Artigo
Educacionalização do direito de punir: Uma análise sociológica da emergência do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)
Educationalization of the right to punish: A sociological analysis of the emergence of SINASE (National System of Socio-Educational Assistance)
Educacionalização do direito de punir: Uma análise sociológica da emergência do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE)
Plural – Revista de Ciências Sociais, vol. 27, núm. 1, pp. 282-304, 2020
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH-USP
Recepção: 01 Março 2019
Aprovação: 09 Março 2020
Resumo: A partir do documento-base de formulação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), da legislação pertinente e dos discursos de atores estatais, é possível caracterizar o Sinase por seus principais enunciados. Segundo estes, relativamente ao modelo de bem-estar do menor, o novo dispositivo é marcado pela intersetorialização, interdisciplinarização e parametrização ética do atendimento. A soma desses enunciados resultou em um discurso de educacionalização do direito de punir. Este artigo propõe uma análise deste processo em sua constituição e seus efeitos.
Palavras-chave: Sinase, Adolescente infrator, Punição, Discurso, Direitos Humanos.
Abstract: From the base document of the formulation of the National System of Socioeducational Care (SINASE), relevant legislation and speeches of state actors, it is possible to characterize Sinase from its specific emphases: intersectorialization, interdisciplinarization, and ethical parameterization of care. Their sum leads to an educationalization of the right to punish. This article proposes an analysis of this process in its constitution and its effects.
Keywords: SINASE, Teenage ofender, Punishment, Speech, Human rights.
INTRODUÇÃO
Em 2012 foi promulgada a Lei nº 12.594 que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), destinado à regulação da distribuição e execução das medidas socioeducativas dispensadas a adolescentes infratores. Essa instituição veio cumprir exigências já previstas na Lei nº 8.069/1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e substituir o modelo então vigente, correspondente à Política Nacional de Bem Estar do Menor (PNBEM) implementada pela antiga Fundação Nacional de Bem Estar do Menor (Funabem). Essa instituição criada pelo regime militar sob a Lei nº 4.513/1964 já atendia, sob o discurso oficial, à necessidade de refazer as tecnologias de controle social de crianças e adolescentes desviantes sobre bases distintas daquelas que vigoravam no Serviço de Assistência ao Menor (SAM)1. O Sinase está inserido, portanto, numa longa esteira de sucessão de instituições responsivas à outrora denominada “questão do menor”.
Tomando “discurso” como um conjunto de enunciados com pretensão de verdade (FOUCAULT, 2013), este artigo tem um objetivo: apresentar o produto parcial de uma investigação dos enunciados que perfizeram a emergência do Sinase, notando como marcam traços distintivos desse dispositivo. Em outros termos: por qual(is) discurso(s) este dispositivo é constituído?
Para isso convém lembrar que a emergência do Sinase se dá em um momento de forte contestação e crítica ao modelo de bem-estar do menor. Conforme verificado em fontes documentais, os construtores2 do novo sistema argumentam que, comparativamente ao modelo de bem-estar do menor, o atendimento socioeducativo foi intersetoralizado, interdisciplinarizado e eticamente parametrizado. O Sinase se distinguiria da instituição anterior, em relação à qual acentuaria características ou apresentaria novidades. O argumento deste artigo é que estes enunciados - sobre a intersetorialização, interdisciplinarização e parametrização ética do atendimento - se dispuseram ao longo de um processo discursivo e cumulativo de educacionalização do direito de punir, cujos efeitos de poder também são citados aqui. Esperamos assim caracterizar a constituição discursiva desse dispositivo sem perder a historicidade de sua emergência, as ênfases retóricas e suas consequências discursivas.
O objetivo deste artigo, contudo, não é propor uma comparação entre os modelos. O sistema da Fundação Nacional de Bem Estar do Menor (Funabem) importa apenas na medida em que os próprios agentes construtores do Sinase se referem, explicitamente ou não, a ele; afinal, como já dito, é em crítica e promessa de superação do “velho” sistema que o Sinase é instituído. A comparação não é um objetivo do texto, mas um dado do campo, um recurso lógico que estruturou os discursos analisados. De igual modo, não se pretende aqui realizar uma análise institucionalista da emergência do sistema ou da formação de uma agenda governamental específica, mas reconstituí-la historicamente em linhas gerais para situar os discursos no tempo.
Seguiremos em apresentação e análise dos discursos, colhidos via análise documental de várias fontes: entrevistas, notícias, anais de conferências, resoluções do Conselho Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes (Conanda) e as próprias leis pertinentes.
CONTEXTO DE EMERGÊNCIA
Com o aporte do Modelo de Múltiplos Fluxos, desenvolvido por John Kingdon (1984), podemos descrever, em traços gerais, a conformação de agendas decisionais de políticas públicas pelo governo desde a convergência de fluxos de produção de agenda. O primeiro fluxo seria o dos problemas. Não basta que um fenômeno exista, é preciso que ele seja reconhecido como problema. Assim, uma questão só se torna objeto de intervenção política pelo Estado quando se converte em problema. A este respeito Capella (2006) pontua que no raciocínio de Kingdon há três mecanismos de conversão de uma questão em um problema: as informações dos indicadores, que podem apontar para um fenômeno emergente, como aumento de taxas de homicídio ou de alguma doença, por exemplo; o feedback de ações governamentais e por fim, os eventos, crises e símbolos:
Muitas vezes, um problema não chama a atenção apenas por meio de indicadores, mas por causa de eventos de grande magnitude, como crises, desastres ou símbolos que concentram a atenção num determinado assunto. Esses eventos, no entanto, raramente são capazes de elevar um assunto à agenda, e geralmente atuam no sentido de reforçar a percepção preexistente de um problema (CAPELLA, 2006, p. 27, grifo meu).
