RESENHA
HORKHEIMER MaxPissardo Carlos Henrique. Eclipse da Razão. 2015. São Paulo. Editora Unesp |
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DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2018.139726
ocorre que esse eclipse da razão e esse abatimento da vontade se apossam do homem como uma doença (Fiódor Dostoiévski, Crime e Castigo, 1866)
Embora seja conhecido como a versão “para americanos” da Dialética do Esclarecimento - obra mais conhecida de Horkheimer e publicada pela primeira vez em 1945 em coautoria com Theodor W. Adorno - o Eclipse da Razão saiu nos EUA em 1947 e teve pouca repercussão entre os estadunidenses. Composto por uma série de cinco palestras públicas em torno do tema “sociedade e razão” proferidas por Horkheimer na Universidade de Columbia entre fevereiro e março de 1944, o livro está sendo relançado no Brasil, com nova tradução, inaugurando a publicação da série de obras completas do autor pela Editora Unesp.
A fama que o livro carrega teria sido legada pelo próprio Horkheimer, quando este se referiu ao conjunto das palestras como uma versão popular da Dialética do Esclarecimento, obra que entrou para história como marco principal da Escola de Frankfurt, conforme atesta uma carta adereçada a Friedrich Pollock em novembro de 1943: “Talvez eu prepare a palestra junto com Teddie. Eu pretendo fazer dela uma versão mais ou menos popular da filosofia do esclarecimento tal qual ela tomou forma nos capítulos do livro que escrevemos até agora” (HORKHEIMER apud WIGGERSHAUS, 1994, p. 345). Ao fim e ao cabo, embora o livro marque um período de colaboração tão intensa entre Adorno e Horkheimer a tal ponto de ambos afirmarem não saber mais onde começa a filosofia de um e termina a do outro, Horkheimer acabou por assinar o livro sozinho, mesmo que ainda tivesse ressalvas quanto ao conteúdo de suas palestras, quando comparadas ao seu livro com Adorno ou a outras obras suas.
Segundo o próprio Horkheimer, ainda encontrando dificuldades com a língua inglesa, ele teria escrito a maioria das palestras nos intervalos semanais entre uma palestra e outra, adaptando o conteúdo das mesmas de acordo com as questões levantadas pelo público presente. As cinco conferências que acabaram por dar origem ao livro três anos depois foram organizadas de acordo com os seguintes temas: razão como o conceito teórico básico da civilização ocidental; civilização como uma tentativa de controlar a natureza humana e extra-humana; a rebelião da natureza oprimida e suas manifestações filosóficas; a ascensão e declínio do indivíduo; a atual crise da razão.
Tendo saído de Nova Iorque e se estabelecido na Califórnia, Horkheimer se viu liberado de suas atribuladas funções administrativas no Instituto de Pesquisas Sociais e pôde se dedicar a desenvolver, compilar e publicar trabalhos, que, ainda assim, teriam sido arduamente escritos e revisados, segundo suas cartas escritas à época. Eclipse da Razão acabou tendo seus capítulos organizados de maneira sensivelmente distinta das palestras em Nova Iorque, recebendo inclusive novos títulos: “Meios e fins”; “Panaceias conflitantes”; “A revolta da natureza”; “Ascensão e declínio do indivíduo”; “Sobre o conceito de filosofia”.
O livro foi um fracasso tanto de crítica (apenas três resenhas foram escritas sobre o livro na época de seu lançamento, uma claramente favorável, uma intermediária e outra devastadora) quanto de vendas (algo relatado pelo próprio companheiro de Instituto de Horkheimer, Leo Lowenthal e pelo fato de que, em 1952, era possível comprar o livro nos EUA em uma loja de departamentos - que em sua propaganda anunciava seu estoque contendo nada menos do que 49 toneladas de livros - pela singela quantia de dois dólares e 75 centavos, em meio a outros livros na seção de “religião e filosofia”). Na época de sua escrita e preparo, havia grande expectativa quanto ao livro que finalmente tornaria compreensível para o mundo anglófono a teoria crítica de Frankfurt (relatos de Lowenthal, que supervisionou o preparo do manuscrito, mostram que Robert Merton e Paul Lazarsfeld estariam estudando o livro com grande entusiasmo), mas foi apenas nos anos de 1960 que, catapultado pelo sucesso da Dialética do Esclarecimento como sucesso underground, e traduzido para o alemão, o livro recebeu a devida atenção. Somente em 1967 foi lançada sua versão em língua alemã sob o título Zur Kritik der instrumentellen Vernunft (“Para a crítica da razão instrumental”).
