Resumo: Ao se acompanhar as representações de futuro da cidade de São Paulo produzidas ao longo da década de 1950, percebe-se uma importante mudança no sentimento hegemônico em relação a ele. No início da década, o futuro da cidade era visto com otimismo e dominantemente representado como o de um crescimento contínuo e ilimitado. No final da década, em contraste, continuava-se imaginando que o destino da metrópole seria crescer indefinidamente, mas isso passara a ser motivo de preocupação e pessimismo. A passagem de um sentimento ao outro é marcada, em um primeiro momento, pelo acirramento das discussões entre urbanistas que ocupavam posições importantes no campo político. No entanto, foi a partir da entrada vigorosa das ciências humanas nos debates sobre a cidade, que o pessimismo se consolidou como sentimento dominante. Como se procura argumentar ao longo do artigo, a mudança dos ânimos não foi fruto exclusivo da argumentação dos cientistas sociais e veio acompanhada de transformações na divisão do trabalho de dominação: figuras antes importantes nos debates sobre a cidade perderam espaço para um grupo de novos intelectuais, que se impuseram e passaram a controlar o debate público sobre São Paulo.
Palavras-chave: representações de futurorepresentações de futuro,cidade de São Paulocidade de São Paulo,história do urbanismohistória do urbanismo,história da sociologiahistória da sociologia.
Abstract: Following the representations of the future of the city of São Paulo produced during the 1950s, we can see an important change in the hegemonic feeling related to it. At the beginning of the decade, the future of the city was viewed with optimism and dominantly represented as one of continuous and unlimited growth. By the end of the decade, in contrast, it was still imagined that the destiny of the metropolis would be to grow indefinitely, but that became a matter of concern and pessimism. The transition from one feeling to another is marked, in the first instance, by the intensification of discussions between urban planners who occupied important positions in the political field. However, it was from the vigorous entry of the humanities in the debates on the city that pessimism was consolidated as a dominant feeling. As we argue throughout the article, the change of the moods was not only a result of the social scientists’ arguments, and it was accompanied by transformations in the division of the work of domination: important figures in the debates about the city lost space for a group of new intellectuals, who imposed themselves and came to control the public debate about São Paulo.
Keywords: representations of future, city of São Paulo, history of urban planning, history of sociology.
ARTIGO
Esgarçamento do futuro: transformações nas representações do destino de São Paulo na década de 1950
Fraying of the future: transformations in São Paulo destiny representations in the 1950s
Durante os anos 1950, a expectativa hegemônica sobre o futuro da cidade de São Paulo sofreu uma importante transformação. Desde o surto urbano da década de 1870 - consagrado pela historiografia como “segunda fundação de São Paulo” (REVISTA DE HISTÓRIA - USP, 1954; MORSE, 1970; QUEIROZ, 2004; CAMPOS, 2002; CASTRO, 2013) - até meados do século XX, a representação dominante do futuro da cidade era marcada pelo otimismo e por uma aposta nos benefícios que o crescimento contínuo traria para a metrópole (PRESTES MAIA, 1930; MOSES, 1950; O ESTADO DE SÃO PAULO, 1954; CAMPOS, 2002). Havia disputas em torno de quais estratégias de urbanização deveriam ser adotadas para favorecer esse crescimento: se a aposta deveria ser na funcionalidade dos equipamentos urbanos ou se questões estéticas deveriam prevalecer (CAMPOS, 2002), mas praticamente não havia dúvidas de que o crescimento era bom. As vozes que porventura questionassem essa premissa, mesmo estando presentes nos debates urbanos locais desde pelo menos a década de 1920, não tinham força suficiente para abalar a certeza otimista. Ou melhor: não tiveram força até a década de 1950. Até este momento, a narrativa que organizava o futuro da cidade era marcada por um télos épico e glorioso.
A partir de então, as críticas ao crescimento começaram a ganhar espaço. Entre os urbanistas, a tese de que a expansão contínua e indeterminada condenaria a cidade ao caos e à morte tornava-se cada vez mais influente (MEYER, 1991; LEME, 2001; FELDMAN, 2005). Quanto maior fosse São Paulo, mais problemática e difícil de se viver seria para seus habitantes. A única salvação possível seria promover a inversão de seu crescimento, mudando radicalmente a paisagem local (ANHAIA MELLO, 1954). O futuro alternativo que se desenhava para São Paulo transformaria a metrópole em um conglomerado de pequenas cidades-jardim - cada uma com um limite populacional de 30 mil habitantes, separadas entre si por cinturões-verdes e espalhadas por um território vinte vezes maior do que o ocupado pela cidade naquele momento (ANHAIA MELLO, 1954). Duas narrativas complementares, portanto, entraram com força na disputa pela produção do futuro da cidade: uma essencialmente trágica - que se referia ao destino manifesto da metrópole - e outra cujo final seria a salvação de São Paulo e que se oferecia para substituir a tragédia que se avizinhava.
Na interação entre essas narrativas, as críticas ao crescimento e as discussões sobre os problemas que o gigantismo da cidade causava tinham mais ressonância na redefinição do futuro de São Paulo do que aquela representação alternativa - a confederação de cidades-jardim -, tida como utópica e irrealizável (MOSES, 1950). Nesse sentido, a expectativa dominante continuou representando o futuro de São Paulo como sendo o de um crescimento contínuo e indeterminado, mas, ao mesmo tempo, incorporou as críticas então em voga, deixando de ver esse futuro como algo exclusivamente positivo. Em outras palavras, São Paulo se transformava em uma cidade em que o caos estava no horizonte próximo - às vezes como expectativa (KOSELLECK, 2006), às vezes presentificado (BOURDIEU, 2007) -, caos provocado por sua própria expansão e, em certa medida, cada vez com menos perspectivas de que pudesse escapar de tal destino (FERNANDES, 2008 [1959]).
