ENTREVISTA
Entrevista com Yves Cohen
Entrevista com Yves Cohen
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 25, núm. 1, pp. 13-31, 2018
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
O professor titular (directeur d’études) de História na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, França, Yves Cohen, é muito mais do que um acadêmico “puro”. Tendo sido um dos personagens ativos de maio de 1968, conheceu tanto a prisão quanto o chão de fábrica de montadoras automotivas francesas por conta de suas atividades políticas. Desde então, vem pesquisando vigorosamente, sem deixar de lado uma marcante pegada sociológica, o que ele denomina uma “História da Ação”. Essa subdisciplina se estende para a tentativa de compreensão de movimentos sociais atuais, tais quais os ocorridos em países árabes há alguns anos, ou os que tiveram início no Brasil em 2013. Autor de diversos livros, dentre os quais figura o Le Siècle des Chefs: una histoire transnationale du commandement et de l’autorité (1890-1940), nesta entrevista Yves Cohen foi convidado a partilhar conosco suas impressões e reflexões sobre as formas de organização dos movimentos sociais atuais, sobretudo os de direita, mas acabou se vertendo também sobre os de esquerda, pois a inteligibilidade de um não se dá sem o outro. O encontro ocorreu em agosto de 2017, nas dependências da Universidade de São Paulo.
Revista PluralVocê se interessa há muito tempo por interstícios que envolvem história comparada, filosofia, sociologia, psicologia social etc. Seu livro Le siècle des chefs1é um grande exemplar desse exercício interdisciplinar que você vem desenvolvendo. Nesse caso, você lidou com materiais de pesquisa mais tradicionais, existentes em arquivos, bibliotecas, etc. Hoje em dia, você está estudando os movimentos sociais contemporâneos, como os ocorridos no Brasil em 2013. Quais seriam as principais diferenças de abordagem, emprego e uso de técnicas, teorias e materiais em pesquisas como essas que você vem desenvolvendo?
Yves Cohen Por um lado, eu sempre considerei a herança de Marc Bloch do questionamento da história a partir do presente. Nunca abandonei uma presença no tempo presente que inspirasse meus questionamentos de historiador sobre o século XX.
Enquanto historiador, é claro que trabalho com arquivos, obras, livros, etc. Mas o que me interessa são as fontes da prática, muito próximas das pessoas e de suas ações. Arquivos escritos, claro; há outros tipos de arquivos. A ação é a própria escrita, então podemos nos interessar pelo que é escrito. Me interessa muito também ter contato com a ação no momento em que ela acontece por meio de documentos que estejam bem próximos dos atores e da sua ação.
Eu fiz esse trabalho sobre a autoridade, a obsessão e o culto do chefe no século XX, e isso dialoga com questões do presente. Em 1968 eu era antiautoritário, nós questionávamos muito a autoridade. Não só na França, os estudantes alemães também. É assim que nós interpretamos a Revolução Cultural, como uma revolução antiautoritária. Não era estúpido no que diz respeito ao guarda vermelho comum, mas era estúpido do ponto de vista da dinâmica do governo chinês. Mas são questões que tínhamos sobre a autoridade. Então eu quis movimentar a história em relação a essas questões de autoridade. E, de fato, o que eu descobri no final das contas, após mais de 20 anos de pesquisa, é uma situação totalmente diferente da situação na qual me formei e, inclusive, da época da formação das ciências sociais. Então eu trabalhei sobre o chefe, a autoridade, e percebi que a afirmação das ciências sociais, em particular por Weber e Durkheim, se dava em uma época em que, justamente, a liderança tornava-se um problema: a liderança das massas dentro da produção, dentro da guerra, e até mesmo na revolução.
Na verdade, a sociologia, em sua própria definição, e mais amplamente as ciências sociais - já que a psicologia também estava incluída - tratavam, de certa forma, dessa questão da autoridade, e outras intervinham, de alguma maneira, na sociedade. O que eu descobria no momento do lançamento do meu livro em 2013, é que a situação da relação com a autoridade, com a hierarquia, era totalmente diferente. E é por isso que eu me interessei pelos movimentos dos anos 2010, grosso modo a partir dos eventos de Tunis, em dezembro de 2010, que surgiram como um movimento sem lideranças.
Eu acho, portanto, que há ao mesmo tempo uma interrogação da história a partir do presente, mas - e isso é justamente algo que eu venho dizendo - os movimentos sociais dos anos 2010 - no mundo, não somente na Europa e nos EUA, mas na Ásia, até na África (Burkina Faso), no Brasil - interrogam as ciências sociais em suas próprias bases, sobre suas maneiras de interpretar e suas maneiras de relacionar-se com a atualidade, com o contemporâneo.
Revista PluralComo você vê essas manifestações que você citou - a partir da primavera árabe, passando pelos indignados e essas jornadas de junho no Brasil -, que de certa forma mostraram uma crítica às instituições e à classe política de uma forma geral, também talvez uma crítica a essa antiga forma de liderança? De acordo com seus estudos, que abrangem o final do século XIX até hoje, você conseguiria traçar alguma hipótese explicativa para esse tipo de modificação de que você fala, com a qual as próprias ciências sociais não conseguem lidar?
Yves Cohen Em primeiro lugar, acho que não devemos, como muitos intelectuais fazem, nos limitar aos Indignados, ao Occupy. Pois é um desenvolvimento mundial. Na Tunísia, não queriam ser um partido sem líder, eles se perceberam assim, e então o reivindicaram. No Egito, a mesma coisa. Na Turquia também; aliás, ali tratava-se de um objetivo tão pequeno quanto o aumento de vinte centavos no Brasil: a preservação do Parque Taksim Gezi em Istambul. No entanto, esse pequeno motivo provocou algo enorme, totalmente inesperado por todos. E, mais uma vez, sem liderança, com uma maneira de se organizar no próprio local, como em Kiev.