No Brasil, a obra foi lançada pela primeira vez em 1976 pela editora carioca “Labor do Brasil” e foi republicada em 2002, na mesma e até agora única tradução do pernambucano Sebastião Uchoa Leite, pela editora paulista Centauro. A Editora Unesp inicia por esta o lançamento das obras completas de Horkheimer, em nova tradução, realizada por Carlos Henrique Pissardo.
Eclipse da razão está fazendo 70 anos, mas continua extremamente atual em seu projeto de investigação do conceito de racionalidade subjacente à cultura industrial contemporânea. A obra procura compreender a constituição, bem como os caminhos da razão até o momento crítico de sua manifestação como irracionalidade racionalizada no nazismo, em que as mais elevadas tecnologias foram utilizadas para “otimizar” - para usar uma expressão da última hora - o extermínio nos campos de concentração e na guerra. No tempo presente, no qual assistimos passivos à guerra “impessoal” executada por drones e promovida pela conjunção de Estados imperialistas e corporações armamentistas, a pergunta pelas razões da razão permanece dolorosamente viva. Crítico do capitalismo, no entanto, Horkheimer não se detém na análise do Terceiro Reich e procura compreender como o fascismo pode ser considerado um filho legítimo do liberalismo e, nesse sentido, a crítica se estende ao pragmatismo e ao darwinismo presente na sociedade e na filosofia americana do período.
Um dos motes do livro, desenvolvido de modo mais acurado no capítulo final, “Sobre o conceito de filosofia”, consiste em perscrutar a consciência do papel que a filosofia pode assumir numa sociedade que considera inútil tudo aquilo que não dá resultados práticos imediatos e que expulsou a utopia de seu horizonte de expectativas. Para isso, Horkheimer precisou mostrar como, na nossa sociedade, a filosofia foi substituída pela ciência e, por causa disso, a ideia de verdade, preocupação primeira do pensamento filosófico, foi completamente abandonada. A renúncia de perguntas filosóficas clássicas, como “o que é o bom, o belo e o justo?”, levou a um relativismo conformista que trouxe tanto para a filosofia, quanto para a ciência, a seguinte consequência: se eu não posso determinar como a vida deve ser vivida, o único critério de medida passa a ser a realidade existente. A má consciência da frase de Hegel de que todo o real seria racional, reaparece sob a forma do conhecimento na sociedade contemporânea, isto é, o que existe, já está justificado. O que não existe não pode mais ser inventado, só lhe resta conformar-se ao que está posto.
Não é fortuito que o engenheiro é apontado por Horkheimer como símbolo de nossa época; para ele, o entendimento das coisas nunca é um objetivo em si mesmo, mas está sempre ligado ao ajuste das mesmas a um esquema qualquer, mesmo que esse esquema nada tenha a ver com a estrutura interna das coisas que visa organizar, sejam elas objetos inanimados ou pessoas. É indiferente para esse tipo de pensamento se transportamos pessoas ou mercadorias num determinado trem, desde que isso seja feito de maneira eficiente e rápida, quer seu destino seja Auschwitz ou um hipermercado qualquer.
Essa razão instrumentalizada, em que os meios tomam o lugar dos fins, é justamente o que está na mira da crítica de Horkheimer. Numa era em que a razão parece um conceito autoexplicativo e muitas vezes parece sinônimo de “ser uma pessoa razoável” ou “estar certo”, o autor defende a necessidade de investigar a natureza e os usos da razão desde seu nascimento. No primeiro capítulo do livro, intitulado “Meios e fins”, o conceito de razão é apresentado sob uma dupla constituição objetiva e subjetiva. A ideia exposta nele é a de que a razão objetiva, que viria de Sócrates, Platão até o a filosofia idealista alemã, estaria sofrendo um processo de formalização que a estaria transformando no que Horkheimer nomeia razão subjetiva, encarnada no pragmatismo e no positivismo, dos quais ele se ocupa mais detidamente no segundo capítulo a respeito das “Panaceias conflitantes”.
A razão objetiva é a razão par excellence, que visa explicar e determinar a realidade em todas as suas esferas. Esta razão tem um conteúdo concreto e pode ser o fundamento de princípios como justiça, igualdade e democracia que, por sua vez, estão na origem da constituição política. Ou seja, a razão objetiva é composta de valores que justificam a si mesmos, que são fins em si, é aquela que existe para além dos sujeitos. O processo de reificação da razão foi, para Horkheimer, um processo de renúncia a esta razão objetiva, aos fins justificados por si mesmos e ao conceito de verdade. A razão subjetiva não foi, segundo Horkheimer, historicamente oposta à razão objetiva, na verdade, elas teriam surgido conjuntamente até que a segunda se sobrepôs a primeira como tendência. A segunda concepção é a de que a razão é uma faculdade subjetiva da mente humana, de modo que só os homens poderiam ter razão e esta não poderia existir como algo universal, que supera o individual. Não é difícil perceber como essa segunda tendência aproxima-se do relativismo.
