Dossiê Migrações Internacionais na Sociologia Contemporânea - Resenha
Lee Ana Paulina. Mandarin Brazil: Race, Representation and Memory. 2018. Stanford. Stanford University Press. 256pp. |
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Recepção: 11 Outubro 2019
Aprovação: 30 Março 2020
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2020.171537
O livro “Mandarin Brazil: race, representation and memory, de Ana Paulina Lee, publicado pela Stanford University Press em 2018 é uma obra que traz à tona um tema muito debatido no Brasil durante a segunda metade do século XIX, e que despertou fortes reações: a possibilidade de migração em massa de trabalhadores chineses no processo de abolição da escravidão. Ganhador do prêmio Antônio Cândido de melhor livro na área das humanidades na sessão Brasil da Latin American Studies Association de 2019, a publicação apresenta uma perspectiva bastante peculiar: no lugar de uma história da migração chinesa, problematiza as representações sobre chinesidade produzidas no Brasil durante esse período, bem como o lugar que essa memória cultural e política ocupou na formação de uma identidade nacional racializada. Trata de discutir como os chineses foram racializados, em conexão com a racialização dos africanos escravizados, dentro de uma imaginação colonial hierarquizada e da emergência global das identidades nacionais do século XIX.
Não se trata de traçar uma equivalência em relação ao racismo que recai sobre a população afrodescendente, mas sim de colocar o papel da racialização asiática na formação de um imaginário sobre identidade nacional brasileira, “no emaranhado de raça, eugenia e ideologias liberais que estavam no coração da construção do projeto de nacionalidade do Brasil”, como pontua a autora. A migração chinesa foi um tópico na discussão sobre a passagem para o trabalho assalariado e o republicanismo. O livro resgata como foram homogeneizados como trabalhadores amarelos, raça coolie, e as contradições das representações sobre os chineses, se virtuosos ou depravados, que derivariam de seu próprio status ambíguo, não eram livres mas também não eram escravos. Como indicado já no prefácio, mais tarde “os japoneses seriam racializados com base nas representações preexistentes no país sobre os chineses, descritos como dóceis e eficientes trabalhadores”, por outro lado como ameaça política e racial, o perigo amarelo de invadir e dominar o ocidente. Professora do departamento de Cultura Latino Americana e Ibérica da Universidade de Columbia, Ana Paulina Lee procura no livro fazer uma revisão da noção latino-americana de estudos culturais para considerar também a racialização chinesa. Essa questão está longe de ter ficado restrita ao Brasil, na segunda metade do século XIX, depois da guerra do ópio, o sistema coolie foi responsável por uma forte presença chinesa no Peru, na Guiana, em Cuba, e no México. Também nos Estados Unidos, onde o trabalho de migrantes chineses foi fundamental na exploração das minas de ouro da Califórnia e na construção da ferrovia transcontinental. Posteriormente, a competição com os trabalhadores assalariados brancos teria levado a conflitos que resultaram na promulgação do US Chinese Exclusion Act1 de 1882, como “defesa da integridade racial da nação dos EUA”, tendo perdurado até meados do século XX. A autora procura assim estender a perspectiva de memórias circum-atlânticas na formação da América Latina, para a ideia de memórias circum-oceânicas, englobando também o papel da Ásia e as passagens transpacíficas na colonização latino-americana.
As representações sobre os chineses circulavam conectando histórias entre lugares distintos sobre experiências racializadas de exploração do trabalho. É justamente sobre essas representações que Lee constitui o material de análise do livro, nas narrativas que incluem ficções, poesias, performances e pequenas histórias, imagens e lugares vinculados. Explora também as correspondências diplomáticas e as representações mútuas produzidas entre os países. Doutora em Literatura Comparada, ela problematiza as estruturas semânticas e os atos incorporados que fizeram os chineses serem interpretados como raça, e a persistência dessas ideias em movimento. Para tanto, se apoia em uma perspectiva teórica crítica sobre raça, nacionalidade e colonialidade.
A autora aponta para a insuficiência de se pensar discursos sobre chinesidade compreendidos como estruturas que procuram um continuum entre terra natal e a população diaspórica. Se os Estados patrocinam políticas culturais em torno de uma certa construção de nacionalidade, quando se trata dos migrantes transnacionais esses projetos nacionais podem ser conflitantes com laços construídos entre lugares separados, resultando em maneiras muito peculiares de ser chinês. Nesse sentido, o livro explora as relações de interdependência, circuitos globais e redes de expressão cultural que definem chinesidade em debate com a construção de uma ideia de identidade cultural brasileira. No Brasil do final do século XIX se produziu uma ideia de chinesidade como uma história relacional de raça, trabalho e nacionalidade que perdurou na memória das representações sobre chineses.