Os casos e eventos importam porque fornecem imagens para a composição de um problema. Consideremos que o país atravessou os anos 1990 com altas taxas de homicídio e a recorrência de episódios como o Massacre do Carandiru, o Massacre da Candelária, o caso da Favela Naval e nos anos 2000 nada menos do que a crise dos “crimes de maio” em 2006, só para citar alguns. Estes eventos sustentaram amplo debate público sobre o sistema carcerário, violência urbana e a própria condição cidadã das vítimas. Pois é nesse conjunto que se inscreve a crise aguda das unidades de internação de adolescentes infratores, particularmente da Fundação Estadual de Bem Estar do Menor de São Paulo (FEBEM/SP), com rebeliões frequentes e denúncias de graves violações de direitos humanos. Neste caso foram as rebeliões, em especial, que garantiram a inscrição das unidades da FEBEM como tema no espaço e debate públicos, num amplo painel de problemas conexos, mutuamente referidos: a marginalidade, a exclusão social, a insegurança pública, a violência urbana, entre outras urgências.
A abordagem pública desse problema, como na maioria dos casos, viabilizou-se pela participação dos canais da grande imprensa. Aqui adotamos o jornal O Estado de S. Paulo, o “Estadão”. Por alguns motivos: diferente de um jornal televisivo, este meio impresso possui um acervo de edições digitalizadas organizado em sequência histórica e com mecanismos de busca de palavras-chave. Ademais trata-se de um acervo maior se comparado a de outros diários como o Folha de S. Paulo, fornecendo o maior conjunto de dados entre seus pares. Assim podemos verificar a ocorrência das aparições do problema ao longo do tempo. Conforme tabulado na edição deste artigo, o acervo do Estadão contém 1.292 registros em geral sobre a FEBEM na década de 1990, número que saltaria na década seguinte, anos 2000, para 3.897 registros. Ainda no acervo do Estadão, contam-se 335 registros sobre rebeliões em unidades da FEBEM nos anos 90; enquanto para o mesmo assunto há 773 registros nos anos 20003:
Dos anos 1990 aos anos 2000, notícias sobre rebeliões (Figura 1):
Na década de 1990, o desenvolvimento das rebeliões noticiadas (Figura 2):
A série dos anos 2000 (Figura 3):
A onda crescente de rebeliões noticiadas na passagem entre as décadas - e dentro do quadro de “crise da segurança” que pautou o debate público da época - pode ter reforçado a percepção coletiva de agravamento do problema e urgência de soluções.
Mas Capella (2006) também argumenta que além do fluxo dos problemas, outros dois são importantes no processo de formação de agenda: o fluxo das alternativas de solução, em que comunidades de especialistas, militantes e grupos de interesse se articulam para a difusão de propostas de solução a um problema reconhecido; e o fluxo da política propriamente dita, responsável por viabilizar as soluções difundidas e admitidas. Neste último há três elementos fundamentais ao favorecimento de propostas de solução: as mudanças de governo, que costumam alterar as prioridades de agenda; o apoio a certas propostas por comunidades de interesse e o “humor nacional”.
Ainda há que se notar a agência de empreendedores políticos que atuaram para disponibilizar soluções, filtrá-las e alinhar as janelas políticas criadas, fazendo prevalecer certas noções de direitos e exercendo pressão política para a implementação do novo sistema. Listam-se aí entre os tais empreendedores: operadores do direito, gestores públicos, organizações não-governamentais de cunho socioassistencial e de advocacy e ativistas da causa da infância e adolescência. Este conjunto de atores já compunha, no mínimo desde os anos 19804, algo que se poderia denominar genericamente como “movimento de defesa dos direitos de crianças e adolescentes” ou “campo garantista” e que tem ocupado espaços de relativa porosidade do Estado pós-constituinte, como os conselhos setoriais e de direitos e suas conferências - o próprio documento-base de 2006 foi precedido por anos de encontros regionais prévios que serviram como fóruns colaborativos entre estes diversos atores5.
Esses empreendedores atuaram compassadamente no acúmulo de críticas às instituições vigentes. A primeira resolução de regulamentação da execução das medidas socioeducativas foi a de número 46, expedida pelo CONANDA em 29 de outubro de 1996, determinando que o ECA fosse respeitado. A resolução era referente à superlotação das unidades, em função do que se resolve limitar a quarenta, o número de internos por unidade, bem como reafirmar o caráter pedagógico da medida. Em 1999, ano de pico de rebeliões noticiadas, Cláudio Augusto Vieira - posteriormente coordenador executivo do SINASE - exclamava: “nós dizemos ‘não’ às FEBEM’s e ‘não’ ao sistema prisional restritivo e abusivo ao qual estão submetidos os nossos adolescentes, ainda nos dias de hoje” (SEDH, 1999, p. 11). Na mesma ocasião a deputada Rita Camata (PDMB) dizia:
Nós vimos aí os episódios das unidades da FEBEM de São Paulo e em outras instituições congêneres, que são heranças de um período de assistencialismo convencional e repressivo. Mas legalmente nós avançamos e temos o dever de enterrar de vez essas instituições. (SEDH, 1999, p. 18).
Em 2003 - ano de maior ocorrência de rebeliões noticiadas nas unidades de internação da FEBEM nos anos 2000, 144 ao todo6 - ocorreu a 5ª Conferência Nacional dos Direitos de Crianças e Adolescentes, ocasião em que o presidente Lula posicionou-se novamente contrário à redução da maioridade penal. Entre as várias falas, chama a atenção a de um participante não-identificado: “Lamentavelmente, a redução da maioridade penal, no estado de São Paulo, já existe. Basta percorrermos as nossas FEBEMs de Franco da Rocha e outras. Já existe com os mesmos problemas: superpopulação carcerária, tortura, maus tratos.” (SEDH, 2004, p. 69).
