Dossiê Migrações Internacionais na Sociologia Contemporânea - Artigo
Recepção: 02 Outubro 2019
Aprovação: 16 Abril 2020
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2020.162815
Resumo: Os intensos fluxos globais têm conduzido a um aumento das populações migrantes nos países europeus e em Portugal, particularmente. A crescente dificuldade dos cidadãos provenientes de países como Bangladesh, Índia ou Paquistão em se legalizarem e os processos políticos de rejeição do migrante - o Brexit por exemplo - conduziu à procura de alternativas a essas rotas que remontam à época colonial. Procuraremos elucidar, neste artigo, como este processo iniciado há séculos, se foi desenvolvendo e revelando uma condição social dos indivíduos enquanto párias indesejados e sujeitos de um corpo ilegal, por isso passível de exploração. O papel do Estado no ultrapassar dessa condição revela-se essencial. Procuraremos demonstrar como a ilegalidade do imigrante, se revela uma condição de exploração do seu trabalho que o força a agir nas periferias marginais do social. Como forma de inclusão precária (e não apenas de exclusão), a ilegalidade serve o interesse dos países europeus em manter uma mão de obra de trabalho disponível. Porém, do outro lado, constatamos, com um estudo de caso de bengalis em Portugal, atores e atrizes sociais que não se resumem a essa condição e que, portanto, resistem e negociam em situação de maior fragilidade a sua pertença a uma sociedade cada vez mais global.
Palavras Chaves: Imigrante, Ilegalidade, Tráfico, Direitos humanos.
Abstract: Intense global flows have led to an increase in migrant populations in European countries and in Portugal in particular. The growing difficulty of citizens from countries like Bangladesh, India or Pakistan in legalizing themselves and the political processes of rejection of those migrants - the Brexit for example - led to the search for alternatives to these routes dating back to the colonial era. In this article, we will try to clarify how this process started and was developed, revealing a social condition of individuals as unwanted pariahs and subjects of an illegal and therefore exploitable body. The role of the state in overcoming this condition turns out to be essential. We will try to demonstrate how the immigrant’s illegality appears as a condition for the exploitation of his work and forces him to act in the peripheries of the social norm. As a form of precarious inclusion (not only a form of exclusion), illegality serves the interests of the European countries in keeping labor workers available. However, on the other hand, we found in our case study on Bangladeshi in Portugal social actors and actresses who are not limited to this condition and who, therefore, resist and negotiate, in a situation of greater fragility, their belonging to an increasingly global society.
Keywords: Immigrant, Illegality, Smuggling, Human rights.
INTRODUÇÃO
Estimava-se em 2006 que cerca de 20 milhões de pessoas haviam encetado projetos migratórios originados da Índia (TROVÃO; ROSALES, 2010, p.7), embora apenas a partir do século XIX e especialmente durante o século XX, possam ser identificadas redes sociais de origem indiana a operar na Europa, quando os Estados-Nação de Bangladesh e Paquistão ainda não existiam1. Ainda hoje, os mesmos motivos religiosos, a que se acrescentam o terrorismo, a pobreza e as alterações climáticas ou a instabilidade política, promovem violentos ajustamentos geodemográficos nessas sociedades, forçando os seus nacionais a emigrar.
É o caso de Bangladesh, Índia ou Paquistão, em que ciclones tropicais, furacões, marés, chuvas intensas e a subida do nível do mar provocam êxodos populacionais, que face a taxonomias decrépitas são confundidos com migrações econômicas. De resto, em consonância com o informe do relatório “Global Trends; Forced Displacement in 2017” da Agência da ONU para os Refugiados (Acnur):
Globalmente, os deslocamentos populacionais forçados aumentaram em 2,9 milhões de indivíduos em 2017. E, em 2019, esses deslocamentos resultantes de perseguições, conflitos ou violência generalizada, já totalizavam 68,5 milhões de deslocados, constituindo um recorde. (ACNUR, 2018, p. 2)
Em 2019, deixando entrever a intensidade desse processo e de acordo com o relatório publicado pela mesma agência, o número revela um aumento face a 2017. O mesmo relatório nos revela que 70,8 milhões de pessoas estão em situação de deslocamento forçado no mundo. Esta situação tem produzido consequências nos países de acolhimento com um aumento da xenofobia e do racismo. Esses corpos deslocados ou em trânsito, sem lugar ou espaço de cidadania, exigem outro paradigma político e de atuação das autoridades, desde logo na desconstrução de um discurso que os representa como corpos e sujeitos sem história.
É neste quadro confrontacional que neste artigo pretendo abordar os modos como são socialmente produzidos discursos de subalternização dos migrantes, recorrendo para tal a argumentos rácicos, que associam, por exemplo, práticas ilegais/informais a determinadas nacionalidades/classes, acionando desse modo processos de hierarquização entre o nós e o outro. O discurso aparece neste contexto como um modo de hierarquização dos atores sociais e, simultaneamente, como um espelho dessa hierarquização, de um modo que discurso e objeto pareçam ser um só. Cabe-nos desconstruir esta unidade aparente. Paralelamente, procuraremos chamar a atenção para as consequências desses processos nos imigrantes e nas suas estratégias de sobrevivência.
Para tal, observei, a partir de janeiro de 2015, cidadãos indianos, bengalis e paquistaneses que visam obter autorização de residência em Portugal. Aprofundei a investigação de seus modos de financiamento de viagens, procura de contrato de trabalho e redes sociais e inúmeros outros aspectos subjacentes à condição de imigrante ilegal. Como metodologia de pesquisa utilizamos a observação participante, com longos períodos de convivência com indivíduos pertencentes às referidas populações e a observação não participante, com recurso a entrevistas semi-direcionadas2, através das quais pretendemos contrariar uma crescente tendência para a “coisificação” dos corpos ilegais.
