Resenha

Recombinando Estado e mercado: as curiosas origens desenvolvimentistas do neoliberalismo

Sorting out the Market and the State: the curious developmentalist origins of neoliberalism

Thor Saad Ribeiro
Universidade de São Paulo, Brazil

Recombinando Estado e mercado: as curiosas origens desenvolvimentistas do neoliberalismo

Plural – Revista de Ciências Sociais, vol. 27, núm. 1, pp. 341-344, 2020

Programa de Pós-Graduação em Sociologia da FFLCH-USP

Offner Amy C. Sorting Out the Mixed Economy: The Rise and Fall of Welfare and Developmental States in the Americas. 2019. Princeton. Princeton University Press. 400pp.

Recepção: 03 Setembro 2019

Aprovação: 16 Abril 2020

Nos últimos anos, uma boa safra de escritos sobre o neoliberalismo tem explorado diferentes aspectos deste fenômeno. Slobodian (2018) e McLean (2017) analisam figuras e instituições chave na formação histórica do neoliberalismo, destacando sua concepção em Viena, Chicago, Santiago, Virgínia e Mont-Pèlerin. Stiglitz (2019) e Piketty (2020) exploram as dimensões econômicas na operação do fundamentalismo de mercado ou “proprietarianismo”. Já Dardot e Laval (2016) têm a ambição de encontrar no neoliberalismo uma nova lógica do mundo, permeando a sociabilidade e subjetividade no capitalismo tardio.

Frente a essas análises, Amy Offner (2019) aporta uma perspectiva original em sua obra Sorting Out the Mixed Economy: the Rise and Fall of Welfare and Developmental States in the Americas. Longe de ser um diagnóstico sistêmico, trata-se de um estudo de caso (ainda que um caso de proporções continentais). O período em estudo corresponde ao pós Segunda Guerra, auge dos Estados desenvolvimentistas e welfaristas. As personalidades e instituições que movem o enredo nada tem a ver com os Chicago Boys ou liberais radicais. Ou seja, ao contrário das outras obras citadas, Offner (2019) pretende mostrar a emergência da governança neoliberal não como um plano de cabalas de empresários e acadêmicos, mas sim a partir de pessoas e dinâmicas visceralmente ligadas aos projetos estatais de transformação social e combate à pobreza.

Há também originalidade em resgatar as influências recíprocas entre os acontecimentos nos Estados Unidos e Colômbia, o que talvez cause estranhamento em quem está acostumado a pensar em termos excessivamente binários como centro/periferia, Estado de bem estar social/Estado desenvolvimentista, acumulação capitalista/acumulação primitiva. Na prática, pessoas, instituições e ideias circularam e se influenciaram no continente de maneiras muitas vezes imprevistas e idiossincráticas.

É graças a um trabalho granular e denso de pesquisa histórica que Offner (2019) consegue apresentar um mapa dessas influências, que estariam ocultas nas narrativas comumente disseminadas. Isso porque muitos daqueles que acabaram por defender as políticas de ajuste fiscal, diminuição do Estado e estancamento de redistribuição nos EUA e Colômbia passaram a apagar de suas biografias seus tempos de entusiastas da atuação do Estado para a melhoria das sociedades. Ironicamente, os críticos do neoliberalismo abraçaram uma narrativa similar. Com o ímpeto de denunciar o sistema econômico e defender as vítimas de sua espoliação, pintaram um negativo daquela narrativa, onde as nuances e ambivalências do período ficaram em segundo plano.

Tomemos como exemplo David Lilienthal, principal personagem na narrativa da autora. New dealer puro sangue, participou de todo o governo Roosevelt, tendo comandado uma de suas iniciativas mais icônicas, o Tennessee Valley Authority TVA. Sua experiência neste cargo o levou a confrontar inicialmente um dos dilemas mais centrais da expansão estatal vertiginosa do período: como conciliar o espírito democrático com a presença de um Estado centralizado que se propõe a interferir e transformar profundamente economia, sociedade e geografia? Nos anos 1940, sua resposta foi que essa conciliação era possível por meio de uma descentralização administrativa e uma gestão responsiva e voltada ao diálogo, ou seja, era possível modernizar uma região e uma população, sem apelar para o autoritarismo fascista.

Já em um segundo momento, Lilienthal, perseguido pelo macartismo e seduzido pelo mundo da lucrativa consultoria internacional, recomendaria remédio bastante diferente para as autoridades colombianas. Seu projeto para o Vale do Cauca, ostensivamente inspirado no TVA, era a criação de uma autoridade similar, que se plasmou na Corporación de Valle del Cauca CVC. A descentralização administrativa foi copiada, mas em moldes bastante diferentes de sua teoria para a TVA. A CVC foi instituída de maneira a ser responsiva somente a tecnocratas, escolhidos pela elite agrária local. Não por acaso, entre as décadas de 1960 e 1980, a CVC daria um impulso excepcional à reforma agrária. Incipiente no resto da Colômbia, no Vale do Cauca a reforma foi conduzida de forma intensa, mas com orientação absolutamente distinta dos objetivos proclamados na legislação nacional: ali ela foi um instrumento para abolição do minifúndio, expulsão de pequenos produtores e concentração fundiária.

