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Um espectro ronda o Brasil (à direita)
A spectre is haunting Brazil (from the right)
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 25, núm. 1, pp. 1-12, 2018
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

APRESENTAÇÃO


DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2018.149006

Resumo: Na primeira parte deste texto introdutório, refletimos sobre a ausência histórica de trabalhos sociológicos que lidem com o fenômeno do pertencimento à direita no Brasil. Ensaiamos, na segunda parte, algumas hipóteses explicativas para tal situação, bem como analisamos os poucos trabalhos que se dedicaram a isso nas décadas de 1980 a 2000. Na terceira parte procedemos à apresentação dos textos que compõem o presente dossiê.

Palavras-chave: Sociologia da Direita, Sociologia da Sociologia, História das Ciências Sociais.

Abstract: n the first part of this introductory text we reflect on the historical absence of sociological studies that deal with the phenomenon of belonging to the right in Brazil. In the second part we examine a number of explanatory hypotheses for this tendency, and analyze the limited literature on this subject area between 1980 and 2000. In the final part the integral texts of the dossier are presented.

Keywords: Sociology of Right-wing, Sociology of Sociology, History of Social Sciences.

Desde os movimentos sociais emergentes a partir de 2013 até think tanks hoje bem solidificados, passando por inúmeras produções de intelectuais midiáticos, universitários e o que pode se chamar de opinião pública em geral - além de grupos online, da política institucional e de várias espécies de extremistas e extremismos -, todos estes vetores sinalizam um novo ar dos tempos. “Nova direita”, “neoconservadorismo”, “onda conservadora”, “retomada do neoliberalismo”, “fascismo à brasileira”, dentre outros designadores, sejam aparentados, pertinentes ou não, constituem termos usualmente empregados pela imprensa, ensaístas etc., que disputam a compreensão de conjuntura supostamente recente e avassaladora: a guinada à direita presenciada no Brasil. A própria agenda governamental e parlamentar, ainda com o Partido dos Trabalhadores (PT) no poder executivo, expressava tal novo consenso, em que se dizer “de direita” não mais significava algo pejorativo e a se evitar - como sucedia nos anos 1980-1990 tanto em meio a políticos de profissão quanto a cidadãos comuns (PIERUCCI, 1987, p. 36) -, mas motivo de orgulho para muitos, e de defesa - ou de ataque - incondicional - e apaixonado - para tantos outros.

A sociologia brasileira, no entanto, disciplina que muito teria a dizer sobre tal(is) fenômeno(s), ainda não desenvolveu estudos suficientes e articulados que possibilitem o aclaramento de tal figuração. Na realidade, essa ciência pouco se debruçou com verve, constância e intensidade sobre o assunto dentro de sua melhor e mais prolífica perspectiva, isto é, percorrendo suas tradições próprias, suas teorias, suas metodologias e suas formas analíticas já testadas e comprovadas em distintos domínios. A carência de análises de fôlego, de empreitadas eminentemente sociológicas que encarassem de frente o destrinchar dos sentidos do pertencimento do agente social ao espectro da direita sempre foi patente por estas bandas. Reportagens de jornais e revistas, entrevistas com eleitores e apoiadores de candidatos e partidos identificados à direita, com pertencentes às hostes de novos grupamentos, como o Movimento Brasil Livre (MBL) e demais entidades variadas de Internet, a leitura sistemática de textos de colunistas da grande imprensa e o contato com demais personagens que orbitassem e orbitem em torno do que se convencionou chamar de direita são elementos que inusitadamente não costumam integrar o rol de materiais de análise de uma possível sociologia sobre a direita no Brasil. Se em décadas passadas a mencionada lacuna se justificaria em razão da alentada expectativa no restabelecimento da democracia - o que voltou os olhos de quase toda aquela geração de cientistas sociais às movimentações que ocorriam em sindicatos, igrejas progressistas, agremiações políticas que fomentassem a participação direta pelo voto etc. -, hoje em dia não há mais razões que deem conta dessa aparente falta de interesse. Sobretudo em um contexto político-social como o nosso.