A perspectiva analítica adotada envolve apreender a subjetividade do imigrante, mediante a análise não apenas dos seus comportamentos e estratégias, mas também das condições que lhes são proporcionadas: procedimentos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), leis migratórias e sua eficácia, direitos dos solicitantes de autorização de residência, tempo médio de espera até o SEF proferir uma decisão, dificuldades quotidianas que derivam da ilegalidade imposta. Enfim, trata-se de uma multiplicidade de constrangimentos que lhes é imposta, também ao nível identitário. Tal análise pressupõe a desconstrução e consequente integração de conceitos como nação, emigração, globalização, país de acolhimento e homeland, entre outros.
Isso torna imperioso a sua estruturação não como abstrações, mas sim como nomenclaturas que refletem e impõem múltiplas relações e interdependências, consubstanciadas não raras vezes, em sentimentos de pertença ou de desidentificação (WOLF, 1985, p.3). Tais conceitos não são privados de história, mas sim profundamente influenciados, não apenas pelo passado, mas também pelo presente e pela percepção de um futuro que rapidamente se aproxima.
No sentido de aprofundar essas múltiplas relações e interdependências, começarei por uma síntese, discorrendo sobre as questões que as migrações suscitam na atualidade e os contextos que exponenciam as suas dinâmicas. Compreender o fenômeno migratório envolve a análise integrada dos enunciados discursivos produzidos acerca dele e dos contextos concretos que lhe dão origem.
FLUXOS, GLOBALIZAÇÃO, PÂNICO MORAL/SOCIAL E SUAS DIMENSÕES
A história do mundo e das sociedades reflete contatos, relações, encontros ou desencontros, bem como as conexões estabelecidas em determinados contextos e circunstâncias (WOLF, 1985). Muitas vezes, não obstante, a história é apreendida a partir das grandes personalidades ou de um enfoque direcionado aos grandes acontecimentos, fontes primordiais da construção das identidades nacionais/ cosmogonias. Porém, a antropologia, com o auxílio da história, deve celebrar aqueles que são socialmente constrangidos a não terem história pela remissão à invisibilidade da não-cidadania. Esta perspectiva deve estimular uma abordagem que incite ao resgate desse passado - entretanto, tornado invisível - sublinhando o papel dessa história no estabelecimento de novas conexões, relações e interdependências. São essas diferentes histórias, multissituadas e multiculturais, que em interação, trazem à visibilidade o espaço das relações sociais, como uma arena onde se travam autênticas batalhas pela sobrevivência e luta identitária (ORTNER, 1984).
É nosso objetivo sublinhar as várias subjetividades, em um processo de encontro entre culturas que oscila, dialeticamente, entre o encontro e a sua criação/ transformação, recíprocas (SAYAD, 1999, 2014). Esse encontro/transformação nem sempre ocorre de forma voluntária e, muitas vezes, o patronato e as classes dirigentes gostariam de se servir da mão de obra imigrante disponível, sem pagar um preço cultural por isso (SAYAD, 2014). Ou seja, a transformação propiciada pelos encontros migratórios de que falamos, pode não ser desejada ou bem-vinda.
Subsidiariamente, a intensificação dos fluxos de várias ordens a que temos vindo a assistir nas últimas décadas, promoveu o colapso de antigas lógicas organizativas/representativas sob várias perspectivas: locais, regionais, continentais e transcontinentais. Os aspectos valorizados a partir das interdependências estabelecidas e sua intensificação (HARVEY, 1989; SHELLEY, 2010, p. 37), especialmente ao nível econômico e financeiro - que, enquanto, assessoradas por ciclos econômicos de expansão - permitiram a aceitação complacente, porém, seletiva, de fenômenos migratórios social, jurídica e administrativamente produzidos/incorporados como ilegais. A ilegalidade tem, portanto, uma ficção na sua base. Primeiramente, define um centro de normalidade/legalidade e por oposição a esse centro, elege inúmeros fatores de desestabilização, vulgo ilegalidades.
As noções de legalidade e ilegalidade correspondem, deste modo, a uma estrutura/poder que as vigia, precavendo-a assim de uma hipotética perda da sua eficácia estrutural e estruturante (BOURDIEU, 2002), discursivamente naturalizada. Não obstante, esta eficácia, que obstaculiza uma cidadania plena e produz uma representação integrativa do “outro” imigrante, não exclui estratégias de resistência simbólicas e pragmáticas que se expressam, por exemplo, na estruturação de comunidades imaginadas - tão imaginadas e paralelamente, concretas, quanto as que alimentam os nacionalismos, gerados com crescente intensidade, viabilizada pela fluidez tecnológica das comunicações (ANDERSON, 2008). Ou, pela fragmentação identitária, expressa em pertenças múltiplas e dinâmicas - que contrariam a ideia do sujeito uno renascentista e também, num outro nível, a da coerência sistêmica dos processos identitários, subjacente aos nacionalismos e às noções de Estados-nação incorporadas por naturalização.
Sublinhamos ainda, como forma ativa de integração negociada, o questionamento e a transformação das velhas lógicas dos Estados-Nação do século XX (HOBSBAWM, 1990, p.16-19). Atualmente, os Estados convivem com soberanias partilhadas no seio de organizações transnacionais como a Organização Mundial de Saúde, a União Europeia ou a Organização das Nações Unidas e a um território que já não corresponde a uma população específica e uma língua determinada.
Neste enquadramento fluído e multiforme, contingentes de trabalho efetivo ou em reserva por indivíduos provenientes de países típica ou contextualmente em dificuldades de várias ordens foram, em certo momento, concebidos como úteis ou, pelo menos, passíveis de indiferença. Dessa forma, legitimava-se esse enquadramento interessado e por isso subjetivo, em uma construção social da ilegalidade, paulatinamente incorporada como categoria social imputada à pele dos visados. A relativa estabilidade social e econômica na Europa e Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial - que perdurou até fins do século XX - bem como o escalonamento de uma lista de países inimigos, igualmente estável e facilmente representada como tal3, facilitava esse olhar ambíguo sobre os migrantes, simultaneamente ilegais e paradoxalmente úteis e, em muitos casos, associados a uma mão de obra inerentemente barata.