A predominância da razão subjetiva acabou por negar a objetividade da razão, alegando que nada pode ser em si racional. Este processo é de certa forma uma abstração da razão de seus conteúdos concretos, que tem como consequência a criação de uma razão que é autonomizada. Num mundo onde esta razão é predominante, nem um fim é justificável por si mesmo, e ao mesmo tempo, nem um fim é injustificável por si mesmo. Em termos weberianos, há uma perda de um quadro referencial que forneceria aos indivíduos valores que poderiam guiar suas ações. Nesse cenário, resta à filosofia apenas a reflexão sobre a metodologia científica e não mais sobre a verdade.
Não é por outro motivo que a razão subjetiva pode ser associada à busca por meios para atingir um fim, e por isso se assemelha bastante ao que Horkheimer e Adorno chamaram de razão instrumental em sua obra conjunta. Nesse quadro, noções como felicidade e justiça perdem sua raiz intelectual:
De acordo com essas teorias o pensamento serve a qualquer esforço particular, bom ou mal. Ele é uma ferramenta de todas as ações da sociedade, mas não deve tentar estabelecer padrões para a vida social e individual, que, supõe-se, são estabelecidos por outras forças. Tanto na discussão leiga quanto na científica, a razão passou a ser encarada como uma faculdade intelectual de coordenação, cuja eficiência pode ser aumentada pelo uso metódico e pela remoção de quaisquer fatores não intelectuais, tais como as emoções conscientes ou inconscientes. (HORKHEIMER, 2015, p. 17)
Essa identificação entre razão e dominação, decorrente desse expurgo das emoções, encontra sua confirmação na psicanálise freudiana, uma influência fundamental não só deste livro, mas de grande parte da obra de Horkheimer. A constituição da civilização, conforme mostrou Freud, envolve a repressão de tudo aquilo que ameace sua existência e o mesmo vale para o “ego” - ou, numa tradução mais adequada, o “eu”. Em “A Revolta da natureza”, terceiro capítulo do livro, Horkheimer expõe o argumento de que, para constituírem-se, a civilização e o indivíduo erigiram como valor último a própria sobrevivência, a autoconservação. Para se ater a esse princípio, foi preciso dominar a natureza externa, manejar o fogo, utilizar-se da natureza como alimento e abrigo. Mas a natureza estende-se ao indivíduo e este, como a civilização, dominou a natureza dentro de si, seus impulsos primários e o predomínio da lógica do prazer, para se autoconservar. Assim, de modo dialético, razão e dominação identificaram-se; quanto mais se reconhece a racionalidade, mais cresce nas pessoas de maneira consciente ou inconsciente o ressentimento contra a civilização e seu agente dentro do indivíduo, o eu.
A personalidade forma-se, nessa chave, a partir de uma estrutura dual: de um lado os valores como igualdade, justiça e etc., que sobrevivem de resquícios da razão objetiva e são ensinados aos jovens, principalmente pela figura do pai; de outro o princípio de realidade que funciona através da mecânica da sobrevivência e autopreservação, e que é opressor. O indivíduo enxerga uma identidade entre razão, eu, dominação e natureza. A crise da razão que já foi descrita pode expressar, também, a crise do indivíduo, porque outrora a razão era entendida como instrumento do eu. Contudo, a razão se tornou enrijecida e irracional. A noção de “eu” passa a ser marcada pelo sacrifício voluntário em nome da segurança e da manutenção material e espiritual da própria existência, ou seja, em nome da autoconservação, aniquila-se aquilo que poderia de fato vir a ser o individual.