Variadas hipóteses auxiliares poderiam ainda ser levantadas por uma sociologia da sociologia no intento de elucidar tal ausência temática. Seja a da proeminência exercida pelo objeto “autoritarismo de Estado”, experimento pronto a nos rondar na América Latina de tempos em tempos, geralmente à direita, e que sempre agregou pesquisadores de escol em detrimento da visualização de suas reverberações na sociedade civil; seja um suposto desejo militante e conjuntural de parte dos cientistas sociais em não quererem enxergar a vida como ela é, relegando o ser de direita a uma menoridade não só política, mas também em termos de objeto legítimo e válido a ser escrutinado e mais bem compreendido. Seja ainda o açambarcamento da temática pela denominada “ciência política”, disciplina instituída de fato como relativamente autônoma da sociologia em meados dos anos 1970 (KEINERT, 2011) e que, ao se aproveitar do abandono do tema pela sociologia, abraçou como sua propriedade, dentro de seus ferramentais próprios, os repertórios de casos que envolvessem coordenadas como os referenciais políticos direita-esquerda.

Fato é que guinadas e eternos retornos à direita por parte da sociedade civil, esse ente anunciado desde pelo menos o hoje um tanto proscrito Oliveira Vianna como de difícil compreensão sociológica no Brasil, sugerem que o ingênuo marxismo ativista, aquele que vislumbra a revolução logo ali na esquina, equivoca-se tanto ou mais do que os que projetam na mesma sociedade civil certa tendência quase que imanente à vida democrática, contribuinte natural à conformação de per si de uma imaginada esfera pública tupiniquim. Ambos os lados costumam quebrar a cara de tempos em tempos, e amiúde permanecem rezando suas cartilhas sem entender bem, ao final das contas, o por quê. Mais do que isso: dentre os poucos interessados no assunto ao longo da história, incluíam-se aqueles que se enredavam no jogo da mera condenação ou da exaltação laudatória do objeto - a depender do lado em que se posicionassem -, deixando de lado as já deveras conhecidas precauções metodológicas anunciadas por um Max Weber, que tão bem fariam para, por exemplo, não nos surpreendermos mais com supostas reviravoltas político-ideológicas sucedidas aparentemente do dia para a noite. Aparentemente, frise-se, porque não há pesquisa o suficiente nos moldes aludidos, que em nossa opinião ensejariam se existentes, ao menos a condição de tomarmos ciência e acompanharmos historicamente os fenômenos políticos que ocorrem em meio a determinadas camadas da população - não só nos momentos extracotidianos do voto e das manifestações.

Uma das comprovações do que dizemos é a exceção à regra nesse campo de estudos, os trabalhos do sociólogo, pioneiro no tema na década de 1980, Antônio Flávio Pierucci. Embora suas investidas iniciais à primeira vista dedicassem-se tão somente ao escrutínio dos votos concernentes às surpreendentes eleições de Jânio Quadros à prefeitura de São Paulo, em 1985, e à quase eleição de Paulo Maluf ao governo do mesmo estado, em 1986 - logo, dentro de uma tradição já cara à ciência política -, na realidade ele apontava para a concretização de uma típica e pura sociologia webero-bourdiesiana. Falamos aqui de uma prática de pesquisa teoricamente orientada no intento de compreender os sentidos da ação dos votantes, sociologia esta facilmente observável em razão da análise que movimentava os cruzamentos entre estilos de vida, opiniões e posição ocupada no espaço social. Desta forma, Pierucci se valeu, certamente pela primeira vez no Brasil, do ferramental contido no clássico A Distinção (BOURDIEU, 1979), no afã de delimitar o entrecruzamento sucedido entre classe - no melhor, mais alargado e mais prolífico sentido do termo - e tomada de posição política, tentando recuperar para a sociologia o objeto por vezes tão desprezado: o pertencimento à direita e sua miríade de significados, que ultrapassa em muito simplesmente o mecânico “ato de votar”.