O que se pretende adiante é apresentar cada uma dessas representações de futuro, bem como os personagens históricos que melhor lhes encarnavam, e explicar como e por que a expectativa hegemônica sobre São Paulo se transformou ao longo da década de 1950. Para isso, o texto segue em quatro partes: na primeira, apresenta-se a representação do futuro de São Paulo que foi hegemônica até a década de 1950, e que tinha como seus enunciadores fundamentais Francisco Prestes Maia e Robert Moses; na segunda, discute-se a representação alternativa, fortalecida nos debates sobre São Paulo a partir de 1954 e cujo principal advogado era Luiz de Anhaia Mello; na terceira, explica-se o surgimento de uma nova representação hegemônica, derivada da crítica de ambas as perspectivas anteriores e da inscrição de novos instrumentais disciplinares - como os da geografia e da sociologia - nos debates sobre a cidade; e, enfim, na última parte, aponta-se algumas das implicações dessas transformações para a produção do futuro de São Paulo.
Em 1930, alguns meses antes da eclosão do movimento armado que derrubou Washington Luiz da presidência da República, um jovem engenheiro da prefeitura de São Paulo, descendente de uma família de políticos e latifundiários, publicou o imediatamente famoso Estudo de um Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo. O documento fora encomendado pelo então prefeito José Pires do Rio, que pretendia promover uma profunda reforma urbana na cidade. Seu autor, Francisco Prestes Maia, foi aplaudido por seus colegas engenheiros e arquitetos: seu trabalho foi premiado no 4° Congresso Pan Americano de Arquitetura, realizado em 1930, no Rio de Janeiro e recebeu elogios de Alfred Agache, importante arquiteto francês que então visitava o Brasil (CPDOC, 2001; CAMPOS, 2002; FICHER, 2005).
O Plano de Avenidas de Prestes Maia propunha uma reestruturação viária para São Paulo baseada na combinação entre avenidas perimetrais e avenidas radiais. De um ponto de vista aéreo, as perimetrais seriam percebidas como uma série de círculos concêntricos, lembrando as ondas que uma pedra provoca ao atingir uma superfície de água parada, ou a figura de um alvo. As avenidas radiais, por sua vez, seriam vistas como linhas retas, cortando as perimetrais em todas as direções e ligando as periferias ao centro da cidade. Dentre as avenidas perimetrais, uma ocupava um lugar de destaque, aquela que Prestes Maia chamava de Perímetro de Irradiação. Esse perímetro - que seria o primeiro e menor dos círculos e deveria ser construído em torno do centro histórico - serviria para ampliar a zona comercial e facilitar a distribuição de veículos em diversos pontos do centro. O principal propósito do perímetro era aliviar o congestionamento da área central.
As intervenções urbanísticas propostas no Plano de Avenidas vinham ancoradas na certeza de que São Paulo seguiria crescendo. Esse futuro já se encontrava inscrito no presente da cidade de então, sobretudo nas transformações em curso que Prestes Maia identificava. Essas transformações, cuja origem era diversificada e difusa, eram reforçadas e garantidas por planos como o de Prestes Maia, especialmente quando chancelados pelo Estado. Nas palavras do engenheiro, percebe-se tanto aquela certeza do crescimento, quanto a consciência do papel do Estado no processo de organização da expansão urbana, além de serem marcadas pela perspectiva otimista de que o crescimento era bom para São Paulo:
Estamos, sob todos os pontos de vista, em um momento decisivo da nossa existencia urbana. No centro os arranha-céus se multiplicam; no taboleiro alem do Anhangabahú os primeiros grandes predios começam a emergir no meio do casario terreo [...]. Na propria administração municipal novo regimen se prepara com a cooperação do Estado. A varzea do Tieté, que por si só será uma cidade nova, acha-se em vias de completa metamorphose. Outras grandes obras se executam: calçamento, exgotto, abastecimento, grandes parques e edificios publicos. A situação geral do Estado é promissora. O proprio ambiente parece até certo ponto preparado [...] (PRESTES MAIA, 1930, p. 7).
A Revolução de 1930 interrompeu a administração de Pires do Rio, e os planos de reforma urbanística para São Paulo foram engavetados por algum tempo. Somente a partir de 1934, quando Fábio Prado assumiu a prefeitura da cidade - e se tornou o primeiro prefeito a conseguir cumprir um mandato completo desde a ascensão de Vargas -, foi que grandes obras de intervenção urbana voltaram a figurar em São Paulo (CAMPOS, 2002). Contudo, quem controlava a prefeitura eram adversários políticos de Prestes Maia - por isso, mesmo sendo uma das mais importantes referências do urbanismo local, o engenheiro não teve participação nenhuma nesta administração. Com o advento do Estado Novo, entretanto, o próprio Prestes Maia foi escolhido para prefeito da metrópole - as novas alianças de Vargas reabilitaram o grupo do qual o engenheiro fazia parte e lhe abriram as portas da administração municipal.
De 1938 até 1945, Prestes Maia colocou em prática sua concepção de cidade e construiu as partes fundamentais de seu Plano de Avenidas. O perímetro de irradiação e um sistema de três grandes avenidas radiais (chamado “Sistema Y”) constituíram seu principal legado. No entanto, o custo político dessas obras foi alto. Essas intervenções urbanas foram possíveis somente porque o governo ditatorial, de modo autoritário, garantia ao poder executivo grandes liberdades orçamentárias, evitando a necessidade de negociar com o legislativo ou quaisquer outros diálogos democráticos. Prestes Maia tinha consciência disso e se comprometia com este estilo de governo:
Êste acêrvo de concretas realizações comprova dum modo insofismavel, no campo do municipalismo, a excelência do regime administrativo e das diretrizes implantadas pelo Presidente Vargas, pois não se conceberia no regime das disputas demagógicas, dos embaraços formalisticos e da incerteza financeira (PRESTES MAIA, 1945, p. 5).