Consonante com a míngua da filosofia, o entendimento dos processos de aniquilamento do indivíduo que um dia ensaiou resistir à conformação é outro ponto fundamental do livro. Em “Ascensão e Declínio do indivíduo”, quarto capítulo da obra, Horkheimer discute a formação individual desde o período clássico, passando pelo liberalismo do século XIX, até a sua derrocada no capitalismo monopolista. Se um dia o indivíduo foi agente da razão e esta dependeu dele para ser realizada, agora a razão instrumentalizada, essa máquina que teve seu funcionamento autonomizado, ejetou o seu próprio piloto. O fim da espontaneidade, tão caro à teoria socialista e, poderíamos dizer sobre hoje, aos movimentos sociais, é uma das decorrências catastróficas desse declínio. Não há lugar para aquilo que é individual ou particular numa sociedade altamente administrada. O fim da concorrência liberal realiza o germe autoritário da sociedade capitalista e, nesse quesito, o diagnóstico de Horkheimer parece escrito sob medida para a era neoliberal:
Hoje, os indivíduos ou grupos inteiros podem ainda ser arruinados por forças econômicas cegas; mas estas são representadas por elites mais bem organizadas e poderosas. Embora as inter-relações entre esses grupos dominantes estejam sujeitas a vicissitudes, eles se entendem bem em vários aspectos. Quando a concentração e a centralização de forças industriais [hoje diríamos, financeiras ou coorporativas] extinguem, por sua vez, o liberalismo político, as vítimas são condenadas em sua totalidade. (HORKHEIMER, 2015, p. 172)
O capitalismo, como demonstra Horkheimer, produz coletivização sem produzir igualdade, aniquila a individualidade ao invés de realizá-la, coloca à disposição das pessoas escolhas que parecem múltiplas e virtualmente - especialmente na era da explosão dos gadgets e das redes sociais - infinitas, mas que não se transformam em liberdade. A individualidade burguesa que surgiu no final do século XVIII e XIX e que era fruto do liberalismo envolvia, sobretudo um indivíduo que fosse ativo no mercado concorrencial, mas teve sua base econômica solapada pelas exigências de um capitalismo que abriu mão de seus valores liberais em nome de maiores taxas de lucro.
Uma leitura precipitada de Horkheimer, assim como de outros autores da teoria crítica, pode levar à conclusão de que se trata se uma análise saudosista ou catastrofista e extremamente pessimista da realidade contemporânea, mas um exame mais detido comprova exatamente o contrário, isto é, o objetivo é compreender o que ainda é possível ao pensamento crítico nesse contexto de tamanha barbárie. Nem Horkheimer, nem nenhum outro autor da teoria crítica considerava a filosofia como uma fórmula ou ainda um meio de fornecer respostas práticas imediatas para os problemas do presente. Ao contrário, a “negação” ocupa um lugar central em suas análises; é com essa atitude perante tanto à ideologia dominante quanto à realidade imperiosa que a filosofia pode ser de alguma serventia nos tempos atuais. Conforme Horkheimer,
Se quisermos falar de uma doença afetando a razão, essa doença deveria ser entendida não como algo que assolou a razão em algum momento histórico específico, mas como inseparável da natureza da razão na civilização como até agora a conhecemos. A doença da razão é que a razão nasceu da ânsia do homem para dominar a natureza, e sua “recuperação” depende da compreensão da natureza da doença original, não de uma cura dos seus sintomas tardios. (HORKHEIMER, 2015, p. 193)
Mas, ao contrário do que poderia parecer e na contramão da aposta feita por muitos à esquerda, Horkheimer não cai em um elogio romântico da desrazão. Pois, teoriza ele, o único caminho para corrigir os descalabros da razão é a própria razão, desvinculada de sua necessidade de dominação irracional da natureza e do indivíduo, da exploração dos seres humanos sobre si mesmos, da hipóstase da razão instrumental. Eis porque o título, que alude, transformado na última contribuição de Horkheimer para a revista Studies in Philosophy and Social Science intitulada “The end of reason”, assim como a sua coleção de aforismos Dämmerung do início dos anos de 1930, fala em um eclipse da razão, sem postular seu fim ou crepúsculo. Embora os títulos “A agonia da razão”, “Razão objetiva e subjetiva” e “Crepúsculo da Razão” tenham sido aventados por Horkheimer, o autor os considerava, especialmente o último, demasiadamente pessimistas, e, por sugestão de Philip Vaudrin (um dos editores da Editora Oxford), acabou por optar pelo eclipse da razão. A aposta na razão como aquela capaz ainda de negatividade e capacidade de crítica move o livro, e justifica inclusive sua própria escrita.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. Trad. Carlos Henrique Pissardo. São Paulo: Editora Unesp, 2015.
JAY, Martin. A imaginação dialética: história da Escola de Frankfurt e do Instituto de Pesquisas Sociais 1923-1950. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.
SCHMIDT, James. The Eclipse of Reason and the End of the Frankfurt School in America. New German Critique, nº. 100, Winter 2007, pp. 47-76.
WIGGERSHAUS, Rolf. The Frankfurt School: Its History, Theories and Political Significance. Trans. Michael Robertson. Cambridge: Mit Press, 1994.