ARTIGO
Recepção: 15 Maio 2020
Aprovação: 24 Novembro 2020
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2020.169751
Resumo: Este artigo investiga as dinâmicas de circulação e as condições de acesso e manutenção do grupo de caricaturistas na cidade do Rio de Janeiro na virada do século XX. Sob uma perspectiva prosopográfica, o espaço da imprensa ilustrada da época é delimitado em relação à posição ocupada pela revista O Malho naquele contexto e às posições de seus colaboradores e dirigentes. Com o objetivo de reconstituir representações e práticas a fim de identificar estratégias de distinção dos agentes em pauta, individual e coletivamente, foram coletadas informações biográficas sobre 45 pessoas, entre caricaturistas, jornalistas, escritores e fotógrafos (que muitas vezes acumulavam essas funções), dentre as quais se destacam as que dizem respeito aos percursos escolar e profissional e aos engajamentos. A metodologia abarca a análise de trajetórias, bem como a análise de correspondências múltiplas (ACM). Os resultados apontam para a implantação de um projeto híbrido de “identidades estratégicas”, deslocando-se do espaço da imprensa aos domínios da arte, da política e da intelectualidade.
Palavras-chave: caricatura, imprensa, prosopografia, identidades estratégicas, O Malho.
Abstract: This paper focuses on the dynamics of circulation and the conditions of access and maintenance of the group of caricaturists in the city of Rio de Janeiro at the turn of the 20th century. From a prosopographic perspective, the space of the illustrated press is delimited in relation to the position occupied by the magazine O Malho in that context, also to the positions of its employees and directors. In order to reconstitute representations and practices to identify strategies for distinguishing the agents in question, individually and collectively, biographical informations were collected from 45 people, including caricaturists, journalists, writers and photographers (who often accumulated some of these functions), among which stand out regarding school and professional pathways and engagements. The methodology encompasses trajectory analysis, as well as multiple correspondence analysis (MCA). The results point to the implementation of a hybrid project of “strategic identities”, moving from the press space to the domains of art, politics, and intellectuality.
Keywords: caricature, press, prosopography, strategic identities, O Malho.
INTRODUÇÃO
A construção de uma representação social da figura do caricaturista no Brasil, sobretudo na cidade do Rio de Janeiro da virada do século XX, então capital da República, esteve profundamente conectada às dinâmicas de autorrepresentação do grupo e seus desdobramentos quando publicizados na imprensa local. Nesse universo, o segmento que se destacou foi o da imprensa ilustrada, cujos agentes realizaram uma ponte entre a comunidade letrada, correspondente aos valores dominantes de “civilização” e “progresso” das “elites”, e a comunidade iletrada, das classes populares e operárias (DOS ANJOS, 2003). Os modos de enunciação desse papel evidenciaram a formação de um grupo específico no mundo social, de “identidades estratégicas” (COLLOVALD, 1988), cuja definição de posições dentro das redações e junto à audiência indicam, nos quadros das disputas pela imposição de um projeto de cidade “moderna” aos moldes republicanos em pauta, suas tomadas de posição. Assim, o presente artigo investiga os mecanismos de manutenção ou de reconfiguração dessa representação social ao longo do tempo, conectando os sistemas de valor às disputas estéticas, às influências do poder político e às relações de mercado, cujas implicações residem nos aspectos de acesso e legitimação das instituições de ensino, nas redes de empresas jornalísticas, no acesso a cargos públicos e nas instâncias de consagração que, por sua vez, evocam a dimensão da construção da memória coletiva desses grupos.
Atravessada por diversos papéis mais bem definidos socialmente, como os de jornalista, escritor ou pintor, e por causas sociais mais bem objetivadas, como a militância política e a integração nacional, a ocupação “caricaturista” - ou dos “artistas do traço”, como se refere Herman Lima (1963) - implicava na prática: i) hibridizações com os campos artístico e literário; ii) alternância e/ou concomitância de engajamentos em associações artísticas, da imprensa ou político-partidárias;
iii) fortes relações com os políticos locais, sejam elas de cunho assistencialista, no que concerne à patronagem ou ao clientelismo, ou de ingresso, permanência e/ou ascensão na carreira pública; iv) a consequente passagem da legitimação do trabalho de caricaturista pela validação de representantes do poder público;
v) recrutamento de instâncias consagradoras plurais, tão diferentes em termos de regulamentos institucionais e papéis sociais como a Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), a Academia Brasileira de Letras (ABL), a Academia Brasileira de Imprensa (ABI), a Câmara Municipal ou o Senado que, por sua vez, formalizam o caráter multiposiocional da ocupação (BOLTANSKI, 1973; GRILL; REIS, 2018).