Chama a atenção que, em seus estudos da década de 1980, Pierucci já empregava o termo “nova direita”, tão em voga na atualidade entre acadêmicos e demais agentes que intentam capturar o significado dessa suposta novidade. Com isso, naquele instante, ele visava circunscrever os apoiadores que impeliam os fenômenos de votação Jânio Quadros e Paulo Maluf à cabeça dos processos eleitorais, candidatos da direita que demonstravam certo vigor em uma conjuntura política aparentemente desfavorável aos rebentos da ditadura recém-encerrada. Por meio de longas entrevistas em profundidade com eleitores-ativistas, uma sensibilidade ímpar em suas interpretações, o manuseio e a análise de dados empíricos relativos aos votos e seus respetivos distritos eleitorais ele apreendeu sinteticamente o que significava a tal antiga “nova direita”:

Mas que direita é esta? E até que ponto é “nova”? Questões complicadas. [...] estamos às voltas com indivíduos arregimentáveis para causas antiigualitárias radicais e soluções autoritárias de direita. Estranhamente, porém, são favoráveis às greves dos trabalhadores e ao direito de greve, embora não façam greve e tenham cisma de que as greves degenerem em bagunça. Defendem a reforma agrária e, deste modo, estão bem longe da UDR; reprovam contudo as invasões de terras urbanas. Querem gastos públicos com a mesma veemência com que exigem as penas mais severas para o crime. Segurança policial e seguridade social são consideradas direitos urgentes de todos os cidadãos decentes e homens de bem: querem mais efetivos policiais, mais equipamentos e mais modernos, para o combate ao crime, maiores salários para os policiais; querem sobretudo a ROTA, emblema das decisões de polícia tornadas decisões de justiça. Mas querem, também, serviços públicos de saúde, escola, creches, orfanatos, reformatórios, internatos, às vezes campos de concentração com trabalhos forçados, transporte coletivo estatizado, seguro desemprego e aposentadoria condigna, tudo isto e muito mais eles querem do Estado. O papo liberal anti-welfare, claro está, não é com eles. Do comunismo como fantasma assustador, velho pânico das direitas de um modo geral, do sobressalto ante a revolução socialista ali ao dobrar da esquina, nem sombra. Anticomunismo, quando há, é dos chefes, não das bases, assim como o pouco que se encontrou de neoliberalismo econômico provou-se minguante quanto mais longe das cúpulas das máquinas eleitorais ou partidárias se achava o entrevistado (PIERUCCI, 1987, p. 27).

Direita que, àquela altura, sublinhe-se, vexava-se ao ter de se assumir como direita. Além do mais, que não comungava de cartilhas anticomunistas, algo bem diferente do que observamos na atualidade (MESSENBERG, 2017). Pela descrição de Pierucci, o direitista típico da década de 1980 tratava-se de um ser híbrido, temeroso, conservador, que apostava no que restava de sua identidade de “homem de bem” contra o que identificava como falta de ordem, de moral, de religião; que se postava contra os direitos humanos, o migrante nordestino, o pobre, o “diferente”, enfim, que poderia vir a ameaçá-lo, a roubá-lo, a tomar o lugar dele, a conviver próximo demais a ele. Como Pierucci deixava claro, a defesa do neoliberalismo e seus derivados, um elemento basilar na definição do que viria a constituir a “nova direita” hodierna (DARDOT; LAVAL, 2016), era ausente das fileiras de base dessa “nova direita” oriunda da experiência da ditadura militar (PIERUCCI, 1987, p. 27); uma direita estatista, moralista, que abraçava algumas pautas inimagináveis a partes mais intransigentes e barulhentas da direita atual, como a reforma agrária, o transporte coletivo estatizado, a seguridade social. Uma direita eminentemente branca, de classe média baixa, destituída de capital cultural, embora muitas vezes tivesse posses econômicas razoáveis; uma direita que vivia “do outro lado da cidade” (PIERUCCI, 1989), isto é, em bairros intersticiais posicionados entre a periferia e o centro expandido, distantes dos principais serviços e equipamentos culturais disponíveis em São Paulo. E isso tudo, frise-se, referia-se unicamente ao universo paulistano. A direita brasileira, nesse sentido, permanecia e permanece uma grande incógnita aos estudos sociológicos.