E falas como a de Jussara, militante do MNMMR: “A crise do CAJE7 é a mesma crise da FEBEM de Franco da Rocha: é a superlotação, é o local inadequado arquitetonicamente, não há projeto socioeducativo e as equipes não são capacitadas.” (ibidem, p. 97).
Na 6ª Conferência Nacional (2005) ao menos três moções dos participantes criticavam diretamente as autoridades e reivindicavam a extinção do modelo das FEBEM’s. Na mesma edição, em conferência magna, o professor Dr. Dalmo Dallari dizia ao plenário: “o Brasil foi condenado pela Organização dos Estados Americanos, pela OEA, por causa das rebeliões que estão acontecendo na FEBEM de São Paulo. É vergonhoso isso que acontece. Essas rebeliões se repetem” (SEDH, 2005, p. 55-56).
Além da crise e crítica ampla e comum às FEBEM’s, há outro fator para que o SINASE tenha sido oficialmente apresentado em 2006, embora a discussão sobre as medidas socioeducativas se desenvolva desde os anos 1990: primeiramente o momento político instaurado pela composição de um novo governo, então dirigido por um partido político historicamente vinculado aos movimentos pró-direitos humanos. Esse fato desdobrou-se em um ambiente favorável à revisão de prioridades de agenda e um melhor insulamento burocrático da pasta dos direitos humanos. Aliás, o SINASE situa-se numa onda mais ampla de políticas e planos setoriais8 que visavam normatizar políticas para efetivação de direitos previstos na Constituição Cidadã de 1988. E “A percepção, pelos participantes do processo decisório, de um humor favorável cria incentivos para a promoção de algumas questões e, em contrapartida, pode também desestimular outras idéias” (CAPELLA, 2006, p. 29).
Nesse devir, a pressão que vem “de baixo”, de organizações não-governamentais (ONG’s), militantes e conselheiros tutelares, encontra correspondência nas intuições de agentes do sistema judiciário como promotores, juízes e de atores do próprio governo federal. Desse modo, diante de um problema crescentemente reconhecido e em um ambiente propício, as comunidades políticas envolvidas adensaram discursos comuns, disponibilizando referências de solução plausíveis - os três fluxos, problemas, soluções e política, convergiram na viabilização da mudança na agenda (CAPELLA, 2006, p. 30).
CARACTERIZAÇÃO DO SINASE
Uma constelação discursiva complexa e agudamente crítica ao modelo de “bem-estar” do menor emerge deste processo de sensibilização e lutas garantistas. A partir do documento-base, da legislação pertinente e dos discursos de atores estatais, é possível listar três ênfases discursivas na emergência do Sinase, enunciadas com o objetivo de marcar distinções do “novo” sistema em relação sistema das Febem’s: teria havido nessa passagem entre os modelos, uma intersetorialização, interdisciplinarização e parametrização ética do atendimento socioeducativo. Sua soma, dada na reestruturação material e simbólica da política socioeducativa, resulta em uma ressignificação da punição aos adolescentes infratores.
INTERSETORIALIZAÇÃO - O SUJEITO POR INTEIRO
É paradigma fundamental do ECA a “Doutrina da Proteção Integral”, segundo a qual crianças e adolescentes devem ser abarcados e protegidos em todas as áreas de suas vidas. Essa noção integra a ênfase desenvolvida pelas comunidades de servidores públicos no assim chamado “trabalho em rede” como modelo de distribuição intersetorial das políticas sociais às famílias pobres. Para controlá-los integralmente, será preciso protegê-los integralmente (BRASIL, 1990, Artigo 1º; 3º):
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990, Artigo 4º).
Essa ênfase garantista na proteção integral também se refere aos adolescentes infratores e constitui sua experiência de internação: acesso à educação, atendimento médico, inclusive de saúde mental, práticas desportivas e assistência social e psicológica para si e suas famílias; todos estes serviços lhes são ofertados. O SINASE baseia-se assim na “integração das políticas públicas” para a composição de um “sistema de garantia de direitos”, o que exige “estímulo à prática da intersetorialidade” (SEDH, 2006, p. 22-23). O princípio em operação é o da “incompletude institucional” (SEDH, 2006, p. 23, p. 29, p. 46, p. 53), pois “a inclusão dos adolescentes pressupõe sua participação em diferente programas e serviços sociais e públicos” (ibidem, p. 46). Este princípio estrutura o atendimento:
Os Planos de Atendimento Socioeducativo deverão, obrigatoriamente, prever ações articuladas nas áreas de educação, saúde, assistência social, cultura, capacitação para o trabalho e esporte, para os adolescentes atendidos, em conformidade com os princípios elencados na Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). (BRASIL, 2012, Artigo 8º).
É fato também que essa apreensão intersetorial do adolescente pelo Estado completa-se em outra dimensão que é a do conjunto de disciplinas sediadas nos próprios serviços públicos, sejam de ajustamento individual (saúde, educação, profissionalização), exigente dos saberes pedagógico, psicológico; ou de ajustamento social (assistência social, esportes, cultura) operado pela combinação de recursos da pedagogia e do serviço social. Disso se deduz a íntima relação entre a intersetorialidade e a interdisciplinariedade. Não à toa a lei que normatiza os programas municipais de atendimento socioeducativo, dispõe que “A composição da equipe técnica do programa de atendimento deverá ser interdisciplinar, compreendendo, no mínimo, profissionais das áreas de saúde, educação e assistência social, de acordo com as normas de referência” (BRASIL, 2012, Artigo 12).