É preciso sair da ideia de considerar apenas os movimentos dos Indignados e Occupy, caso contrário nos limitamos aos países da velha democracia. Se observarmos esses movimentos sem líderes e sem partido no mundo, eles estão também fora da Europa Ocidental. Estão na Europa Oriental, na Europa Meridional, e em outros continentes. Então, há uma dinâmica mundial. Acho que, contrariamente ao que você diz, ela não é anti-institucional. Ela coloca problemas específicos que são deliberados pelas próprias pessoas (em um vocabulário antigo, pela própria multidão). A multidão delibera ali mesmo ou pelas redes. Nas ruas, é claro, se for possível permanecer ali. Ela delibera em torno dos objetivos, e os objetivos que emergem são objetivos que reúnem centenas de milhares ou milhões de pessoas, de maneira totalmente inesperada.
No século XX, dizia-se às pessoas tanto nas empresas, no exército, é claro, mas também nos movimentos sociais e políticos: “É preciso se organizar, ter um chefe”. É o que diz o “Que fazer?” de Lênin, de 1902. O bolchevismo é isso: os bolcheviques devem ser chefes. “Precisamos de uma organização de chefes”, é o que diz Lênin, exatamente como os outros.
Esses movimentos fazem uma crítica em atos de tudo isso. É claro que já havia movimentos como o de Maio de 68. Mas em Maio de 68 nós tínhamos um horizonte que era revolucionário, e a ideia era fazer uma revolução melhor do que as outras (do que a soviética, do que uma revolução cultural antiburocrática como a chinesa...). Eu acho que esse objetivo revolucionário não existe mais hoje. Fala-se de revolução, mas não é a mesma, não é uma revolução de classes. É bem diferente. E é uma crítica em atos. É por isso que não concordo com quem diz que não deram em nada. Muitos dizem isso, até meu grande amigo Jacques Rancière, que os movimentos das praças não chegaram aonde queriam chegar. Mas não era o objetivo deles chegar a alguma revolução. O objetivo era derrubar Ben Ali, derrubar Mubarak, derrubar Yanukóvytch, impedir o aumento de vinte centavos nos transportes. E era por isso que milhões de pessoas compareciam. Para além de objetivos pontuais como esses, esses milhões já não comparecem mais! E é isso que nos interessa, e que talvez não consigamos entender.
Revista PluralPoderíamos pensar então que são movimentos que são mais reação ao estado de coisas, por exemplo a Mubarak, aos vinte centavos, a toda uma situação de constrangimento social de várias sociedades ao mesmo tempo, do que manifestações de uma ação visando a transformação global do mundo?
Yves Cohen Sim, mas se você olhar as revoluções que funcionaram - 1789 na França, 1917 de que muito se fala - eram reações também. Só que houve um momento em que surgiu a ideia de fazer uma constituinte, ou de se livrar da realeza dentro da dinâmica da revolução. No começo eram reações, inesperadas. Em 1917 também, era antitsarista, mas houve o partido bolchevique, que soube captar a dinâmica do acontecimento. E é isso que difere, e que abre um período extremamente interessante da política. Esses movimentos não querem destruir a sociedade, não querem acabar com a democracia representativa. Eles querem alguma coisa, apenas. No entanto, isso é insuportável para o poder. Seria fantástico se fosse possível que um processo como esse, que é democrático, mas de uma democracia diferente, direta, conseguisse conviver com a democracia representativa. Mas o poder detesta isso, como o que aconteceu na Turquia. A dinâmica da ditadura turca se inicia no movimento do Parque Gezi. Putin, um dia após a destituição de Yanukóvytch, que foge da Ucrânia, toma a Crimeia, para punir. Ou seja, ele toma um território e provoca uma guerra no leste da Ucrânia. Então, são reações extremamente violentas contra um movimento que dizem ser pequeno e não ter chegado ao seu objetivo. E foi o Exército que aproveitou para terminar. Veja no Egito. Duas vezes as pessoas voltaram a se manifestar. Se manifestaram uma vez, houve eleições e a Irmandade Muçulmana ganhou. Em seguida voltaram a se manifestar, quando o Exército interveio para prender, matar e liquidar o movimento.
Então, temos uma reação extremamente violenta contra movimentos que, eles próprios, não estão em uma dinâmica de violência. E é isso que é interessante, pois se trata de um vocabulário da ação totalmente diferente ao que estamos acostumados. Todos dizem “mas para além das mobilizações, é preciso institucionalizar-se”. Justamente, não! A grande aposta desta dinâmica é justamente que se mantenha uma tensão entre o que é institucionalizado e o que não é. Porque se esses movimentos se institucionalizam, isso desemboca em um Podemos ou um Siriza, ou seja, partidos de governo quase como os outros.
Há um nível também muito interessante. Na França, por exemplo, não houve muita coisa. Teve um Occupy bastante fraco, e o Nuit débout no ano passado (2016), que foi uma experiência extraordinariamente interessante. Uma espécie de experiência de democracia direta, mas com seus limites.
Na verdade, as democracias tradicionais, ou seja, as velhas democracias - contrariamente ao caso brasileiro, de uma democracia muito jovem -, elas absorvem esses movimentos. Mas o que acontece? E isso ainda é pouco estudado pela sociologia. Há um movimento muito mais subterrâneo de associações, de grupos, de coletivos horizontais para fazer jardins, para trabalhar com a economia, com a cultura, universidades operárias, para defender imigrantes, por exemplo. Uma multiplicidade de coisas que não são muito visíveis mas que agem sobre o social muito profundamente, e que estão nesta mesma crítica do século XX.