O tipo de urbanismo defendido por Prestes Maia nunca foi uma unanimidade em São Paulo (e, talvez, em lugar nenhum), embora fosse a tendência dominante. Suas grandes avenidas, as linhas retas, as perspectivas - que não escondem a inspiração haussmanniana - disputavam contra um urbanismo de valorização do pitoresco, de ruas sinuosas, que revelavam novas paisagens a cada curva, e cujo patrono poderia ser Camillo Sitte (CAMPOS, 2002). Um urbanismo “pragmático” contra um urbanismo “esteticamente orientado”. Ainda assim, Prestes Maia não pode ser acusado de ser completamente haussmanniano, pois várias vezes se mostrou preocupado, por exemplo, com a harmonização dos volumes construídos com as praças e as ruas - uma questão tipicamente sitteana1. De qualquer forma, como indicado acima, a São Paulo que emergia do debate urbanístico poderia ser mais funcional ou mais bonita, conforme a combinação entre as tendências em disputa, mas seria necessariamente uma cidade grande, uma metrópole - a capital do estado que se auto-intitulava a “locomotiva do Brasil” (LOVE, 1982).
A partir do fim do Estado Novo e, portanto, também do encerramento da prefeitura de Prestes Maia, uma terceira perspectiva começou a ganhar força nos debates urbanísticos. Uma perspectiva que tanto propunha uma cidade completamente diferente quanto fazia críticas importantes a um elemento central do urbanismo usualmente adotado em São Paulo: a certeza de que o crescimento da cidade era positivo. O discurso hegemônico sentiu os golpes provenientes dessa crítica e precisou reagir. Um exemplo nesse sentido é O Programa de Melhoramentos Públicos para a cidade de São Paulo, plano urbanístico encomendado pela prefeitura de São Paulo, sob administração de Lineu Prestes (1950-51), ao renomado “mestre construtor” estadunidense Robert Moses. O Programa de Moses pode ser visto como uma atualização do Plano de Avenidas de Prestes Maia, pois ambos partiam de uma mesma concepção de cidade e compartilhavam os mesmos princípios urbanísticos (MOSES, 1950; LEME, 2001). Contudo, no momento em que Moses apresentou seu trabalho, ele precisou se posicionar claramente em relação àquela terceira perspectiva que ganhava forças e criticava o tipo de urbanismo que seu Programa propunha:
São Paulo já traçou as linhas e características gerais do plano da cidade. Seria supérfluo discutir o adotado, mesmo que a isso estivéssemos inclinados, o que não é o caso. Se vale a metáfora fisiológica convencional, diremos que o esqueleto da cidade está formado; o coração, ou o centro comercial, e a maioria das artérias principais já ganharam forma; os subúrbios, geralmente fóra dos limites da cidade, servem-lhe de pulmões. Aparentemente, não tem havido em São Paulo a tendência, ambição, ou disposição psicológica, de criar qualquer plano urbano destinado a promover a descentralização e a dispersão dos habitantes, a formação de cidades satélites, a reserva dos terrenos, entre uma região e outra, destinados a parques, jardins, chácaras, etc.; a proibir a construção de prédios altos em certas partes e todo excesso de concentração humana. Assim, quem pretenda qualquer plano de melhoramentos e de formação de zonas não deve, para que seja o mesmo plano exeqüível, ignorar que o paulistano comum, embora orgulhoso da própria cidade, ansioso por seu desenvolvimento e zeloso de sua reputação, é um cidadão mais ou menos conservador, cujos conceitos de administração municipal não abrigam intuitos revolucionários (MOSES, 1950, p. 11-12).
O ataque de Moses a seus críticos, condenando suas contrapropostas como irrealizáveis, dizia respeito tanto ao contexto paulistano quanto aos debates urbanísticos dos Estados Unidos. As ideias antimetropolitanas de Ebenezer Howard e Patrick Geddes, que viam a grande cidade como o estágio final da decadência da civilização, estavam sendo renovadas por críticos como Lewis Mumford e arquitetos como Frank Lloyd Wright, adversários frequentes de Moses nos EUA (BALLON; JACKSON, 2007). Ao passo que, em São Paulo, arquitetos e urbanistas liderados por Anhaia Mello se apropriavam dessa discussão, adaptando-a para os debates locais.
Mesmo assim, esse futuro de São Paulo - proposto por engenheiros e urbanistas como Prestes Maia e Robert Moses, no qual o crescimento era motivo de orgulho e deveria ser estimulado - continuava dominando as representações da cidade. A partir de 1954, contudo, as atenções foram redirecionadas para outros aspectos da grande metrópole - sobretudo seus problemas -, e o futuro de São Paulo, aos poucos, passou a ser visto com outros olhos.
Em 1954, a cidade de São Paulo comemorou seu quarto centenário. Foi um ano de festas, cuja principal atração foi uma feira internacional, montada no recém-fundado parque do Ibirapuera (LOFEGO, 2000; BARONE, 2007). Esse aniversário estimulou uma enxurrada de discursos sobre a metrópole, que se disseminavam pelas mais diversas mídias - livros, jornais, revistas, peças publicitárias, programas de rádio e televisão, obras e apresentações artísticas etc. A origem desses discursos era difusa, mas a autoridade que respaldava a representação hegemônica estava concentrada na legitimidade intelectual de engenheiros e arquitetos - que, por sua vez, expressavam-se no vocabulário do urbanismo, principal chave de interpretação da cidade naquele momento (LEME, 2001).
Entretanto, é preciso frisar que - embora o urbanismo fosse fundamental nas definições de São Paulo - os discursos mais eficazes nasciam da combinação da expertise específica no urbanismo com a experiência na gestão pública. Os agentes de maior destaque na produção do futuro de São Paulo ocupavam lugares privilegiados no campo político e potencializavam suas vozes com o apelo à sua legitimidade como urbanistas. Em outros termos: o urbanismo era reconhecido como a principal área do conhecimento com autoridade para determinar os destinos da cidade, mas sua autonomia frente ao campo político era bastante limitada.