Essa estabilidade promoveu a produção de uma taxonomia sobre a migração, assente nos requerentes de asilo, migração econômica, etc. (MEZZADRA, 2015, p. 11). Neste contexto, as fronteiras arquitetadas - na altura - como limitações geográficas, assumem uma dimensão de mediadoras de relações sociais entre indivíduos de diferentes países, existindo e demarcando limites geográficos/simbólicos, caracterizando-se por uma porosidade controlada, porém, sub-repticiamente consentida e interessada.
Convém ainda sublinhar que essas taxonomias surgem em um momento em que a mobilidade de populações e indivíduos nada tinha a ver com a atual em termos de dimensão e intensidade, pelo que atualmente, mobilidade e migração são conceitos que se interseccionam. Basta verificar a alteração simbólica e representacional da categoria “turista” na crise de saúde pública ocasionada pela doença Covid-19, em que ela rapidamente deixou de ser percebida de forma positiva e se aproximou do imigrante ilegal enquanto alguém contextualmente indesejado, amontoado nos aeroportos e impossibilitado de circular de um dia para o outro. Duas categorias distintas tornaram-se próximas.
O OUTRO, ESTRANHO E POTENCIALMENTE AMEAÇADOR
A emergência de movimentos terroristas, para os quais não havia antes um enquadramento, exigiu das economias ditas desenvolvidas um esforço de adaptação a um novo tipo de guerra não programada, aleatória, sem contingente militar e bélico. Ao inimigo identificável, segue-se o opositor que pode ser a pessoa que vive ao lado e que durante anos conhecemos como vizinho pacato. Altera-se o paradigma de segurança e também a imagética produzida e associada aos imigrantes. Passaram a ser uma ameaça à segurança e organização política e social europeias e até prováveis culpados da falência do Estado social europeu. Fluxos percebidos como entrópicos, associados a desordens várias e acima de tudo, como potenciais praticantes de atos terroristas.
Atualmente, na Europa, para além de uma reação xenófoba e racista, vivem-se momentos de tensão entre os próprios europeus. O federalismo ou as ideias inicialmente propulsoras da União Europeia, deixam transparecer fissuras, rasgadas por ideais nacionalistas. O agonismo recalcitrante não é apenas dirigido a imigrantes ou refugiados de outros continentes4, passa também a ser direcionado à mobilidade de europeus em trânsito pelo espaço do Acordo de Schengen5.
Neste quadro, os países se fecham e reivindicam para si autonomias há algum tempo - negocialmente - cedidas, enquanto a tensão entre europeus aumenta e o discurso político baseado em um nós, nacionalista, em oposição a um eles ameaçador arregimenta seguidores (Billig, 1995). Tudo isso ocorre em meio a um processo em que a produção da sensação subjetiva de ameaça/insegurança resulta de ações, mais ou menos concertadas, de produção do pânico social (BOCAYUVA, 2012; MEZZADRA, 2015, p. 25-26).
O pânico moral/social que encontrava nos meios de comunicação clássicos e na necessidade política de acolher essas emotividades bipolares, é hoje substancialmente ampliada, não só pelas redes sociais virtuais, mas também pela densificação, imbricamento e mundialização de redes sociais potenciadas pela facilitação de fluxos, resultado das sempre novas tecnologias da informação e transporte, associadas ao significativo incremento das vias e plataformas por onde circulam e se propagam (HARVEY, 1989; SHELLEY, 2010; VERTOVEC, 2009). Esse pânico social foi sucedido pela pressão, repressão e vigilância sobre os homossexuais nos Estados Unidos e Europa (RUBIN, 1984), com a relação de subalternização estabelecida entre o gênero masculino e feminino (BEAUVOIR, 1967; BUTLER, 2007; MEZZADRA, 2015). Atualmente, é sucedido pela figura retórica do imigrante ilegal, o que tem profundas implicações sociais negativas nas suas vidas e experiências cotidianas.
Outros autores, porém, argumentam em uma outra direção: o conflito entre imigrantes e autóctones advém da fragilidade econômica, não apenas dos migrantes, mas também das economias dos países de acolhimento (DANCYGIER, 2012, p.1). Portanto, o pânico social é potenciado por circunstâncias em que problemas, também de origem econômica, subjazem esse alarmismo concertadamente difundido e produzido. O aspecto econômico sustentado por Dancygier (2012), não é, todavia, o único a operar.
Atualmente, a questão religiosa assume outra dimensão na esfera pública, nela reacendendo o pânico social, sempre latente. A proibição do uso do véu em França ou da construção de mesquitas na Suíça exemplificam casos em que fatos de base religiosa reassumem um papel central nas preocupações públicas (MAPRIL; BLANES, 2013). Esses conflitos são reforçados por acontecimentos em que o pânico gera violência sobre os imigrantes. A sua motivação varia desde a islamofobia, xenofobia à mera repulsa perante a imigração.
Por outro lado, devemos igualmente considerar que as motivações, aspirações e anseios dos nossos interlocutores, vão muitas vezes além da mera busca das melhorias econômicas:
Abrangendo padrões de consumo e estilos de vida, lógicas familiares e de parentesco, procura de autonomia, acesso a projetos de “modernidade”, entre muitos outros vetores de análise e atuação (…). Este paradigma vem juntar-se a outros que no panorama editorial português têm vindo a chamar a atenção para o estudo das dimensões experienciais dos fenômenos migratórios contemporâneos (MAPRIL, 2013, p. 475).
Esses fatos imprimem uma dimensão subjetiva/agencial ao estudo e produção de perspectivas sobre os fenômenos, quer do lado das fronteiras como elementos simbólicos que geram ilegalidade, quer dos atores sociais que são alvos desse processo.