Há algo muito importante na França, por exemplo, que é a associação. Há uma lei, de 1901, que tornou possível a associação. Mas o que é característico é que a associação não necessita de autorização do Estado, basta declarar a associação para que ela exista. Até então, criava-se uma associação com um escritório, presidente, presidente-adjunto, tesoureiro, era necessário uma diretoria eleita por uma assembleia geral. Há alguns anos, criam-se associações sem diretoria, sem presidente, porque não está na lei. As prefeituras têm dificuldades em registrá-las, mas são obrigadas a fazê-lo. São as chamadas associações colegiais (associations colégiales).
Ou seja, não há apenas os movimentos das ruas e das praças. Tem também todos esses pequenos movimentos, e me parece que existe isso também no Brasil. Eu conheci, em Belo Horizonte, um professor de Belas-Artes, na UFMG, que mantém, com outras pessoas, um coletivo de artes locais, que foi instalado em uma casa aberta, e que me disse que existem vários, em vários lugares diferentes. No Brasil, tiveram as manifestações de junho (de 2013), mas elas foram continuadas pelo movimentos dos alunos secundaristas, um movimento que surgiu de maneira espontânea. Um pouco no princípio do MBL, sem partido, sem líder, autônomo. Ou seja, há um trabalho muito profundo das sociedades, e é isso que é preciso entender.
Revista PluralÉ interessante isso. Talvez por meio desse exemplo dos alunos secundaristas se compreenda bem isso que você está tentando dizer, essa mudança de forma... Mas, de uma maneira ou de outra, fazendo uma provocação aqui: contrapondo a essa visão de um certo horizontalismo formal que essas associações estão tomando no mundo, temos também algumas situações no Brasil que são essas situações de concentração muito grande de poder, principalmente a concentração midiática. E vemos que muito dos movimentos daquele momento, de 2013 principalmente, que apareciam como movimentos que não conseguiam mais suportar a corrupção, hoje praticamente inexistem. Houve talvez uma insuflação muito grande por parte da imprensa, uma imprensa comprometida com uma agenda ou não... Como conciliar essa visão que de fato existe uma nova horizontalidade em torno da forma desses movimentos e uma concentração de poder, principalmente ideológico e econômico muito grande, de outro lado? Você já pensou em alguma forma de lidar com essa interconexão, qual seria uma nova forma de relação entre mídia e sociedade no mundo de hoje, em todos esses movimentos, ou no Brasil em específico?
Yves Cohen É uma pergunta muito importante. Eu não estava no Brasil durante as manifestações de junho, mas eu estive aqui depois e pesquisei bastante. Algo me pareceu muito interessante. Justamente as questões da corrupção vieram através da interrogação dos meios de comunicação. Mas os meios de comunicação estão numa mesma situação que os poderes, ou seja, eles precisam de porta-vozes. Acho que essa é uma questão muito difícil de se resolver.
Mas há um outro aspecto que me parece importante. Movimentos se desenvolveram, que são anticorrupção, e de direita. Eles eram contra a corrupção porque eram, na verdade, contra Lula e Dilma, e isso desde as manifestações de 2013. Aliás, é uma das razões pelas quais o MBL se retirou das manifestações a partir de um certo momento. Em primeiro lugar, porque eles tinham alcançado o objetivo deles. Em segundo lugar, porque eles não sabiam o que fazer em um movimento que propunha algo totalmente diferente.
E eu vi, nos anos seguintes, 2014, 2015, que houve manifestações contra a corrupção que estavam, na verdade, aparentemente quase nos mesmos princípios: “A democracia está nas ruas”. Aparentemente também sem chefe, sem partido, mas uma vez que Dilma foi destituída, não havia mais nada.
Há uma coisa que é preciso pensar. Esses movimentos de rua, da maneira como se desenvolveram na década de 2010, não são, finalmente, nem de direita nem de esquerda. E isso cria um problema de interpretação. Porque, afinal de contas, a direita, ou melhor, movimentos que a esquerda não reconhece como sendo de esquerda, também podem se mobilizar desta forma.
Tem o outro aspecto também, o da concentração de poder. Acho que as constituições do século XX são constituições que se definiram amplamente como presidencialistas, inspiradas na Constituição Americana. A proposta de Max Weber também é essa. Ele tinha uma grande desconfiança a respeito do parlamentarismo na Alemanha. O parlamento seria incapaz de formar e selecionar líderes, então é necessário um presidente eleito por todos, logo, uma constituição presidencialista. É o que faz Charles De Gaulle em 1958. Mas ele é diretamente inspirado por Gustave Le Bon, que é o homem do século na minha opinião. Todo mundo se inspira nele, em sua obra “A psicologia das massas”, de 1895. Os homens, em multidão, não poderiam deixar de ter líderes. Todo mundo se inspira nele, inclusive Lênin. Em “Que Fazer?”, a influência de Le Bon é perceptível. Além disso, não somente De Gaulle era leboniano, mas ele participou, nos anos 1920, do salão de Gustave Le Bon em Paris. A relação é direta.
As constituições presidencialistas supõem a concentração do poder, e muita gente aprecia muito essa forma de poder, que a agarram e só buscam reforçá-la. Além disso, estamos confrontados a uma interpretação do social que deve ser um pouco nova porque não estamos nem um pouco acostumados a pensar movimentos que rejeitam as formas hierárquicas. Eles não são interpretáveis pelo poder, e é por isso que o poder os detesta. Pois na ausência de interlocutores, os poderes não têm nenhum controle. Não podem comprar ninguém, não podem reprimir individualmente alguns líderes para destruir o movimento. Então, resta fazer a repressão de massas.