De qualquer forma, a enxurrada dos 400 anos multiplicou as referências e favoreceu que outras linguagens se inscrevessem de modo eficaz nas representações da cidade. Nesse sentido, o urbanismo perdeu espaço nas disputas em torno do futuro da cidade e outros instrumentais começaram a redefinir a representação dominante, tanto pela adição de novos vocabulários quanto pelo distanciamento em relação à urbanística. Os jornais da cidade, sobretudo em datas comemorativas - como os aniversários da cidade -, são um bom exemplo de como essas transformações se difundiam. Se, na primeira metade do século XX, o discurso mais frequente era elogioso e respaldado nas autoridades do Estado e, por tabela, na do urbanismo; da década de 1950 em diante, as críticas ao gigantismo e as lamúrias relativas aos problemas urbanos se tornavam cada vez mais frequentes e, ao mesmo tempo, passavam a se sustentar em novas autoridades - tornando a representação da cidade e de seu futuro mais melancólica, mesmo nas ocasiões festivas (O ESTADO DE S. PAULO, 1914, 1934, 1939, 1954; FOLHA DA MANHÃ, 1939; FOLHA DA NOITE, 1934; FOLHA DE SÃO PAULO, 1964, 1969). Ainda assim, pelo menos no início da década de 1950, esses novos discursos - que inauguravam as novas autoridades - compravam a perspectiva otimista dominante e ajudavam em sua reprodução.
Essas mudanças na narrativa hegemônica começaram, como indicado acima, no próprio seio do urbanismo, com as representações otimistas do crescimento futuro da cidade sendo questionadas. A principal voz desafiante era de Luiz de Anhaia Mello que, naquele momento, era uma figura bastante respeitada nos debates urbanísticos. Anhaia Mello fora vereador e prefeito de São Paulo, professor da Escola Politécnica, fundador e primeiro diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, secretário de Viação e Obras Públicas do estado de São Paulo, além de ser um membro atuante da Sociedade Amigos da Cidade e um frequente articulista do Boletim do Instituto de Engenharia e da Revista de Engenharia - dois dos periódicos mais importantes para a área do urbanismo. Anhaia Mello, portanto, encarnava as autoridades de gestor público, de acadêmico e de arquiteto, além de ser o principal representante de um modelo alternativo de urbanismo, que desafiava a perspectiva hegemônica no planejamento urbano em São Paulo (BRESCIANI, 2010, 2014; LEME, 2001; FICHER, 2005; MEYER, 1991; CPDOC, 2001).
Na verdade, a condição de representante de pontos de vista alternativos e que desafiavam as perspectivas hegemônicas era o que fundamentava o lugar-social ocupado por Anhaia Mello2. Sua posição lhe permitia articular três perspectivas “dominante-dominadas” sobre a cidade de São Paulo, conferindo-lhes uma força inesperada. Como gestor público, Anhaia Mello frequentemente esteve na oposição - embora fosse uma oposição comportada, de caráter liberal. Como acadêmico, era um dos principais promotores de uma importante ruptura na Escola Politécnica da USP, que retirou a arquitetura e o urbanismo da alçada dos engenheiros - a partir da fundação da FAU, em 1948. Como arquiteto e urbanista era fundamentalmente um teórico, pois foram poucas as oportunidades que teve de aplicar seus princípios em larga escala. Portanto, ao encarnar as autoridades mencionadas, Anhaia Mello o fazia de uma forma peculiar que, como se verá adiante, produzia efeitos disruptivos nas representações hegemônicas da metrópole.
Foi justamente no final do ano de 1954, ano do quarto centenário e quando o vocabulário urbanístico foi submergido pela enxurrada de novas referências nas representações de São Paulo, que Anhaia Mello apresentou, da maneira mais explícita e eficaz em sua carreira, tanto um futuro alternativo para a metrópole quanto críticas firmes contra o estímulo ao crescimento da cidade. A São Paulo do futuro precisava começar a ser construída imediatamente, sendo o Estado o principal protagonista do processo. Seria preciso estabelecer um programa nacional de planejamento urbano, com destaque para as regiões de metrópoles, cuja tarefa mais urgente seria resolver o caso de São Paulo, a maior e, portanto, mais problemática cidade brasileira:
A limitação [populacional] deve ser forçada, pôr fatos exteriores de planejamento orgânico e criador. O ciclo de crescimento é reversivel, por meio de regionalismo e polinucleação. [...] As atuais cidade, tipo ‘cible’, ou alvo, mononucleadas, devem ser substituidas por cidades tipo cacho, ‘grappe’, polinucleadas, reunidas em federação” (ANHAIA MELLO, 1954, p. 35 e 47).
Essa federação de cidades em formato de “cacho” seria planejada conforme um conjunto de princípios caros aos autores como Patrick Geddes, Lewis Mumford e, especialmente, Ebenezer Howard:
Três são os conceitos básicos, criadores dessa ação: 1/ A cidade jardim; 2/ A idea de Radburn; 3/ A “neighborhood unit”; ou, em outras palavras: 1/ a cinta verde para a limitação da extensão da cidade, e abastecimento de “fresh food”; 2/ a superquadra, que permite a convivência pacifica com o automóvel; e 3/ a unidade de vizinhança, que permite a rearticulação social e comunitária nas urbes (ANHAIA MELLO, 1954, p. 38).
Em contraste com o urbanismo dominante em São Paulo, a cidade do futuro apresentada por Anhaia Mello promoveria uma transformação radical da sociedade, e não só um conjunto restrito de intervenções urbanísticas. As relações humanas também estavam em jogo. A cidade, nesse sentido, tinha um papel determinante, no sentido forte do termo, na definição de como as pessoas se relacionavam entre si:
As relações primárias [de família, de vizinhança, de comunidade] foram substituídas pelas secundárias [superficiais, burocráticas, transitórias, rápidas], o que exerce uma influência desintegradora na ordem material e moral, responsável pelo aumento de vicios e crimes nas metropoles (ANHAIA MELLO, 1954, p. 45).