A partir de uma abordagem prosopográfica fundamentada em fontes diversas, das quais se sobressaem textos biográficos e autobiográficos, projetos de memória institucional e da imprensa e trabalhos acadêmicos, foram aplicados os métodos de análise de trajetória e de análise de correspondências múltiplas (ACM), a fim de identificar os princípios estruturantes daquele espaço (BOURDIEU, 2011; LEBARON; LE ROUX, 2015; DUVAL, 2015; LEBARON, 2006), principalmente no que diz respeito à produção do humor e da sátira política, acionando as dimensões do acesso, das práticas e dos engajamentos investidos para a manutenção das posições. O corpus empírico parte da revista O Malho2, por ser reconhecida pela literatura de referência sobre a história da imprensa no Brasil como um dos veículos mais regulares, de maior tiragem e expressão no período (LUSTOSA, 1989; BARBOSA, 2010, 2007; VELLOSO, 2015, 2006; DE LUCA, 2011). Sua regularidade se manifesta na constância de sua circulação, estendendo-se de setembro de 1902 a janeiro de 1954, com uma interrupção pontual durante o primeiro Governo Vargas, quando fora empastelada pelo chefe de Estado de 1930 a 1932. Foram coletadas 682 imagens, a partir de 224 edições da revista, que tratavam da grande reforma urbano-sanitária do Rio de Janeiro na primeira década do século XX3. Considerando esse recorte e as assinaturas das imagens (caricaturas, charges e ilustrações), chegou-se a uma amostragem de 45 indivíduos - entre colaboradores, dirigentes e empregadores - dos quais foram coletadas informações biográficas de percursos escolar e profissional. Dentre eles destacam-se Calixto Cordeiro (K. Lixto), Raul Pederneiras e José Carlos de Brito e Cunha (J. Carlos).
TRAJETÓRIAS PROFISSIONAIS: PRESTÍGIO NAS ARTES E ACESSO A CARGOS PÚBLICOS
Entendida de maneira subalternizada pelos cânones da literatura, a produção de humor, de escárnio ou sátira, fora marcada por posicionamentos de permanente instabilidade, que eram percebidos até mesmo na divisão espacial dos círculos de socialização, “como se a presença destes [agentes] ou mesmo a sua aceitação e prestígio estivessem regulados à ambiência em que estavam inseridos” (v, 2017, p. 184). Os espaços ocupados pelos humoristas tornaram-se conhecidos como um “reduto das tribos invisíveis”, isto é, “dos homens de letras que, não tutelados, não podiam viver das letras e por isso dependiam de uma segunda profissão para subsistência” (CIARLINI, 2017, p. 184). A obtenção e a mensuração de prestígio residiam na relação entre a ocupação dos espaços de legitimação e a produção autorizada de gêneros de escrita cujos ritos se apresentavam de maneira específica: como unidades de consagração, emergiram instituições literárias e artísticas que se distribuíram na urbe e, simultaneamente, atribuíram valores na escalada da distinção social a si e aos seus membros. Segundo Saliba (2002, p. 133-134), “o humorista não era reconhecido socialmente, e eles próprios [os humoristas] tinham dificuldade em reconhecer-se como humoristas”. Essa constatação na disputa pelos espaços de consagração impunha, então, a utilização de uma “máscara humorística” que, alusiva à figura do clown (LIMA, 1963, p. 884), evocava a figura de um artista múltiplo e em constante performance.