O adjetivo “nova”, aliás, emergido àquela altura, é bem sintomático do que vimos argumentando: em um campo de estudos carente de acúmulo sobre suas próprias bases temáticas, tudo o que vem a ser enquadrado cientificamente aparenta certo ar de novidade, logo, de uma “nova” direita. Era o caso nos idos dos anos 1980, continua a ser o caso de hoje, quando o irrompimento de movimentos de direita toma os cientistas sociais mais uma vez desprevenidos, pois desconhecedores que somos da gestação silenciosa e sempre presente do que significa o pertencimento à direita, ou ao menos a defesa e o apoio a pautas consideradas de direita na sociedade brasileira. Naquele longínquo caso, Pierucci lidava com a ressurgência ou sobrevivência de expectativas e anseios que se acreditavam extintos depois de toda a experiência traumática da ditadura militar; viu-se que nada mais equivocado do que a crença quase que miraculosa na “força da democracia” institucional, deixando-se de lado o conhecimento dos meandros da sociedade na qual se pretende alicerçar esta mesma democracia. A direita militaresca outorgou constelações de sentido à posteridade, assim como a posteridade tratou de rearranjá-las em formatos condizentes com as modificações sócio-históricas pertinentes. Nem tudo se perde, nem tudo se preserva, lição básica das ciências naturais, mas também de sociologia. Lição esta que continuamos ingloriamente a aprender, com a consequente adjetivação de “nova” com o que deveria ser “velha”, ou “transformada”, ao menos. Pois para se nomear algo como “novo”, pressupõe-se que se tenha plena ciência das formas passadas, e não é bem esta a situação. Na esteira das análises de Pierucci, Gonzaga (2000) percebe certas modificações no caráter da “nova” direita que se anunciava em meados dos anos 1990. Embora seus achados corroborassem o surgimento de certa clivagem no âmbito daquela direita caracterizada por Pierucci nos anos 1980, clivagem esta devida à emergência de outra “nova direita” em meados dos anos 1990, não houve estudos que aprofundassem sua interessantíssima hipótese central: a de que certa direita neoliberal assomava, ancorando-se, sobretudo, em estratos de classe média alta, escolarizada e relativamente cosmopolita (GONZAGA, 2000, p. 220), ao passo que a velha “nova” direita vislumbrada por Pierucci nos anos 1980 restava ativa, porém fincada nas mesmas camadas destituídas de capital cultural, como outrora. O desenvolvimento de mais teses e artigos que tomassem a sério o nascimento no seio social dessa “nova nova” direita, entendida por meio do prisma do pertencimento social, poderia ter nos rendido muito mais acurácia na determinação de fenômenos que estavam por vir logo adiante. Talvez a raiz da nossa “nova nova nova” direita dos anos 2010, continuando na adjetivação inaugurada por Pierucci, estivesse aí, quer dizer, nesses idos dos anos 1990, quando modificações morfológicas sociais e políticas ensejaram a adoção de um liberalismo em várias dimensões de parte de camadas de classe média - outrora adeptas de certo progressismo político e cultural, como mostravam as pesquisas do mesmo Pierucci (1989). Tudo leva a crer que os residentes “do mesmo lado da cidade”, empregando de modo irônico o título do artigo citado logo acima (PIERUCCI, 1989), cultivaram e apoiaram as mudanças e transformações no ar dos tempos, redefinindo o pertencimento à direita. Alianças estratégicas entre as direitas foram vistas em mais de uma ocasião, e o reinado quase soberano do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) no estado de São Paulo talvez possa significar o mais pujante exemplo da diluição eleitoral dessas possíveis duas direitas, socialmente localizadas em posições distintas. Afinal, os viúvos de Paulo Maluf e de Jânio Quadros provavelmente preferirão um tucano a alguém que venham a identificar como um “esquerdista”. Mas isto é um fenômeno a ser mais bem avaliado por meio de pesquisas sociológicas futuras. De preferência, pesquisas teoricamente orientadas, que lidem empiricamente com opiniões, seja empregando métodos quantitativos ou qualitativos, análises de movimentos sociais, da produção intelectual vinculada a figuras proeminentes desta nova figuração, de genealogias que deem conta de termos, conceitos e do léxico empregado por nativos, estudos de grupos e instituições específicos, de formas de organização e ativismo online até o exame que envolve a política partidária e seus agentes. Futuros estudos que hoje fazem muita falta.