Por outro lado, nas cidades-jardim: “Os contatos são faceis e a amizade é cultivada. A atitude de um pedestre para com outro, é sempre cordial e amiga; muito diversa da do motorista apressado e... malcriado” (ANHAIA MELLO, 1954, p. 46).
O contraste que Anhaia Mello construía entre os dois tipos de cidade não deixava espaço para zonas cinzentas. A proposta do urbanista era de um maniqueísmo claro, onde a metrópole era a encarnação do mal, enquanto a pequena cidade, a “eópolis”, era a representação do bem3. O maniqueísmo de Anhaia Mello não se reduzia somente à caracterização das cidades e, também, separava aqueles que mereciam ser reconhecidos como urbanistas (e que concordam com seu ponto de vista) daqueles que não:
Os urbanistas de todo o mundo são hoje unanimes em afirmar que o sistema de distribuição das populações sôbre o solo, consequência da Revolução Industrial e Demográfica, e característico da época paleotécnica, hoje ainda prevalecente, está errado e é desumano e anti-social (ANHAIA MELLO, 1954, p.1, grifo do autor).
Portanto, Anhaia Mello recusava a autoridade de urbanista a qualquer um que defendesse ou propusesse modelos de cidade em que o crescimento fosse um fator valorizado (como Moses ou Prestes Maia, por exemplo). No caso brasileiro, conforme Anhaia Mello, a população estaria distribuída de maneira completamente irregular pelo território nacional. Haveria “imensas áreas abandonadas”, como as regiões Norte e Centro-Oeste do país. As regiões rurais constituiriam um território de tipo hostil, onde “o homem [estaria] disperso e abandonado, perdido nas distâncias imensas, sem um mínimo de equipamento social capáz de integra-lo na cultura”. Nos povoados e vilas, que estariam “congelados material e socialmente”, não haveria infraestrutura suficiente. Nas palavras do urbanista, nessas localidades “não [havia] transportes nem comunicações; nem assistência nem higiene, nem orientação educacional; fomento e assistência técnica, mecanização ou crédito”. Eram lugares “crescendo ou estagnando ao léo [...], na poeira ou na lama dos cruzamentos de estradas ou simples caminhos, confiando apenas na Providência Divina, que tarda mas não falta” (ANHAIA MELLO, 1954, p.2). E, finalmente, havia a situação das cidades, que:
maiores ou menores - polis, metropolis ou megalopolis, [estavam] crescendo sem plano, congelando nos centros, e se enquistando de “ghettos” e favelas nas periferias, e sem equipamento social adequado e serviços públicos ou de utilidade pública a altura das necessidades; teatro de uma exploração imobiliária criminosa e desumana (ANHAIA MELLO, 1954, p.2., grifo do autor).
Para concluir, Anhaia Mello fechava o trecho da seguinte maneira: “O quadro é negro, mas real” (ANHAIA MELLO, 1954, p.2, grifo do autor).
Embora, em 1954, Anhaia Mello restringisse o universo dos urbanistas somente àqueles que compartilhavam consigo a condenação do crescimento das cidades, no passado, ele convocara uma série de outros profissionais a colaborarem com o planejamento urbano:
Mas para transformar em realidade os beneficios que a technica da engenharia pode trazer para a vida em commum é necessaria e imprescindivel a collaboração e cooperação do jurista, do legislador, do economista, do sociologo, dos governos que dão força ás iniciativas e adoptam dispositivos convenientes á sua efficacia, do cidadão que se submette de bom grado ao sacrificio de algumas das proprias commodidades e proveitos pelo bem geral (ANHAIA MELLO, 1928, p. 238).
Esse “chamado” foi atendido por geógrafos, como Aroldo de Azevedo (1958), historiadores, como Caio Prado Jr. (1953), sociólogos, como Florestan Fernandes (2008 [1954; 1959]), entre outros. As datas, contudo, indicam que as respostas foram tardias - e, na verdade, vieram por outros motivos que não necessariamente se reduziam ao chamado de Anhaia Mello. Os novos discursos acabaram forçando uma transformação importante nas representações da cidade - na qual tantos as críticas que Anhaia Mello fazia quanto aquelas que ele recebia foram incorporadas pelas novas perspectivas. Florestan Fernandes, que, na década de 1950, vivia uma ascensão meteórica no campo intelectual paulistano (MICELI, 2001; GARCIA, 2002; PONTES, 1998; PEIXOTO, 2000; ARRUDA, 2001), produziu os textos que mais evidentemente revelam as transformações em curso.
A sociologia urbana não foi um dos temas mais estudados por Florestan Fernandes. Suas pesquisas de formação - mestrado e doutorado - foram sobre os tupinambás (GARCIA, 2002). Em seguida, patrocinado pela Unesco e pela Revista Anhembi, o sociólogo - em parceria com seu amigo e ex-professor, Roger Bastide - realizou uma investigação a respeito da situação das populações negras no Brasil (PEIXOTO, 2000). Daí em diante, seu trabalho se voltou, em primeiro lugar, para o reexame crítico das antigas e a produção de uma nova interpretação do país, sustentada por diversas monografias que ele e seus alunos estavam escrevendo (GARCIA, 2002; MICELI, 2001; 2012). Ainda assim, em alguns momentos pontuais, Fernandes dedicou sua atenção à cidade de São Paulo. Para os interesses deste artigo, duas dessas situações - que não são as únicas - merecem destaque: sua participação no XXXI Congresso de Americanistas, em 1954 - que aconteceu em São Paulo como parte das celebrações dos 400 anos da cidade - e um artigo que publicou na edição especial de 30 anos do Diário de São Paulo, em 30 de abril de 1959 (FERNANDES, 2008 [1954; 1959]). Em ambas as ocasiões, o sociólogo discutiu a situação presente da metrópole, escreveu sobre o seu passado e apresentou reflexões sobre seu futuro. A comparação entre esses textos é especialmente relevante porque - embora haja apenas 5 anos separando um do outro - as perspectivas do sociólogo sobre os destinos de São Paulo são significativamente diferentes em cada um deles. Em 1954, Fernandes se deixava contaminar pelo otimismo hegemônico nas representações do futuro da cidade, mas, em 1959, assumia um ponto de vista bastante pessimista - ainda que depositasse alguma esperança no futuro, caso houvesse investimentos na educação do povo brasileiro.