Dentre os artistas do quadro d’O Malho, o caso de Bastos Tigre (1882-1957) é emblemático, protagonizando sucessivas recusas de candidaturas junto a ABL. Ao lado de José do Patrocínio Filho (1885-1929)4, que colaborara esporadicamente com a revista e fora atrelado em semelhante proporção ao constrangimento do rótulo “escritor cômico” ou à carga negativa da boemia carioca (SALIBA, 2002, p. 135-138), Bastos tentava se dissociar da produção humorística aproximando-se de uma “poesia séria no formato parnasiano” (VALE, 2015, p. 270) quando o assunto eram os esforços que poderiam resultar em sua canonização oficial no mundo das letras. Tal qual Lima Barreto, de quem fora colega de trabalho e amigo próximo (SALIBA, 2002, p. 136), Tigre5 demonstrava enxergar na partilha daquele status de literato a coroação de sua trajetória profissional, apesar de declarar publicamente serem seus membros “escritôres em quarentena”; e adotando estratégias ora de culto, ora de ironização da ABL, indicava, para além de uma relação conflituosa entre raça, ocupação e origem social, que os humoristas habitavam a “zona suburbana em viela escusa” (TIGRE apud SALIBA, 2002, p. 133) no campo das representações sociais: a eles reservava-se o lugar do efêmero. Inúmeras foram as candidaturas de Tigre à ABL, todas recusadas. Em 1934, na carta de formalização do pedido, escreveu: “batendo às portas da Casa de Machado de Assis, não levo credenciais de humorista, mas sim a de persistente trabalhador das letras, que tem quase meio século de trabalho de bonne foy, como queria Mestre Montaigne, e bom foie, como manda o meu temperamento” (TIGRE apud SALIBA, 2002, p. 142). A necessidade de negar a produção que lhe era atribuída é evidente, sob a qual esgueirava-se uma difusa sensação de inferioridade: como intelectual, o desejo; como humorista, a zombaria da instituição que o rejeitava. De seu conjunto de obras literárias, encontra-se registro de 32 títulos publicados entre os anos de 1902 e 1955.
Em 30 de novembro de 1916, no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, acontecia a primeira edição do Salão dos Humoristas em território nacional, o que já se dava na Europa desde meados do século XIX. Consistindo um encontro, segundo a imprensa local, de promoção e divulgação de novos talentos organizado pelos próprios caricaturistas em ascensão ou já consagrados, reuniu 518 trabalhos em exposição coletiva, contando com a participação de artistas como Belmiro de Almeida, Di Cavalcanti6, Raul Pederneiras e K. Lixto na comissão de organização, sendo os dois últimos, à época, diretores d’O Malho e que já haviam, em outra oportunidade no mesmo ano, participado da Exposição Geral de Belas Artes (Egba)7, no Salão da Academia Nacional de Belas Artes, também no Rio de Janeiro.. Aberta ao público e com autorização prévia do governo, foi, durante o período imperial e a primeira década republicana, a mostra de Artes Visuais mais importante do país (LUZ, 2006, p. 59). Isso porque obedecia a uma política “democrática” em seu regulamento de inscrições, aceitando submissões de “grandes mestres” e “iniciantes” que, compartilhando o mesmo salão, expunham aos “soberanos” e ao “povo” seus projetos e obras. Do quadro profissional d’O Malho, além de K. Lixto e Raul Pederneiras, encontram-se registros da participação de Angelo Agostini (1843-1910), Vasco Lima (1886-1973), João José Vaz (1859-1931), Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), Marc Ferrez (1843-1923) e Hélios Seelinger (1878-1965), antes e depois de seu ingresso na revista, assim como antes e depois da inauguração do Salão dos Humoristas. O português Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905) e o alemão Alfredo Seelinger, tio de Hélios Seelinger, também estiveram inscritos em algumas edições, colaborando tanto como empregadores quanto como tutores no domínio das Artes.
A participação em exposições estrangeiras, sobretudo na Europa (França, Áustria, Alemanha, Espanha e Portugal), torna mais complexos os processos de internacionalização desses agentes para além de seus locais de nascimento, possível formação estrangeira ou estação de trabalho, ressaltando a análise dos espaços de circulação dessas exposições e do capital simbólico que a elas fazia-se correspondente. Na rede abaixo (Figura 1), cujo intervalo temporal compreende os anos de 1868 a 1956, são apresentadas as passagens referidas com destaque, em vermelho, para a Egba e para o Salão dos Humoristas. Ao todo, somam-se 93 exposições, tomando como referência os colaboradores da revista, representados em roxo, durante toda sua trajetória. Afora as ocorrências em território nacional, representadas pela cor laranja, nas cidades de Rio de Janeiro (64,5%), São Paulo (3,22%) e Recife (4,3%), são significativas as exposições europeias (em verde), que reúnem 22,6% do total das instituições-sede das exposições estrangeiras.