Após as manifestações de 2013, começaram a emergir alguns livros e artigos filiados sobretudo, mais uma vez, à ciência política (CHALOUB; PERLATTO, 2015; CRUZ et al., 2015; ORTELLADO et al., 2015; TELLES, 2015; TATAGIBA, 2015). O presente dossiê, embora não tenha a pretensão de resolver o problema de décadas de ausência temática sobre a direita na sociologia, reúne artigos dentro da aventada prática teórica que pode vir a contribuir e muito não só para o fortalecimento da área em sua visada sobre o assunto, como também para a diversificação de estudos sobre a direita. Ele é aberto com a entrevista realizada junto ao historiador francês Yves Cohen, diretor de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na qual é discutida a expansão dos movimentos sociais que, desde 2010, ocuparam praças e ruas de vários países da Europa e do mundo. Cohen reconhece que tais ações coletivas “interrogam as ciências sociais em suas próprias bases, sobre suas maneiras de interpretar, suas maneiras de relacionar-se com a atualidade e com o contemporâneo”. A análise das novas experiências democráticas exige, portanto, formas reflexivas distintas das quais estamos acostumados a operar, como, por exemplo: as clivagens entre direita e esquerda, as noções clássicas de representação e participação, assim como a suposta inexorabilidade da institucionalização da ação política para o seu êxito. Cohen aponta ainda para a explosão de movimentos sociais sem lideranças claras, pautados pela organização episódica de coletivos, associações e grupos horizontais, que rejeitam formas hierárquicas de poder e reivindicam demandas específicas. As atuais dinâmicas processuais da vida democrática permanecem, contudo, irrefletidas e incompreendidas, pois os intelectuais insistem em enquadrá-las em chaves interpretativas já ultrapassadas, ou se negam a vivenciar momentos reflexivos junto aos próprios atores desses movimentos. Há que se reconhecer que há uma dinâmica democrática mais complexa a ser decifrada, e “é preciso experimentar formas de encontro e de experiências”.

Os dois artigos em sequência são resultados de palestras proferidas durante seminário organizado, em dezembro de 2016, pelo Grupo de Estudos de Sociologia da Cultura, e denominado Golpe na Cultura: intelectuais, universidade pública e contextos de crise no Brasil. Mantendo o mesmo título do evento, Maria Arminda do Nascimento Arruda elabora análise que discute os efeitos perversos da atual crise política brasileira sobre a área da cultura, seja em termos da redução de políticas públicas dirigidas a esse setor, seja no sentido da sua reflexão enquanto campo. Os intelectuais e seu espaço institucional privilegiado, a universidade, vêm sendo sistematicamente questionados sobre a relevância de suas práticas e a pertinência de seus legados em sociedades marcadas sobejamente pela valorização da técnica sobre a cultura. Acresce-se a essa condição o aprofundamento da debilidade das entidades de ensino superior no país em contexto de crise, o que acaba por reforçar a dispensa dos intelectuais como mediadores interpretativos do mundo social e construtores de enquadramentos sociais. Os desafios a serem enfrentados são, segundo a autora, de grande envergadura e exigem o repensar entre as disciplinas humanísticas e culturais dos seus próprios problemas e objetos de pesquisa, bem como ousadia na proposição de novas perspectivas analíticas.

Marcelo Ridenti trata de discutir em seu artigo intitulado Mudanças culturais e simbólicas que abalam o Brasil a estreita relação entre a dinâmica da crise atual da democracia brasileira e a mobilização das classes médias escolarizadas. Apresentando dados que apontam a predominância dos setores escolarizados nas grandes manifestações sociais que assolaram o país a partir de junho de 2013, Ridenti insiste em que tais mobilizações revelam a complexa combinação entre sonhos irrealizados e medo da perda de privilégios. Expressam, do lado da classe média ascendente, a profunda frustação quanto à não concretização de expectativas de ascensão social pelo saber formal e a inclusão pelo consumo. Do lado da classe média tradicional, evidencia-se o temor da não reprodução histórica de suas condições distintivas dentro da sociedade brasileira. Em ambos os lados, a insatisfação crescente com relação às promessas não cumpridas e a disposição para ações reivindicatórias, que se dirigem tanto à direita quanto à esquerda do espectro político.

