Resumo: O presente artigo tem como objeto principal os mecanismos de solidariedade étnica/nacional acionados em contextos imigratórios. Os estudos sobre chineses e sul-coreanos que deram origem ao artigo foram realizados entre os anos de 2011 e 2018 na cidade de Aracaju, capital do Estado de Sergipe. Para o desenvolvimento destes estudos, foram realizadas revisão bibliográfica, observação direta e entrevistas em profundidade. Os dois grupos de imigrantes se estabeleceram no comércio local por meio de atividades ligadas à venda de produtos importados e lanchonetes. A presença destes dois grupos em Aracaju se deu por meio de fluxos migratórios indiretos, de modo que antes de se estabelecerem na capital sergipana, passaram por outras cidades, em especial São Paulo. Esta trajetória revela uma dupla mobilidade, a geográfica e a social, já que a vinda para Aracaju está associada às oportunidades de passarem da condição de empregados para proprietários de estabelecimentos comerciais. O duplo processo de mobilidade é sustentado por mecanismos de solidariedade étnica/nacional acionados a partir das relações de parentesco e amizade, com base no uso do idioma e tradições culturais, tais como poupança e capitalização financeira. Este processo se desdobra, novamente, em outra dupla dinâmica, que diferencia chineses e sul-coreanos de brasileiros, de modo a produzir práticas sociais e culturais e sentimentos de pertencimentos e, ao mesmo tempo, hierarquias internas no grupo, através de papeis familiares e de classe.
Palavras-chave: ImigraçãoImigração,ChinesesChineses,Sul-coreanosSul-coreanos,Mecanismos de solidariedade étnica/nacionalMecanismos de solidariedade étnica/nacional,AracajuAracaju.
Abstract: The object of this article is the ethnic/national solidarity mechanisms in immigratory context. This article is based on information obtained from two researches on the Chinese and South Koreans immigrants developed in 2011 and 2018 in Aracaju, capital of Sergipe State. Our research was conducted by bibliography revision, direct observation and deep interviews. The two immigrant groups established themselves in the local community through commercial establishments, such as sales of imported products and snack bars. The presence of these two groups in Aracaju occurred through indirect immigration flows. Before they moved to Aracaju, they lived in other Brazilian cities, especially São Paulo. This trajectory reveals a double mobility, that is, the geographic and social. The main reason for immigration to Aracaju is associated with the opportunity of moving from being an employee to be the owner of a commercial establishment. The double mobility process is sustained by the ethnic/national solidarity mechanism, operated from kinship and friendship relations. This mechanism is based on idiom and cultural traditions, such as collaborative saving and capitalization. In its turn, this process unfolds itself again in another double dynamic, materialized in belonging sense and, at the same time, internal hierarchies, which are based on family relationship and relation class social.
Keywords: Chinese, South-Korean, Ethnic/national solidarity mechanism, Aracaju.
Dossiê Migrações Internacionais na Sociologia Contemporânea - Artigo
Mecanismos de solidariedade étnica/nacional e imigração: Chineses e sul coreanos em Aracaju, Brasil
Ethnic/national solidarity mechanisms and immigration: Chinese and South-Korean in Aracaju, Brazil
Recepção: 30 Setembro 2019
Aprovação: 30 Março 2020
O presente artigo tem como objeto principal os mecanismos de solidariedade étnica/nacional acionados em contextos imigratórios. Entendemos que os mecanismos de solidariedade são aqueles que produzem coesão e sentimento de pertencimento ao grupo. No presente artigo, estes mecanismos são pensados a partir dos marcadores étnicos e nacionais, que aparecem no texto como referência a este duplo pertencimento, que, em razão de nossos propósitos, não foi aqui problematizado.
Os estudos que deram origem ao artigo foram realizados entre os anos de 2011 e 2018 na cidade de Aracaju, Estado de Sergipe. Nestes, a análise da presença de imigrantes chineses e sul-coreanos se deu a partir de revisão bibliográfica, observação direta e entrevistas em profundidade. Em específico, o artigo se baseia em duas pesquisas desenvolvidas como dissertação de mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Sergipe, integrando um conjunto de estudos sobre imigração nas regiões Norte e Nordeste do Brasil, no âmbito do Grupo de Estudos e Pesquisa Processos Identitários e Poder (GEPPIP).
Chineses e sul-coreanos se estabeleceram no comércio local por meio de atividades ligadas à venda de produtos importados e lanchonetes. A presença destes dois grupos em Aracaju se deu por meio de fluxos migratórios indiretos. Antes da capital sergipana, estes atravessaram outras cidades, em especial São Paulo. O caráter indireto da migração já havia sido observado em estudos direcionados a outros grupos no decurso da história de Aracaju.
No que diz respeito aos objetivos do presente artigo, interessa-nos observar que a trajetória migratória de chineses e sul-coreanos para Aracaju revela uma dupla mobilidade, a geográfica e a social, já que a vinda para Aracaju está associada às oportunidades de passarem da condição de empregados para a de proprietários de estabelecimentos comerciais. O duplo processo de mobilidade é sustentado por mecanismos de solidariedade étnica/nacional acionados a partir das relações de parentesco e amizade, com base no uso do idioma e tradições de poupança e capitalização financeira. Este processo se desdobra, novamente, em outra dupla dinâmica, a partir do estabelecimento de fronteiras entre o grupo e os que não fazem parte deles, a exemplo de brasileiros ou imigrantes de outras nacionalidades. São relações produtoras de coesão social e pertencimento identitário e se materializam, por exemplo, por meio de práticas de poupança e capitalização financeira. Por outro lado, a coesão e o pertencimento assumem formas de hierarquias sociais que são acionadas a partir de marcadores de classe, gênero e geração.
O presente artigo está dividido em quatro partes, além da introdução e da conclusão. Na primeira, apresentamos, por meio de revisão bibliográfica, a problemática na qual no tema do artigo se insere. Procuramos situar a discussão sobre mecanismos de solidariedade étnica em contextos migratórios internacionais, particularmente em estudos realizados na segunda metade do século XX no Brasil e em pesquisas sobre as dinâmicas migratórias contemporâneas. Na segunda parte, discutimos as imigrações internacionais no nordeste brasileiro e suas particularidades, em termos dos tipos de fluxos e visibilidade. Em seguida, já com base em dados empíricos, analisamos as trajetórias imigratórias de chineses e sul-coreanos que foram entrevistados durante as pesquisas que deram origem a este artigo. Por último, centramos a análise nos mecanismos de solidariedade étnica/nacional e seus desdobramentos na produção de coesão social e pertencimento étnico nacional e hierarquias intragrupo.