Temos dificuldades pra interpretar o que está acontecendo. É por isso, aliás, que na minha opinião é preciso refletir com as pessoas que estão ali dentro, com ativistas reflexivos. E acho que podemos ter surpresas. Os movimentos de extrema esquerda não estão acostumados com isso porque são passadistas, têm uma visão um pouco antiga das coisas. Aliás, na maior parte do tempo eles estão afastados desses grandes movimentos das praças. Eles não estão lá! Não conseguem se integrar, estão pensando em outra coisa, estão pensando além. E, mais uma vez, é o esquema de “Que Fazer”: ao final da reivindicação que está sendo feita - Lênin falava de reivindicações econômicas - está a revolução. Por exemplo, movimentos chegaram na Praça Maidan, em Kiev, dizendo “Tudo bem, é preciso assinar o tratado com a União Europeia, mas e o social, e os salários, e o aumento dos preços?”. Mas não era disso que se tratava. Estamos acostumados com algo diferente, por isso temos muito a aprender, e é muito difícil.
É por isso que, de certa forma, os poderes, em democracias que não são capazes de absorver isso - dou o exemplo da França, das velhas democracias - é a força, o autoritarismo.
Revista PluralA fórmula estatal weberiana, do final do século XIX, que é sobre o monopólio da violência...
Yves Cohen Exatamente. O uso máximo disso. Porque na França, a partir de um momento, não é mais possível discutir.
O exemplo que eu vou dar, da França, é um exemplo muito interessante, dessa captação dos movimentos pela democracia. É o atentado ao Charlie Hebdo, no dia 7 de janeiro de 2015. Houve uma mobilização, lançada no Facebook por jornalistas, marcada para as 17 horas na praça da República. Dezenas de milhares de pessoas se encontraram na praça. Então aí também, sem líder, sem partido, sem organização, e foi extraordinário. Extraordinariamente emocionante, uma bondade recíproca, uma inventividade! As pessoas inventaram slogans, como Liberté des Crayons (“liberdade dos lápis” - um trocadilho com liberté d’expression), On n’a pas peur (“não temos medo”), ou Pas d’amalgame (“Sem amálgama”), que significa não confundir muçulmanos com islamistas. A própria praça inventava palavras de ordem. Foi realmente emocionante. E durou horas, certamente 100 ou 150 mil pessoas participaram. E eu acho que foi, em grande parte, graças à força dessa praça que François Hollande decidiu fazer uma manifestação no dia 11 de janeiro. Quer dizer, houve, além disso, os atentados do dia 9 de janeiro. Mas uma democracia como a democracia francesa foi capaz de perceber o que acontecia e transformá-la em uma operação. Isso é uma coisa interessante no último livro de Boltanski e Chiapello, “O novo espírito do capitalismo”2, porque uma das teses do livro é que o capitalismo foi capaz de incorporar a crítica (ele fala de crítica social e artística) do capitalismo e também, aliás, a crítica da autoridade. E é verdade que o capitalismo, por sua vez, experimenta formas de cooperação e colaboração que são menos hierárquicas. É claro que quando o mestre, e não dezenas de milhares de pessoas, nos diz “libertem-se”, nós suspeitamos. Mas mesmo assim, há uma reação, para se adaptar a isso.
Revista PluralMesmo lá dentro dos escritórios, hoje em dia, é muito bem vista essa questão de “não, não somos mais chefes, todos somos colaboradores”. Ainda que, materialmente, as coisas ainda não funcionem assim, pelo menos é algo que perpassa o espírito de época, e as pessoas querem viver esse tipo de horizontalidade também.
Você acha que, no meio disso tudo, existe ainda algum tipo de especificidade nesses movimentos em termos de o que viria a ser uma esquerda, o que viria a ser uma direita? Ou isso já se confundiu muito, de acordo com essas pautas que foram aparecendo? Por exemplo, na Europa tem a questão dos atentados. Como se movimenta a esquerda em relação a esses movimentos sociais, em relação a essas pautas, a essas agendas? E no Brasil, seria possível dizer que existe uma esquerda e uma direita muito específicas, onde se vê a defesa de pautas e de agendas? Há uma possibilidade de isso se converter em movimentos, ou é aquilo mesmo que você disse: uma esquerda tradicional um tanto quanto perdida naquela multidão, sem saber direito como se colocar, com aquelas formas de ação provenientes de outras formas de organização? Como você vê essa questão desse geografismo social em se colocar o mundo entre esquerda e direita dentro desse novo contexto?
Yves Cohen Eu acho, em primeiro lugar, que nós estamos acostumado a querer classificar entre direita e esquerda e estamos acostumados a refletir sobre o destino da esquerda. Nós somos de esquerda. E, principalmente, “eu sou de esquerda, porque não sou de direita”. E a esquerda tem sido extremamente decepcionante nesses últimos anos; é o caso da França e, evidentemente, do Brasil. O que significa “de esquerda” no Brasil quando o Partido dos Trabalhadores foi o organizador - não o primeiro, talvez não o mais esperto - da corrupção a altíssimos níveis? A questão é: o que significa manter-se de esquerda hoje? É aí que será necessário pensar, e pensar muito, e pensar em função de uma realidade que nos escapa completamente, inclusive a nós, pesquisadores de ciências sociais. Admitamos que seja necessário respeitar a democracia representativa porque não há outra. Eu permaneço otimista, porque vejo que há uma dinâmica em outro lugar, que não se define em termos de direita e esquerda. Que se define, aliás, talvez por valores que são o fundamento da esquerda: a solidariedade e a igualdade. Acho que há uma renovação do valor de igualdade que é fantástico. Bom, eu tenho uma formação francesa, da igualdade de direitos, de 1789, “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Mas a igualdade de direitos, nós vimos no desenvolvimento dos séculos XIX e XX: talvez haja uma igualdade dos direitos do cidadão, mas há uma desigualdade fundamental econômica e também do jogo político. Por milhares de razões. E é essa desigualdade que se tornou totalmente insuportável. Há uma nova concepção da desigualdade em que não se suporta mais que possa haver desigualdade por razões econômicas, etc. Há uma busca de igualitarismo, de cooperação igualitária que me parece bastante nova, renovando a concepção “Revolução Francesa” da igualdade.