Nesse cenário, a emergência do Salão dos Humoristas implicava mais que a busca ou a promoção de novos talentos no mundo da caricatura, evidenciando a luta pela imposição e legitimação de um espaço exclusivo para esses “artistas do traço e indicando a conformação de novas estratégias da curadoria e dos expositores da Sociedade Brasileira de Belas Artes para com a imprensa ilustrada, que remetiam à especialização da ocupação, e sobretudo à emergência de uma categoria particular de produção estética e de sentido, cujos agentes se queriam cada vez mais profissionalizados e autorreferidos. Este Salão atendia, por exemplo, as expectativas dos cartunistas Álvaro Marins (Seth) e Max Yantok, participantes frequentes das exposições dos humoristas, mas para os quais não consta frequência em nenhuma edição da Egba. Em meio às disputas por princípios de distinção e escalada do grupo, as inscrições para o Salão se estenderam à cidade de São Paulo logo no mês de abril do ano seguinte, em 1917; em junho, nas dependências do Liceu de Artes e Ofícios, aconteceria a sua segunda edição brasileira. Os excertos abaixo8 indicam a evolução dos enunciados e, consequentemente, os deslocamentos das posições dos agentes frente à estruturação de seu mundo social.
Bem fazem, pois, os humoristas do Rio de Janeiro, promovendo para breve uma exposição de caricaturas (...). A Europa conflagrada pela guerra [I Guerra Mundial] não perdeu ainda a faculdade de rir atravez do lapis dos seus caricaturistas. Nos Estados Unidos, é espantosa, é mesmo colossal, a verve heroica ou bonhomica dos seus artistas graphicos. Preciso se torna, pois, que o Brazil tambem demonstre, de um modo solemne, a vitalidade do seu bom humor na critica de costumes e personagens e na interpretação caricata dos factos ou fantazias da vida (O MALHO, setembro de 1916).
A lembrança, como dissemos, é boa [referindo-se à edição inaugural do Rio de Janeiro]. Não só divertirá os apreciadores, dando-lhes ao mesmo tempo uma idéa dos nossos progressos e possibilidades nesse genero de arte graciosa, como tambem servirá de revelar e encaminhar não poucos talentos ainda obscuros, mas dignos de apoio e sympathia (O ESTADO DE S. PAULO, abril de 1917).
O terceiro Salão dos Humoristas, organizado pela Sociedade dos Artistas Nacionais, construiu um acontecimento no nosso mundo artistico. Há muito que se não reuniam assim tantos caricaturistas, entre mestres consagrados e novos que se esforçam por manter elevado o nível desse gênero no Brasil. (...) Verdadeiras multidões visitaram as salas do Museu Nacional de Belas Artes onde foram expostas as caricaturas e festejaram os artistas que encontram tempo para dedicar a um gênero dificil como esse, que exige não só a técnica do desenho, o senso da deformação, mas também a cultura intelectual e a capacidade de penetração psicológica (O MALHO, abril de 1948).
Segundo Lustosa (1989, p. 11-12), foi no governo do presidente Rodrigues Alves (1902-1906)9 que se localizou “a primeira farra republicana da caricatura brasileira”, sendo O Malho a expressão de maior duração e intensidade daquele “caso humorístico”10. As relações da revista com o poder público, essencialmente com as figuras políticas do período, são profundas - ainda que, grosso modo, a literatura de referência a classifique como manifestação de um “jornalismo de pulsão”, crítico e denuncista, por não apresentar financiamento público11. Luís Bartolomeu de Souza e Silva (1864-1932), de formação militar pela Escola do Exército da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, fora fundador e primeiro proprietário d’O Malho e, antes desse projeto, já havia trabalhado como jornalista n’O País e como diretor d’A Tribuna e d’O Tempo:
(...) o Sr. Luiz Bartholomeu era amigo dos senadores Pinheiro Machado, Antônio Azeredo, Lauro Sodré e outros tantos parédros da política de então. Muito inteligente êle os congregava ali, na porta da redação, em amistosa palestra. Por esse motivo A TRIBUNA, dava sensacionais “furos” políticos sôbre vários assuntos de interesse partidário em geral (O MALHO, setembro de 1952)12.
Homem empreendedor, com respeitável experiência adquirida na tarimba da imprensa (CORREIO DA MANHÃ, outubro de 1955)13.
Por nomeação, em 1911, assumira o cargo de secretário de governo do Estado no Paraná e, em 1918, fora eleito deputado federal pelo mesmo distrito. Este deslocamento implicou-lhe um distanciamento significativo para com a direção administrativa da revista carioca, fato que resultou na entrada de Antônio Azeredo (1861-1936), jornalista, deputado federal (1891) e senador (1897) pelo Mato Grosso, na sociedade. No primeiro governo Vargas, Bartolomeu assumiu ainda o cargo de ministro do trabalho (1930-1932).