Alguns autores têm se dedicado a desvendar as realidades migratórias recentes, analisando-as sob um escopo mais amplo, a saber, as mobilidades globais que se projetam em todas as regiões do país (Baeninger, 2005; Marques, 2007; Ennes, 2011; Oliveira, 2016). Dentro desse grande tema, destacamos as migrações internacionais recentes para o Brasil, que passaram a assumir novos contornos desde os anos 1980, com o afluxo de imigrantes de diversas nacionalidades, além de refugiados e apátridas (Castro, 2001).
Os processos globalizadores, que comprime espaço e tempo (Harvey, 2005), contribuem para o aumento dos contatos humanos, principalmente nos meios urbanos. Nesse contexto, a imigração chinesa e sul-coreana em Aracaju se insere nas dinâmicas migratórias contemporâneas observadas no Brasil, que colorem o mapa das migrações com atores sociais de origens geográficas e aportes culturais diversos. Isso possibilita observar o fenômeno dos mecanismos de solidariedade étnica nesse contexto social específico.
A soma de mercadorias abundantes e facilidades alfandegárias e de transporte, bem como uma grande quantidade de chineses e um menor número de sul-coreanos overseas, permitiram a multiplicação de imigrantes inseridos nesse setor econômico. No Brasil, a região nordeste e Aracaju, em específico, têm revelado a extensão dos laços e mecanismos de solidariedade étnica.
O presente artigo analisa os laços e mecanismos de solidariedade étnica, ressignificados em contextos imigratórios, como observado em Aracaju. Nosso objetivo é compreender como estes mecanismos tensionam, ao mesmo tempo, as relações entre imigrantes e nacionais (extragrupo), bem como entre os imigrantes (intragrupo). Isto é, como estes mecanismos contribuem para a criação dos grupos e como reconfiguram internamente cada um deles.
Partimos do pressuposto básico segundo o qual a origem nacional daqueles a quem chamamos de imigrantes é apenas um dos marcadores identitários a ser considerado, ao lado de outros marcadores, tais como traços físicos, idioma e religião. Todos estes marcadores são acionados reflexivamente no encontro, que se traduz na produção de relações de pertencimento e alteridade. Em um encontro, a origem étnica pode ser acionada pelos atores sociais envolvidos, em suas diferentes e desiguais condições de auto e heteronomeação, revelando o processo social de produção da categoria “imigrante”.
Esse processo de produção de pertencimento e alteridade ocorre tanto entre imigrantes e nacionais quanto internamente, dentro de cada um destes grupos. O encontro produz um rearranjo interno em cada um destes grupos de modo a apagar (definitiva ou provisoriamente) fronteiras internas. Muitas vezes, estes rearranjos implicam manutenção e recriação de hierarquias baseadas em marcadores étnicos, geracionais, de gênero, entre outros. É, portanto, a partir do encontro, ou do que podemos chamar de fronteira étnica, que se materializa, por meio de um jogo de disputa por bens materiais e simbólicos, a formação destes grupos.
Este processo toma forma a partir das fronteiras étnicas e aciona elementos culturais herdados do contexto de origem. No entanto, tal herança não se revela como um dado, pois não nos referimos aqui aos elementos essenciais que os grupos herdam de modo pronto e definitivo dos locais e contextos de origem. Como veremos, estes elementos fazem parte dos mecanismos de solidariedade étnica que são ressignificados no contexto migratório. A noção de solidariedade étnica é bastante recorrente em estudos imigratórios e, de um modo geral, se referem aos mecanismos de produção de pertencimento, seja por meio de atividades econômicas, seja pelas de caráter cultural, religiosa e mesmo política.
Vários autores que têm estudado e publicado sobre contextos imigratórios têm se utilizado, ainda que com diferentes ênfases e nomenclatura, da noção de solidariedade étnica. No Brasil, pesquisas consideradas consagradas no campo dos estudos imigratórios, como as realizados por Durham (1966), Seyeferth (1999a, 1999b) e Cardoso (1972), conferiram centralidade a esta noção. Por exemplo, o estudo de Cardoso (1972) demonstra a relação entre as particularidades da família japonesa e os processos de ascensão social desse grupo no Brasil, um processo de mobilidade que é explicado por elementos étnicos/nacionais. Neste estudo, a solidariedade étnica é um elemento formador do que a autora denominou de “colônia”, expressão que, aliás, é bastante comum nos estudos imigratórios do período:
A colônia não é mais um grupo, mas sim um campo de relações potenciais definido por peculiaridades físicas e culturais que permitem uma identificação étnica. Entre as marcas diferenciais, a língua é certamente a mais importante (CARDOSO, 1972, p. 145).
Entre as peculiaridades culturais dos imigrantes japoneses, Cardoso (1972) destaca a prática do sistema dozoku como sistema de recrutamento de imigrantes por meio de laços familiares, com a finalidade de aumento da capacidade de trabalho do grupo.
Ennes (2001), ao estudar as relações entre nikkeis e brasileiros em Pereira Barreto, interior do Estado de São Paulo, indaga sobre as razões da cidade ser conhecida como uma cidade de “japoneses”, ainda que o grupo represente apenas cerca de 5% da população do município. O autor identifica que a maior visibilidade dos nikkeis está associada ao fato da cidade ter sido fundada por empresa japonesa, bem como pelo fato do grupo ter vivenciado uma acentuada mobilidade social ascendente. Sobre este último aspecto, Ennes (2001) destaca a importância do mojim, prática tradicional herdada pelos imigrantes japoneses e por seus descendentes, que consiste em uma ajuda mútua financeira por meio de contribuições periódicas e saques por sorteio ou necessidade dos participantes. Como ressalta o autor, o critério básico para participar de tais ajudas era a origem nipônica.
Mecanismos de solidariedade étnica/nacional têm sido acionados por outros grupos de imigrantes além dos chineses e sul-coreanos. Truzzi (1997), ao estudar a presença de sírio-libaneses em São Paulo na década de 1930, revela a importância do voto étnico para o sucesso dos patrícios em sua inserção na vida política. Ainda que não possa ser considerado como um fator central, o sucesso político dos patrícios passou pelas “redes de entrefavorecimento” e de “reciprocidade e ajuda mútua” (1997, p.167).
Em outro estudo, Truzzi (1991) nos oferece bons exemplos no estudo sobre os sírio-libaneses, grupo que recorreu a mecanismos de solidariedade, mesmo sem a constituição de colônias propriamente ditas. Tais mecanismos permitiram-lhes percorrer, durante o século XX, uma trajetória ocupacional que foi da condição de “mascates a de doutores” (TRUZZI, 1991).