Então, eu acho que esses valores motivam mais os movimentos. Igualdade significa também igualdade de religião. Por exemplo, fico muito tocado por testemunhos que recebo do que aconteceu do ponto de vista religioso no Egito ou na Turquia. Na Turquia, muçulmanos e cristãos rezavam juntos, em público, e homens e mulheres muçulmanos rezavam juntos sem se separar em locais diferentes. É uma redefinição do que é a igualdade e o respeito mútuo. Então, acho que é esse tipo de valores que me parece interessante nesses movimentos, e não uma referência em termos de direita e esquerda. Para mim, não há razão para que esses movimentos sejam mais de direita que de esquerda. E isso coloca um conjunto de questões. Pois, por exemplo, a extrema esquerda tem um discurso sobre o movimento de Maidan na Ucrânia tratando o movimento como fascista. Porque havia, de fato, fascistas no local. Mas se fosse um movimento de esquerda, haveria confrontos e os fascistas teriam sido expulsos da praça, eu imagino. Mas não foi o caso. Eles não definiam, de maneira alguma, a dinâmica da praça. Eles estavam lá e, aliás, só tiveram 2% nas eleições (eu explicarei a relação com as eleições). Mas eles não definiam a praça. Na verdade, houve confrontos com grupos de autodefesa fascistas e os grupos de autodefesa da praça, mas são os fascistas que estavam em menor número. Certa vez, por exemplo, um grupo de autodefesa fascista acusou outro grupo: “Vocês vão nos deixar a praça, seu cu preto”, que é um tipo de insulto racista para designar os caucasianos na Ucrânia e na Rússia. E o grupo de autodefesa da praça, que não era fascista disse: “O que você disse? E de que nacionalidade era o primeiro morto de Maidan?”. Era um armênio (um cu preto). Então, os fascistas haviam perdido. Os fascistas foram contidos na praça. A praça não era fascista, isso foi propaganda do Putin.
Esses movimentos não se definem dessa forma, nem em termos de associação ou coisas do tipo. E esse é um dos fatores que contribui ao incômodo dos políticos. Porque os políticos precisam se definir, e ter bandeiras de esquerda ou direita para melhor tentar captar o eleitorado. Mas, definitivamente, não é o caso desses movimentos.
Acho que há uma dinâmica difícil de entender pois, em primeiro lugar, é surpreendente. Isso confunde nossos modos de interpretação, que são concebidos no mundo antigo e em relação a esse mundo antigo. Mas, na verdade, estamos no início de um processo de grande escala. E eu espero que esses movimentos não sejam sempre reprimidos com sangue.
Mesmo no Brasil, a dinâmica da reação de 2013 contra o governo provinha do sentimento de não querer nunca mais aquilo. É uma dinâmica muito forte.
Então, é preciso se acostumar a pensar que há outra coisa, uma dinâmica processual de uma outra vida democrática, tanto pública quanto de organizações coletivas, etc. que se inicia e que podemos desejar que não seja sempre a guerra ou a ditadura, como na Turquia ou no Egito. Um bom exemplo é a Tunísia.
Revista PluralPor outro lado, a gente vê um tipo de retomada, ou aparecimento de pessoas que se declaram de direita, não só pessoas, mas também movimentos sociais. A gente vê na França a Frente Nacional tendo uma votação muito expressiva, de gente que se define de direita, ou nacionalista. E ao mesmo tempo a gente vê também na esquerda, uma esquerda ou parte dela que se finca muito hoje em dia nessa questão identitária. Talvez na França tenha sido muito forte nos anos 1968 e 1970, período no qual surgem os movimentos feminista e negro renovados no Brasil. Algo que certa esquerda critica muito, por dizer que são movimentos que não conseguem integrar as pautas a uma crítica global ao capitalismo, ficando apenas num viés identitário, diferencialista. A minha provocação é: sim, por um lado existe uma propensão a uma integração igualitária como os exemplos que você colocou. Por outro lado, a gente vê tanto na esquerda quanto na direita esse tipo de movimentação em se estabelecer novas fronteiras. Que é algo clássico da direita: estabelecer fronteiras. Pegando essa questão que você mencionou da igualdade, que virou um valor quase universal, e tentando contrapor a isso o fato de que a gente enxerga tanto na direita quanto na esquerda esse estabelecimento de fronteiras. Como você vê isso? Você acha que talvez seja algo mais restrito à América, por influência dos EUA, e aqui a gente tenha uma forma mais específica de a esquerda absorver isso, coisa que não acontece na França?
Yves Cohen Eu acho que há uma história desses movimentos. Por exemplo, o movimento feminista é um movimento que age sobre o social em seu conjunto. Ele cria fronteiras? Claro que podem haver movimentos feministas radicais, por exemplo, que não admitem homens em reuniões. Mas, no fundo, não são movimentos identitários. Mesmo as lutas de demarcação, são lutas que propulsionam direitos de pessoas identificadas, mas não têm vocação a construir novas fronteiras sociais. Pelo contrário, eles querem destruir as fronteiras sociais.
Revista PluralNa esquerda, tudo bem, posso concordar, mas e na direita? Por exemplo, o Front National, e talvez a direita brasileira? Essa direita da França é algo que talvez no Brasil não haja algo similar. Mas de uma forma ou de outra, você acha que aqui essa direita se organiza de uma maneira....
Yves Cohen É muito complicado. Mesmo na França, é mais complicado do que isso. Uma das coisas que fortaleceram o voto em Le Pen foi também um protesto. Para muitas pessoas, uma vontade de protestar que já não havia na França, e eles a encontraram ali.
Revista PluralNão seria uma direita autêntica? Não são direitistas autênticos que foram votar nela então?
