TRADUÇÃO
À memória de Carl E. Schorske (1915-2015)
A singularidade do cronônimo fin de siècle está vinculada a precocidade de sua autodefinição. Corriqueiramente, a maioria das expressões que qualificam períodos são retrospectivas, basta pensarmos na “Belle époque” ou nos muito célebres “Trinta Gloriosos”2. Os contemporâneos denunciam em vão para si mesmos o artifício que consiste em identificar a evolução de um século às fases de desenvolvimento, de apogeu ou de declínio de um corpo orgânico que atravessa as diversas fases da vida. Quanto mais nos aproximamos de decênios fatídicos, mais a temática se afirma e aqueles que tentam contestá-la ou propor outra visão do tempo histórico devem recorrer a estratégias retóricas defensivas. Essa maneira terminológica tenderia então a se esgotar junto com o momento que a viu nascer. Mas é imperativo constatar que ela permanece vigorosa e abundantemente solicitada como etiqueta para expressiva quantidade de trabalhos contemporâneos, que a tomam como espécie de evidência em si mesma, apesar de suas fragilidades originais. É no desvendamento desse paradoxo que nós nos deteremos. Para além do caso singular, ele pode fornecer ensinamentos sobre o mau emprego de modos de periodização que introduzem frequentemente um viés de enquadramento à compreensão de um momento por meio das problemáticas parasitas que os próprios cronônimos inconscientemente induzem quando são utilizados3.
AVATARES DO SÉCULO4
Para compreender a aparição, o desaparecimento, depois a ressurreição do fin de siècle, é preciso remontar muito longe no tempo e não se contentar em examinar, como poderíamos crer, unicamente os decênios finais do século XIX, seu período de eclosão e de consagração posterior pelos trabalhos eruditos sobre os quais voltaremos mais a frente. É necessário partir do golpe de força simbólico fundador de Voltaire, que põe o “século” como unidade cronológica pertinente. Em 1751, o autor de Candido retira à força da palavra século suas conotações religiosas pejorativas e, na verdade, com o Século de Luís XIV (Le siècle de Louis XIV) cria o primeiro cronônimo erigido em norma de apreciação para construir representações de longa duração de períodos históricos (as decupagens precedentes canonizadas como “Idade Média”, “Antiguidade” abarcavam vários “séculos”). É a abertura desse livro sobre o século XVII apreendido globalmente que mudou o status de uma palavra banal ao mesmo tempo que elevava o status de um grande rei:
Mas qualquer um que pense, e, o que é mais raro, qualquer um que tenha bom gosto, conta somente apenas quatro séculos na história do mundo. Essas quatro idades felizes são aquelas onde as artes se aperfeiçoaram e que, servindo de época para a grandeza do espírito humano são exemplo para a posteridade.
O primeiro desses séculos, ao qual a verdadeira glória está vinculada, é aquele de Felipe e de Alexandre, ou aquele de Péricles, de Demóstenes, de Aristóteles, de Platão, de Apeles, de Fídias, de Praxiteles; e essa honra foi encerrada nos limites da Grécia; o resto da terra conhecido então era apenas barbárie.
A segunda idade é aquela de César e de Augusto, designada ainda pelos nomes de Lucrécia, de Cícero, de Tito-Lívio, de Virgílio, de Horário, de Ovídio, de Varrão, de Vitrúvio.
O terceiro é aquele que seguiu a tomada de Constantinopla por Maomé II. O leitor pode se lembrar que viu-se então na Itália uma família de simples cidadãos fazer o que deveriam fazer os reis da Europa. Os Médicis chamaram em Florença os sábios que os turcos expulsavam da Grécia; era o tempo de glória da Itália. As belas artes ali tinham já ganhado vida nova; os Italianos as honravam pelo nome de virtù, de maneira semelhante a como os primeiros Gregos a haviam caracterizado o nome da sabedoria. Tudo tendia a perfeição. [...]
O quarto século é aquele que chamamos o século de Luís XIV, e é talvez aquele dos quatro que mais se aproxima da perfeição. Enriquecido pelas descobertas dos três outros, ele fez mais em certos gêneros que os três anteriores juntos. (VOLTAIRE, 2000, p. 616-617)
A noção de século como época específica, rica de caracteres originais, nasce com essa periodização da civilização por Voltaire. Ela implica, como o demonstra esse começo de “Século de Luís XIV”, a alternância de tempos raros e gloriosos com longos tempos obscuros e decadentes dominantes na história dos homens. Em reação, os partidários das Luzes (e longinquamente até Michelet) vão se colocar em oposição a visão estática volteriana, construindo uma temática baseada em um avanço contínuo no seu próprio século (século das Luzes) rompendo com a descontinuidade fatalista entre séculos gloriosos e séculos de escuridão. Embora a problemática instalada no decênio final do século XVIII, essa nova dinâmica de séculos encontra sua expressão sintética no célebre ensaio de Condorcet, Esboço de um quadro histórico do progresso do espírito humano (1794) onde ele divide a história em “épocas” no número de dez, das quais uma desenha uma espécie de futuro; cada uma dá sua pequena contribuição para o progresso global.