Outros casos entre imigrantes europeus foram estudados por Willems (1940, 1945), Durham (1966), Seyferth (2000) e Lesser (2001). Os autores estudaram experiências imigratórias em períodos nos quais a temática da assimilação tinha grande relevância. Neste contexto, a existência de associações e a emergência de colônias étnicas eram pensadas em oposição tanto às políticas assimilatórias quanto ao processo de estratificação de classes decorrentes da urbanização e industrialização (BASTIDE, 1973). Neste sentido, questionava-se o quanto as organizações com base étnica resistiam às imposições do Estado e da sociedade urbana industrial. Tais estudos apontaram que europeus, em especial os italianos e os alemães, se organizavam etnicamente de modo mais poroso e permeável do que japoneses.
Esta mesma porosidade foi observada por Monsma, Truzzi e Conceição (2003) ao estudarem o banditismo social na região de São Carlos, interior do Estado de São Paulo. Os autores demonstram, a partir da comparação com o caso da máfia italiana nos Estados Unidos, como se estruturou a ação de italianos, em grande parte ligados por seus laços étnicos, em torno de crimes como assaltos e assassinatos.
O caso dos chineses e sul coreanos em Aracaju parece estar mais próximo das experiências migratórias em curso em outros países. Em parte, isto se explica por compartilharem de um mesmo contexto político e econômico. Se os estudos sobre imigração até o Pós-Segunda Guerra estão fortemente influenciados pela temática da consolidação do Estado Nacional, também levam em conta o processo de industrialização e urbanização. Nos dias atuais, a temática imigratória é permeada pelas consequências da globalização, transnacionalidade e diáspora (SHILLER; BASH; BLANC, 1995; PORTES, 2004; GUIJARRO; ESTER MASSÓ, 2013; HALL, 2009).
Neste novo ambiente, estudos sobre a experiência imigratória revelam a importância dos mecanismos de solidariedade étnica/nacional ao conferir maior segurança à decisão de emigrar, bem como na recepção e acolhimento dos recém-chegados. Também se mostram importantes para a criação e recriação de espacialidades, sociabilidades e temporalidades, com referência às experiências vividas antes da imigração. Decerto, se apresentam ainda como mecanismos de inserção econômica e ascensão social, em um contexto marcado pela circularidade e migrações não definitivas.
Halter (2007), por exemplo, estudou a inserção econômica de mexicanos nos Estados Unidos, e destacou a importância de mecanismos de solidariedade étnica/ nacional, tanto como estratégia de sobrevivência cultural quanto de vantagem econômica. Para a autora, estes mecanismos funcionariam como um “trampolim” para a inserção do imigrante no “corpo mais amplo da sociedade” (HALTER, 2007, p. 118)
Os mecanismos de solidariedade étnica/nacional observados entre chineses e sul coreanos atuam, como veremos, em uma dupla direção (extra e intragrupo), que também foi registrada e analisada por Gomes (2002) em seu estudo sobre o comércio étnico em Belleville. No que diz respeito à dimensão interna do grupo de imigrantes que viviam no bairro parisiense, os mecanismos de solidariedade se sustentavam em hierarquias produzidas a partir de referências ancestrais que são produzidas no contexto imigratório, se expressando pelo controle, no caso do comércio étnico, não apenas do negócio, mas também sobre as pessoas que dele fazem parte.
Estas dinâmicas não se distanciam da ideia do uso dos mecanismos de solidariedade étnica/nacional, como meio de acesso e permanência na sociedade de destino. Isto porque imigrantes sem documentos ou em situação legal irregular encontram em tais práticas maior segurança econômica, cultural e afetiva.
Como podemos ver, os mecanismos de solidariedade étnica/nacional, existentes em diferentes contextos imigratórios, variam no que diz respeito ao contexto em que são produzidos. Em alguns casos, estes mecanismos são facilitados pelas heranças culturais do país de origem. Em outros, são fruto de imposições que decorrem da condição de imigrantes, que acabam por forjar solidariedades onde esta não existia, ou existia de modo muito frágil. Em ambos os casos, estes mecanismos promovem a distinção em relação a outros grupos étnicos e nacionais, em especial como os formados junto à população do país de destino, produzindo, ao mesmo tempo, hierarquias internas ao grupo.
Os estudos que deram origem a este artigo foram desenvolvidos no âmbito de duas dissertações de Mestrado. A primeira estudou chineses e foi concluída em 2013, enquanto a segunda, sobre os sul coreanos, foi finalizada em 2019. A opção pela perspectiva dos processos identitários nos levou à escolha de técnicas e instrumentos de pesquisa que dessem conta de dimensões macro (como as pressões oriundas das dinâmicas globalizantes da produção, da circulação de mercadorias e de pessoas) e micro (que se refere às interações e configurações observadas nas fronteiras étnicas produzidas em Aracaju, através da presença de chineses e coreanos). Nesse sentido, além da revisão bibliográfica sobre imigração e solidariedade étnica, recorremos ao trabalho de observação direta nos estabelecimentos comerciais, bem como ao uso de entrevistas com chineses e sul coreanos. Em relação aos chineses, nossa aproximação se deu sem indicações prévia.
Como era um grupo bastante fechado, o que tem alguma justificativa, pelo medo da fiscalização ou de ser prejudicado por algum brasileiro, não encontramos ninguém que possuía alguma relação prévia com os imigrantes chineses, exceto por ex empregados que afirmaram não possuir vínculo com os antigos empregadores. Nessa direção, optamos pelo contato direto e pela realização de pedidos recorrentes de entrevista e/ou conversas informais para a pesquisa.
Nosso campo de pesquisa foi basicamente o centro da cidade, lugar de grande circulação de pessoas e com muitos estabelecimentos populares. Identificamos e visitamos 23 estabelecimentos, sendo que 14 eram do ramo de venda de produtos importados e 9 comercializavam alimentos. Por não conhecermos o idioma dos chineses, optamos pelo contato com aqueles que tinham algum conhecimento da língua portuguesa, em sua maioria jovens do sexo masculino.
A metodologia utilizada foi essencialmente qualitativa, baseada em pesquisa documental com jornais impressos e em meio digital, com o objetivo de compreender como a imprensa retratava a imigração chinesa para Aracaju à época. Além disso, realizamos entrevistas com brasileiros e chineses, valendo ressaltar que no caso dos chineses a gravação não foi possível, já que não foi autorizada pelos mesmos. Assim, para preservar os dados coletados, a cada término de entrevista gravamos uma espécie de relato oral a partir da primeira fala dos imigrantes, uma espécie de paráfrase. Com o intuito de comparar o que era dito e o que acontecia no mundo prático, utilizamos a observação direta. Essa técnica foi bastante exitosa na captação das interações entre brasileiros e chineses no campo econômico, além de captar mais detalhes do cotidiano destes últimos.