Yves Cohen Claro que há um núcleo de direita. Mas há uma parte do eleitorado que são comunistas ou socialistas. E há outro aspecto: nós vemos muito os populistas, os racistas e os nacionalistas, inclusive nas ruas, e muito se fala disso. Mas há muita gente nas cidades e nos vilarejos que, quando são confrontadas com a chegada de refugiados, está mais para atos de solidariedade, de generosidade, de se abrir e se organizar para ajudar. Então há também milhares de práticas locais que são quase invisíveis. Tem um caso famoso na França de um agricultor que, na fronteira italiana, organiza a passagem da fronteira italiana até a França, e foi processado. Mas esses movimentos a gente vê menos. Às vezes, as mesmas pessoas votam em Le Pen e ajudam a abrir ginásios para abrigar refugiados, quando são confrontados com situações concretas. O que ocorre é que Le Pen dá um nome ao protesto deles. Mas acho que ainda nos confrontaremos muito com isso. Porque as ondas migratórias e de refugiados apenas começaram. Então nos confrontaremos com isso continuamente, e com tentativas de identificação e de fortalecimento de políticas identitárias.
Revista PluralNa França, as pessoas se confrontam com esses casos específicos, e ali a gente vê as contradições. No Brasil, por exemplo, a gente vê uma figura que talvez quisesse ocupar esse espaço político, o deputado Jair Bolsonaro. Uma figura misógina, que coloca centralmente uma pauta endêmica que temos no Brasil, que é a violência. Mortes por assassinato por ano, nós temos mais aqui do que na guerra da Síria.
São questões complicadas e ele se coloca como um salvador, talvez como a Le Pen. Por outro lado, nos EUA temos uma figura que foi eleita, o Donald Trump, que de uma forma ou de outra surge em casos semelhantes.
Você acha que esses novos movimentos, de alguma forma, por não estarem vinculados a essa noção de uma direita e esquerda antigas, ou de ter essa coerência que a gente pede aos intelectuais, ou aos intelectuais antigos, embasados nas antigas figuras de liderança, precisam de uma pessoa como as citadas para organizar suas demandas? Com esse tipo de modificação desses movimentos, eles podem gerar esse tipo de político a ser eleito por conta de demandas específicas do país, de medos, de questões que emergem?
Yves Cohen Eu não acho. Veja, o eleitorado de Trump é de fato um eleitorado de pessoas esmagadas pela economia, pessoas pobres, e que são esmagadas por Trump também. Mas é também esse eleitorado racista; quando vemos o que ele manifesta, a gente vê o Ku Klux Klan. Não é uma organização nova e portadora de ideais igualitários. É isso que se vê, é a referência nazista.
Uma coisa que me interessa, que tento refletir junto com outras pessoas, é justamente a que preço, e como esses movimentos conseguem ser inventivos. E isso supõe uma capacidade de deliberação. Eles têm essa capacidade. Quando eles se instalam em uma praça, quando se encontram todos os dias no mesmo lugar, quando debatem na internet etc. há uma capacidade de liberação que é muito mais forte do que simplesmente as formas organizadas hierárquicas tradicionais. Há uma forma de co-presença de pessoas que são muitas vezes de origens sociais, raciais e políticas muito variadas, e logo uma dinâmica de debate que, na minha opinião, não costuma conduzir a manifestações racistas etc. Claro, isso pode acontecer também. Na França há manifestações de direita que foram muito bem sucedidas. Manifestações contra o casamento para todos (mariage pour tous), por exemplo. Manifestações organizadas, no final das contas, pela igreja ou por pessoas próximas à igreja, que deram muito certo e reuniram milhões de pessoas. E fizeram o governo recuar. Ou seja, na França, a manifestação de rua de direita pode ganhar, também. Evidentemente é o caso de outros países. Mas eu não acho que, neste caso, tenhamos essa mesma característica de “multidões razoáveis”, de pessoas que aprendem a se falar na confrontação. Isso supõe condições muito precisas de poder, coabitar ou ocupar locais. Muitas vezes não é o caso. Aliás não era o caso das manifestações de junho, que eram manifestações esporádicas. O movimento de junho não ocupou o vão do MASP.
Acho que é essa a reflexão que devemos ter. Até que ponto as multidões não são multidões demoníacas de Le Bon, mas são multidões razoáveis. No fundo, são multidões da economia moral de E. P. Thompson, na qual podemos ter reivindicações categoriais, como a de camponeses que querem manter o preço do trigo e impedir a especulação...
Revista PluralNesse aspecto, você acha que esse tipo de multidão estaria mais próximo de ocupar um espaço de uma democracia direta do que servir de uma massa amorfa para ser manipulada por um lado ou outro?
Yves Cohen Sim. Justamente, esses movimentos não são manipuláveis. Além disso, eles desaparecem muito rápido, já que eles só existem porque têm uma reivindicação muito específica. Então, uma vez que são bem sucedidos... E muitas vezes foram, mas não sempre. Por exemplo, houve um movimento desse tipo na Bulgária, contra o governo búlgaro. Um movimento da rua também, em que as pessoas ocuparam as ruas durante dois meses, no verão de 2013, exclusivamente por efeito das redes. E não foram bem sucedidos.
Então são movimentos que, por definição, justamente por não serem institucionalizados - o que não é um defeito, na minha opinião - não podem ser instrumentalizados. Eles tampouco têm uma repercussão eleitoral. Aliás, quais foram as eleições depois das manifestações de 2013?
Revista PluralEm 2014, foi a presidencial.