A ILEGALIDADE COMO DIMENSÃO DA INCLUSÃO
Constatamos, portanto, a existência de dinâmicas sociais múltiplas, quer a montante, quer a jusante da problemática das migrações:
O movimento ilegal de pessoas, geralmente abrange duas atividades relacionadas: contrabando de migrantes e tráfico de pessoas para fins de exploração. Ambas envolvem o recrutamento, movimentação e entrega de migrantes de um Estado de origem a um Estado de destino. O que distingue as duas atividades, é que os traficantes escravizam e exploram as suas vítimas, enquanto, que, os migrantes contrabandeados mantêm uma relação consensual inicial com seus contrabandistas. Além disso, muitos indivíduos contrabandeados ficam livres no final de sua jornada ou após um período de servidão contratada. (CARRERA; ELSPETH apud SHELLEY, 2010, p.8)
Neste enquadramento, considero que na contemporaneidade os imigrantes asiáticos podem ser facilmente identificados com Islã6, ilegalidade ou ameaça, por vezes vivendo durante décadas nessas condições em países europeus, onde incorporam um estatuto de não-cidadão. Mais do que uma forma de exclusão, a ilegalidade converte-se em uma dimensão de inclusão. Logo, não foram apenas as velhas lógicas organizativas do sistema mundo que entraram em processo de desmoronamento. A isso também se sucedeu a eficácia epistemológica das taxonomias científicas clássicas sobre imigração.
Paralelamente, esse paradigma de cidadania e o Estado-Providência a ele associado também começam a ser questionados pelas elites europeias no que diz respeito à sua eficácia prática. Por outro lado, assistimos ao vingar de uma tendência nos vários regimes de cidadania europeia, que atribui a primazia à dimensão da culturalização da cidadania. Nesses casos, a cidadania seria definida menos pelo acesso a direitos formais e mais pela incorporação de determinadas ideias e padrões de comportamento.
Quanto à questão central, não negamos as informalidades/ilegalidades agenciadas como vias estratégicas para uma hipotética “legalização” em território português, mas, mais do que associá-las à condição abstrata do ser imigrante com uma determinada nacionalidade, procurarei apontar os fatores que contribuem para essa marginalização/marginalidade de comportamentos e estratégias. Para tal, devemos considerar os contextos passados desses migrantes (SAYAD, 1990) e o confronto com as experiências de um outro tipo de subalternização, ou seja, da castração de direitos, que os constrange a atuar estrategicamente na arena social e política, com reduzida autonomia.
ÍNDIA, PAQUISTÃO E BANGLADESH
A criação de estereótipos aplicados violentamente a migrantes não só os torna prisioneiros desse cárcere de representações (MACHADO, 1999; 2003). Eles devem ser os primeiros aspectos demovidos pelos cientistas, no sentido de abordar as migrações em uma perspetiva que inclua as várias dimensões culturais desses sujeitos, não apenas enquanto atores e atrizes sociais recebidos em “países de acolhimento”, mas também como oriundos de “países de emissão” de pessoas, possuidores de uma existência e culturas próprias anteriormente ao projeto migratório. Segundo Abdelmalek Sayad, “a cultura imigrante ao confrontar-se com a cultura que a recebe, integra metamorfoses que a tornam uma cultura de chegada ou uma cultura em criação” (SAYAD, 1990, p.19), pelo que as alterações produzidas na cultura dos imigrantes ao confrontarem-se com a sociedade que os recebe, produzirá igualmente efeitos na cultura de origem.
Em Portugal, é possível identificar a emergência do que autores como Sandro Mezzadra e Brett Nielsen (2013) designam por subjetividades de fronteiras7. Neste contexto, é possível constatar laços que se estabelecem entre paquistaneses, indianos e bengalis (assim como, num outro segmento, entre brasileiros ou entre brasileiros e portugueses) ao nível da troca de informação e da disponibilização dos recursos suspensos nas relações sociais, em que os capitais sociais angariados desempenham papel relevante. Essas redes sociais estão assentadas em relações de nacionalidade, proveniência regional comum, de gênero, vizinhança, partilha de idioma e, em alguns casos, parentesco (BOURDIEU, 2002; COLEMAN, 1990; VERTOVEC, 2009). Em casos específicos, a religião pode igualmente ser uma dimensão de primordial relevância.
Para entendê-las, necessitamos mergulhar nas raízes históricas que sustentam a relação entre bengalis, indianos e paquistaneses. As suas redes refletem subjetividades que sustentam dinamicamente a ponte entre culturas de origem e culturas em criação (SAYAD, 1999), as quais, podem remeter às difíceis condições de vida na Índia, Paquistão e Bangladesh, marcadas por experiências de terrorismo e pobreza. Tal compreensão demanda uma breve apresentação de fatos históricos.
Ainda no século XX, tanto Paquistão quanto Bangladesh faziam parte da grande Índia. Em 1947 ocorreu a divisão da Índia em Índia e Paquistão, sendo o Paquistão maioritariamente muçulmano e a Índia, hindu. Como consequência desta divisão, houve a partição da província de Bengala, em Bengala Oriental (Paquistão) e Bengala Ocidental (Índia). Esses acontecimentos culminaram em um conflito, em 1971, que visava a independência de Bengala Oriental. Foi uma rebelião nutrida por um movimento anterior que defendia a autonomização da língua bengali (surgida em 1952), e teve como resultado a independência de Bangladesh.
Anterior a esse acontecimento, a divisão entre Bengala Ocidental e Oriental já havia produzido as suas consequências sociais. Os muçulmanos em Kolkata/ Calcutá, na Índia (Bengala Ocidental), são ainda hoje uma minoria, pertencem a uma comunidade altamente discriminada e a um grupo de falantes de urdu entre uma maioria de falantes de Bengali. Por último “o terceiro aspecto a ter em conta relativamente ao status minoritário dos muçulmanos em Calcutá; é o de que eles são essencialmente urbanos, enquanto que, no Bengala oriental, habitam essencialmente zonas rurais” (SEABROOK; SIDDIQUI, 2011, p.5).