Em afronta, os adversários da Revolução e, mais generalizadamente, os das Luzes não recorreram da mesma maneira a temática lógica do fin de siècle que retomava a descontinuidade volteriana. Eles preferiram convocar, nós o sabemos, uma retórica renovada da visão religiosa da história onde o orgulho humano, herança do pecado original, quer seja aquele do grande homem (Napoleão em primeiro lugar) ou quer seja de homens revoltados das massas revolucionárias é punido pela lei divina através de uma série de catástrofes que obrigam a França a retornar a antiga ordem: terror, guerra civil, invasão, ocupação, restauração. Mas como essa restauração durou longo tempo ao menos na França, desde os anos 1820 e mais ainda depois de 1830, para os liberais, para os saint-simoneanos como para os republicanos, a concepção de progresso de Condorcet relançou uma identificação do novo século com um movimento ascendente. Este movimento passa de mutações técnicas visíveis na vida cotidiana a domínios mais vastos do que as letras, as artes ou as ciências, caros aos enciclopedistas5. No meio do século XIX, essa visão positiva do novo século, a despeito das críticas que vinham dos meios conservadores ou católicos intransigentes ou de minorias intelectuais decadentes e irônicas, adquire pouco a pouco a força de um lugar comum, em todo caso ao menos entre a parte mais visível dos publicistas e no seio do público burguês que os lia, ao ponto de suscitar o aborrecimento e o desprezo dos intelectuais e artistas menos conformistas, Baudelaire e Flaubert em primeiro lugar6.
Esse elogio do tempo presente é regularmente reativado quando da ocasião de balanços realizados pelas exposições universais sempre no mesmo espírito de comparação no tempo e no espaço em benefício da França. O governo imperial, em 1855 como em 1867, convocando o mundo inteiro a Paris, pode se gabar de sucessos parisienses em matéria de urbanismo, de progressos industriais e técnicas que facilitam o quotidiano de todos e de um florescimento artístico internacional ainda não alcançado em outras partes.
Apesar de tudo, o fim dos anos 1860 começa já uma virada como indicam certas passagens da introdução ao relatório geral sobre a Exposição universal de 1867. O comissário geral, Michel Chevalier, ali percebe os sinais inquietantes que não podem estar de acordo com a temática do progresso inelutável e sobretudo da hegemonia indefinida da Europa sobre o resto do mundo:
A Europa que se considera como a representação mais elevada do gênero humano, a Europa que, na hora atual, possui as técnicas úteis e as belas-artes, atributos distintivos e signos característicos da civilização, a Europa cujas, crianças reunidas nos sítios da Exposição, parecem prontas a se abraçar mutuamente, oferece bem mais o aspecto de uma horda do que aquele de um grupo ou comunidade de homens industriosos e esclarecidos, honrando a Deus, amando seus semelhantes, orgulhosos de facilitar o progresso universal e individual pelo desenvolvimento da liberdade geral e das liberdades particulares. Quanto mais longe remontamos na história, não encontraremos jamais uma coleção parecida de homens armados, uma reunião de tantos instrumentos de guerra7. (CHEVALIER, 1867, p.DXII)
Essas apreciações pessimistas impactam tanto mais, pois concluem o volume. Elas contrastam com a tonalidade geral positiva do relatório e retomam explicitamente os conflitos recentes que ensanguentaram a Europa, em particular a vitória da Prússia sobre a Áustria em Sadová em 1866. Elas desembocam no anúncio possível de um declínio da civilização incarnada pela Europa e de maneira superlativa pela França (a derrota da expedição ao México no mesmo ano em que são escritas essas linhas é um dos primeiros indícios). Esse prognóstico é ainda mais inquietante por emanar de um importante responsável (de cargo elevado) que depois de sua juventude saint-simoneana sempre teve fé no progresso ininterrupto rompendo com as maldições dos séculos precedentes.