Yves Cohen Isso, e a extrema esquerda não teve votação expressiva. Eu discutia com amigos que se espantavam com isso, que após 2013 nada havia mudado em 2014. Pois é, porque são coisas totalmente diferentes. São coisas que não se misturam, e não repercutem uma na outra. Aliás, um exemplo forte disso é Maio de 68, na França. Tivemos o maior movimento social da história francesa: 10 milhões de grevistas, muito mais do que em 1936, à época do Front Populaire. Um fantástico movimento de estudantes, camponeses, trabalhadores, o movimento social mais forte. E no final das contas, no dia 30 de junho, a câmara mais à direita que a França conheceu. Nenhuma repercussão eleitoral do movimento. A lição é essa: não esperar uma repercussão eleitoral. Reconhecer que existe uma democracia representativa e uma democracia não institucionalizada, direta. Uma forma de democracia muito mais difícil, porque ela é muito menos palpável. Mas reconhecer essa interação. É isso que é difícil e é algo que ainda não terminamos de refletir sobre, na minha opinião.
Revista PluralVocê estudou, no seu livro Le siècle des Chefs, formas específicas de autoridade, e autoritarismo também, que poderia ser o exercício desse tipo de autoridade em certas sociedades. Você acha que hoje, na história presente, existem alguns tipos de certo autoritarismo que nós poderíamos comparar com antigamente, para entendermos a especificidade dele na atualidade? Ou você acha que aquele tipo de autoritarismo é algo que diz respeito àquelas sociedades, e a gente não poderia fazer qualquer espécie de comparação hoje?
Yves Cohen Aparentemente, o que acontece é que os autoritarismos de hoje em dia não são de movimentos como o fascismo ou o nazismo. Há o caso da Venezuela, em que o autoritarismo está a ponto de se transformar em uma ditadura a partir de uma dinâmica socialista, no fundo. Mas o que é interessante, mesmo aqui, é que muitos dizem que isso é uma ditadura. Mas não é. Mesmo se possamos dizer que houve um golpe de Estado legal. Certamente. Mas não é uma ditadura.
E no entanto, há formas muito próximas que designam muito bem o autoritarismo nessa forma de suposta legalidade. Aliás, estive em Belo Horizonte, onde há uma exposição: “Desconstruindo a memória da ditadura”, na UFMG. É uma pequena e notável exposição sobre a ditadura, cheia de invenções museológicas e museográficas. Mas houve, não sei de que forma, uma proibição de se fazer a divulgação, e mesmo de se fazer cobertura jornalística sobre essa exposição. Ela existe, está aberta, pode ser visitada mas é proibido fazer qualquer cobertura dela. O que é isso? Pelo governo Temer, claro. Estamos tipicamente em uma forma de autoritarismo, que não é ditadura. Ninguém é preso, não há processo, não há violência física. E, no entanto, há algo incrível, que é a proibição da imprensa “livre” de fazer qualquer cobertura ou divulgação.
Na Turquia é muito mais grave, porque tem milhares de prisões, inclusive de intelectuais que tinham simplesmente se correspondido com alguém, ou nem isso. Há dezenas de milhares de professores que estão sendo perseguidos. E neste caso, também, pode-se dizer que é totalmente legal, há uma Constituição que foi aprovada. Estamos num totalitarismo que não é necessariamente baseado em um movimento fascista. Há um totalitarismo que se reivindica como sendo da ordem, da constituição. Já o caso brasileiro é muito misterioso, pois há um impasse político terrível. Um impasse que se constituiu pela desagregação da política e pelo poder de esquerda também.
Revista PluralA gente vê aqui como determinados grupos de direita, ou vinculados a pautas de direita, a um liberalismo econômico mais explícito, souberam lidar melhor com os movimentos que surgiram em 2013. O MBL, por exemplo, que soube catalisar bastante aquele movimento. Há ainda outros grupos de internet, como “Vem Pra Rua”, “Na Rua” etc., que são grupos com agenda no mesmo tom de liberalismo econômico. E a esquerda não conseguiu lidar muito bem, talvez por estar no poder. Você vê alguma diferenciação entre espectro político e saber lidar com essa nova forma de movimento político, ou você acha que nenhum dos espectros políticos está conseguindo lidar bem com essa nova forma de movimento social?
Yves Cohen Claramente, no Brasil a direita tentou captar isso. No Brasil, esses movimentos não são nem de direita nem de esquerda. São movimentos cujas forças vêm de outro lugar, de um objetivo deliberado livremente etc. Então é claro que a direita tenta captar esses movimentos. E é um momento difícil para a esquerda no Brasil. Porque a direita evidentemente orientou esses movimentos contra o governo para fazer deles um movimento político contra o governo. E finalmente foi de fato um movimento fortemente dedicado ao impeachment de Dilma. E a esquerda estava num estado completamente incapaz de reagir.
Revista PluralEssa questão é baseada em uma frase que o Pierre Bourdieu disse, se não me engano, no livro “Sobre a televisão”. Ele diz que a esquerda estaria a umas seis revoluções simbólicas atrás dos instrumentos que o Estado e a direita conseguiram estabelecer como uma espécie de uma doxa no mundo. Não sei se você concorda.
Yves Cohen É uma ideia muito boa, com alguns pontos fracos. Por exemplo, a rua nunca assustou a direita. A direita sempre foi às ruas.
Na França houve, recentemente, um livro publicado por um historiador cujo título era “A esquerda vai desaparecer?” de André Burguière3. É essa ideia, mais uma vez, de sentimento de perda da esquerda. Acho que há, na frase de Bourdieu, a mesma ideia. De que se a esquerda estiver perdida, não há outra solução.