Azeredo, natural de Cuiabá e de uma “família sem posses”, migrou para o Rio de Janeiro na adolescência para estudar, como colega de Bartolomeu, na Escola Militar. Por motivo desconhecido pelas fontes consultadas, abandonou a carreira no exército para cursar Engenharia na Escola Politécnica, quando se engajou politicamente no Partido Republicano. Após encerrar seu primeiro mandato, em 1893, bacharelou-se em Direito pela Faculdade Nacional de Direito (FND), também no Rio de Janeiro. Em 1910, fundara junto ao gaúcho Pinheiro Machado (1851-1915) o Partido Republicano Conservador (PRC), fator que abriu caminhos para a indicação política de Bartolomeu. Em paralelo, fundou a Gazeta da Tarde, o Diário de Notícias e tornou-se coproprietário d’A Tribuna. Sua atuação no Senado estendeu-se por três décadas consecutivas14. Raul Pederneiras, apesar de não eleito, concorreu ao Conselho Municipal do Rio de Janeiro em 1926. O quadro a seguir (Quadro 1) reúne os cargos públicos ocupados por nomeação dos colaboradores d’O Malho no período de 1868 a 1944.
No caso de K. Lixto, quanto ao seu percurso escolar, é relevante a forma pela qual se deu o seu acesso à ENBA. Enes de Souza, então diretor da Casa da Moeda, o matriculou no curso superior da instituição; e foi a ele a quem K. Lixto atribuiu “tudo aquilo que sabia de desenho” (LIMA, 1963, p. 1037). Raul Pederneiras, que assumiu posto de docente na ENBA em 1918, na cadeira de Anatomia Artística, relacionava-se bem socialmente, “e tinha contato com deputados, senadores e até presidentes” (SILVA, 2017, p. 217). O cartunista teria sido “grande amigo” de Lauro Müller, engenheiro militar membro da Comissão Municipal de Obras Públicas, chegando a visitá-lo muitas vezes em sua chácara em Jacarepaguá, zona oeste do Rio16. Pederneiras ocupou, ainda, cargo de docente na FND, o que teria acontecido logo após o fechamento da revista Tagarela, quando o artista perdera “uma fonte de renda importante”17. Registros indicam que Raul Pederneiras teria recorrido diretamente a Afonso Pena, então presidente do país, para solicitar uma vaga na cadeira de Direito Internacional.
Alfredo Candido (1879-1960), filho de um construtor, tem como razão de sua vinda de Portugal ao Brasil o trabalho de seu pai, que recebera, em 1900, um convite oficial para trabalhar nas obras de “renovação urbana” da cidade do Rio de Janeiro (LIMA, 1963, p. 1133). Nesse caso, tanto sua origem social como o capital social de que dispunha sua família lhe permitiram o acesso a oportunidades vantajosas economicamente, assim como o cultivo de boas relações com o poder político local, questões que lhe favoreceram, por exemplo, nos processos de fundação e comercialização de sua primeira revista, A Larva (1902-1903) - uma “publicação de críticas extremamente virulentas contra o governo de Rodrigues Alves” (LIMA, 1963, p. 1134) e que teria inspirado, em diversos aspectos, o projeto editorial d’O Malho em termos de mensuração da audiência quanto à sátira política e à escolha da narrativa humorística do cotidiano das instituições públicas. Vasco Lima e João Ramos Lobão, por sua vez, vieram de Portugal com destino a estabelecimentos comerciais de um “patrício abonado” - Manuel Ferreira Tunes, escultor laureado pela Academia de Belas Artes de Lisboa e que, no Rio, instalara uma fábrica de móveis -, sendo logo “desviados para o jornalismo” (LIMA, 1963, p. 1175-1176). A
“boa relação” com as “elites”, sobretudo política, fora, portanto, estruturante e impôs-se aos cargos. Dito de outro modo, a relação estabelecida pelos agentes com a política local em trajetórias anteriores à escolha de nomes elegíveis aos cargos, à época, condicionava o acesso aos postos públicos e, em larga medida, também a sua manutenção (BORDIGNON, 2015).