Desse modo, a intersetorialidade exigida espelha a pluralidade de saberes necessários ao atendimento e constitui-se dessa variedade, sem a qual não se tem os saberes profissionais dos vários setores. Em suma, esse aporte técnico para um controle social que se realiza enquanto distribuição de direitos eufemiza a “experiência precoce de punição” dos adolescentes (Adorno, 1991), fazendo avançar uma ressignificação desse momento. Ora, “existe na justiça moderna e entre aqueles que a distribuem uma vergonha de punir, que nem sempre exclui o zelo; ela aumenta constantemente: sobre esta chaga pululam os psicólogos e o pequeno funcionário da ortopedia moral.” (FOUCAULT, 1997, p. 13).
INTERDISCIPLINARIZAÇÃO - EXAME E FUNDAMENTAÇÃO
Historicamente, o juiz de menores sempre foi quase que pleniponitente na distribuição de sanções. Entretanto, o arbítrio do discurso jurídico nunca excluiu outros discursos, tais como o médico, por exemplo. O aparato assistencial-repressivo do “menorismo” conjugou o direito à psicologia e ao serviço social de cuidado do menor e das famílias. Justiça e assistência compuseram, ao longo do século XX, um mesmo dispositivo de controle social (ALVAREZ, 1989; RIZZINI, 2007). Ultrapassar a mera punição rumo a um conserto que “encaminhasse na vida” o sujeito em questão, demandou desde sempre um conjunto de saberes capazes de decodificar o desviante. Sobre o Código de 1927 anotou-se que:
(…) com a consolidação do novo projeto visando a menoridade, a ação do juiz de menores, agente privilegiado da causa da infância e da adolescência, será definida como uma ação essencialmente multidisciplinar, devendo ser auxiliado, segundo a própria lei, por outros especialistas. (ALVAREZ, 1989, p. 121).
Portanto, o aporte de outros saberes no processo não é em si uma novidade. A mudança está no modo como estes saberes ora se articulam e produzem efeitos de poder. Importa observar como a inclusão genética dos saberes de tipo clínico no modus operandi da justiça juvenil refaz a economia de poder do processo socioeducativo, já que a partir do ECA, a Justiça da Infância e da Juventude compõe-se, desde a previsão orçamentária, ou seja, permanentemente, pela combinação entre o poder judicial e os saberes disciplinares (BRASIL, 1990, Artigo 150; 151). O primeiro nível interdisciplinarizado é o da própria rotina de atendimento nas unidades de internação. É onde os saberes assujeitam os adolescentes à medida em que os inscrevem num forte quadro burocrático de controle. Um segundo nível, ainda mais burocrático, diz respeito à fundamentação técnica na destinação do socioeducando.
Aqui cabem proposições de Michel Foucault em Vigiar e Punir (1975), particularmente sobre o exame enquanto técnica de controle disciplinar. O autor explica que sua origem remonta às práticas médico-hospitalares e pedagógico-escolares em que se busca, respectivamente, conhecer o indivíduo como organismo ou subjetividade e conhecê-lo como conhecedor, como alguém que deve dar conta de um certo aprendizado. Além disso, o exame seria um recurso para um bom adestramento, uma vez que:
O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados. (...) A superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível. (FOUCAULT, 1997, p. 121).
Dada a manutenção do modelo de penas indeterminadas, o SINASE reiterou o bom comportamento como critério fundamental para liberação do socioeducando - pelo qual se subentende a barganha entre soltura e submissão em uma coprodução da conduta normalizada. Nessa instância de aplicação do saber, verificamos os principais traços da técnica tal qual descrita pelo autor:
Tais características podem ser verificadas no modo como os adolescentes são tomados pelos saberes durante o atendimento e o quanto isso importa à decisão judicial sobre seus destinos. Estando sob avaliação constante, tem para si elaborado um Plano Individual de Atendimento (PIA). Por meio desse instrumento o exame já é imediatamente instalado, pela exposição e documentação que compõem um caso, cujo percurso é registrado nessa espécie de prontuário (BRASIL, 2012, Artigos 52 a 55). Cumpre-se assim a “individualização” da execução das medidas (BRASIL, 2012, Artigo 35, inciso VI), pela qual cada adolescente tem seu “processo de execução” da medida, composto por uma complexa teia de informações sobre seus “antecedentes” e condição atual, o que exige “conhecimento”, “estudos técnicos”, verificação; em suma, exame (BRASIL, 2012, Artigos 39 e 40). É a partir dessa racionalidade que se viabilizam os controles sobre o adolescente infrator.
Almeida (2017) apresenta a “produção do fato da transformação do adolescente” a partir de uma análise dos relatórios em que os técnicos avaliam os socioeducandos.9 Conforme a pesquisadora, os relatórios são pautados pela estratégia de construção textual que ateste a razoabilidade da decisão de liberação do adolescente (no caso daquele que cumpre medida em meio fechado). Há clara necessidade de se dar conta de um procedimento considerado burocrático, mas de modo eficiente no convencimento da autoridade judiciária acerca de nada menos do que o arrependimento do adolescente e, logo, de sua aptidão à ressocialização. Ele está “pronto”. Os relatórios narram o percurso socioeducativo de cada indivíduo e evidenciam os esforços da equipe interdisciplinar das unidades de internação em desconstruir a delinquência que estaria incrustada nos sujeitos. Por fim, nesse encadeamento que narra os casos, da delinquência à transformação, a peça final é aquela que lhe confere um final feliz, atestando quase sempre, e quase sempre do mesmo modo, que o adolescente deve ser liberado.