Pode-se questionar por que eles não se mudaram para Bangladesh Oriental. Para Seabrook e Siddiqui (2011), a explicação é simples; os muçulmanos residentes em Calcutá, falantes de urdu, são provenientes de Bihar, um território indiano. Há um curioso paralelo entre o isolamento desses muçulmanos na Índia e aqueles 1,25 milhões de muçulmanos provenientes do estado de Bihar, que decidiram migrar para o Paquistão em 1960. No Paquistão são conotados como delatores, na Índia como muçulmanos, fator primeiro para a partição bélica da grande Índia, em Índia hindu e Paquistão de religião islâmica.
Nesse caso, como em muitos outros, é facilmente compreensível que a emigração tenha motivações econômicas, muitas delas, não obstante estimuladas por fatores políticos, exógenos aos indivíduos. Ainda hoje, em contexto migratório, essas divergências são perceptíveis entre indivíduos que um dia fizeram parte de um só país, a Índia. Assim, religião, língua e raízes nos territórios cujas soberanias foram alteradas, conduziram e conduzem a processos de discriminação, ainda assim, suscetíveis de transformação em contextos migratórios, que podem ser explicados pelo conceito de:
Trans-localização posicional, que é relativa à subjetiva, contextual e por isso diferenciada valorização - em diferentes geografias e por isso exponenciada em contextos migratórios - de interseccionalidades como gênero, etnia, raça, classe, entre outros marcadores socioculturais. (ANTHIAS; LAZARIDIS, 2000, p. 276)
Este conceito implica alguma dualidade no enfoque analítico direcionado, envolvendo para tal os contextos de origem e destino. Em Portugal, ela é visível e constatável nas relações entre indianos, bengalis e paquistaneses. Portanto, as suas diferenças em um distinto território podem ser valorizadas de forma dinâmica. O “inimigo” pode, circunstancialmente, ser um aliado na luta pela sobrevivência.
DIMENSÕES ECONÔMICAS E SOCIAIS DA SUBALTERNIZAÇÃO
Os fluxos migratórios para a Europa, encurralados em um emaranhado de interdependências e imbricamentos que se condicionam mutuamente, debatem-se com a perspectiva maior de integração jurídico-administrativa. Ela é cada vez mais difícil de ser alcançada através da legalização e aquisição de formas diferenciadamente positivas de cidadania. Por isso, estratégias alternativas e informais são acionadas como forma de reação a contextos de acolhimento cada vez mais hostis.
Essas estratégias podem facilmente ser condicionadas por discursos de ilegalidade que reforçam a conotação subalterna, operando através de estereótipos vinculados a determinadas nacionalidades ou religiões. Estes processos, acentuados pelos nacionalismos emergentes, atribuem conotação criminosa à etnicidade/nacionalidade e sublinham características orientalizadas/essencializadas (MACHADO, 1999) que tendencialmente são incorporadas pelas sociedades de acolhimento como correspondendo e integrando esses imigrantes.
O Estado, que através dos seus agentes trata alguns como subalternos, cria angústia e frustração nos migrantes que a ele recorrem. A dificuldade na legalização ou em conseguir um contrato de trabalho legal estimula vias alternativas8. Diferentes estados de marginalização, assim como diferentes origens e objetivos distintos, impõem a essas pessoas constrangimentos que as interpelam a agir e interagir na economia informal, de modo a prover a sua sobrevivência em uma economia e sociedade globais.
Neste cenário, ao contrário do que se poderia supor, a figura do imigrante ilegal não é apenas consequência de um processo de exclusão. No entender de Mezzadra (2015) é um conceito que assume uma dimensão de inclusão, mediante hierarquizações de cidadania. Em um contexto global em que o neoliberalismo impera, muitas vezes aqueles que não possuem documentação servem como reserva de mão de obra (SAYAD, 1990) disponível para trabalhos indesejados pelos autóctones e em condições de total escravatura. Ainda assim, as declarações públicas em torno de ideais como a integração dos migrantes são comuns. “a integração tornou-se uma banalidade nos lábios dos membros de governos, membros da oposição e advogados dos imigrantes” (CALAVITA, 2005, p.2). Isso ocorre atualmente em Portugal com cidadãos de Bangladesh, Índia e Paquistão (SHELLEY, 2010).
Trabalhando no Alentejo ou Algarve em condições miseráveis, alguns deles recebem pouco mais que 300 euros por mês e vivem alojados em condições precárias, pagando os impostos de seguridade social, retidas pelos empregadores como parte de seus lucros9. Cada grupo de trabalhadores é orientado por supervisores, que são geralmente oriundos da mesma área geográfica. São bengalis, nepaleses, paquistaneses ou indianos. Salientada essa condição precária, torna-se perceptível o porquê de algumas nacionalidades serem mais propensas a se tornar objeto de processos de subalternização discursiva do que outras. Parece-nos claro que a vulnerabilidade econômica e social é determinante nesse processo, quer no contexto de origem, quer no contexto de “acolhimento”.