2 RECONSTITUIÇÕES: OBITUÁRIOS, BIOGRAFIAS E PROJETOS DE MEMÓRIA
Os elogios fúnebres são fontes interessantes para compreender mecanismos de cristalização de papéis sociais da imprensa ou de grupos e subgrupos que compõem a imprensa local, bem como suas características de “excelência”. Eles podem estar associados ao momento da morte do homenageado ou, posteriormente, ao aniversário de sua morte. Textos comemorativos institucionais que buscam a tessitura de trajetórias coletivas ou de ambiências de trabalho e/ou estilos de vida de um grupo, como no caso das redações e oficinas que recontam episódios ou rotinas de cartunistas, jornalistas e fotógrafos, também oferecem possibilidades de análise dessa prescrição de funções e possibilitam a identificação de suas dinâmicas de valoração e prestígio para dentro e fora dos círculos de socialização daqueles agentes. Dossiês curtos sobre a história da caricatura no Brasil, contada sob o viés das redações, nas quais se inserem os agentes biografados e as publicações, eram comuns n’O Malho e em outros periódicos, como na Revista da Semana, suplemento ilustrado do Jornal do Brasil, e no jornal A Noite. Por último, constam as biografias individuais mais completas, que buscam recuperar não só os eventos de sucesso do biografado, mas também toda uma sucessão de escolhas e encontros que lhe permitiram compor um aparente “percurso coeso” até a conquista de seus objetivos (BOURDIEU, 1986). A esse último conjunto, o das biografias, somam-se ainda trabalhos de cunho acadêmico apresentados sob o formato de dissertações e teses, com frequência reeditados em livros ou coletâneas de memória institucional. No caso dos caricaturistas, textos biográficos e acadêmicos tendem a confundir-se, pois os autores de ambas as produções são os mesmos e compõem, profissional e entusiasticamente, o grupo perfilado.
O primeiro levantamento de fôlego nesse sentido fora articulado por Herman Lima (1897-1981) nas décadas de 1940 e 1950. Como indica Lustosa (1998), reconhece-se nele, por inteiro, “na forma de escrever, no culto às belas letras, nos objetos que exalta, até mesmo no universo de relações pessoais, o típico intelectual da virada do século”. Burocrata, de origem social elevada, com períodos expressivos de internacionalização e acúmulo de redes de lealdade em sua trajetória pessoal e profissional, possuía ainda a arte como hobby, cuja faceta mais evidente era a de
colecionador de charges e caricaturas. Filho de pai brasileiro e mãe belga, natural de Fortaleza, Ceará, e diplomado em medicina pela Faculdade de Medicina da Bahia (1922), Lima chega ao Rio de Janeiro em 1931 para ocupar o posto de auxiliar da Presidência da República e, a partir daí, destacar-se como um contista de vanguarda - tempo conciliado entre a prática burocrática do Estado, no Ministério da Fazenda, e a carreira de escritor e colecionador de arte. Trabalhara em Londres por quatro anos, em viagem a mando de Getúlio Vargas, quando pôde se aproximar da caricatura europeia e reunir material suficiente para redigir a obra Na ilha de John Bull (1941), na tentativa de compreender e contextualizar o personagem ícone da expressão britânica na época. Em seu retorno ao Brasil, Lima, que era amigo de J. Carlos, Raul Pederneiras e K. Lixto, começa a organizar dados biográficos sobre as três gerações de caricaturistas impostas pela história oficial como legítimas de serem historiografadas: a primeira, de Henrique Fleiuss, Rafael Bordalo Pinheiro e Angelo Agostini (os “precursores”); a segunda, comandada por seus colegas mais próximos (os “contemporâneos”); e a terceira, de Max Yantok, Alfredo Storni e Hélios Seelinger (os “modernos”). A obra História da Caricatura no Brasil, organizada em quatro tomos, tornou-se, então, seu “grande projeto de vida” (LUSTOSA, 1998) e categorizou a série de desenhos daqueles artistas entre a produção “mundana”, “erudita”, “portrait-charge” e de “anúncios” (LIMA, 1963).
Dos trabalhos mais recentes, destacam-se os de Joaquim Fonseca (1999), Gilberto Maringoni (2010), Luciano Magno (2012), Letícia Pedruzzi Fonseca (2016) e Rogério de Souza Silva (2017), cujos autores desempenham, respectivamente, as ocupações de jornalista, ilustrador no mercado editorial e na imprensa, professor de comunicação visual gráfica na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Unisinos; jornalista, ilustrador, caricaturista e professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo; historiador e caricaturista; designer e professora de desenho industrial na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); e professor de história na Universidade do Estado da Bahia (UNEB).