Até rompermos as barreiras entre pesquisador e sujeitos de pesquisa, muitos imigrantes, mesmo tendo conhecimento da língua local, diziam que não podiam falar justamente por não dominar o português, o que nem sempre condizia com a observação do cotidiano dos negócios.
Houve também uma preocupação em coletar e discutir os dados a partir de quatro eixos explorados por Ennes e Marcon (2014): atores sociais, regras ou normas, bens em disputa e o contexto. De certa forma, esses quatro elementos dialogaram numa tentativa, como consta nesse trabalho, de desnaturalizar as relações sociais em torno dos mecanismos de solidariedade étnica/nacional. Dito de outra maneira, demonstrar como esses mecanismos são construídos e reconstruídos à medida que novas relações sociais se estabelecem na cidade de Aracaju a partir dessa presença imigrante em contato com a alteridade nacional.
Do ponto vista histórico, o nordeste brasileiro não é uma região tradicional como destino de imigrantes. Isto não significa que não tenha existido, ou que a presença de imigrantes não tenha sido sentida na vida social, econômica, política e cultural da região. Esta importância pode ser atestada por uma considerável produção acadêmica, em especial sob a forma de dissertações e teses, sobre a presença de imigrantes na região .
Por outro lado, como já apontamos no início deste artigo, pode-se intuir que a recente intensificação e diversificação das dinâmicas de circulação de pessoas no contexto da globalização tem aberto caminho para a presença de imigrantes no nordeste brasileiro, sejam oriundos da Ásia, como chineses e sul coreanos, que atuam em uma espécie de comércio étnico no ramos de venda de roupas, produtos importados e lanchonetes; sejam europeus no ramo de empreendimentos imobiliários e restaurantes. No que diz respeito à presença de chineses e sul-coreanos, pode ser observada uma grande participação no comércio não apenas nas capitais nordestinas, mas também em algumas de suas mais importantes cidades do agreste, a exemplo de Caruaru no Estado de Pernambuco (SILVA, 2008; VAZ, 2016).
Sobre a presença de imigrantes no nordeste brasileiro, há de se considerar ainda dois problemas relacionados aos estudos imigratórios. O primeiro é comum em todas as regiões do país, e mesmo em parte significativa de outros países que recebem imigrantes. Este problema se refere ao sub registro do número de imigrantes pelos órgãos oficiais, com a consequente subestimação estatística de sua presença. Esta realidade não é diferente em Aracaju. Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), da Polícia Federal e Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) subnotificam o fenômeno, já que não captam a presença daqueles que não regularizam sua situação perante o Estado brasileiro, e/ou trabalham e vivem informalmente em casas e estabelecimentos comerciais, geralmente de propriedade de conterrâneos.
Este subdimensionamento da presença de chineses e sul-coreanos em Aracaju pode ser visualizado pelas informações do Sistema Nacional de Cadastro e Registro de Estrangeiros da Polícia Federal (INCRE), registrava, para o ano de 2011, 63 chineses e apenas 3 sul-coreanos. O trabalho de campo, por sua vez, nos permitiu verificar a existência de 23 estabelecimentos de propriedade de chineses. Destes, 14 eram do ramo de venda de produtos importados e 9 comercializavam alimentos. Entre os sul coreanos, foram contabilizados em 2018 nove estabelecimentos comerciais, em sua grande maioria pastelarias.
O segundo problema se refere a algo ainda não estudado, e que permanece no campo das possibilidades. Trata-se de uma possível invisibilização da presença de imigrantes, no caso em Aracaju. Diversos estudos (CARVALHO, 2006; BARRETO, 2005; ENNES, 2011; FREITAS, 1991) revelam a presença de imigrantes alemães, italianos e de várias outras nacionalidades em diferentes contextos e modos de inserção. Como exemplo, temos a presença de alemães, seja em casas comerciais em Maruim e Laranjeiras na segunda metade do século XIX (CARVALHO, 2006), seja na colônia agrícola de Quissamã (ENNES, 2011); ou a presença de italianos em missão artística na segunda década do século XX, bem como trabalhadores de várias nacionalidades que se associaram à maçonaria no final do século XIX e uma missão polonesa que ajudou a fundar o curso de Química da atual Universidade Federal de Sergipe . Esta presença, e o motivo de sua possível invisibilização, ainda é pouco estudada e pouco lembrada pela historiografia.
Para encerrar esta primeira parte do artigo, é preciso registrar que a presença de imigrantes chineses e sul-coreanos em Aracaju resulta de fluxos migratórios indiretos. Isto é, trata-se de um destino (definitivo ou provisório) precedido pela passagem por outras cidades no Brasil. Esta modalidade de fluxo migratório pode, na realidade, ser observada em outros momentos da história do Estado de Sergipe, que além de receber imigrantes do Sul e Sudeste (ENNES, 2011), acolheu, durante a fase de fluxos migratório mais intensos, imigrantes da Bahia e Pernambuco.
Esta é a origem de chineses e sul coreanos nos dias hoje. São pessoas que passaram por outros estados e outras cidades no Brasil antes de chegarem em Aracaju. Algumas das entrevistas nos permitiram verificar a atuação dos mecanismos de solidariedade étnica/nacional, inclusive nas trajetórias de mobilidade que os trouxeram até a capital sergipana.
Os percursos vivenciados pelos imigrantes chineses e sul-coreanos, bem como o estabelecimento deles em atividades comerciais na cidade, são o nosso ponto de partida para a compreensão da construção do acionamento dos mecanismos de solidariedade étnica/nacional. Como já apontado, Sergipe e Aracaju tem experimentado historicamente um tipo de fluxo imigratório denominado de indireto. Portanto, o estado e a cidade não foram o destino inicial dos imigrantes, e em razão disto, é importante traçar os percursos feitos pelos imigrantes até Aracaju. No caso dos chineses, de acordo com o relato de Sara , seu esposo saiu da China e se instalou inicialmente em São Paulo, onde aprendeu o ofício de confeiteiro e se iniciou no ramo das pastelarias fazendo salgados. Até então noivos, seu esposo mandou buscar Sara para se casarem, o que aconteceu meses depois. Após o casamento, tiveram uma filha e se mudaram para Aracaju, onde abriram uma pastelaria .