Mas aí brotam as consequências: Os relatórios produzidos servem não apenas como atestado de arrependimento do socioeducando, mas também como certificado de competência dos técnicos da ortopedia moral. Num mesmo parecer se promove o adolescente, como produto, e os próprios profissionais como produtores de sua recuperação. Ainda é possível concluir, como efeito político lógico do processo discursivo referido, que se no modelo de penas indeterminadas o adolescente socioeducando só é liberado quando está “pronto”, então todo adolescente liberado está “pronto”.10 Aprontam-se assim todos os egressos. Há uma produção automática da eficácia e uma auto-justificação institucional estatal nesse sentido, já que quem aplica cotidianamente as medidas socioeducativas, também é responsável por sua avaliação.
Nesse sentido, é especialmente a confirmação do modelo de penas indeterminadas pelo ECA11 que favorece a potencialização dos saberes/disciplinas. Como dito acima, a extinção da medida depende de laudos técnicos: “A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão fundamentada, no máximo a cada seis meses” (BRASIL, 1990, Artigo 121, §2º, grifo meu). O imperativo de “fundamentação” das decisões, consolida o lugar “disciplinas” como princípio preponderante na instalação de regimes de verdade no SINASE (FOUCAULT, 2013).
Os discursos se dispõem assim num diagrama de poder em que os autores participantes da sujeição do adolescente se combinam de maneira complexa, mais do que à primeira vista: uma vez elaborado o PIA, “a autoridade judiciária dará vistas da proposta de plano individual (...) ao defensor e ao Ministério Público pelo prazo sucessivo de 3 (três) dias” (BRASIL, 2012, Artigo 41). A proposta de PIA não é obrigatoriamente acatada pela autoridade judiciária, a quem a Defensoria e o Ministério Público podem requerer avaliações e perícias que complementem o plano individual ou até mesmo o impugnem (BRASIL, 2012, Artigo 41, § 1º). Todavia, não há espaço para grandes discricionariedades, já que “a impugnação ou complementação do plano individual, requerida pelo defensor ou pelo Ministério Público, deverá ser fundamentada podendo a autoridade judiciária indeferi-la, se entender suficiente a motivação” (BRASIL, 2012, Artigo 41, §2º, grifo meu), isto é, também aqui será preciso justificar as decisões tomadas. Com base em que senão nos legítimos saberes? Toda decisão deve ser devidamente “fundamentada”, sobretudo as que concernem à desinternação (BRASIL, 2012, Artigo 42, §1º). É claro que “em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial, ouvido o Ministério Público” (BRASIL, 1990, Artigo 121, §6º), mas por outro lado, a qualquer momento, qualquer ator, pode solicitar a reavaliação do adolescente (BRASIL, 2012, Artigo 43, incisos I, II, III). Desse modo, a penúltima palavra - sem a qual não há a última - sobre o destino de cada adolescente é dada pelo discurso disciplinar, técnico, especialmente dos campos da psicologia e serviço social. E isso por quem detém o saber, detém o monopólio da técnica do exame. Por isso pode-se dizer que o acento da interdisciplinarização acarretou um relativo descentramento da autoridade judiciária na economia de poder que incide sobre o sujeito desviante.
Essa positividade dos saberes contrasta com a passividade do poder judiciário, a quem cabe as homologações e a direção da ritualidade processual. O juiz está mais próximo de um direito de veto à desinternação do que do poder de produzi-la. Há várias limitações à autoridade judiciária em distribuir as penas (BRASIL, 2012, Art.45, §1º, 2º). Sob o quadro retórico que perfaz a emergência do SINASE, esses rearranjos corroboram o discurso de que o novo sistema institui “parâmetros mais objetivos e procedimentos mais justos que evitem ou limitem a discricionariedade” (SEDH, 2006, p. 13-14).
Para ir além das sugestões postas aqui desde a leitura da Lei nº 12.594/2012 que normatiza o SINASE, podemos tomar como elemento empírico que corrobora a leitura proposta, as ações políticas strictu sensu, enunciadas no contexto parlamentar. Talvez a maior prova da relevância desses deslocamentos e rearranjos trazidos pelo SINASE seja o modo como tais relações que entremeiam poder e saber têm sido tematizadas e mobilizadas em discursos políticos. Recentemente, mudanças pró-redução da maioridade penal12 têm sido encampadas pela parcela parlamentar do campo menorista13,14, a partir de uma rearticulação entre poder e saber. Defensores do endurecimento penal, em sua maioria, mas não exclusivamente, visam alterar o artigo 228 da Constituição Federal e repor a categoria do discernimento do sujeito no ato delinquente como critério central na distribuição de medidas e penas. Isso seria feito a partir de exames criminológicos. Como se sabe, a categoria “discernimento” já foi criticada e preterida pelos reformadores na ocasião do Código de Menores de 1927 pelo simples e incontornável fato de que, sendo o discernimento de um sujeito, incomensurável, não se pode adotá-lo como critério de juízo (ALVAREZ, 1989).
Com o avanço da interdisciplinarização desde o ECA e agora no SINASE, o processo produtivo da verdade tornou-se, ao menos à primeira vista, mais custoso. Não se trata, neste caso, da verdade da culpa, cujo processo produtivo seria o do inquérito; mas da verdade da reabilitação em curso e concluída após o atendimento, verdade atestada pelo exame (FOUCAULT, 2005). Já com essas propostas legislativas, haveria um novo concerto entre os saberes e o poder judicial: os saberes seriam chamados a atestar a existência de discernimento do adolescente, como se prestassem o papel de “testemunhas de acusação” que a autoridade judiciária invoca para comprovar que o adolescente infrator deve ser punido como adulto, pois cometeu ato infracional com discernimento. Efetivamente, nesse caso os saberes continuariam sendo elementos legitimadores, mas legitimadores da decisão pré-fabricada: a prisão do adolescente entre adultos. E isso far-se-ia sob a condição de que os saberes se tornassem novamente coadjuvantes a um poder judiciário - este que estaria menos restrito ao lugar de poder de veto e novamente lançado à atuação essencialmente condenatória.