O pessimismo de Florestan Fernandes é diferente do de Anhaia Mello, e é constitutivo das representações do futuro de São Paulo que se tornaram hegemônicas na segunda metade do século XX. Talvez seu papel não tenha sido tão decisivo para consolidar, no campo intelectual, a imagem de uma cidade sem possibilidade de salvação, como foram os estudos de sociólogos da década de 1970 que se dedicaram especificamente à sociologia urbana - por exemplo, Lúcio Kowarick. Também não pode ser dito que Fernandes seja um pioneiro nas pesquisas sobre o tema, afinal, pelo menos desde os trabalhos de Donald Pierson - que chegou ao Brasil e à Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo na década de 1930 -, havia sociólogos investigando a metrópole. Contudo, os trabalhos de Pierson - independentemente de sua importância para a sociologia urbana ou para os conhecimentos sobre São Paulo - não alteraram a narrativa dominante que organizava o sentido da história da metrópole: uma epopéia de final glorioso. Da mesma forma, as pesquisas de Lúcio Kowarick e demais sociólogos de sua geração - também de inegável importância para o aprofundamento das reflexões sobre São Paulo -, do ponto de vista da produção do futuro da cidade, apenas reforçaram um destino que já estava dado: um drama de final trágico.
O que justifica o destaque a Fernandes é a combinação e a coincidência entre as transformações de suas propriedades sociológicas e as modificações de sua perspectiva sobre a cidade - além do momento específico em que essas mudanças ocorriam: a segunda metade da década de 1950. Justamente quando se instaura uma crise no seio do urbanismo, representada pelo acirramento da polêmica entre as perspectivas defendidas por Prestes Maia e Anhaia Mello, um terceiro ponto de vista emerge, distanciando-se dos dois primeiros. Ao mesmo tempo e de modo complementar, as ciências humanas - institucionalmente amparadas nas universidades, com destaque para a USP - começam a esboçar uma forma própria de interpretar a realidade, relativamente autônoma das demais. Neste contexto, sociólogos, geógrafos, historiadores e outros passaram a refletir sobre a cidade de São Paulo a partir de novos critérios e de novos instrumentais. O terceiro ponto de vista em questão tem exatamente no Florestan Fernandes de 1959 sua manifestação típica-ideal - combinando as especificidades da autonomia em processo de consolidação com a autoridade que a posição de liderança de uma área do saber em ascensão oferecia.
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No seu trabalho apresentado no XXXI Congresso Internacional de Americanistas, - realizado em São Paulo, em 1954, também parte das comemorações do IV Centenário -, Fernandes descrevia a metrópole como uma cidade grande e complexa, com um papel decisivo para a economia nacional e uma das aglomerações mais cosmopolitas da América Latina. Depois dessa descrição, o sociólogo, com uma ligeira ironia, arremedava:
Os paulistas se envaidecem com tudo isso, apreciando discretamente as avaliações do gênero: “São Paulo é a cidade que mais cresce no mundo” ou “São Paulo é o maior centro industrial da América Latina”, e outras tantas que tais. O passado possui pouca significação. O que importa é o presente e, acima de tudo, o futuro (FERNANDES, 2008 [1954], p. 187).
A condição de cidade grande era, conforme Florestan, um desenvolvimento recente. Apesar de estar completando 400 anos, seus primeiros 330 foram os de uma cidade pequena e pacata. Apenas a partir do terceiro quartel do século XIX, a cidade acelerara seu ritmo de crescimento. E, na avaliação do sociólogo, teriam sido nos últimos 40 ou 50 anos que o crescimento “explodiu” - o que gerava uma série de problemas a serem considerados:
Como toda mudança rápida acarreta desorganização social, poucas são as esferas da vida social que se mantêm equilibradas ou integradas. Os serviços públicos não acompanham o crescimento da cidade, que se espraiou mais do que seria necessário ou prudente, segundo afirmam alguns urbanistas; há crises de habitações, apesar do ritmo acelerado das construções; o sistema de abastecimento interno, de gêneros, de víveres e de outras utilidades, é defeituoso e encarece onerosamente o nível de vida; o sistema escolar não consegue corresponder ao aumento da população e à diferenciação da procura; em todos os setores, é frequente o recurso à mão-de-obra semiespecializada como se fosse especializada, a falta de planejamento racional, o desperdício e suas consequências econômicas; nas relações humanas, nas mais diversas circunstâncias - dentro dos lares ou das fábricas, nas escolas ou nos escritórios - o entrechoque de expectativas de comportamento contraditórias e o conflito de concepções antagônicas do mundo criam tensões emocionais e insatisfações morais; os laços de solidariedade são crescentemente substituídos por considerações racionais de interesse e de fins; a instabilidade econômica e a disparidade entre os níveis dos salários e os do custo das utilidades fomentam comportamentos egoísticos, até pouco tempo desconhecidos ou restritos a certas esferas das relações humanas; a aspiração ao êxito financeiro e à ascensão social, alimentada pelo enriquecimento fácil de muitos e pelas oportunidades que se abrem aos indivíduos empreendedores, prevalece sobre as demais aspirações, imiscuindo-se tanto na concepção do mundo dos homens de ação, [quanto] na dos educadores, dos médicos e dos intelectuais; enfim, elabora-se um novo clima moral, em que “cada um é por si e num estado de tensão em face de todos os outros”, como já notou Tönnies, com referência aos mesmos fenômenos na formação da sociedade burguesa na Europa. É evidente que o progresso não beneficia a todos igualmente e que o ônus da nova ordem social cai, pesadamente, sobre os que dependem do valor pecuniário da própria força de trabalho. (FERNANDES, 2008 [1954], p. 187-188).