Outro chinês que passou por várias cidades antes de instalar uma movimentada pastelaria no coração da cidade de Aracaju, Chanli não foi nosso interlocutor, mas recuperamos matérias de jornais que apontam esse dado:
A China, além de importar cada vez mais produtos para o Brasil e apresentar um enorme crescimento econômico, tem espalhado pelo país alguns dos seus filhos que carregam no sangue a marca do trabalho. O fenômeno, que começou por São Paulo, tem se expandido em outros Estados e recentemente chegou a Sergipe. Geralmente, os chineses vêm em busca de novos mercados e encontram aqui um espaço propício para o crescimento. Um exemplo disso é Chanli, chinês que depois de passar por outras capitais brasileiras, inclusive a capital paulista, resolveu se estabelecer em Aracaju e vem fazendo o maior sucesso com sua Pastelaria instalada no coração do centro comercial. Há pouco mais de um ano, Chanli resolveu fechar o negócio que mantinha na capital paulista e se mudou com toda a família para Sergipe. ´Aqui a cidade é bem tranquila e a qualidade de vida é muito boa, bem diferente de São Paulo. E, também, o povo é muito hospitaleiroµ, afirma o simpático chinês que reside no Brasil há mais de vinte anos. Antes de escolher Aracaju, Chanli passou por várias capitais, mas nenhum outro lugar o cativou tanto como a capital sergipana (SOUSA, 2010).
Com mais de 26 anos na cidade, Chao também tinha uma trajetória de reimigração. Passou por São Paulo e Salvador até chegar em Aracaju. O tempo de vida e trabalho em Aracaju o posiciona de uma maneira privilegiada na hierarquia intragrupo. Seu conhecimento sobre as relações extra e intragrupo o torna uma referência frequente para os conterrâneos recém-chegados. Seu papel e seu lugar no grupo de chineses revela os rearranjos produzidos ao longo do tempo, o que tem se materializado na superação de diferenças políticas entre a China continental e Taiwan, por exemplo. Esta dinâmica demonstra, também, como os laços e os conflitos no local de origem são recriados e ressignificados no contexto migratório, dando origem aos mecanismos de solidariedade étnica.
Por ser considerado um dos chineses mais antigos em Aracaju, o Sr. Chao é frequentemente solicitado a fazer o trabalho de tradutor quando algum imigrante precisava ir à Polícia Federal para resolver questões legais, e também ajudava nas indicações de estadia na cidade. A posição do senhor Chao revela uma outra dimensão das hierarquias internas, dimensão inseparável dos mecanismos de solidariedade étnica/nacional, pois atua não apenas no interior dos estabelecimentos comerciais, como melhor detalhado entre os sul coreanos, mas também no conjunto do grupo na cidade de Aracaju.
No que diz respeito aos sul-coreanos , observa-se uma dinâmica semelhante à dos chineses. Em geral, a entrada de imigrantes desta nacionalidade ocorre por meio das grandes cidades, onde são recebidos pela família e começam a trabalhar. De acordo com um dos sul-coreanos entrevistados:
Quando mudei pra cá (referindo-se a São Paulo), meu tio já morava aqui há um tempo. Disse ele que no bairro que ele morava era mais fácil de conseguir trabalho para mim [...] no bairro que ele morava tinha muitos coreanos [...] meu tio trabalhava em uma empresa, me disse que não tinha como me colocar na empresa que ele trabalhava, mas tinha um conhecido dele, também coreano, que tinha trabalhado com ele e agora era dono do seu negócio [...] meu tio disse que ele tinha perguntado se ele (meu tio) tinha algum conhecido [...] que fosse coreano, daqui ou dá Coréia para trabalhar lá (Informação verbal, nome).
A narrativa acima nos permite verificar como os laços de parentesco e os mecanismos de solidariedade atuam já na entrada do imigrante no Brasil. Revela, também, que estes mecanismos repercutem em hierarquias internas, que como veremos na próxima parte do artigo, estão associadas aos laços de parentesco e amizade.
A mobilidade de uma cidade a outra está associada à mobilidade social entre a condição de empregado e a de dono de estabelecimento comercial. A trajetória de mobilidade no Brasil, por meio dos mecanismos de solidariedade étnica/nacional, não exclui relações com brasileiros ou imigrantes de outras nacionalidades. Trabalhar para o “nativo” pode ser uma forma de conhecer a realidade dos negócios, de modo a ampliar as chances de ter, no futuro, o seu próprio estabelecimento comercial.
As informações acima sobre o “trânsito” de coreanos de empresas brasileiras para empresas coreanas, e a descrição do dia a dia do trabalho em uma pastelaria em Aracaju, nos permitem retomar a ideia segundo a qual o estabelecimento na nova terra depende de mecanismos de solidariedade interna. A necessidade de recriação de uma “paisagem”, a partir das lembranças da sociedade de origem, e, sobretudo, do contraste com aqueles que lhes são cultural e economicamente estranhos, produz os imigrantes coreanos como um grupo étnico/nacional, por meio da manutenção de vínculos com a terra natal (PAIVA, 2013).
Essa lógica reimigratória de buscar outra cidade para estabelecer-se comercialmente também se relaciona com a tentativa de buscar novos mercados que não estejam saturados, como nos contou um outro sujeito de pesquisa. Com uma tradição diaspórica, os chineses que podem não hesitam em desbravar outros territórios, mas territórios não tão desconhecidos por vezes demandam a mobilização de mecanismos de solidariedade étnica/nacional. Quando chegam a esses novos locais de moradia, eles precisam lidar com a mediatização das instituições e dos códigos de conduta postos na esfera pública pelas sociedades de acolhida (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011). No nível econômico, os chineses precisam lidar com os códigos que regem sua instalação, mas também equalizam as condutas econômicas de todos os agentes presentes nesse campo. Essas normas sempre são objeto de contestação, como no caso de algumas normas trabalhistas e empresariais que são percebidas como desvantajosas em relação ao país de origem.
Como apontamos anteriormente, a “reimigração” dos chineses para Aracaju era realizada para uma cidade não tão desconhecida. Isto tem a ver com os mecanismos de solidariedade étnica/nacional no fornecimento prévio de informações sobre oportunidades de negócios e locais de moradia. Após a chegada, tal fenômeno se manifesta através da abertura legal dos negócios e do auxílio com os órgãos governamentais por parte daqueles que têm mais habilidade com o idioma nativo.
A estruturação do ambiente de trabalho chinês e coreano passa pelo acionamento de hierarquias, cuja estruturação tem forte base na cultura de origem e, por assim dizer, migra juntamente com as pessoas que se tornam empregados e empresários. Estes sinais podem ser observados na rotina laboral de ambos os grupos. Os mecanismos de solidariedade étnica/nacional passam pelas relações de trabalho entre patrão e empregado, perpassando também as relações entre pais e filhos, tios e sobrinhos e marido e esposa.