Em síntese, a interdisciplinarização do atendimento é produzida por: 1) a própria intersetorialização que traz consigo a demanda pela participação dos saberes; 2) a exigência de “fundamentação” das decisões judiciais, o que empoderou os saberes que detém o monopólio da técnica do exame (FOUCAULT, 2005). Os principais efeitos dessa interdisciplinarização foram: 1) descentramento da autoridade judiciária na economia de poder que incide sobre o sujeito desviante; 2) produção automática da eficácia do atendimento e 3) auto-justificação institucional do Estado.
PARÂMETRIZAÇÃO ÉTICA DO ATENDIMENTO - UM MARCO ZERO
Em todo o processo de formulação do novo sistema, como bem expressa sua síntese oficial, há uma afirmação do caráter pedagógico da medida, o que desequilibra a clássica tensão presente no atendimento a adolescentes desviantes entre recuperar ou punir. O ECA mesmo define que: “Durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas” (BRASIL, 1990, Artigo 123, parágrafo único). Também, na Resolução nº 113, de abril de 2006, o Conanda resolvia sobre os princípios norteadores da execução das medidas prevendo “prevalência do conteúdo educativo sobre os sancionatórios e meramente de contenção, no atendimento socioeducativo” (Conanda, 2006, Artigo 19, § 2º, inciso I), entre outros itens atinentes ao “respeito” ao adolescente socioeducando. Os mesmos princípios são ratificados em dezembro do mesmo ano na resolução nº 119 ao demarcar que “O Sinase constitui-se de uma política pública destinada à inclusão do adolescente em conflito com a lei que se correlaciona e demanda iniciativas dos diferentes campos das políticas públicas e sociais” (CONANDA, 2006, Artigo 2º).
E alcançam a letra da Lei nº 12.594/2012 que junta à responsabilização do infrator e à desaprovação de sua conduta um terceiro objetivo: “a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento” (BRASIL, 2012, Artigo 1º, §2º, inciso II).
O documento-base da Política Nacional de Atendimento Socioeducativo, publicado em 2006 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) e pelo Conanda, possui um forte tom de urgência moral quanto ao que se fazer com o modelo então vigente. A apresentação do documento, assinada pelo ministro da SEDH, Paulo Vanucchi e pelo presidente do conselho, José Fernando da Silva, representante da sociedade civil, reconhece a condição do adolescente infrator como vítima de violências perpetradas pelo Estado durante o cumprimento de medidas de responsabilização. A violação de direitos do socioeducando é seriamente considerada:
O processo democrático e estratégico de construção do SINASE concentrou-se especialmente num tema que tem mobilizado a opinião pública, a mídia e diversos segmentos da sociedade brasileira: o que deve ser feito no enfrentamento de situações de violência que envolvem adolescentes enquanto autores de ato infracional ou vítimas de violação de direitos no cumprimento de medidas socioeducativas. (SEDH, 2006, p. 13).
E a partir disso o documento-base é todo estruturado por ênfases garantistas: contém um capítulo inteiro dedicado aos “Princípios e Marco Legal do Sistema de Atendimento Socioeducativo”, que menciona vários protocolos internacionais sobre direitos humanos e da infância e juventude; reafirma o respeito aos direitos humanos, à legalidade e à integridade física do jovem infrator; excepcionalidade e brevidade da medida e respeito à condição de pessoa em situação peculiar de desenvolvimento do adolescentes. Princípios fundamentais do direito civil ocidental são sistematicamente invocados para a legitimação do novo modelo proposto. Na seção “Monitoramento e Avaliação”, lê-se entre os indicadores de qualidade dos programas de atendimento socioeducativo em meio fechado: “Trabalhar-se-á com indicadores de diferentes naturezas, contemplando aspectos quantitativos e qualitativos nos seguintes grupos: (...) 2) indicadores de maus tratos” (SEDH, 2006, p. 78). E o discurso de respeito à dignidade prossegue por todo o texto, como quando se refere aos “Parâmetros Arquitetônicos para Unidades de Atendimento Socioeducativo”:
A estrutura física das Unidades será determinada pelo projeto pedagógico específico do programa de atendimento, devendo respeitar as exigências de conforto ambiental, de ergonomia, de volumetria, de humanização e de segurança. (SEDH, 2006, p. 67, grifo meu).
Enfim, o que recorre no documento é que o adolescente infrator deve ser respeitado como sujeito de direitos. Essa redundância é ao mesmo tempo mea culpa do Estado, ele próprio um frequente violador de direitos dessa população, e uma reivindicação da sociedade civil organizada que atua na defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Tal convergência de horizontes estratégicos do Estado e dos atores civis não só possibilita uma síntese oficial, como faz do arrependimento do Estado, uma conquista da sociedade civil.
É então a partir da reafirmação do espírito do ECA e legitimando-se nele que o SINASE aparece uma proposta de parametrização ética das medidas de responsabilização dos adolescentes infratores. Em outras palavras, seria uma política de humanização do atendimento até então oferecido, que responde à verdadeira crise em que se encontravam as unidades de internação do modelo de bem-estar do menor, com graves violações da dignidade e rebeliões.
Uma estratégia é indispensável na construção do novo sistema: compará-lo com o passado das FEBEM’s e afirmar que o Estado fez tábula rasa em relação ao passado de violações de direitos. Nas apropriações discursivas que os atores estatais fazem das alterações institucionais havidas, a garantia de direitos compõe o conjunto de mudanças que passam do status de reivindicadas para o status de mudanças realizadas.