E é justamente o contrário disso que eu acho que os movimentos dos anos 2010 mostram. Uma outra possibilidade. Que é uma possibilidade de outro social, outro político para além daquele definido pela oposição esquerda - direita. É tão difícil pensar pela direita quanto pela esquerda. A direita gostaria de transformar isso em algo de direita, já que não é nem de esquerda, nem de direita. E a esquerda não consegue. É o que aconteceu em maio de 68. Houve um momento em que não havia mais poder estabelecido, no final do mês de maio. Dois dias antes de De Gaulle deixar a França para ir à Alemanha ver o que o Exército poderia fazer e ser mandado de volta para a França pelo general Massu - que disse que ali era o lugar em que De Gaulle deveria estar -, houve a famosa reunião no estádio Charletty. Foi uma reunião organizada pelo partido socialista; um tipo de convite ao movimento de 68, nos seguintes termos: Juntem-se a nós e ganharemos. Pois bem, o movimento de 68 não ganhou! Então, a esquerda se preocupa com isso, pois é algo que lhe escapa.
Eu acho que é preciso se acostumar a pensar de outra forma. É muito difícil, eu tampouco tenho a solução. Nós estamos apenas no começo de um processo. Estamos apenas no começo da reflexão sobre esse processo, que é um processo em nível mundial, interconectado. Por exemplo, se você observa a revolução no Egito, é uma revolução que se inspira nos acontecimentos na Tunísia. As pessoas se conhecem. O movimento do Nuit Débout estava em contato, por exemplo, com o Brasil. É um movimento mundial.
De fato a gente está acostumado a pensar em termos nacionais. Mas agora, nós somos convidados a pensar em outros termos, a fazer comparações internacionais, a fazer uso tanto da extensão geográfica como da profundidade histórica. Precisamos também parar de nos preocupar com o destino da esquerda. Há algo para além da esquerda. É claro, nem falemos da direita, não se trata de passar para a direita. Há algo mais, outras formas de reflexão, de organização, de cooperação, de encontro entre pessoas, de saberes, de competências, de religião, de opinião, de sexos diferentes.
Eu lamento, pois talvez eu não responda a sua questão sobre os movimentos de direita.
Revista PluralSua visão é no mínimo instigante, e é justamente o que a gente queria conhecer mais de perto.
Uma última questão, fazendo uma provocação em cima disso que você acabou de dizer. De fato, a gente está acostumado a pensar em termos nacionais, e isso que está acontecendo é algo mundial, que não conseguimos entender direito em suas interconexões e como pode ser algo interessante, que foge desse espectro direita/esquerda ao qual estamos acostumados. No entanto, a gente vê que, por outro lado, têm pessoas que pensam em termos globais, e há muito tempo. São os chamados think tanks, sobretudo os think tanks norte-americanos.
Eles pensam em como fomentar, em vários lugares, aquilo que eles imaginam que tem que ser, ou como o mundo tem que ser. Eles têm dinheiro para isso, e investem pesado.
Ultimamente soubemos que movimentos como o MBL receberam dinheiro da Atlas Network, que é uma das mais famosas dessas organizações norte-americanas que congregam um monte de grupos em defesa de ideias liberais na economia.
Ainda que tudo isso esteja muito em disputa, será que talvez, em última instância, não tenha uma força soprando, uma força maior do que imaginamos, por meio dos tentáculos dessas organizações? E quanto elas não podem desarranjar todo esse potencial que essa forma de democracia direta que vem se desenhando pode vir a ter?
Yves Cohen Essa é uma das principais questões, e seria necessário que esses movimentos, essa dinâmica, se coloquem em uma escala muito ampla também. Evidentemente, esses think tanks não são apenas americanos, mas internacionais (como Bilderberg, Davos...). Há, de fato, uma porção de lugares em que o capitalismo pensa a sua estratégia.
Mais uma vez, é preciso ousar pensar a novidade dessa dinâmica. Por exemplo, eu acho que os altermundialistas foram muito importantes nessa dinâmica que conduziu a esses movimentos de Porto Alegre4 etc. Foram lugares de reflexão muito menos organizados do que seus opostos.
E eu acho que, mais uma vez, a gente não vê tudo. Como fazer? Acho que é preciso manter a não institucionalização desses movimentos. E isso é um enorme desafio. Pois uma das coisas a qual estamos acostumados a pensar é que é necessário institucionalizá-los. Eu acho que não, porque neste caso, justamente, passa-se para o outro lado.
Uma coisa interessante é que muito se diz que são revoluções da era das redes, do Facebook etc. Mas se isso é possível, é porque estamos em uma época que pode refletir sobre o passado dos movimentos do século XX. As ferramentas de rede oferecidas pela internet são absolutamente fantásticas, e têm diversos usos. Se não houvesse essa reflexão em atos... Aliás, a internet contribui para essa forma de igualdade não somente pelo fato de podermos nos comunicar e nos colocar em rede, mas porque podemos acessar formas de saberes. Isso é notável no área da medicina. Há uma porção de associações, de usuários da medicina que compartilham saberes e se tornam interlocutores da medicina, e isso acontece em largas escalas. Então é possível que haja coisas acontecendo em grandes escalas para além das formas de existência às quais estávamos acostumados anteriormente.
É claro que o capitalismo é muito poderoso, inclusive em sua capacidade de integrar a crítica que lhe é feita. Mas o social age de maneira inventiva, inclusive desta forma que mencionei, e nessa escala muito ampla. Mas eu sou incapaz de aprofundar, este não é meu principal tema de pesquisa. Dito isso, esse pode ser o papel dos intelectuais. Hoje eles não têm um grande papel, grosso modo, eles têm as mesmas posições que a extrema esquerda, e não compreendem muito bem o que está acontecendo. Eles gostariam que as coisas ocorressem de outra forma, se perguntam por que esses movimentos não vão mais longe. Mas o que podemos fazer, e que eu tentei fazer com uma colega socióloga em Paris, é nos reunirmos em presença de atores reflexivos desses movimentos. É preciso experimentar formas de encontro e de experiências. Porque pertencemos a instituições que podem pagar viagens e facilitar encontros pessoais. É muito difícil, tanto mais porque a história acontece rapidamente.
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