcebia o imigrante estrangeiro como uma ameaça à segurança nacional.
Entretanto, a partir de 2019, com a guinada autoritária à direita no governo que preside desde então o país, as conquistas derivadas da promulgação da Nova Lei de Migração vêm sendo sistematicamente questionadas. É o que mostram Svetlana Ruseishvili e João Chaves, ao analisar a recente Portaria 666, publicada em 2019 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, chamando a atenção para as contradições entre esta e a Lei promulgada em 2017. Apontam os autores que a nova portaria, ao retomar a velha retórica do imigrante “perigoso” - e, portanto, passível de deportação produz efeitos ameaçadores concretos na vida deste, (re)inaugurando um novo paradigma (de feitio conservador) das políticas migratórias nacionais.
Outra dimensão reveladora de nossos (des)tratos na recepção de imigrantes é destacada por Jéssica Yume Nagasaki, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz Assis e Eduardo Henrique Lopes Figueiredo que, ao discutirem a aplicabilidade da Convenção no. 105 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que justamente busca a erradicação do trabalho escravo no caso dos imigrantes venezuelanos vindos ao Brasil, concluem constatando a penúria de mecanismos de fiscalização disponíveis. Outros dois artigos focalizam grupos específicos de imigrantes em nosso território nacional. O primeiro deles, de autoria de Márcio de Oliveira, focaliza sírios e congoleses, que em conjunto dominam o cenário dos refugiados no Brasil, a maior parte deles residindo nas capitais de São Paulo e Rio de Janeiro. O autor argumenta que, muito embora dotados de capital escolar relativamente elevado, ambos os grupos enfrentam índices altos desemprego, sendo a principal diferença entre eles a questão racial. Não obstante, frente às piores condições encontradas nos países de origem, o retorno para ambos é ainda muito pouco cogitado.
Em seguida, Allisson Goes, Marcelo Souza e Marcelo Ennes examinam os mecanismos de solidariedade construídos entre chineses e sul-coreanos em Aracaju, capazes de sustentar o que denominam de dupla mobilidade (geográfica e social), que por sua vez engendra novas identidades e hierarquias sociais.
O artigo de Angelo Martins elege como tema os brasileiros emigrantes na Europa. O autor reclama uma maior atenção às conexões tecidas pelos emigrantes no país de envio e no de recepção, capazes de, no caso estudado, enriquecer a experiência de brasileiros em Londres, ao arrepio de tipologias migratórias tradicionais. O autor, utilizando-se do conceito de jornadas, argumenta que estas, ao levar em conta tanto as possibilidades do contexto político, econômico e cultural, quanto os recursos (marcadores sociais) individuais, moldam as experiências permanentemente atualizadas e renegociadas de brasileiros na capital britânica.
A presença de imigrantes de diversas origens na Europa também é abordada por Francisco J. S. A. Luís. O seu artigo adentra na complexidade de redes migratórias construídas por paquistaneses, indianos e bengalis em Portugal. O autor mostra que estratégias alternativas e informais são acionadas por eles como reação a contextos de acolhimento por vezes hostis. Nesses casos de vulnerabilidade, a ilegalidade passa a operar enquanto categoria classificatória e assume uma face inclusiva subalternizada, pois é acompanhada da construção de hierarquias, inclusive entre os próprios imigrantes.
O texto de Paula Alves de Almeida, José Eustáquio Diniz Alves e Denise Britz do Nascimento Silva busca chamar a atenção para as possibilidades da análise fílmica como método de pesquisa de temas estudados na demografia, estabelecendo as bases do subcampo por eles denominado de Cinedemografia. Entre tais temas, avulta justamente o da migração, sobre o qual os autores tecem uma série de considerações sobre o gênero e suas interrelações com outras temáticas no cinema nacional.
Para completar a seção de artigos, Mário Eufrasio recupera e comenta um texto histórico e muito significativo de Emílio Willems, produzido no ocaso da Segunda Grande Guerra. Nele o autor analisa com rigor duas questões chave para a época: assimilação e judeus. Em relação à primeira, ressalta tratar-se de um processo social, e não biológico, como muitos autores da época, influenciado por ideais eugenistas, pretendiam. Ao mesmo tempo, tece com bastante propriedade argumentos que enfatizam a impossibilidade de tratar os judeus como raça, também a contrapelo de outros tantos escritores de então.
Duas resenhas fecham este dossiê. Na primeira, Larissa Merecci comenta o caderno de debates “Refúgio, Migração e Cidadania”, editada pelo Instituto Migrações e Direitos Humanos, que busca reposicionar a temática das migrações no Brasil sob a ótica sempre enriquecedora, ainda que nem sempre considerada, dos direitos humanos. Na segunda resenha, Carlos Freire nos apresenta o premiado livro de Ana Paulina Lee, “Mandarin Brazil: Race, Representation and Memory”, no qual a autora problematiza as representações sobre a chinesidade ao longo da segunda metade do século XIX e que produziram impacto decisivo sobre a formação de uma identidade asiática racializada em nosso imaginário nacional.
A todos uma boa e fecunda leitura!
Notas