Na verdade, este tema de um fim de século possivelmente inquietante foi esboçado por polêmicos marginais, ainda que seus lugares comuns fossem ressucitados nas décadas seguintes. Em 1852, por exemplo, podíamos ler na pluma de um autor conservador como Eugène de Montlaur no De l’Italie et de l’Espagne:
O começo do século XIX foi cheio de vivacidade e grandeza.O século XVIII foi avariado e perdido numa noite profunda. Ele ali teve, no caminho de seu encerramento, como que um naufrágio universal; e sobre as ruínas amontoadas das leis, dos costumes, das crenças, como uma geleia geral de povos do continente. Combatíamos aqui em nome da ordem social atacada até suas bases; ali, em nome de confusas teorias que uma demagogia furiosa, excitada por insaciáveis ambições, explicadas em lugares públicos com tochas de incendiários e a guilhotina. Esse fim de século lembra a esses fantásticos e grandiosos quadros do pintor inglês Martins, como eles o fim de século da uma vertigem e faz duvidar o pensador que crê na marcha progressiva da humanidade. (Montlaur, 1852, p. II)
Esse esquema binário que queria que os começos e os fins de século obedecessem às orientações opostas está presente como representação muito antes que dele seja feito uso intensivo a partir dos anos 1880. Em 1855, Eugène Huzar toma o contrapé da visão dominante anunciando não o progresso, mas “o fim do mundo pela ciência”8: o progresso técnico a medida que se acelera causará catástrofes e problemas ambientais mais e mais profundos. Essas sombras no quadro do século triunfante vão se estender ainda um pouco mais nos decênios seguintes.
TRINTA ANOS ANTES
O fin de siècle como representação inquietante começa precocemente na França, trinta anos antes do fim oficial do século. As temáticas que são evocadas à saciedade no curso dos anos 1890 surgem na alvorada dos anos 1880, na verdade já nos anos 1870 quando da ocasião das amargas reflexões sobre a derrota Alemã9, já se nota sua presença. Essa precocidade está ligada a coincidência de três fenômenos independentes que vão produzir efeitos cumulativos para o apogeu do tema da decadência ou da degenerescência associada a ideia do fin de siècle. O primeiro é a incerteza política que dura de 1871 a 1878 e a hostilidade de uma fração importante dos intelectuais ligados ao Império ou a Ordem moral face a emergência do novo regime. O mais célebre é evidentemente Taine, principal autoridade do campo intelectual com Renan até sua morte em 189310. Nas suas Notes sur l’Anglaterre (1872) como nas Les Origines de la France contemporaine (1875 - 1893) ele desenvolve a temática do declínio nacional por um jogo de espelhos com a Inglaterra, preservada de revoluções. Ele estabelece um paralelo entre o fim do século XVIII, época revolucionária, e o momento em que ele escreve o qual ele assemelha ao retorno dos “jacobinos”, supostos ancestrais dos republicanos radicais alçados ao poder depois de 1879. Esse livro conhece um amplo sucesso entre os letrados e no exterior (por exemplo, Nietzsche o cita) e prepara os espíritos para as temáticas fin de siècle e “decadentes”11.
O segundo fator incitando a um humor do “declínio” é o clima econômico geral de depressão após a quebra das bolsas de 1882, as dificuldades agrícolas e a inquietude ligada a fraqueza demográfica francesa em comparação ao desenvolvimento da população alemã e dos países “anglo-saxões” atestadas pelo desenvolvimento de suas colônias de povoamento. O primeiro aspecto concerne a toda Europa, mas se traduz pelo recuo econômico relativo da posição francesa face à Alemanha ou a Inglaterra e logo às potências não-europeias como os Estados Unidos. O discurso neo-saint-simoneano ou do livre comércio que havia dominado sob o Segundo Império cede em face de um discurso mais defensivo, protecionista, ganhando penetração inclusive nos meios anteriormente liberais. O projeto colonial da nova República de Jules Ferry se serve de um contra-argumento: já que os mercados europeus escapam da França é necessário construir novos mercados em “espaços virgens” e protegidos da África e da Ásia.