O capitalismo neoliberal, baseado em uma acentuada arbitrariedade de circulação de commodities, capital e imagens, concebe nessas alteridades cidadãs os seus fragmentos. Nesta perspetiva, a Europa do Sul e mais especificamente Portugal constituem-se como interface de entrada no continente, quer numa perspetiva física de transpor uma fronteira, quer numa dimensão conceitual de aceitação condicionada a uma cidadania, através da autorização de residência. Ali, as fronteiras culturais, religiosas, econômicas e políticas estão em constante negociação e a tradicional conceitualização de fronteira como delimitação geográfica passa a absorver e a evidenciar traços de luta e tensão, entre as subjetividades (MAPRIL; BLANES, 2013; ORTNER, 1984). Isso corrobora o argumento de Sayad (1990), para quem pensar a imigração implica pensar a i/emigração e suas consequências nos países de origem (SAYAD, 1990, p.15). Utilizo aqui também o conceito de “fronteira” segundo Mezzadra (2015):
Isso significa para nós que os multíplices elementos (jurídicos e culturais, sociais e econômicos, simbólicos e linguísticos) constitutivos do conceito e da instituição da fronteira tendem hoje, frequentemente, a se desenvolver em direções diferentes, sem que a linha magnética por muito tempo representada pela tradicional fronteira geopolítica seja ainda capaz de garantir e de articular sua consistência unitária. É evidente que a fronteira geopolítica continua a desempenhar funções essenciais. Mas, ao lado dela, outras linhas de demarcação, frequentemente muito mais elusivas (desde os limites urbanos até as fronteiras de “status”, até aquelas que em muitas partes do mundo circunscrevem as assim chamadas zonas econômicas especiais), devem ser criticamente analisadas para entender como elas se sobrepõem, se conectam e entram, inclusive, em choque umas com as outras de maneiras muitas vezes imprevisíveis, ajudando a moldar novas formas de dominação e exploração (e a utilização do termo “exploração” neste contexto, sublinha a necessidade de conjugar a crítica política e jurídica com uma crítica da economia política das fronteiras) (MEZZADRA, 2015, p. 19-20).
Atravessar a fronteira sem legitimidade jurídico-institucional reserva desde logo dificuldades a serem superadas, e não se consegue atingir isso pelos padrões de cidadania europeia. Essa forma de inclusão pela ilegalidade acaba por acompanhar o raciocínio de Foucault (1978), para quem em contextos de vigilância extrema, o desvio condicionado pode ser o reforço da norma, que através de uma ficção é socialmente incorporada como natureza.
Autores argumentam que a forma como a expressão religiosa, cultural e política se realiza no espaço público é reveladora do lugar social atribuído aos atores sociais sujeitos dessas manifestações (MAPRIL; BLANES, 2013). Essa hierarquização acaba por produzir e simultaneamente absorver um enunciado discursivo sobre os imigrantes, e o estudo dos fluxos de pessoas deve integrar esse discurso. Assim, o discurso faz parte do objeto, em uma relação dialética que os integra mutuamente (SAYAD, 1999; FOUCAULT, 1978; 2003). Neste enquadramento teórico, chamamos a atenção para o argumento de Calavita (2005), que salienta o seguinte:
apesar desta retórica política que visa a integração, os imigrantes permanecem como párias, vulneráveis ao tipo de ataques aqui descritos, assim como a experiências de exclusão vivenciadas no dia a dia, que não só confirmam, como também coproduzem, a sua marginalização (CALAVITA, 2005, p.2).
São vários os fatores que operam socialmente gerando tensão em meio à recessão econômica vivida em Portugal desde 2009: o fato de o país ter assumido relevância internacional enquanto porta de entrada na Europa e no espaço do Acordo de Schengen; aspectos religiosos imbricados com o pânico moral/social produzido sobre o terrorismo; a questão dos refugiados e imigrantes; o neoliberalismo e as suas consequências negativas; a necessidade mão de obra barata e disponível; o reforço do policiamento das fronteiras; a alteração do paradigma do “trabalho”; principalmente, a competição por postos de trabalho no panorama global atual tende a conceber os imigrantes como naturalmente ilegais, incorporando-os nas sociedades como uma metáfora da não-cidadania, como poderá ser percebido a seguir.
Outras vidas e artes do cotidiano em Portugal10 Arafatur possui um estilo britânico na forma como fala e também como se veste, algo não muito habitual nos Bengalis que conhecemos. Um halfie (ABULUGHOD, 1991), de certo modo e por analogia, alguém não muito bem quisto seja por conterrâneos ou por ingleses. Conheci-o em Janeiro de 2015 em uma casa na Ameixoeira, arredores de Lisboa. Desde logo me falou dos seus objetivos.
Ele pretendia abrir um restaurante no Rossio e naquele momento inaugurava outro na Rua do Bemformoso11. Relatou-me também as incidências de outro projeto: trazer pessoas de Bangladesh e dar-lhes condições para estudar na Inglaterra. Lá, era possível ter um visto temporário para efeitos de estudo. Contudo, as pessoas teriam que se matricular em uma instituição e essa estratégia se tornava bastante onerosa - segundo Mazid, outro bengali, tal poderia custar cerca de 20 mil libras por ano12. Antes de entrevistá-lo, soube por contatos comuns que Arafatur emprestava/financiava viagens e tratava desses vistos a troco de razoáveis quantias de dinheiro - denominado de interest (juros). Seria essa migração econômica, acadêmica, de refúgio, relativo a mudanças climáticas13 ou, ainda de contrabando de pessoas? Mezzadra (2015) considera que atualmente esses conceitos são inapropriados para uma realidade muito mais multifacetada, sujeita a interdependências e a imbricamentos vários, por comparação ao que sucedia nos anos 70 do século passado:
modelos consolidados de “integração” estão enfrentando desafios sem precedentes; a distinção entre os migrantes “econômicos” e os solicitantes de asilo é cada vez mais problemática; a figura do migrante “ilegal” atrai grande atenção do ponto de vista do controle e do discurso público, enquanto emerge, de modo cada vez mais claro (inclusive pelos movimentos e pelas lutas dos sans papiers em muitas partes do mundo), o caráter arbitrário do mesmo rótulo de “ilegal” (ou “clandestino”) (MEZZADRA, 2015, p.12).
Na verdade, esses fluxos que ocorrem no século XXI não parecem ser orientados apenas por expectativas de evolução acadêmica ou meramente econômica, mas sim por causas distintas, porém confluentes. Esses indivíduos são confrontados com imagens do bem-estar e das comodidades europeias, que refletem um sucesso inspirado no modelo capitalista de consumo, em que a abundância de bens impera, em contraposição às dificuldades a que a maioria se habituou. Esta aparente fartura de recursos surge também associada a conceitos de cidadania e pertença a uma sociedade global que os seduz e motiva a emigrar. Esse desejo de atingir imagéticas de sucesso, associado ao reconhecimento social (Bourdieu, 2002), constitui-se como motivação para empreendimentos migratórios.