Essa avaliação de Florestan Fernandes, obviamente, usa o instrumental clássico da sociologia - desde Durkheim e suas análises sobre anomia social, passando por Weber e o desencantamento do mundo provocado pela burocratização, e chegando em Marx com sua avaliação das dificuldades que a classe trabalhadora têm para enfrentar o desenvolvimento do capitalismo, sem contar Tönnies, explicitamente citado -, mas também se vale das críticas que o urbanismo anti-metropolitano desenvolvia. A referência a “alguns urbanistas”, no caso, diz respeito àqueles que se alinhavam a forma de pensar de Anhaia Mello - que justamente se preocupavam com os problemas derivados do crescimento “exagerado” da cidade. De fato, os problemas diagnosticados por ambos são muito parecidos, embora cada tradição disciplinar os desdobrasse de formas específicas.
Ainda assim, no ano do IV Centenário de São Paulo, o sociólogo ainda via com bons olhos o desenvolvimento próximo da metrópole. Apesar dos inúmeros problemas que a cidade apresentava, o futuro seria promissor:
Tendo-se em vista as condições em que se processaram a desagregação da antiga ordem social escravocrata e senhorial e a formação incipiente da nova ordem de classes sociais, a urbanização representa e assegura a evolução para situações sociais de vida historicamente desejáveis no Brasil. Baste-nos um exemplo: com ela é que se inicia o aparecimento de condições sociais que comportam o livre exercício do voto, a organização de partidos de massas, a ascensão política das classes médias e das camadas populares, o advento de correntes e instituições políticas compatíveis com a instauração de um regime democrático. (FERNANDES, 2008 [1954], p. 191)
A entrada de novas vozes nos debates sobre São Paulo - como a de Fernandes - tanto reproduzia quanto desorganizava as representações hegemônicas. O sociólogo, no caso, deixava-se contaminar pelo otimismo reinante (ARRUDA, 2001), mas, ao mesmo tempo, fundava suas esperanças em elementos bem diferentes daqueles que sustentavam o bom futuro de urbanistas como Prestes Maia e Robert Moses. Não seriam intervenções urbanísticas, nem o crescimento por si só o que construiria um futuro promissor para São Paulo, mas sim transformações sociais, politicamente orientadas para a democracia.
Cinco anos mais tarde, “outro” Florestan Fernandes, então consolidado como o líder do que se convencionou chamar de “Escola Sociológica Paulista” (GARCIA, 2002), voltou a refletir sobre a cidade de São Paulo. As críticas à ineficiência do urbanismo aplicado à metrópole continuava forte, em parte aproveitando as análises do texto anterior e, também, recuperando as avaliações dos urbanistas críticos à expansão urbana:
O lado dramático da transformação do cenário ecológico está na incapacidade de o homem promover alterações igualmente rápidas e profundas em seu sistema adaptativo. [...] O busílis, aqui, está na relação entre o substrato material da vida social e o crescimento progressivo dos serviços públicos, proporcionados por instituições oficiais ou particulares. O homem, saído da antiga sociedade provinciana, era destituído de padrões que regulassem suas escolhas e exigências no novo mundo em formação. Os espaços ocupados o foram nas condições mais precárias. Com frequência, sem serviços regulares de abastecimento de água potável, de esgotos, de assistência médica, de ensino, de calçamento, de iluminação pública etc. Nas áreas onde se processou o crescimento vertical propriamente dito, nada se fez para reajustar as vias de comunicação, os serviços de águas ou de esgotos, de calefação etc., às estruturas dos prédios grandes e à maior concentração demográfica. No conjunto, o homem conquistou o espaço, mas não o domesticou no sentido urbano. A jornada para o trabalho ou deste para o lar, por exemplo, está cheia de aventuras, de inconvenientes e de provações, produzindo um encurtamento indireto do período útil da vida humana. Deste ângulo, as perspectivas são sombrias, pois a menor calamidade pública exporia a cidade e seus habitantes a crises terríveis, dadas as lacunas do abastecimento de água e de víveres, das formas de proteção da saúde e dos meios de preservação da ordem (FERNANDES, 2008 [1959], p. 270-271).
Neste trecho, além de reforçar sua descrença na capacidade administrativa do poder público e de seus urbanistas, o sociólogo revelava também uma nova perspectiva sobre o futuro da cidade: o que estava por vir não era mais necessariamente bom, na verdade, o futuro seria sombrio. Não havia mais qualquer otimismo nas expectativas de Florestan Fernandes. Em 1954, o sociólogo, com distanciamento crítico, tinha expectativas positivas sobre o desenvolvimento de São Paulo. No entanto, em 1959, era a desesperança que dava o tom do texto: “Nesse terreno, no qual está em jogo a segurança e o conforto dos moradores da cidade tanto quanto a continuidade do progresso dela no futuro, falharam por diferentes motivos o empreendedorismo particular e o empreendedorismo oficial” (FERNANDES, 2008 [1959], p. 271).
Finalmente, e usando um vocabulário que ecoava referências de Anhaia Mello (o urbanista, baseado em Geddes, previa que as grandes cidades terminavam seu ciclo existencial como “necropolis” - cidades mortas), Florestan Fernandes anunciava o futuro desolador que poderia ser o de São Paulo:
Como acontece em outros países subdesenvolvidos e de economia tropical, a ausência de equilíbrio nas relações campo-cidade contribui para dar ao crescimento econômico de São Paulo em caráter tumultuoso, desordenado e descontínuo em pontos vitais. Por isso, o perigo de uma “retração” permanente existe e a cidade corre um risco que nos deve preocupar fundamentalmente. Ela poderá converter-se em uma cidade morta gigantesca (FERNANDES, 2008 [1959], p. 275).