O terceiro motivo central e mais importante na temática fin de siècle é aquele de uma crise moral, fundamento secreto dos declínios materiais precedentes: o pessimismo, a exacerbação das paixões e as excitações nervosas seriam produzidos pela civilização moderna. Essa crise toca em primeiro lugar as elites urbanas das grandes metrópoles e particularmente os meios artísticos e literários mais expostos a essa modernidade doentia de luta concorrencial de todos contra todos que difunde a vulgarização do tema darwiniano da luta pela vida. Esse esquema interpretativo é, ele também, precoce como indica esse extrato de 1882 sob a pluma de um crítico de teatro pouco inclinado habitualmente a considerações filosóficas:
Ultimamente, alguém chamava a minha atenção que nossos artistas, neste momento tão organisados e graves, quando observam uma sociedade moderna, veem apenas loucos, exaltados, em resumo, artistas. É o mundo de pernas para o ar. Somos tentados a dizê-lo. Onde estão, então, vossos doentes? Mostrai-nos, seus degenerados! Neste fim de século que, com algumas gotas de morfina, poderia ganhar ares de sonâmbulo, a única e maior neurose que existe é a ganância! (MORTIER, 1882, p. X)
No mesmo ano, um romancista popular Dubut de Laforest cita os mesmos lugares comuns sobre as neuroses contemporâneas no prefácio de um romance de título chamativo Tête à l’enver, situado na “boa sociedade”:
E agora que todo mundo diz que os cérebros se degeneram, que a neurose nos persegue e que a humanidade chega a seu fim, não seria mais que uma parca honra a este romancezinho de ter questionado o problema tão grave e ainda sem solução do livre-arbítrio. Na realidade, seria curioso para este fim de século, invadido por um formidável desejo de experimentação, saber se todas as mulheres que caem em perdição ainda são mestras de ficar em pé contra ventos e maré12. (LAFOREST, 1882, p. VI-VII)
Uma sondagem feita com a expressão fin de siècle nos volumes digitalizados do Gallica confirma que essas associações de ideias de precocidade não são aleatórias. Uma constelação de vocábulos negativos surge quase automaticamente na escrita de autores os mais diversos quando eles recorrem a expressão fin de siècle, ao ponto que são raros os defensores de um resto de otimismo nesse fim de século, os quais estão em posição defensiva em face a nova corrente de opinião dominante mais pessimista. Aqui alguns exemplos:
Léon Bloy (1884): “Esse fim de século terrível e carregado de mistério, como a maior parte dos fins de século.” (BLOY, 1884, p. 271)
Dubut de Laforest (1884): “nesse fim de século, um pouco problemático, onde tantos cérebros deterioram.” (LAFOREST, 1884, p. 274)
Léon Bloy (1886): “A delinquência psicológica literária desse fim de século.” (BLOY, 1886, p. 38)
Edouard Drumont (1889): “as melancólicas tristezas desse fim de século.” (DRUMONT, 1889, p. 115)
O estudo exaustivo de Marc Angenot das publicações do ano de 1889 permite confirmar que essas associações de ideias características se encontram em todos os tipos de discurso e em todos os tipos de suporte esperando que outros a substituam quando se aproxima os anos 1900. Vemos, todavia, que elas são bem anteriores ao ano escolhido pela pesquisa de Angenot em função da coincidência com o centenário de 1789 e dos possíveis efeitos de eco entre “fins de siècle”13.
Contra essas temáticas negativas, os defensores fervorosos do progresso se encontraram isolados em registros militantes ou de discursos oficiais pouco escutados e obrigados a se situarem face aos pessimistas da decadência. Assim nessa frase conclusiva de memórias de um antigo reitor em cima do muro quanto a um diagnóstico:
Se fosse verdade que a saúde moral de um país se mede pelo prestígio da autoridade que está no topo do poder, pela força que está em baixo nas famílias, nosso fim de século estaria bem doente, alguns raios de esperança se projetam sobre ele as maravilhas da ciência e os esplendores da arte. (MOURIER, 1889, p.397)14
Três anos mais cedo, Eugène Melchior de Voguë no entanto havia tentado demonstrar o paralogismo sobre o qual repousava a expressão fin de siècle e as deduções falaciosas quanto a evolução moral que ela permitia difundir:
Nos deixamos facilmente abater por essa expressão fatídica de um fin de siècle. É um engano. O século começa sempre por aqueles que tem vinte anos. Nós dividimos o tempo em períodos artificiais, nós o comparamos ao transcorrer de uma existência humana; a força criadora da natureza não se preocupa com nossos cálculos; ela movimenta implacavelmente as gerações no mundo, ela confia a eles um novo tesouro de vida sem olhar a hora de nossos ponteiros. (VOGUË, 1886, p. LIII)
Os raros professadores de um otimismo ou de energia nada podiam. Tudo era atraído pelo sentido inverso: a atmosfera geral de crise evocada precedentemente, a voga entre os escritores e intelectuais do pessimismo à la Schopenhauer que se começava a traduzir (COLIN, 1979, p. 130-131), a retomada por provocação dos termos “decadência” ou “decadentes” pela juventude literária a procura de novas etiquetas para se distinguir de seus veteranos na “batalha literária” (RICHARD, 1961), a incapacidade das novas elites da República de fornecerem uma imagem positiva de sua ação a despeito das reformas realizadas anteriormente. A amplificação e extensão do crônonimo fin de siècle se opera por um desvio que vulgarizou no estrangeiro seu uso, no livro de sucesso de Max Nordau, Entartung (1892), traduzido para Dégénérescence na edição francesa de 1894.