O debate sobre a migração chinesa nesse momento da história do país girava em torno da questão de se eles contribuiriam ou não no projeto de embranquecimento nacional, ou se sua vinda poderia ser adotada como solução temporária para o problema da escassez de mão de obra. No entanto, desde 1810 os chineses já estavam no país, em uma tentativa frustrada de introdução do cultivo de chá. Especialmente na cidade do Rio Janeiro, onde estiveram diretamente envolvidos na construção do Jardim Botânico, eram presença notória no meio urbano. Outras levas de trabalhadores chineses chegaram ao longo do século XIX para desenvolver trabalhos específicos, mas poucos conseguiram regressar à China.
O livro está estruturado em 6 capítulos, além do prefácio, introdução e conclusão. No capítulo 1 (Brasil oriental: entre o passado e o futuro), recupera a história de longa duração da circulação de mercadorias e membros da burocracia colonial entre Portugal, Brasil e China, o que coloca uma peculiaridade em relação às outras colônias na América Latina. A colonização do Brasil se desenvolve em estrita conexão com as rotas comerciais que levavam ao extremo oriente, trazendo da China, a partir de Macau, seda, chá e principalmente porcelanas para o Brasil, entre muitos outros artigos de luxo consumidos pela elite colonial. Discute os trânsitos raciais onde a miscigenação e dominação patriarcal eram elementos constitutivos da colonização ibérica, em uma política de reprodução sexual constitutiva das relações de poder.
O capítulo 2 (Emancipação para a imigração), aborda o argumento central do livro, onde as reformas liberais se entrelaçavam com a perspectiva do embranquecimento e ideologias eugenistas, de modo que as discussões sobre trabalho livre se sobrepunham às de embranquecimento e identidade nacional. Parte dos abolicionistas viam nos chineses uma ameaça a um projeto de embranquecimento, nesse contexto as representações sobre chinesidade como “os amarelos” tiveram papel na definição de branquitude e negritude, argumenta a autora. Caricaturas e paródias sobre os chineses circulavam amplamente desde os EUA até o Brasil nas representações jocosas do sistema coolie, e foram componentes na emergência global de consciências nacionais racializadas. Lee analisa as caricaturas da Revista Ilustrada, na maneira como os chineses eram retratados como esquálidos na comparação com brancos, negros e indígenas, vistos como depravados e ladrões de galinha, em uma retórica que relacionava reprodução sexual, mistura racial e degeneração. O capítulo trata ainda da emergência do discurso do “perigo amarelo”, depois da Guerra Sino-Japonesa, e que expressaria a ameaça de uma dominação asiática sobre o ocidente e de ideias de homogeneização entre os japoneses e chineses. Teria sido necessário um grande esforço diplomático do Japão para se apresentar como país civilizado, o que acabou redirecionando as políticas de migração no começo do século XX entre direção aos japoneses.
Os capítulos 3, 4 e 5 tratam das representações dos chineses na literatura e na dramaturgia durante o período da abolição e imediatamente posterior. Não foram poucas as vezes em que os chineses figuravam como personagens, quando não o próprio tema central das tramas, sinal de como a questão povoava os imaginários coletivos do período. Tanto em O cortiço, de Aluízio de Azevedo, quanto na peça O Mandarim do seu irmão, Artur de Azevedo, passando por Eça de Queiroz e Machado de Assis, apresentam narrativas sobre chinesidade que projetam imagens políticas e imaginações ficcionais. Em questão estavam o desejo de transformar o Brasil em uma sociedade branca e liberal, o regime racial que persistia no pós-escravidão redirecionado para as narrativas sobre imigração, a demanda por força de trabalho, a reprodução sexual e a miscigenação, além da oposição dos abolicionistas quanto a migração dos chineses. A autora resgata a atuação de alguns desses autores na diplomacia, além de outros e o que escreviam sobre os chineses. Eça de Queiroz como embaixador em Cuba, alertaria para a ameaça expansionista representada por chineses e japoneses, enquanto Aluízio de Azevedo, como vice-cônsul no Japão, apontava que os japoneses seriam mais civilizados e ocidentalizados que os chineses. Para a autora, as representações sobre chineses e japoneses, oscilavam em relação aos negros e brancos, demonstrando uma complexa intersecção entre geopolítica, relações raciais e suas transmissões culturais, além do orientalismo reproduzido pelos autores.
O capítulo 6 (O perigo amarelo na música popular brasileira), reflete sobre um momento posterior durante o período Vargas e a segunda guerra mundial, nas décadas de 1930 e 1940. Discute a difusão nas mídias de massa de uma ideia de brasilidade que incorpora o discurso da miscigenação como um elemento constitutivo da identidade nacional. Muitos sambas e marchas reproduziam ideias racializadas sobre chinesidade, apesar do pequeno número de chineses vivendo no país, concentrados no Rio de Janeiro. Lee destaca que a chinesidade representada na música revela o trabalho cultural de representação racial na mediação de nacionalismos brasileiros conflitantes. As representações sobre gênero e sexualidade dos chineses serviriam como alegorias da relação do Brasil com a China, bem como visões moralistas sobre a miscigenação em relação aos chineses. Entre outras, analisa a música Lig, Lig, Lig, Lé composta por Oswaldo Santiago e Paulo Barbosa em 1936.