Com exceção de Rogério Silva, todos, ao menos uma vez até o momento de escrita deste artigo, foram curadores de exposições ou produtores de atividades culturais que envolvessem a promoção da arte da caricatura no Brasil, dentre as quais sobressaem a 1ª Bienal Internacional da Caricatura e a 33ª Feira do Livro de Porto Alegre, com seção dedicada exclusivamente “a livros raros sobre caricatura”. Magno assinou sua tese de doutorado sobre a trajetória profissional de Seth, defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), com seu pseudônimo de caricaturista Lucio Muruci, fazendo referência, naquela
ocasião, às “exposições em homenagem à tradição do humor gráfico e da caricatura brasileira” que vinha desenvolvendo “nos mais significativos museus e centros culturais do Rio de Janeiro”18.
De um modo ou de outro, esses autores participam da composição ou da manutenção do grupo de agentes em análise, tanto quanto da produção acadêmica e de pesquisa sobre eles e, por isso, atuam de forma decisiva sobre as estratégias de produção e reprodução dos papéis sociais prescritos ao longo do tempo. Conectam-
-se, enquanto memorialistas dos caricaturistas, ao próprio espaço da memória da caricatura, interessados na difusão das representações de referência. O que está em jogo, portanto, é a maneira pela qual esses dados biográficos são acionados e os empenhos diversos que implicam suas instrumentalizações, e não necessariamente as disputas intrínsecas às validações dos mesmos, uma vez que essa memória emerge como produto da luta pela difusão da prescrição de um papel idealizado pelos agentes e mantido, em termos de cumplicidade, por aqueles responsáveis por mantê-la viva e atualizada. De filiações diversas, como autobiografias, biografias encomendadas, produção acadêmica e de memória institucional, interessa-nos, nesses textos, identificar os mecanismos de mobilização dos recursos disponíveis e, consequentemente, os efeitos que essas clivagens exercem na produção de conhecimento sobre os perfilados em geral, como demonstra o trecho a seguir:
Ninguém pode negar a importância do desenho humorístico na imprensa, seja como documento histórico, como fonte de informação social e política, como termômetro de opinião, como fenômeno estético, como expressão artística e literária ou como simples forma de diversão e passatempo (...) Com a ajuda, que não foi pequena, dos amigos Edgar Vasques, Fernando Jorge Uberti, Hiron Goidanich, Luis Fernando Verissimo, Neltair “Santiago” Abreu, Paulo Caruso e Sérgio Lüdtke [todos caricaturistas], que me deram preciosas sugestões e acesso às suas bibliotecas, este trabalho pôde ser finalizado (FONSECA, 1999, p. 13-15).
Assim, tendo em vista que as informações produzidas nesses documentos-fonte aspiram uma espécie de permanência positiva na história, principalmente pelas questões de vinculação de autoria, suas condições de análise sofrem algumas limitações. Uma vez elencadas à arbitrariedade do autor, este profundamente ligado à crença e aos relatos dos agentes biografados e/ou homenageados (com frequência a eles contemporâneos), essas informações tendem a ser ordenadas em cadeias lógicas e inteligíveis, com o fim de produzir narrativas de “projetos de vida”, intencionais tanto subjetiva quanto objetivamente. Há um mercado próprio à produção dessa expressão do discurso sobre si, fazendo com que a forma e o conteúdo do relato variem de acordo com a qualidade social do espaço no qual ele é oferecido (BOURDIEU, 1986). É, pois, “como um caminhar progressivo e ordenado em que os passos vão se sucedendo de forma inexorável, compondo-se como realização de uma intenção e de um destino pré-traçados, ainda que entrecortados por acasos e contingências, emboscadas e armadilhas” que as vidas dos biografados tendem a ser relatadas (GRYNSPAN, 1990, p. 78), o que nos exige cautela na tessitura de padrões mais amplos ou na indicação de denominadores comuns ao grupo. Contudo, correlações prosopográficas ajudam a minimizar essas deficiências à medida que permitem um controle das variáveis e apontam para as estruturas dos espaços de socialização dos agentes que, por sua vez, podem ser relativizados ou testados em meio às suas disposições e tomadas de posição.