Tomemos, por exemplo, a fala da ex-presidente da Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescentes), Berenice Giannella em entrevista15:
[CidadeOn]: O que mudou da antiga Febem para a Fundação Casa?
[Berenice Giannella]: Quase tudo. Desenvolvemos mais fortemente nesses dez anos a política de descentralização do atendimento, foram construídas 74 novas unidades espalhadas pelo Estado para levar os adolescentes o mais próximo possível de seus familiares. Horizontalizamos a administração e mudamos a proposta pedagógica, focando em unidades pequenas com atendimento individualizado e multifocal por meio de psicólogos, assistente social, pedagogos. Tudo isso melhorou a qualidade do atendimento, que ficou mais humanizado.
Vê-se que a construção ex-post da instituição, por meio de apropriações discursivas combinadas entre a fala oficial, a atenção da imprensa e o arrefecimento da pressão cívica, inclui terminantemente a paz das unidades no saldo das mudanças ocorridas. Estabelece-se uma verdade. A conexão entre humanização e pacificação se pode entender ainda como um refazimento da punição a partir de novas tecnologias que, levando em consideração os apelos humanistas, também serve à redução dos custos políticos e simbólicos da punição - até então muito baseada na pura coerção e suas rebeliões colaterais.
A fala de Giannella em entrevista de 2016 pelo portal CidadeOn, compara a Febem à Fundação CASA citando as várias mudanças que tornaram o atendimento, enfim, humano e adequado:
[CidadeOn]: A Febem era conhecida, de forma negativa, pela violência institucionalizada. A Fundação Casa conseguiu superar essa cultura?
[Berenice Giannella]: A violência na instituição passa pela violência que existe na sociedade brasileira. Os números de segurança pública mostram que estamos longe da aparência do brasileiro cordial. Temos altos índices de homicídio, roubos. E a população da fundação e os funcionários se inserem dentro dessa sociedade. Hoje, com certeza, não existe uma violência institucionalizada, nossa gestão sempre foi firme no sentido abominar qualquer forma de violência, física ou psicológica, mas isso só vai conseguir terminar quando a sociedade brasileira como um todo conseguir se transformar. Mas estamos treinando e capacitando esses funcionários e sendo firmes com eles. Hoje todos os servidores são obrigados a informar qualquer caso de violência. E a Corregedoria averigua as ocorrências e toma as medidas necessárias. É impossível acabar totalmente com a violência, mas ela diminuiu muito.
[CidadeOn]: Os casos de violência que ainda persistem são isolados ou rotineiros?
[Berenice Giannella]: São isolados, nós não temos um ambiente de violência na fundação. Mas é importante ressaltar que temos quase 13 mil funcionários e dez mil adolescentes e não tivemos nos últimos anos mortes violentas. O ambiente hoje, é muito melhor do que era há 10, 11 anos.
Nas falas acima, o ambiente não-violento é representado como efeito da humanização. Em outra entrevista16, para o El País em maio de 2015, a presidente dizia que:
[El País]: Quais são as condições de tratamento atualmente na Fundação CASA?
[Berenice Giannella]: Os adolescentes são super bem tratados. Temos hoje mais unidades menores, que foram reformadas para trabalharmos com grupos pequenos. Em cada sala de aula, por exemplo, há cerca de 60 jovens, o que é próximo da média de escolas comuns (próxima de 40, 45). São também realizadas atividades socioculturais, cursos profissionalizantes, esporte.
O SINASE é sistematicamente apresentado como realização de seu objetivo legal de “promover a melhora da qualidade da gestão e do atendimento socioeducativo” (Brasil, 2012, Artigo 19, inciso III). Desse modo ocorre uma auto-justificação institucional, como se verifica na fala do procurador de justiça Márcio Elias Rosa, secretário de justiça e cidadania do Estado de São Paulo e presidente da Fundação CASA desde julho de 201717:
[Portal UOL]: Há uma frase famosa do ex-governador Mário Covas (PSDB), após uma rebelião na antiga Febem: “Queimou colchão? Dorme no chão”. A mudança dessa filosofia é a explicação da redução de 80% nas rebeliões?
[Márcio Elias Rosa]: Houve uma política de descentralização com unidades pequenas com até três pavimentos com 64 vagas, consultório médico, atividades de lazer, quadras poliesportivas, arquitetura que favorece a atitude pedagógica e educacional. Parece uma escola, cria-se um ambiente mais favorável ao recebimento de visitas. Logo que ele entra, o jovem passa por uma identificação que vai orientar o que ele precisa: atendimento psicológico, médico, odontológico, educacional. Isso tem produzido um resultado muito bom. Mas interfere também no ambiente da unidade. Se a atitude da fundação é de caráter educacional, o ambiente interno tende a ficar mais ameno, mais agregador, menos distendido e aí reduz a possibilidade de motim e rebelião.
Se superestimando ou não as mudanças ocorridas, o fato é que os gestores da política socioeducativa dizem que a FEBEM ficou para trás, os adolescentes agora são bem tratados, o atendimento é intersetorial e interdisciplinar, as unidades são dignas, há um ambiente cidadão. Um requisito básico para estes discursos é a forte adjetivação pedagógica do atendimento. Além do termo “escola”, a palavra “educacional” aparece três vezes na última citação. O próprio adjetivo “socioeducativo/a” é uma novidade trazida desde o ECA. Vale, contudo, destacar uma crítica constante ao tom ufanista destes gestores: a de que acabam por operar uma discreta passagem do normativo ao ideológico, representando aquilo que deveria ser como se de fato fosse, sem de fato ser.