De um modo geral, a proposta da autora contempla aspectos muito variados e uma ampla diversidade de temas envolvidos. Talvez uma análise que poderia contribuir para o argumento e não está presente no livro, seria o papel da Guerra do Ópio sobre as representações da China e dos chineses produzidas no ocidente. O conflito alterou decisivamente as relações entre extremo oriente e o ocidente, estabelecendo um regime semicolonial a partir de alguns lugares estratégicos na China. A própria formação do sistema coolie está vinculada ao episódio, onde o comércio de chá foi sobrepujado pela lucrativa atividade de transporte de trabalhadores chineses para os EUA e a América Latina. Me parece que os imaginários sobre a China se alteraram drasticamente em função da guerra e que são pouco criticados na historiografia. Na literatura brasileira analisada pela autora, por exemplo, o vício em ópio é um recurso recorrente para caracterizar os personagens chineses. Porém, a ênfase que é dada nesse episódio da história ao consumo da droga, acaba por obliterar as questões de fundo e as transformações sobre a cena do comércio global ali implicadas.2 Assim como a autora analisa a emergência do discurso do perigo amarelo no pós-guerra sino-japonesa, como expressão que deplora as diferenças com objetivos geopolíticos e econômicos, me parece que a guerra do ópio teria sido um evento fundamental nas representações acríticas sobre a China e os chineses produzidas no ocidente como país que teria sido “devastado pelo vício”, igualmente estabelecem uma distância psicológica em relação a um outro imaginado e homogeneizado.
Por outro lado, o livro poderia ter estabelecido um maior diálogo com a bibliografia produzida no Brasil sobre o tema. Na conclusão do livro, ao falar de geografias imaginativas do Brasil e China a autora faz um resgate de Gilberto Freyre, especialmente de sua análise do Brasil Oriental em Sobrados e Mucambos, pontuando as críticas a romantização das relações raciais do autor e sua contribuição para o mito da democracia racial no país. Se por um lado haveria no autor uma crítica ao imperialismo anglo-francês e a ideologia do purismo racial e da supremacia branca, por outro sua leitura da história higienizaria o imperialismo português na defesa de um lusotropicalismo. Existe uma bibliografia bastante extensa que trata do racismo expresso nas construções sobre miscigenação e identidade nacional brasileira. Também o livro de Fábio Lafayete Dantas (2006), sobre As origens das relações Brasil e China, que trata da primeira missão diplomática do Brasil na China em 1879 analisando os registros dos debates entre abolicionistas e escravistas no congresso daquele período, assim como as correspondências diplomáticas da missão a China, poderia ter sido uma boa interlocução. Na aproximação com o tema da migração chinesa atualmente e no que coloca como ecos da memória dessas representações, a autora faz referência apenas aos casos de trabalho análogo ao de escravo envolvendo chineses nas autuações do Ministério Público do Trabalho, mas sem uma crítica às categorias de autuação utilizadas pelos agentes de fiscalização.
Esses pontos não tiram a importância que o livro de Ana Paulina Lee representa para uma área de pesquisa que vem ganhando muitos novos estudos, principalmente a partir da influência crescente da China no mundo e, em particular, sobre o Brasil, mas que está longe de ser uma temática inédita. Sua publicação em português seria uma grande contribuição para maior circulação da obra no país. Podemos também pensar a perspectiva de análise apresentada no livro como um contraponto a uma tendência comum nos estudos que envolvem a temática da migração de se converterem em discussões sobre identidade nacional dos migrantes, como perspectiva crítica ao nacionalismo metodológico. Lee inverte essa equação mostrando como a produção cultural sobre chinesidade no Brasil foi importante na formação de uma imaginação nacional brasileira, envolvendo raça, memória e representação. Como a autora pontua, esses imaginários geográficos orientam ideias sobre si e outros, proximidade e distância, e são uma base de que se forja noções de raça, política e desigualdades entre uma região e outra.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DANTAS, Fábio Lafaiete. Origem das relações entre o Brasil e a China: a missão especial de 1879. Recife: Liber, 2006.
DIKOTTER, Frank. ‘Patient Zero’: China and the Myth of the ‘Opium Plague’. Inaugural Lecture, School of Oriental and African Studies, University of London, 2003. Disponível em: http://frankdikotter.com/publications/the-myth-of-opium.pdf
LEE, Ana Paulina. Mandarin Brazil: Race, Representation and Memory. Asian America Series. Stanford: Stanford University Press, 2018, 256 p.
ZHOU, Min. Chinatown: the socioeconomic potential of an urban enclave. Philadelphia: Temple University Press, 1992.
Notas