Esta perspectiva passou a se generalizar a partir do final dos anos 1950 e se tornou hegemônica ao longo das décadas seguintes. Florestan Fernandes não é o formulador original deste ponto de vista nem necessariamente o principal responsável pela sua difusão. Ainda assim, o sociólogo encarnou de maneira típico-ideal o que estava se tornando a representação dominante do futuro de São Paulo, justamente quando a produção dos destinos da cidade começou a escapar das mãos do campo político e do discurso dos urbanistas.
A representação dominante passou a ser formulada - do ponto de vista simbólico - preferencialmente por intelectuais, artistas, jornalistas e outros agentes do mundo cultural que, naquele momento, distanciavam-se das posições dirigentes do Estado. Nesse sentido, Fernandes ocupou uma posição estratégica na condução do controle sobre a produção simbólica do que era e do que seria a metrópole paulistana. Em um momento de reformulação da divisão do trabalho de dominação - no qual o Estado (no seu aspecto governamental) e o campo político perdiam parte de seu controle sobre as esferas culturais, científicas e intelectuais (MICELI, 2001) -, a condição de maior sociólogo brasileiro (ou, ao menos, de forte concorrente ao título), ao ser mobilizada na reflexão sobre os destinos de São Paulo, favoreceu a tomada, pelo campo intelectual, da responsabilidade pela produção das representações dominantes sobre a cidade.
O movimento que levou à substituição da hegemonia de uma representação otimista do futuro de São Paulo por uma pessimista é um processo complexo, mas que pode ser esquematicamente desdobrado em quatro aspectos fundamentais.
Em primeiro lugar, houve, no seio do urbanismo paulistano - área fundamental para a produção do futuro de São Paulo até meados do século XX -, o acirramento da disputa em torno do modelo de cidade que deveria ser adotado por São Paulo. De um lado, o ramo dominante do urbanismo local apostava na continuidade da metropolização e apresentava esse desenvolvimento como um destino épico e glorioso para a cidade. De outro, o ramo concorrente trazia para o primeiro plano uma série de críticas ao gigantismo de São Paulo, destacava os problemas urbanos causados pelo crescimento e, ao mesmo tempo, oferecia um destino alternativo para a cidade - no qual haveria redenção. Nesse sentido, a representação hegemônica - alimentada pelo urbanismo dominante - passou a ser questionada desde “dentro”. Quem fazia a crítica ao destino glorioso de São Paulo compartilhava da mesma autoridade que os urbanistas formuladores da perspectiva dominante possuíam: uma autoridade fundada sobretudo no campo político.
Em segundo lugar, as comemorações dos 400 anos de São Paulo atraíram muitas e diversas atenções para o tema da metrópole. A enxurrada de discursos que o aniversário promoveu fez com que o vocabulário urbanístico, até então central para a produção do futuro da cidade, perdesse espaço e passasse a disputar com os instrumentais da geografia, da sociologia e de outras especialidades. Portanto, por um lado, havia o enfraquecimento das imagens produzidas pelo urbanismo por conta das cisões internas e, por outro lado, a emergência de discursos concorrentes de diferentes origens e fundados em diversos pontos de vista.
Em terceiro lugar, o crescimento da Universidade de São Paulo, sobretudo da Faculdade de Ciências e Letras, e, mais especificamente, a consolidação de alguns de seus professores como intelectuais de envergadura, somado a ampliação das vozes desses intelectuais através dos jornais e das revistas de cultura (como a Anhembi e a Brasiliense) (JACKSON, 2004; MICELI, 2001) permitiu que aquela enxurrada de discursos sobre a cidade fosse desviada em favor de uma nova autoridade, proveniente das ciências humanas.
Em quarto lugar, finalmente, a comparação entre as relações que os urbanistas e os intelectuais das humanidades tinham com os governos em São Paulo, fossem municipais, fossem estaduais, também ajuda a entender o tipo de pessimismo que se tornou hegemônico. Os urbanistas de destaque faziam (ou fizeram) parte do Estado em suas instâncias decisórias mais importantes - algumas vezes ocupando cargos executivos que lhes permitiam grande capacidade de intervenção. Os intelectuais das humanidades, por sua vez, estavam apartados dessas posições. A crença na ação do Estado como solução possível para os problemas urbanos - e que fundamentava em parte o otimismo hegemônico - era mais frequente entre aqueles que estavam mais próximos das esferas de decisão do Estado. Ao passo que, os mais distantes também eram mais céticos em relação a essa capacidade de solução - afinal, não participavam de suas formulações. Portanto, o que se observa é um descolamento entre, de um lado, o planejamento urbano e sua aplicação pelo poder público, e, de outro, o poder de representar o futuro da cidade.
Antes dos 400 anos, as representações hegemônicas do futuro de São Paulo caminhavam juntas com o planejamento urbano da metrópole. Passado o aniversário, as representações se tornaram prerrogativa de um grupo que não tinha nem acesso aos instrumentos de intervenção e, ao mesmo tempo, os urbanistas perderam a capacidade de produzir, no sentido pleno, o futuro de São Paulo. Na nova divisão do trabalho de dominação, as humanidades passaram a exercer um importante papel na definição das representações relacionadas à sociedade brasileira - embora não participassem das decisões políticas sobre as intervenções de grande impacto. Ao passo que o campo político (urbanistas em parte incluídos) - sem deixar de ser fundamental para a produção da cidade - precisou restringir sua atuação a outros aspectos dessa produção.
A representação do futuro de São Paulo, a partir do final da década de 1950, tornou-se esgarçada. A expectativa dominante passou a prever uma cidade gigantesca e problemática, cada vez mais definida pelo caos e pela impossibilidade de se tornar um bom lugar seus habitantes - um ponto de vista produzido e sustentado pelo campo cultural, cuja autoridade emanava fundamentalmente da universidade e das humanidades. Por outro lado, a capacidade de mobilização dos recursos do Estado para intervir na cidade continuava monopólio praticamente exclusivo do campo político que, por sua vez - e baseado ainda nos discursos dos urbanistas - investia justamente no crescimento de São Paulo.