A obra logo versada para as principais línguas europeias (holandês, 1893; italiano 1893; francês, 1894; inglês, 1895) confere à França um lugar central, e sua primeira parte é intitulada precisamente Fin de siècle. O primeiro capítulo “Crépuscule des peuples” erige a França em paradigma de todos os maus do fin de siècle resumidos precedentemente:
Fin de siècle é francês, pois é a França que, primeiramente tomou consciência do estado de espírito que denominamos assim. A palavra se espalhou pelos dois mundos e encontrou acesso em todas as línguas cultivadas. É a prova que ela respondia a uma necessidade. O estado fin de siècle dos espíritos hoje se encontra em toda parte; mas ele é somente em muitos casos uma imitação de uma moda estrangeira tida por distintiva, e não tem nada de orgânico. É no país de sua origem que ela se apresenta de modo mais autêntico; e Paris é o lugar designado para observar suas múltiplas variedades e variações. (NORDAU, 2010, p. 31)15
Se Max Nordau sintetizou em seu best-seller os principais temas do cronônimo e na verdade fez de uma palavra uma espécie de senha europeia, ele não foi por outro lado nenhum inventor, como vimos. Ele aproveitou de sua posição de intermediário entre culturas: judeu húngaro desvinculado de sua religião de origem, da cultura alemã, ele viveu em Paris desde 1880 e serviu de correspondente para jornais germânicos. Essa situação é ideal para vulgarizar temas da moda de um país para o outro, jogando sobre o monopólio da informação que ele detinha a partir de sua longa estadia em Paris onde ele completou seus estudos de medicina. Sob um fundo aparentemente “objetivo” de uma pesquisa nosográfica16, ele propõe um retrato perfeitamente negativo de inúmeras personalidades parisienses célebres ou menos famosas, reforçadas por alguns inovadores estrangeiros (Wagner, Tolstoi), todos tomados como testemunhas e atores da degenerescência fin de siècle. Ele retoma as expressões que fazem um ar dos tempos da Paris literária e artística dos anos 1880; aquelas que corriam pelo mundo dos boulevares e dos teatros ou entre os cafés frequentados pela boemia do quartier latin e são repetidas sem cessar como vimos sob todos os tipos de forma (em anedotas e assuntos de variedades, artigos de jornais, de revistas, ensaios, personagens tipos de romances parisienses como À Rebours (1884) ou Là-bas de Huysmans (1891), peças de teatro) depois de mais de uma dezena de anos17. Abandono das tradições, fim do mundo, obsolescência rápida das ideias, preocupação da superoferta, gosto pelo desrespeito às regras sob todas as suas formas, esnobismo oportunista, todos esses traços do fin de siécle segundo Nordau estão concentrados na medíocre elite de vanguarda parisiense que promove as modas, aproveitando da caixa de ressonância de uma imprensa sedenta por polêmicas (ver l’Enquête sur l’évolution littéraire de Jules Huret, Paris, Charpentier, 1891), do cosmopolitismo de uma capital que dá ainda o tom das vanguardas similares em outros países:
Um período da história que chega a seu termo, e um outro se anuncia. Todas as tradições são atravessadas por uma ruptura, e o amanhã não parece desejar se vincular ao hoje; aquilo que existe vacila e se esvai, e nós o deixamos a deriva pois estamos lá e não cremos que sua conservação é digna de esforço. (NORDAU, 2010, p. 35)
RENOVAÇÃO DO FIN DE SIÈCLE
A despeito da hostilidade suscitada na França pela visada negativa sustentada por Dégénérescence logo de sua publicação por Alcan, as obras de autores atacados principalmente por Max Nordau como símbolos da decadência do país (em primeiro lugar Zola e os naturalistas e certos poetas simbolistas) prolonga largamente a temática decadente e fin de siècle até o ano 1900, e mais adiante inclusive. Essa última estava apesar desse fato, próxima de colocar um termo (já que um novo século se iniciava) no processo de desregramento, tanto que ela coincide com uma nova Exposição universal que visava abrir o século XX, a fazer esquecer os combates do caso Dreyfus e a religar-se com a temática do progresso de uma humanidade reconciliada na cidade luz.