Uma primeira evidência desta sobreposição de laços foi observada pelo trabalho de observação direta em estabelecimentos sul-coreanos, o que nos permitiu verificar que a chegada do proprietário altera, por um curto período de tempo, a rotina dos trabalhadores da mesma nacionalidade, que interrompem suas atividades e reverenciam seu chefe. Assim, elementos da hierarquia interna do grupo, como já observamos, vão além das relações entre patrão e empregado. Em um dia normal de trabalho, regras vão se revelando. Adolescentes chegam do colégio, correm para cumprimentar o pai e o chefe (o chefe de família, o chefe do trabalho). Na sequência, vão até a mãe para cumprimentá-la, e por fim dirigem-se aos demais coreanos que ali trabalham, também cumprimentando-os.
A realidade observada em Aracaju, reforça as teses segundo as quais as migrações não são definitivas. Além de se expressarem por meio da mobilidade entre cidades no país de destino, inclui não apenas o desejo de retorno, mas também uma certa circularidade entre o lugar de origem e o lugar onde estão estabelecidos. Este é o caso dos chineses que chegaram mais recentemente e mantem firme a ideia de voltar para a China. Apesar de viajarem com frequência para visitar os parentes, como era o caso de Hu, um chinês de 28 anos que comanda um restaurante do tipo self service, o projeto é manter os laços com a terra natal o mais forte possível, pensando num retorno próximo. Mesmo diante da fluidez (geográfica e comunicacional), observamos durante o trabalho de campo que a ideia de provisoriedade aventada por Sayad (1998) fazia-se presente nos diálogos coletados. Quando perguntados sobre a permanência, quase todos os imigrantes disseram que pretendiam voltar para a China. Nesse sentido, a solidariedade étnica é vital para que o desejo de retorno possa ser realizado com êxito. Na realidade, como demonstrou Ennes (2001) ao estudar japoneses no interior de São Paulo, pode-se dizer que há uma correlação entre a endogenia e uma maior funcionalidade dos mecanismos de solidariedade étnica/nacional do grupo e o projeto de retorno.
A perspectiva de retorno cria e qualifica vínculo intra e extragrupo. Neste último caso, por exemplo, indagamos aos entrevistados chineses sobre o namoro e o casamento intergrupal, mas as respostas foram que a mulher brasileira era só para “ficar” e não para “casar”, ou mesmo que não viam a possibilidade de uma filha casar com um homem brasileiro.
Os estudos que deram origem a este artigo demonstram, assim, que o campo do trabalho é um espaço de sociabilidades com inúmeras possibilidades culturais, dentre elas, o matrimônio entre os coreanos. As relações que são iniciadas no trabalho possibilitam uma extensão do laço familiar, principalmente quando ambos compartilham o desejo de abrirem seu próprio estabelecimento. Um dos empresários entrevistados nos fez a seguinte revelação:
Tempos atrás, muitos coreanos que viajavam...(pensa um pouco) já eram casados, os que não eram casados, casavam-se com coreanas que conheciam no trabalho. Eu não era casado quando mudei para o Brasil. Conheci minha esposa na fábrica que trabalhamos juntos. Conheço coreanos que também casaram aqui no Brasil, mas suas esposas são descendentes, apresentadas por algum parente ou amigo em comum (Informação verbal).
Sobre os laços afetivos que são gerados entre os coreanos, como o matrimônio, geralmente estes acontecem pela afinidade cultural e pela convivência aproximada entre eles. Quando trabalham no mesmo ramo de negócios, principalmente quando eles são membros de uma comunidade, as oportunidade para firmar alianças entre famílias são mais propensas, e inclusive os negócios podem ser uma oportunidade para buscar sucessores (CHI, 2016).
Ainda a partir do mundo do trabalho, verificiou-se que mesmo sendo empregado de brasileiros ou imigrantes de outras nacionalidade, os laços étnicos servem de base para uma dupla mobilidade, de uma cidade a outra e de empregado para proprietários. Aqui interessa notar que esta dupla mobilidade se realiza por meio de mecanismos de poupança e capitalização, característicos entre vários grupos de imigrantes, como já demonstrado no início deste capítulo. Entre eles, sul-coreanos e chineses que vivem em Aracaju. A respeito dos primeiros:
[...] uma característica básica da imigração coreana foi sua constituição familiar. Cada família buscava ampliar o pequeno capital de que dispunha inicialmente, no menor prazo possível. Dois mecanismos aparecem como fundamentais à compreensão da rápida mobilidade econômico-social experimentada pelos coreanos [...]: o engajamento da família no trabalho e a capacidade de articular redes internas à colônia para facilitar a inserção na nova pátria (TRUZZI, 2011, p. 151).
É importante dizer que, embora sejam de grande importância nos locais de destino, estes mecanismos englobam todas as etapas do processo imigratório, a começar pelo local de origem.
Quando decidi mudar para o Brasil, recorri ao kuy na Coréia, mas essa primeira vez que entrei no kuy foi para conseguir o dinheiro para morar no Brasil, até procurei saber se alguém conhecia algum kuy que fosse para construir um negócio aqui, mas não encontrei. Aqui, encontrei outro kuy que me ajudou a abrir meu negócio, o meu e do meu irmão (Informação verbal de um dos coreanos empresários).
Como se vê, a participação no Kuy tem início no país de origem. Observa-se no trecho acima que o mecanismo é acionado para várias finalidades, e que a imigração não é o único objetivo. Por outro lado, vê-se também que o Kuy pode ser constituído para fins muito específicos, por exemplo, “abrir negócio no Brasil”, e não para uma iniciativa mais genérica, como “imigrar para o Brasil”. Estes mecanismos são, portanto, acionados para finalidades e períodos bem delimitados. Uma vez atingindos, novos objetivos são estabelecidos e novos Kuy podem ser acionados.
Eu e meu irmão fazíamos parte de um kuy quando morávamos em São Paulo, entramos no kuy para conseguir montar uma pastelaria e um restaurante, eu uma pastelaria e ele o restaurante. Onde morávamos, já existiam muitas pastelarias e restaurante. Então, um tio que morava aqui (fazendo menção a Aracaju) que tinha se mudado pra cá (fazendo menção a Aracaju), nos falou que aqui era um lugar bom para morar, que não tinha problemas com “nois” coreanos, ele sabia de muitos chineses que já moravam aqui e que tinha pastelaria, mas eram poucas [...] meu tio abriu uma lojinha de confecções e deu certo. Então a gente decidiu mudar, eu vim primeiro e meu irmão veio depois (Informação verbal).