Em síntese, a parametrização ética do atendimento socioeducativo no SINASE se deu por meio de: 1) forte adjetivação pedagógica do atendimento; 2) ênfase comparativa entre o novo sistema e o modelo das FEBEM’s. O principal efeito político desses discursos é a representação do novo sistema como um “marco zero” para o atendimento aos adolescentes infratores.
UMA SÍNTESE DE EXPECTATIVAS E A EDUCACIONALIZAÇÃO DO DIREITO DE PUNIR CONCLUSÕES PROVISÓRIAS
O direito de punir, sob o fracasso do modelo de bem-estar do menor incendiado com as rebeliões e escândalos, é atualizado a partir do recurso aos dispositivos “sociais”, folheados à “inclusão social”, “socioeducação”, “caráter pedagógico”, “humanização” etc., harmonizados com os míticos direitos humanos. Assim, o SINASE marca historicamente que se pune por meio de tecnologias educacionais
- a educação é a pena e a sanção ao infrator será interná-lo num “estabelecimento educacional” (BRASIL, 1990, Artigo 112, inciso VI). De fato, rotinas de atendimento foram alteradas nesse sentido, mas há que se atentar às representações retóricas do atendimento pelo próprio Estado numa produção sincronicamente material e discursiva. É nessa dimensão que a educação se torna uma punição que não se parece com punição, antes a eufemiza.
As disjunções entre o novo e o velho sistemas de atendimento socioeducativo acarretaram: considerável descentramento da autoridade judiciária na economia de poder sobre o adolescente; produção automática da eficácia do atendimento; auto-justificação do Estado na oferta de atendimento socioeducativo; representação do SINASE como um marco zero na trajetória de políticas para infâncias e adolescências desviantes. Nesse sentido, o SINASE é um comentário ao ECA (FOUCAULT, 2013) e encena sua realização, pois recorre às suas categorias e institui os princípios já enunciados há décadas como se fosse algo novo que “enfim” ocorre, mesmo com atrasos, mas inquestionavelmente legitimado pelo ato original de promulgação do ECA. Sendo repetição que enuncia coisas novas, o comentário ressemantiza os discursos originais, reapresenta-os em novos vocábulos, novo sotaque e, sobretudo, em um novo momento histórico. O comentário é a repetição exegética que desvela novidades no instante mesmo em que reitera as verdades originais (FOUCAULT, 2013). Novamente, o “novo”.
O modo como este comentário articula a intersetorialidade, a interdisciplinariedade e os parâmetros éticos do atendimento socioeducativo acaba por compor o que denomino como educacionalização do direito de punir - processo político-discursivo pelo qual a punição ao adolescente infrator é representada a partir de uma semântica educacional, de inovação institucional e de superação do modelo de bem estar do menor.
Com base nas intuições Foucaultianas (FOUCAULT, 2013), podemos tomar a pergunta como o mais elementar mecanismo de rarefação do discurso do outro, no sentido em que quando se pergunta algo também se define em que termos se fará o debate, circunscrevendo semanticamente o repertório de respostas possíveis tal como num carteado se distribuem as cartas do jogo. Se todo discurso responde a uma pergunta posta, cumpre-nos rastrear a que ou a quem os atores querem responder e como inventam retóricas para esse objetivo, bem como quais seus efeitos e sua variação histórica. Dessa perspectiva, o SINASE, enquanto modelo de punição particularmente educacionalizada, responde à questão sobre “qual o melhor modelo de responsabilização de adolescentes infratores?” - que subjazeu a toda a crise das FEBEM’s. Mas virada a página, a grande pergunta ora instalada é “como estancar a suposta crescente delinquência juvenil?” E as respostas são de um lado a proposição da redução da maioridade penal e de outro uma ênfase na prevenção da deriva de adolescentes na criminalidade.
Nesse sentido, embora a pergunta já nos seja outra, verificamos que o SINASE ainda persiste como resposta. A última conjuntura crítica nessa matéria foi o ano de 2015, marcado por lutas políticas de grande repercussão pública em torno da redução da maioridade penal. Naquele contexto, os diversos atores do campo contrário à redução - entidades das Nações Unidas, ONG’s, movimentos sociais, setores artísticos e intelectuais e o núcleo do próprio governo federal - se posicionaram conforme certo padrão argumentativo. Seus enquadramentos básicos anti-redução foram três: 1) “mais escolas, menos cadeias”; 2) “redução não é a solução” e 3) menos elaborado enquanto slogan, mas igualmente relevante, foi algo como “os adolescentes já são responsabilizados”. Nesse último enquadramento a exposição do funcionamento do atendimento socioeducativo foi central e, uma vez comparado às FEBEM’s e ao sistema penitenciário adulto, o SINASE foi transformado em um case de sucesso possível, tornando-se assim um dos principais argumentos anti-redução da maioridade penal.
O que fazer com um sistema que funciona? Ante a ofensiva menorista e constrangido pelo discurso auto-proclamatório do SINASE - vocalizado por seus burocratas - o movimento de defesa dos direitos de crianças e adolescentes deparou-se desde então com um clima avesso a grandes discussões sobre como melhor responsabilizar e ressocializar os adolescentes infratores. Entrevê-se assim, a médio prazo, uma confirmação política dos processos constituintes do SINASE e sua resultante educacionalização do direito de punir, cuja única alternativa disponível parece ser o retrocesso que significa a redução da maioridade penal. Para as forças garantistas, isso significa especialmente que o eixo de discussão sobre a renovada “questão do menor” se deslocou do âmbito das instituições punitivas para outra dimensão da experiência precoce da punição, que diz respeito menos às políticas socioeducativas e mais à proteção social, ao livramento da violência estrutural fortemente racializada, à informalidade, à exploração no mercado de drogas ilícitas e às condições de “deriva” que circundam parte da infância e adolescência pobres no país.
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Notas