De fato os principais romancistas se propõem ainda nos últimos anos do decênio de 1890 e até no começo do século XX, a pintar quadros desencorajando as evoluções sociais, culturais ou políticas que não tem nada a ver com os diagnósticos pessimistas de ensaístas como Le Bon na Psychologie des foules (1895) ou dos sociólogos como Durkheim de Suicide (1896). A trilogia Trois villes de Zola se fecha em dois retratos decadentes das capitais da civilização, aquela de coabitação difícil entre a antiga Roma papal e a nova Roma monárquica (Rome, 1896), aquela de Paris (1898) dos atentados anarquistas e do escândalo do Panamá, transposto em chaves mais transparentes de entendimento para os contemporâneos. A trilogia os Déracinés de Barrès (1897) prolongado pelo L’Appel au soldat (1900) e Leurs figures (1902) instrui sobre o processo de corrupção da vida pública na república dos escândalos, do boulangismo ao panamismo. Os romances inspirados pelo caso Dreyfus onde os autores acertam contas não totalmente pagas pelo compromisso instável do processo de Rennes e da graça presidencial (1899) alimentam a lembrança da crise de fim de século bem depois de 1900, o que a querela anticlerical ou o acirramento dos conflitos sociais nos anos 1900 amplificam ainda mais18. Assim o fin de siècle e seu cortejo de decadências, de neurose e de incertezas políticas e sociais não terminou de terminar, ao menos no espaço de representações literárias e jornalísticas mais difundidas. “O espírito fin de siècle” feito do cinismo e da transgressão de tabus morais abateu-se também na crueza das confissões do Journal d’une femme de chambre de Octave Mirbeau onde a doméstica de origem bretã, seduzida pelos seus patrões parisienses muito fin de siècle, termina por incarnar de alguma forma uma virtude face a hipocrisia do burguês provinciano caxias e mesquinho mas ao mesmo tempo obcecado pelo dinheiro ou pelo sexo dos parisienses ou das parisienses da boa sociedade19.
Como já mostramos em maiores detalhes, na aurora do século XX se vê bem o renascer das utopias como se conheceu nos primeiros decênios do século XIX, mas no século XX se trata mais de “distopias”. O otimismo remanescente do culto ao progresso que acompanhava a aurora de um novo século ali era largamente carregado de ameaças e de más surpresas. Inspiravam-se, na realidade, em uma visão de história dos decênios precedentes cheia de conotações negativas20.
É a Primeira Guerra Mundial, catástrofe que ultrapassa em horror todos esses prognósticos angustiantes, e o surgimento progressivo de um cronônimo novo e concorrente, Belle époque, que contribui mais ainda para comprometer a carreira e a lembrança do fin de siècle. Proust que viveu os dois períodos e procura decifrar a cor específica dos “tempos perdidos” sabe indicar aos leitores nostálgicos a especificidade do pré-1900 pelo reemprego seletivo dessa noção a partir desse momento démodé. Assim, na passagem seguinte de Du côté de chez Swann onde Madame Cottard, encarnação do gosto médio em pintura, diz a Swann a propósito de um retrato um pouco vanguardista demais na sua opinião:
Mas eu devo vos alertar francamente, vós não deveis me encarar um pouco fin de siècle demais, mas eu digo o que penso, eu não entendi nada. Meu Deus, eu reconheço as qualidade que há ali no retrato de meu marido, é menos esquisito que o que ele faz comumente, mas era preciso que ele lhe pintasse os bigodes de azul (...) eu acho que a primeira qualidade de um retrato, sobretudo quando ele custa 10.000 francos, é de ser parecido e de uma semelhança agradável21. (PROUST, 1984, p. 375)
O leitor mais velho em 1913 deve ter sorrido lendo essa passagem, as audácias impressionistas do final do século XIX que chocavam a mulher do doutor Cottard (“bigodes azuis”) davam uma impressão bem tímida principalmente a partir da vociferação dos Fauvistas ou das deformações cubistas das figuras humanas propostas no Salão de Outono.
Apesar de seu lado fora de moda e sem sal um ou dois decênios após 1900, que testemunham o reemprego irônico e fanfarrão por Proust para dar uma cor temporal, o fin de siècle vai conhecer um renascimento fulgurante com um século de distância de sua emergência. Uma pergunta a partir da ferramenta de visualização Ngram viewer administrada pelo Google Books sublinha a renovação da presença da expressão em um volume importante de produções impressas a partir dos anos 1980. A curva está em perfeita simetria com o que foi produzido cem anos mais cedo. Trata-se menos, atualmente, de designar os decênios terminais do século XX que de revisitar o “verdadeiro” fin de siècle anterior, contribuindo para legitimar seu valor heurístico privilegiando na realidade - na maior parte dos trabalhos que dele se ocuparam - de uma fração bastante fina da sociedade e da cultura que o havia visto nascer e o colocara em circulação. Isto se sucede ainda tanto na produção em francês como nas produções inglesas e alemãs em que o cronônimo é retomado tal qual, sem tradução, nos títulos de obras históricas ou literárias, e se carregam de conotações (sofisticação, esteticismo, vanguardismo, modernidade exacerbada) utilizadas a exaustão nas temáticas do final do século XIX. Mas dessa vez elas são tomadas de maneira positiva enquanto que elas eram o mais das vezes denunciadas pelos comentadores e críticos do século precedente. É impossível fazer a exegese em detalhe do conjunto dessa produção proporcionalmente mais abundante que aquela nascida nos últimos decênios do século precedente, mas é incontestável que a reutilização corrente da expressão está ligada a seu perfume de época e encontra algum eco no momento de sua revivescência na pluma dos especialistas que dela se apossam, pois entra em ressonância com as temáticas pós-modernas em pleno desenvolvimento concomitantemente.