O “sistema Kuy” prevê a prática de cooperação financeira entre os coreanos, capaz de gerar poupança. Este mecanismo de solidariedade étnica/nacional é um meio para se evitar a intermediação bancária, que traria como consequência negativa a interferência no controle dos serviços e a limitação do acesso. Esse sistema de autofinanciamento econômico para empresários coreanos assim é caracterizado:
As pessoas que desfrutam de um mesmo círculo tendem a formar um kuy, uma espécie de consórcio destinado a reunir capitais que serão revertidos para um determinado objetivo perseguido por seus membros. Típico expediente utilizado na terra natal e em qualquer país que abrigue coreanos, os kyes podem envolver a captação de recursos para a colheita agrícola, para a educação ou o casamento dos filhos, para a realização de futuros funerais, ou, o que mais nos interessa, para a montagem de um negócio (TRUZZI, 2011, p. 152).
De modo similar aos sul coreanos, a esse respeito recordamos de uma tradição chinesa chamada de guanxi:
O guanxi é um termo chinês que numa tradução literal significa relacionamento, mas que na cultura chinesa denota relacionamentos sociais específicos entre duas ou mais pessoas; relacionamentos esses que visam a consecução de determinados objetivos (comerciais, financeiros, logísticos, entre outros) e que são fundamentados, prioritariamente, em ideais de confiança e lealdade (xinyong) (SILVA, 2008, p. 56).
Esses relacionamentos constituídos com propósitos específicos e baseados na confiança e lealdade podem ser exemplificados com alguns dados coletados. Alguns comerciantes brasileiros, ouvidos durante a pesquisa, afirmam que os chineses conseguiam oferecer preços mais baixos em comparação aos brasileiros, porque eles se uniam e compravam contêineres fechados de mercadorias para baratear o custo do transporte, refletindo no preço final. Ainda segundo os relatos orais, esses contêineres eram trazidos de Salvador até Aracaju, e depois rateados entre os compatriotas. Entretanto, cabe colocar que a ética do guanxi também é ressignificada a partir das dinâmicas da produção identitária e das fronteiras étnicas. Os chineses em Aracaju são de diferentes regiões geográficas na China, portanto o guanxi é reinterpretado nessa diversidade de origens para constituir uma espécie de unidade frente à sociedade de imigração, com a perspectiva de se estabelecer e permanecer na cidade e nas atividades econômicas.
Os mecanismos de solidariedade étnica/nacional observados em Aracaju vão além destes mecanismos tradicionais, mais conhecidos e mais formalizados. O trabalho de observação direta nos estabelecimentos visitados revelou uma complexa e sutil rede de relações com base no pertencimento étnico.
A pesquisa realizada entre sul coreanos em Aracaju demonstrou que mecanismos de solidariedade étnica/nacional são centrados na figura masculina. Não que as mulheres sejam excluídas, as coreanas também vivenciam longos fluxos migratórios, mas geralmente na condição de acompanhantes de seus pais, irmãos, primos e maridos.
[...] Um irmão meu tinha vindo pra cá, ele dizia que aqui era melhor, ganha va mais... [...] ele primeiro veio só, depois trouxe a mulher e o filho, [...] acho que dois anos depois ele trouxe a esposa e filho [...] ele veio trabalhar em uma empresa aqui que também era de lá, [...] aí meu irmão conseguiu um trabalho aqui e eu vim, [...] mas eu vim com a esposa e meu filho, [...] moramos com ele no início (Informação verbal ).
A dimensão do gênero revela papeis, momentos e lugares diferentes nas trajetórias e nas relações no interior do grupo. Os papéis de gênero, no entanto, não são necessariamente reprodutores de uma representação, por assim dizer, machista. Em uma lanchonete de chineses, enquanto a esposa cuidava do caixa e orientava os funcionários brasileiros, seu esposo cuidava da cozinha do estabelecimento.
As relações extragrupo também dependem dos laços e mecanismos de solidariedade intra grupo. Pequenos empresários coreanos demonstram preferir contratar coreanos e seus descendentes como empregados. Trata-se de uma estratégia de sobrevivência do grupo, a preservação da identificação cultural fala mais alto. Por muito tempo, o grupo fechou-se e permaneceu inviolável. Em um perspectiva relacional e reflexiva, as configurações intra e extragrupo são interdependes e mudam de acordo com as formas e lugares de inserção dos imigrantes. Isto é, as configurações são móveis, na medida em que alguns coreanos saem das empresas de brasileiros onde atuavam na condição de empregados para abrirem seus próprios estabelecimentos. Já outros coreanos aceitavam deixar estas empresas para trabalharem como empregados nas empresas coreanas.
Outro exemplo da importância dos laços e mecanismos de solidariedade étnica/nacional entre chineses em Aracaju foi observado nos caminhos seguidos para a confecção dos letreiros e do layout das lojas. Muitos dos letreiros instalados nas fachadas tinham um único confeccionador, o que denota que não se fazia necessário perder tempo procurando alguém para realizar esse trabalho, pois era possível obter essa informação com quem já estava aqui. Assim, o know how e o conhecimento dos mais antigos era repassado para os mais novos. Na esfera fechada, ou seja, intragrupo, a partilha de conhecimentos é muito importante para os que chegam, mas também permite construir vínculos identitários a despeito da diversidade interna.
Numa migração laboral, e em contexto de migrações circulares e transnacionais, como a encontrada em Aracaju, esses laços de solidariedade são constituídos entre os que estão no país de origem, no caso China e Coréia do Sul, aqueles que vivem em outras cidades e estados do Brasil e os que permanecem em Aracaju. Em suma, permitem compor estratégias que amparam tanto antigos quanto novos imigrantes diante das intempéries vividas por quem está fora do seu país de origem, nutrindo de maneira latente sua provisoriedade. Como apontou Truzzi (2008), aqueles que migram “preferem informação e, sempre que possível, de confiança” (p. 207).
Esse sentimento de ajuda mútua entre chineses e sul coreanos, constituído no fluxo a partir de seus países de origem e que passam por outros estados e cidades no Brasil até chegar a Aracaju, além de permitirem a entrada e permanência dos imigrantes no campo econômico, recria a ideia de pertencimento étnico/nacional, que se materializa nas atividades econômicas. Como dissemos, estes imigrantes possuem diferentes origens e vieram de diferentes regiões de seu país, e no contexto imigratório passam a utilizar o idioma nativo, como o mandarim entre os chineses, e acionam traços de suas culturas na organização e funcionamento de seus negócios.