Ampliando a análise para o plano internacional, Maria Caramez Carlotto traz como contribuição ao dossiê o artigo denominado Inevitável e imprevisível, o fortalecimento contemporâneo da direita para além da dicotomia ação e estrutura: o espaço internacional como fonte de legitimação dos Think Tanks latino-americanos. Nele, afirma que o entrelaçamento dos fenômenos da polarização política e a expansão dos movimentos sociais de direita adquiriu, nas últimas décadas, extensão planetária. A explicação para tal sincronicidade envolve diferentes dimensões: da estrutura à ação, aos processos político-econômicos globais frente aos fatores socioculturais de origem local. Carlotto combina ambas as perspectivas analíticas ao discutir os resultados de sua investigação acerca do crescimento dos Think Tanks latino-americanos, como espaços legítimos para a produção de conhecimento, formação e circulação de elites, decorrente tanto de fatores estruturais, que impelem as elites desses países para o espaço internacional, como contextuais, enquanto reação aos efeitos promovidos pela democratização da educação superior na região a partir dos anos 2000. O desvelamento dos vínculos entre estrutura e ação e entre o macro e o microssocial é o que permite não só a melhor compreensão da natureza desses processos, como também os “sentidos envolvidos”.

Ajustando as lentes para o enfoque do recrudescimento dos movimentos à direita no contexto brasileiro, o artigo de Fábio Gentile, A direita brasileira em perspectiva histórica, propõe pensar o fenômeno da direita brasileira a partir da análise da tensão liberalismo-autoritarismo, que atravessa toda a nossa vida política contemporânea. Utilizando-se da categoria de direita “plural”, caraterizada por uma multiplicidade de experiências, Gentile tenciona demarcar num longo voo interpretativo, que recobre desde a experiência da “ditadura republicana” de matriz positivista à experiência atual da direita brasileira, a convivência ambígua de elementos democráticos e permanências autoritárias.

Os dois últimos artigos que compõem o dossiê discutem a ação de um mesmo personagem: Jair Bolsonaro. Pré-candidato à Presidência da República nas eleições de 2018 pelo Partido Social Liberal (PSL), Bolsonaro vem apresentando, de acordo com os grandes institutos de pesquisa (Datafolha, IBOPE, Voxpopuli), expressiva capacidade de angariar votos em todas as regiões brasileiras. Sua força eleitoral reflete indubitavelmente o recrudescimento das manifestações de direita no país, assim como o compartilhamento de suas ideias e valores em relação a parcela significativa da sociedade.

O trabalho “Direita, sem vergonha”: conformações no campo da direita no Brasil a partir do discurso de Jair Bolsonaro, de Martin Maitino, busca elucidar, a partir da análise dos discursos proferidos pelo referido deputado federal durante as 54ª e 55ª legislaturas e de algumas de suas entrevistas à mídia escrita e televisiva, quais os valores e práticas que sustentam a sua ação política e quais aqueles que cindem discursivamente os campos da esquerda e o da direita, que o mesmo julga representar. Bolsonaro não é membro da “direita envergonhada”, a qual compôs tipicamente parte significativa do parlamento brasileiro após a redemocratização. Ao se apresentar como “direita sem vergonha”, abandonando eufemismos, seja em suas narrativas, seja em suas práticas políticas, ele não só se distingue “em meio aos políticos conservadores do establishment”, como se apresenta enquanto porta-voz de segmento da sociedade que não mais esconde sua oposição crítica ao ideário do que se convencionou chamar de “politicamente correto”.

Discutir a imagem pública do deputado federal Jair Bolsonaro com base nas pautas políticas associadas a ele em matérias jornalísticas publicadas nos jornais Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo, entre os anos de 1987 e 2017, é o objetivo central do artigo “Não falo o que o povo quer, sou o que o povo quer”: 30 anos (1987-2017) de pautas políticas de Jair Bolsonaro nos jornais brasileiros, de autoria de Leonardo Nascimento, Milena Alecrim, Jefte Batista, Mariana Oliveira e Saulo Costa. A análise das pautas políticas veiculadas pelos jornais analisados revela, primeiramente, que a atuação do deputado se constrói de forma privilegiada em direção à crítica aos direitos humanos, a salvaguarda aos direitos dos militares, a apologia à tortura e à violência, assim como a defesa da ditadura e do golpe militar. De outra feita, a postura polêmica e calcada em insultos, característica das “performances” políticas de Bolsonaro, sugerem certo “estilo” de atuação, que lhe garantem visibilidade crescente perante a mídia, a qual reforça, por sua vez, a reprodução de ações dessa natureza por parte do parlamentar.