Se nos limitamos as obras onde a expressão é nominalmente citada no título depois da Segunda Guerra Mundial conservadas na Library of Congress22, a cronologia sugerida pelo Ngram Viewer pode ser afinada mas também confirmada. Nós contamos 3 títulos somente entre 1946 e 1959, 5 entre 1960 e 1969; na sequência a presença da expressão no título passa por uma progressão geométrica: 12 entre 1970 e 1979, 33 entre 1980 e 1989, 108 no decênio de 1990. O movimento continua já que o catálogo registra ainda 96 obras invocando o fin de siècle publicados entre 2008 e 2015.
Os dois decênios decisivos para a expansão do cronônimo podem ser simbolizados por dois exemplos célebres e os mais precoces em matéria de contribuição erudita sobre o fin de siècle: Fin de Siècle Vienna (1979) de Carl E. Schorske e France fin de siècle de Eugen Weber (1986)23. Apesar da obra de Schorske, a qual a fortuna e influência ulteriores não são necessárias comprovar dada a grande quantidade de países a que se espraiou24, fazer um uso meio frouxo do cronônimo que utiliza como título. A expressão serve, sobretudo, para ligar entre si quatro artigos bem diversos uns dos outros publicados bem anteriormente em revistas sobre uma vintena de anos: somente o primeiro dentre eles “Politics and the Psyche in Fin de siècle Vienna: Schnitzler and Hofmmannsthal” mencionam a categoria fin de siècle25. A abrangência cronológica de cada um dos ensaios é muito variável, alguns vão dos anos 1860 aos anos 1910. Notadamente, o capítulo 2 trata em detalhe a construção da Ringerstrasse e sua orientação historicista e depois sua crítica pelos arquitetos anti-historicistas, Camillo Sitte e Otto Wagner. Assim também no capítulo 6 (“A transformação dos jardins”) que vai desde os dias posteriores da revolução de 1848 ao fim do século XIX. Outros capítulos cobrem, sobretudo, o pré 1914 (capítulo 8 “Explosões nos jardins: Kokoschka e Schoenberg”). Dois estão fixados na virada dos anos 1900 (o capítulo 5 sobre Gustav Klimt e a Secessão vienense, o capítulo 4 sobre A interpretação dos sonhos de Freud). A expressão fin de siècle não figura nem mesmo no índex final e designa menos uma época fechada sobre ela mesma e mais a tese central do livro: a crise do liberalismo fundado na crença no progresso e na razão empunhada pelos criadores e intelectuais vienenses em recuo ou por elitismo em face a um mundo cada vez mais hostil onde nacionalismo, populismo e antissemitismo marginalizavam a grande burguesia e os artistas e escritores que a ela estavam ligados. A despeito desses laços entre vanguardas europeias, o fin de siècle vienense tem origem no que os historiadores da cultura anglófona chamam modernism e é em realidade bem diferente da origem parisiense que o batizou, como indica essa passagem comparativa:
Em síntese, os estetas Austríacos não eram nem tão alienados de sua própria sociedade como seus pares franceses e nem tão engajados nela como seus colegas ingleses. Faltava a eles o espírito amargo antiburguês dos primeiros e a crença no esforço humano dos segundos. Nem dégagé e nem engagé, os estetas Austríacos eram alienados não de sua classe, mas eram alienados com ela de uma sociedade que derrotou suas expectativas e rejeitou seus valores. (SCHORSKE, 1979, p. 304)
Não é aqui o lugar, apesar de toda admiração que podemos ter por esse livro pioneiro, de criticar em detalhe a comparação bastante retórica (fundada sobre uma dupla negação simétrica um pouco bela demais para dar conta de campos intelectuais tão diferentes e complicados) entre vanguardas ou intelectuais dos três países citados. A simetria é muito mal balanceada para nos levar a adesão e tentamos mostrar um pouco mais em detalhe que a alienação invocada aqui da vanguarda parisiense não impedia de jeito nenhum seu engajamento fora das trilhas clássicas da política quando do caso Dreyfus, enquanto que o liberalismo supostamente “natural” dos intelectuais ingleses podia conduzir alguns a arte pela arte, outros a crítica do liberalismo para abraçar o socialismo (os intelectuais fabianos), outros ao chauvinismo imperial e racista (Kipling e muitos outros)26. Essa passagem ilustra sobretudo que a expressão francesa transposta a Viena designa todo um outro momento social e intelectual ou artístico que o fin de siècle original francês descreveu anteriormente.