Cabe destacar a importância do idioma como elemento de fortalecimento dos mecanismos de solidariedade étnica/nacional e de produção de fronteiras em relação àqueles que não fazem parte do grupo. Entre os coreanos, por exemplo, a prática da língua nativa pode ganhar outra conotação durante a comunicação no local de trabalho, como nos foi revelado por mais um empresário entrevistado:
É prática nossa falar o coreano aqui, como o brasileiro não entende a língua que falamos, quando quero falar sobre o dinheiro do caixa, que vou levar o dinheiro, trocar o dinheiro eu falo em coreano. Quando eu vou “dar bronca” em nós coreanos, eu falo em coreano (Informação verbal).
O uso da língua nativa pode ser visto como um elemento de fortalecimento da solidariedade étnica e, ao mesmo tempo, revela aspectos da hierarquia interna do grupo. Durante as observações no campo, por muitas vezes, ouvia-se os coreanos pronunciarem a expressão “Pali, pali”. Na língua portuguesa, essa expressão equivale a dizer “depressa, depressa”. Cada vez que essa expressão era dita, uma grande agitação era percebida. Nos momentos em que ocorria um maior movimento de clientes no estabelecimento, essa expressão era falada constantemente. Pedido atrás de pedido, entrega atrás de entrega, eles pronunciavam “Pali, pali”. A frase e sobretudo que a pronúncia e a quem se destina é ilustrativa desta dupla dinâmica de solidariedade e hierarquia internas.
Para o imigrante, a língua do país-destino ainda representava uma das maiores dificuldades encontradas por ele em sua ambientação. É necessário comunicar-se, mas como conseguir essa comunicação quando não se fala a língua daquele local?
Não sabia muito não o português, mas meu tio também não sabia quando veio, meu tio aprendeu aqui. Meu tio falou que seria bom eu trabalhar no bairro que ele morava, porque eu aprenderia o português logo [...] muitos coreanos moravam lá para aprender, para treinar o português, eu já conhecia algumas coisas da língua daqui, mas era pouco, [...] então, eu fui morar e trabalhar naquele bairro também por isso (Informação verbal).
As dificuldades oriundas das diferenças culturais e linguísticas também são amenizadas pelos mecanisnos de solidariedade étnica. O grupo já estabelecido funciona como “amortecedor”, de modo que o acesso à sociedade de acolhida possa ser gradativa e segura (HALTER, 2007).
O contexto migratório acrescenta um outro elemento à importância do idioma como elemento de solidariedade étnica. Isto porque os imigrantes de um determinado país, que passam a conviver no campo do trabalho ou em outros espaços de sociabilidade, são com frequência desconhecidos em seu país de origem. Isto é, provém de cidades e regiões distintas. Assim, a adoção de um idioma, entre outros falados no país de partida, cria a possibilidade de amenizar diferenças internas e realçar as semelhanças. Este foi o caso observado entre os chineses pesquisados em Aracaju. A variedade de línguas foi lembrada por Sara e Bruno. Ela, de origem cantonesa, e ele, vindo de Xangai, fazem uso do mandarim porque podem se comunicar não só entre si, mas com os outros chineses, apesar de algumas vezes não se entenderem completamente. Bruno contou que algumas vezes eles se encontram para um momento de lazer na casa de um deles para poder conversar e ficarem juntos na cidade.
Ao que podemos observar, as articulações em redes, que aqui preferimos chamar de mecanismos de solidade étnica/nacional, constituem uma forma de capital social, que no caso das migrações, facilitam o acesso ao capital financeiro, fortalece as relações sociais, promove a acessibilidade do migrante a instituições, assim como o acesso a não migrantes que possam contribuir com informações fortalecedoras do processo migratório (MASSEY et al, 2005). Além disso, “tais redes se tornam forças sociais vivas, a estabelecer “pontes” entre os lugares e a permitir o fluxo de informações e de pessoas que fizeram da mobilidade geográfica a sua principal estratégia de sobrevivência” (PÓVOA-NETO, 1997, p. 22). Estes mecanismos de solidariedade étnica/nacional ainda criam e reconstroem os territórios, ligando grupos de indivíduos pelos laços de amizade, parentesco e pelas experiências de trabalho para minimizar o encontro com a desconfiança e com os riscos.
O presente artigo assumiu como objetivo principal refletir sobre o duplo processo em torno de mecanismos de solidariedade étnica/nacional em contexto migratórios, isto é, o de promover coesão do grupo, ao se diferenciar dos nacionais, e ao produzir hierarquias internas. Para tanto, estudamos a presença de chineses e sul-coreanos em Aracaju, grupos que chegaram à cidade por meio de trajetórias indiretas de imigração.
Verificamos que os mecanismos de solidariedade étnica/nacional, com base em relações familiares e de parentesco, já se fazem presentes no momento da emigração do país de origem, bem como durante todo processo que inclui a passagem por outras cidades e por outras atividades laborais antes de chegar até Aracaju. A trajetória percorrida, desde a cidade no país de origem até Aracaju, revela, por sua vez, um duplo processo de mobilidade, isto é, o observado no deslocamento entre países e cidades e o observado no movimento ascendente da condição de empregado para o de proprietário de seu próprio negócio.
A criação de empresas por imigrantes, baseada em mecanismos de solidariedade étnica/nacional, pode ser vista como expressão deste duplo processo de reconfiguração (ELIAS, 2005). Com estes mecanismos, coreanos e chineses minimizam os choques culturais e econômicos produzidos em seu estabelecimento em Aracaju. Além disso, as empresas são espaços onde se revive a própria cultura, os costumes e as regras do grupo, tais como o idioma, as relações entre pais e filhos, esposo e esposa e entre proprietários e funcionários.
Assim, a partir de laços de amizade e de parentesco, os mecanismos de solidariedade étnica/nacional tomam forma e funcionalidade, assim como a bibliografia apresentada já apontava, com base no idioma, em redes de ajuda, no acolhimento e inserção econômica do imigrante, bem como na organização de compras de produtos e serviços de modo coletivo, de modo a garantir maior segurança em sua instalação em Aracaju e uma maior competividade econômica no mercado local, em especial, frente aos concorrentes de outras nacionalidades, a exemplo de brasileiros.
Vimos que este processo é duplo, já que a diferenciação em relação a outros grupos étnicos/nacionais produz identificação e coesão interna no grupo. Este processo de produção e identificação entre chineses e sul-coreanos, por sua vez, se materializa na sobreposição de relações de trabalho com as afetivas e familiares, que fundamentam a organização de hierarquias baseados em papeis sociais de classe (dono do negócio e empregado), casamento (marido e esposa) e de família (pai, mãe e filho).