Esta parte conta ainda com a contribuição de Sergio Miceli, em transcrição de palestra sucedida em evento já aventado, em que também tomaram parte Maria Arminda do Nascimento Arruda e Marcelo Ridenti. Em Intelectuais, mídias e universidade pública em contexto de peleja o sociólogo traz à tona questão controversa e intrincada, que deve estar na ordem do dia para a compreensão da conjuntura sociopolítica atual: o papel desempenhado pela mídia nativa na construção de narrativas hegemônicas sobre o mundo social. Miceli aborda os princípios de estruturação de poder dessas instituições e o emprego que elas fazem de suas posições de força política e econômica na confrontação com o mundo intelectual legítimo, ou seja, a academia. O debruçar-se sobre o trabalho intelectual de qualidade surge como a contraposição necessária a tal estado de coisas, deletério para a noção de cultura como um todo no Brasil atual.

O dossiê é concluído com resenhas de duas obras dialogicamente imbrincadas à sua temática central. A primeira, de autoria de Samuel Silva Borges, apresenta o livro de Pierre Dardot e Christian Laval, A Nova Razão do Mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal (São Paulo, Editora Boitempo, 2016). A segunda, elaborada por César Niemietz, discorre sobre a publicação Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro (São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015), coletânea de artigos organizada por Sebastião Velasco e Cruz, André Kaysel e Gustavo Codas.

Os trabalhos que compõem o presente dossiê convergem em direção similar ao investirem tanto no esclarecimento de certas questões que envolvem o recrudescimento dos movimentos de direita no Brasil, como instigam a autorrevisão e a renovação intelectual dessa agenda de pesquisa, mobilizadora de diferentes áreas do saber nas humanidades. A expectativa dos seus organizadores é a de trazer para o debate visões sociológicas plurais acerca da temática em foco, como assinalar a importância decisiva de sua reflexão em tempos de crise da democracia no Brasil e no mundo, na melhor esteira legada pelos trabalhos citados anteriormente, e que tão misteriosamente não frutificaram com abundância por aqui.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. La Distincion: critique sociale du jugement. Paris: Editions de Minuit, 1979.

CHALOUB, Jorge; PERLATTO, Fernando. Intelectuais da “nova direita” brasileira: ideias, retórica e prática política. ANPOCS 2015. Disponível em: http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=9620&Itemid=461 >. Acesso em: 10 jun. 2018.

CRUZ, Sebastião Velasco et al. (Org.). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo Editorial, 2016.

GONZAGA, Maria Tereza. Conteúdos Ideológicos da Nova Direita no Município de São Paulo: análise de surveys. Opinião Pública, Campinas, Vol. 6, n. 2, p. 187-225, 2000.

KEINERT, Fábio Cardoso. Cientistas sociais entre ciência e política (Brasil, 1968-1985). Tese (Doutorado em Sociologia). São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2011.

MESSENBERG, Debora. A direita que saiu do armário: a cosmovisão dos formadores de opinião dos manifestantes de direita brasileiros. Revista Sociedade e Estado, Brasília, vol. 32, n. 3, p. 621-647, set./dez. 2017.

ORTELLADO, Pablo et al. Pesquisa manifestação política 12 de abril de 2015. Disponível em: http://gpopai.usp.br >. Acesso em 12 maio 2018.

PIERUCCI, Antônio Flávio. As bases da nova direita. Novos Estudos. CEBRAP, São Paulo, n.19, p. 26-45, 1987.

_____. A direita mora do outro lado da cidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 4, n.10, p. 46-64, 1989.

TATAGIBA, Luciana et al. “Protestos à direita no Brasil (2007-2015)”. In: CRUZ, Sebastião Velasco et al. (Org.). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político brasileiro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015, p. 197-212.

TELLES, Helcimara de Souza. “O que os protestos trazem de novo para a política brasileira?”. Em Debate, v. 7, n. 2, p. 7-14, 2015.



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