Se não há um único padrão pelo qual as Américas do Norte e do Sul se influenciaram, este mostrado é o que apresenta uma trajetória mais espelhada. O caso do New Deal era lido no Sul não como um caso de forte redistribuição de riqueza e poder, mas sim como um mero avanço produtivo em marcha rápida. Ele foi reelaborado, despido de suas pretensões igualitaristas, tanto pelos responsáveis pela guinada à direita pós Roosevelt nos EUA, como pelas elites latino-americanas ciosas de seus privilégios, que passaram incólumes pela depressão econômica e pela guerra. Transmutado em modernização conservadora (com as eventuais rebeldias excessivas eliminadas pelo Departamento de Estado ou pelos marines), o Estado Desenvolvimentista criou então formas de atuação insuladas das demandas amplas da sociedade, mas que se mostraram altamente lucrativas para certas empresas que passaram a atuar em áreas antes consideradas domínio público. Com o retorno eventual de técnicos de desenvolvimento aos EUA, essas formas de provisão de serviços públicos mista e parasítica também passaram a ocorrer ali, em especial nos guetos e territórios coloniais. Umas das origens da “qualidade parasítica do capitalismo do fim do século XX” (OFFNER, 2019. p. 278).

Esse é o padrão que se repete nas políticas agrária, industrial, energética e habitacional, descritas pela autora. Entretanto, diferentes políticas tiveram modelos diversos, por conta dos atores envolvidos e suas influências singulares. É o que ilustram as origens curiosas da política habitacional do mutirão (self-help housing). Iniciada por quakers comunitaristas no início do New Deal, essa forma de construção foi considerada obsoleta e bloqueada em território americano, exceto no território de Porto Rico. Considerada ideal para os países do Sul, com menor capacidade estatal e recursos, tornou-se na Colômbia um instrumento para se criar uma “classe média responsável”, uma maneira barata de transformar possíveis rebeldes em proprietários. O mutirão então retornou aos EUA como modelo para a produção de moradia para os imigrantes chicanos da agricultura na Califórnia. Por fim, já nos anos 1980, tornou-se forma de provisão habitacional precária no contexto de retração do Estado.

Resgatar esse quadro histórico complexo embaralha noções tradicionais, mas também abre novos horizontes para o pensamento e ação. Economias mistas são imprescindíveis para sociedades complexas e interdependentes, fato óbvio desde pelo menos os anos 1930. O que Offner (2019) mostra de forma contundente é que elas podem ser organizadas de formas bastante distintas. Recorro aqui a uma metáfora visual, ainda que com isso simplifique excessivamente o rico esquema teórico da autora: em um dos extremos do espectro, pode-se ocultar o papel de coordenação do Estado, ignorar a necessidade de controles democráticos e responsividade das instituições, abrindo espaço para as formas parasíticas dos empresários que aprendem a falar “desenvovimentês”. Num outro extremo, é possível pensar uma maneira de recombinar a economia mista de maneira a enfatizar as formas de controle democrático e redistribuição da riqueza social.

Offner (2019) não explicita como essa reversão pode ser efetuada. Mas os circuitos históricos, e operações materiais e ideológicos, transformações da economia mista que ela desvela, são fundamentais para mostrar que os atuais arranjos da economia mista nada têm de inevitável. Pelo contrário, entre narrativas triunfalistas e trágicas, há uma enorme gama de possibilidades de recombinar as partes que formam as economias mistas. Nosso “mundo contém as sementes de muitos futuros” (OFFNER, 2019, p. 289), conclui a autora.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Editora Boitempo, 2016.

MCLEAN, Nancy. Democracy in Chains: The Deep History of the Radical Right’s Stealth Plan for America. Nova Iorque: Viking, 2017.

OFFNER, Amy C . Sorting Out the Mixed Economy: The Rise and Fall of Welfare and Developmental States in the Americas. Princeton: Princeton University Press, 2019, 400 p.

PIKETTY, Thomas. Capital and Ideology. Cambridge (EUA): Belknap Press of Harvard University Press, 2020.

SLOBODIAN, Quinn. Globalists: The End of Empire and the Birth of Neoliberalism. Cambridge (EUA): Harvard University Press, 2018.

STIGLITZ, Joseph. People, Power, and Profits: Progressive Capitalism for an Age of Discontent. Nova Iorque: J. W. W. Norton & Company, 2019.

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