Teríamos mais sucesso, como poderíamos pensar com a obra de Weber, Fin de siècle France? Nada é menos seguro. Sem dúvida, os dois primeiros capítulos “Decadência” e “Transgressão” estão bem em conexão com os ares dos tempos fin de siècle dos estereótipos dos dois últimos decênios do século XIX, mas quase todos os outros, salvo o capítulo político (“A crise permanente”) ensaiam relativizar o que somente concernia na realidade a uma pequena fração de franceses. Os capítulo 6 a 11 do livro e a conclusão “Um mundo (um pouco) melhor?” olhavam mais do lado do quadro de uma belle époque e de um avanço do progresso - o capítulo sobre a bicicleta e o automóvel (10) ou aquele sobre os esportes e as atividades físicas (11) - que de uma França do declínio e da depressão. Mesmo nos capítulos mais centrados sobre o fin de siècle e sua coloração negativa específica, Eugen Weber não cessa de utilizar exemplos situados fora do período (antes ou depois) e de relativizar a validade ou pertinência demonstrativa das citações contemporâneas, de médicos, de escritores ou de variedades para nuançar o pessimismo da época:
O que me impressiona é a decalagem entre o progresso material e a abandono espiritual que evoca com força nossa própria época. Tantas coisas iam bem, mesmo na França, ao fim do século XIX, enquanto que se dizia tantas coisas deixando entender que tudo ia mal. (WEBER, 1986, p. 9)
A alusão a “nossa época” é sem dúvida a mais importante e explicativa da fortuna póstuma do termo depois de cem anos. No momento onde se dissipa a euforia relativa dos anos 1960-1970 fundados sobre a prosperidade geral e ao surgimento da sociedade de consumo nos países ocidentais, as múltiplas transformações nos decênios terminais do século XX entram em ressonância com aquelas do século XIX27. Especialistas das vanguardas literárias e comparatistas, historiadores da cultura e da arte, ensaístas sobre os ares dos tempos, amadores de comemorações encontram matéria ampla às suas análises retrospectivas para reabilitar os anos 1880-1890. A multiplicação de exposições (notadamente Vienne naissance d’um siècle, L’apocalypse joyeuse no Centre Pompidou em 1986), novos museus (o museu d’Orsay abre suas portas no mesmo ano), as reedições de obras de época na coleção fin de siècle na 10/18 dirigida por Hubert Juin a partir de1975, a multiplicação de teses sobre autores dos mais marginais (Félix Fénéon28, Alfred Jarry29, Rachilde30) alargam ao público cultivado essa nostalgia seletiva que transpõe mesmo fronteiras de países onde a noção jamais entrou em curso e circulação31.
Um cronônimo erudito novo nasceu que renega em grande parte suas origens, mas por quanto tempo?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BLOY, Léon. Propos d’un entrepreneur de démolitions. Paris: Tresse, 1884.
_____. Le Désespéré. Paris: A Soirat, 1886.
COLIN, René-Pierre. Schopenhauer en France: un mythe naturaliste. Lyon: PUL, 1979.
DRUMONT, Edouard. La Fin d’un monde. Paris: Savine 1889.
LAFOREST, Jean-Louis Dubut de. Tête à l’envers. Paris: Charpentier, 1882.
_____. Une Livre de sang. Paris: Dentu 1884.
MONTLAUR, Eugène de. De l’Italie et de l’Espagne, études historiques et critiques. Paris: Garnier, 1852.
MORTIER, Arnold. Les Soirées parisiennes. Paris: Dentu , 1882.
NORDAU, Max. Dégénérescence. reed. Lausanne: L’Age d’homme, 2010.
RICHARD, Noël. À l’aube du symbolisme. Paris: Nizet, 1961.
SCHORSKE, Carl Emil. Fin de Siécle Viena. Londres: Weidenfeld e Nicholson e Cambridge (Mass) Harvard University Press, 1979.
VOGUË, Eugène Melchior de. Le roman russe. Paris, Plon, 1886.
VOLTAIRE, “Le siècle de Louis XIV (1751)”, édition René Pomeau, In: OEuvres historiques. Paris: Gallimard, Bibliothèque de la Pléiade, 2000.
WEBER, Eugen. Fin de siècle, la France à la fin du xixe siècle. Paris, Fayard, 1986.
Notas