Arafatur providencia esse tipo de ajuda, criou inclusivamente um sítio na internet em que apresenta e descreve os seus serviços. Dizia-se que a dada altura fornecia também informações aos inspetores do SEF. Em um jantar de aniversário da filha de MD Rejaul, outro Bengali, ocorrido em Março de 2016, Arafatur exibe orgulhosamente os contatos de inspetores do SEF na tela do seu celular, com os quais dizia manter comunicação regular e privilegiada.
Esses contatos privilegiados fizeram despontar outra dimensão de halfie: era também muito próximo daqueles que podiam deportá-lo. Contraditoriamente, vi-o muitas vezes entrar no restaurante de Amir14 - que, sabia que Arafatur podia denunciá-lo - fazendo as suas refeições e saindo sem pagar. Porém, era precisamente esse receio da denúncia que ainda lhe permitia ser condicionalmente aceito no espaço dos outros, bem como os seus conhecimentos no âmbito da concretização de novos negócios, dos quais gozava de boa reputação15. Amir não possuía nada quando chegou a Portugal, a não ser os 3.500 euros para pagar a Arafatur por um contrato de trabalho celebrado com uma empresa de fachada, pertencente a Sumit Sikdar.
Assim, poder-se-ia argumentar que o recurso a estratégias econômicas descritas como informais, nas visões normativas da economia, resulta da própria marginalização, que “empurra” determinadas populações para certos lugares no mercado de trabalho (MAPRIL, 2010, p.246).
Sumit é um indiano de 38 anos com passaporte da Letônia. Grande parte desse dinheiro recebido por Arafatur foi para Sumit, mas a intermediação no processo fez com que Arafatur ganhasse uma parte. Desde 2016, Amir é “dono”, o patron de dois restaurantes de comida bengali na rua do Bemformoso. O patrão extravasa o significado literal da palavra, exercendo autoridade sobre os empregados.
Porém, em um contexto que revela derivações diferenciadoras face ao observado por Mapril (2010), o patrão é também aquele que vende contratos de trabalho e que, por fazê-lo, preserva uma imagem aparentemente querida e a quem todos recorrem em caso de necessidade. É quem agiliza a rede de contatos em caso de necessidade, seja para providenciar (alugar) uma moradia, assinar um contrato de trabalho (falso), obter informações sobre o SEF ou empréstimos.
Como nos confidenciou Amir - depois de pagar pelo contrato de trabalho a Arafatur e Sumit - teve a ideia de pedir adiantado o valor dos contratos de trabalho que iria celebrar com a abertura do negócio que idealizava na rua do Bemformoso, ou seja, pediu a quinze pessoas para lhe adiantarem os 3.500 euros correspondentes ao custo dos futuros contratos. Com essa estratégia, arrecadou cerca de 55.000 euros. Com essa verba pagou a loja, geralmente um trespasse pago informalmente a outro conterrâneo. Ainda sobrou dinheiro para realizar obras, adquirir máquinas, abrir o restaurante e ainda alugar outro espaço na Rua da Palma na qualidade de “sócio”. Porém, a sua situação de ilegal/não cidadão o impedia de ter o negócio em seu nome, precisando para o efeito de alguém que assumisse formalmente o negócio e que celebrasse com ele um contrato de trabalho. Em Janeiro de 2017, após dois anos de muitas incertezas, conseguiu a tão desejada autorização de residência. Quando me viu, exclamou: “I made it, i put the finger!”16 José Mapril (2010) afirma que a desconfiança é latente, contudo a verdade
é que a falta de direitos torna as pessoas fragilizadas do ponto de vista social, permeáveis a situações extremas, em que arriscar é muitas vezes a única solução. Quando Mazid, ex-supervisor de Amir em Londres, foi chamado para se juntar a ele em Portugal, “onde estava bem e havia francas possibilidades de se legalizar”, também arriscou a sua sorte. Com mulher e apenas um filho, à data com 4 anos17 - Shakila e Mohib - abandonou Londres, pagou por um contrato de trabalho a Amir, que também lhe emprestou algum dinheiro e passou a receber 400 euros mensais por 12 horas de trabalho prestado no seu restaurante. A essa altura Amir não tinha a autorização de residência e estava aflito com a pressão exercida pelas pessoas a quem tinha pedido dinheiro. Depois de deixar atrasar alguns pagamentos à seguridade social, relativos aos tais contratos de trabalho, comunicou a Mazid que não lhe poderia continuar a pagar salário, o qual, aliás, já não era pago há dois meses. Estávamos em Novembro de 2016 e Mazid exigiu que lhe pagasse o que devia.
Nessa situação, Mazid recorreu a Moynul, outro Bengali que vive atualmente com sua esposa na casa inicialmente arrendada por Arafatur18. Sabia que ele poderia pedir 250 euros para falar com o patron português, para que quando surgisse uma vaga no trabalho, o chamasse. Não obstante, a forma como deixou o restaurante de Amir influenciou Moynul, que não quis lhe facilitar o contato19, nem mesmo por dinheiro. Como se pode constatar, os recursos encontram-se nas relações sociais e não propriamente nos indivíduos isoladamente considerados (COLEMAN, 1999; VERTOVEC, 2010). Por isso, em determinadas circunstâncias, aceder a contatos é manejar recursos que devem ser pagos, e ter acesso à gestão de recursos significa aceder a capitais sociais. Romper com alguém pode significar romper com a sua rede de contatos.
Entretanto, um outro Bengali, que frequentava o mesmo restaurante onde Mazid trabalhava com Amir, sabendo da situação, ofereceu-lhe o seu apoio e levou Mazid a um restaurante português no Rossio, sem cobrar qualquer valor por isso. Dessa forma, Mazid conseguiu trabalho, vendo o seu rendimento aumentado em 300 euros mensais e reduzido em número de horas de serviço, de 12 para 8. Também há, portanto, Bengalis, paquistaneses ou indianos que agem de forma altruísta. Mazid havia agendado um atendimento com o SEF para 15 de Fevereiro de 2017. Ter um contrato de trabalho com um português é tido como positivo, não apenas para efeitos de legalização, mas também como fator que lhe atribui um capital social melhorado na relação estabelecida com outros bengalis. As suas redes sociais passaram a ser mais densas e amplas, passou a conhecer brasileiros e portugueses colegas de trabalho. Não obstante, o fato de não possuir o título de residência (de entrada legal) no Reino Unido, levou o seu advogado a requerer o adiamento da marcação. Mas sua esposa estava grávida e o seu próximo filho nasceria em Portugal, ou seja, seria português. Essa seria a via mais fácil para tentar a sua legalização. Entretanto, ele continuava a pagar a seguridade social e a trabalhar.
Em 2018, o Decreto 9/2018 que veio regulamentar o Regime Jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território nacional português, foi publicado no Diário da República20, indo ao encontro dos objetivos que estiveram na base das alterações à Lei de Estrangeiros realizadas em 2017. A nova regulamentação permite agilizar, desburocratizar e flexibilizar os procedimentos de pedidos de vistos e de autorizações de residência. Simplifica-se o regime de residência para trabalhadores sazonais e introduz-se um novo regime para trabalhadores transferidos de outros Estados-membros, desde que estejam integrados nos quadros das empresas. Agiliza-se e simplifica-se a concessão de autorizações de residência para quem pretende estudar no ensino superior.
A Lei de Estrangeiros permitiu também adequar a legislação nacional às novas dinâmicas econômicas, sociais e globais, capitalizando ou procurando capitalizar os fluxos de forma vantajosa para a economia portuguesa, em um período de recuperação econômica pós-troika de intervenção externa em Portugal. Os procedimentos passam a ter como regra a apresentação digital de uma manifestação de interesse em legalizar-se e, quando legalmente possível, dispensa-se o mecanismo de entrevista presencial em um consulado.
O Governo português, ao arrepio do restante da Europa, reconhece em seu Programa estar diante de um desafio demográfico, que pode parcialmente ser resolvido através da imigração. Assim, a estratégia governamental passou a ser movida pela atração de imigrantes, através dos canais legais. Sem dúvidas, pode ser considerado um passo importante rumo ao esvaziamento da incorporação pela ilegalidade, contudo revela uma face utilitarista subjacente a esses processos de facilitação.
CONCLUSÃO
Este artigo buscou demonstrar que, no caso de indianos, bengalis e paquistaneses que visam obter autorização de residência em Portugal, a existência da figura do imigrante ilegal depende fortemente da construção de enunciados discursivos e das situações concretas que lhes dão origem. A partir de experiências cotidianas, evidencio processos de hierarquização da cidadania, observáveis através das dimensões históricas, econômicas e culturais que envolvem a subalternização desses imigrantes.
Entre os aspectos subjacentes à condição de ilegalidade, dediquei maior atenção aos modos de financiamento de viagens, procura de trabalho e redes sociais, pois elas refletem múltiplas relações e interdependências entre as sociedades de origem e de destino desses agentes. Mais do que uma forma de exclusão, as ilegalidades agenciadas representam, na prática, vias estratégicas para uma possível “legalização” de status migratório em território português e, portanto, ultrapassam a sua restrita utilização de modo abstrato e unívoco que a associa à nacionalidade.
Além de clivagens que operam entre os imigrantes por meio da religião, política, costumes e valores, identifiquei relações hierárquicas entre legais e ilegais. Os primeiros utilizam o seu status para a obtenção de vantagens financeiras perante os seus conterrâneos ilegais. São exemplos disso os proprietários de estabelecimentos comerciais que, por possuírem status legal, empregam os provedores do capital investido. Embora estes últimos sejam efetivamente os financiadores do empreendimento, dependem diretamente de seu suposto patrão, principalmente em sua busca pela autorização de residência permanente.
O acesso a recursos - restringido ou ampliado pela rede de contatos dos atores sociais - é, pela natureza da situação, necessariamente distinto daquele que é acionado por um indivíduo com capacidade de experimentar a cidadania, no sentido de ser cidadão com direitos e não apenas deveres (não no sentido de ser nacional do país de acolhimento). Será, portanto, incongruente a produção de discursos de subalternização do ilegal bengali, indiano ou paquistanês associado à ilegalidade, tendo em vista classificar suas estratégias da mesma forma. Na verdade, essas estratégias refletem apenas uma coartação de sua cidadania, que os obriga à operacionalização estratégica de informalidades, como modo de sobrevivência. Diferentes circunstâncias implicam diferentes estratégias, assim como distintas valorações morais dessas estratégias. Os contatos entre conterrâneos e familiares promove a entrada de novos indivíduos em Portugal, refletindo uma crescente importância das redes sociais e da internet. Hoje em dia constatamos a presença de imigrantes asiáticos nas grandes cidades portuguesas e também, nas zonas rurais do sul de Portugal onde se dedicam essencialmente à agricultura. Concluímos também que muitas dessas pessoas tentam a regularização de sua permanência em Portugal através do art.º 88º do Decreto 9/2018, que regulamenta o Regime Jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território nacional. Ele exige menos requisitos para atribuição de autorização de residência, e, por ser mais generalista, permite igualmente maior arbitrariedade e discricionaridade na concessão ou recusa de autorizações - dependendo muito das orientações políticas - situação que, pelas razões já apontadas, se modifica em 2018 com vantagem para os migrantes.
Todavia, continuamos a verificar que o estatuto de ilegal continua a imperar, principalmente em situações de depressão econômica, como modo interessado de explorar contextualmente a fragilidade de seres humanos, que antes de ilegais são pessoas. A cidadania deve ser um conceito que decorre do ser pessoa e não de uma situação prévia de ilegalidade do imigrante.
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Notas