Os registros dos obituários são oportunos para identificar características individuais desses agentes, fundamentais para o entendimento da contribuição de cada um deles para a construção da crença sobre o papel social do grupo: à trajetória de J. Carlos, o primeiro deles a falecer, mescla-se a história da caricatura no país em seu momento fundacional; à de Raul Pederneiras, o momento-chave da politização da caricatura; e, por fim, à de K. Lixto, o último dos três a falecer, o lugar de uma retrospectiva desses “feitos” coletivos e a necessidade de se reinventar enquanto grupo, em um momento de transição de gerações de artistas. Logo, a eles são incorporadas características de uma sociodiceia interpelada pela cronologia de eventos caros à comunidade dos agentes, sejam eles narradores ou personagens. Indissociáveis na literatura de referência ou nos textos consagratórios, cabe à cronologia da morte a tributação de valor singular a cada um deles.
Sob a manchete “A morte de J. Carlos e a caricatura no Brasil”, em texto assinado pelo caricaturista Mário Mendes, a revista O Malho anunciara o falecimento de J. Carlos, ocasião em que o apontou como, “sem dúvida, a personalidade mais viva e original de quantas se distinguiram entre nós no desenho dos ridículos humanos” (o mAlho, novembro de 1950). Comparado a Henrique Fleiuss e a Angelo Agostini, ambos ainda “do tempo da monarquia”, J. Carlos se destacara por ser “integralmente nosso” que, ao contrário de seus antecessores, não viera “de fora, já com a mentalidade formada”. Ele, então, incorpora a predileção do traço modernista e confere ao grupo alguma independência e relativa autonomia frente às disputas travadas pelo pensamento republicano: é ele quem, nesse escopo, passa a ser referência de uma nova significação das práticas da imprensa ilustrada na primeira metade do século XX. Chancelado por Crispim do Amaral, diretor artístico da revista no momento de sua contratação formal, teria sido descoberto ao lado de Arthur Lucas, Amaro, Gil e dos “mestres” Raul Pederneiras e K. Lixto. Foram elevadas, ali, “a elegancia e finura de seu traço”, assim como sua agilidade na forma de promover o “risível das criaturas”, características que o teriam tornado “unico no seu gênero” e que fixaram tipos sociais próprios de um período marcado pela “violenta metamorfose de nossos habitos e costumes”, explicitamente associada às transformações urbanas promovidas por Pereira Passos. Seus personagens mais famosos, a Melindrosa e o Almofadinha, traduziriam “a superficialidade de certa classe de jovens nos grandes centros” e definiriam importantes aspectos da “existencia carioca” (O MALHO, novembro de 1950).
No falecimento de Raul Pederneiras, um ano e meio depois do de J. Carlos, O Malho estampava em seu editorial: “A perda do cidadão do Rio” (O MALHO, julho de 1952), atribuindo-lhe um valor de “patrimônio” local. O texto recupera aspectos biográficos, como local de nascimento, primeira infância, adolescência e ingresso no ensino superior, correlacionando-os ao contexto histórico e político do país: “Nascera sôb os últimos raios já moribundos do segundo Império. Assistiu o espetáculo social e humano da Abolição. Adolesceu e se fez homem dentro do arejado clima de entusiasmo cívico e do empolgante liberalismo da República nascente”. Referências estéticas, como o norte do “Belo” e a importância da escolha de cores e formas, e estésicas, como a capacidade de emocionar e sensibilizar o público, também são acionadas, conferindo-lhe erudição; o mesmo acontece na valorização de suas ações de natureza militante:
Aos vinte e um anos de idade é bacharel em Direito. Daí por diante, tôda a sua marcante existência se reverteria para o Bem, o Belo, o Direito e as liberdades humanas. Ao lado de nomes ilustres, atravessou estoicamente épocas de perseguições tumultuosas da polícia nacional, sempre como um dos mais valorosos combatentes da oposição aos govêrnos atrabiliários, mandatários e déspotas (O MALHO, julho de 1952).
Transbordando a análise às efemérides comemorativas, seja de tempo de vida dos caricaturistas ou dos aniversários da revista, temos os elogios institucionais que se apresentam, grosso modo, de maneira coletivizada. Nesses textos, para além da cristalização de determinado papel social a partir dos quais indivíduos representam grupos, estão previstas reconstituições da própria redação enquanto grupo, cujo objetivo é sintetizar um conjunto de biografias, esforçando-se em homogeneizar as contribuições dos autores. Não há, portanto, grandes investidas na personificação de trajetórias exemplares, como vimos nos elogios fúnebres mas, ao contrário, enfatiza-se a construção de uma equipe na busca por documentar e publicizar uma história interessada na personificação da instituição e consequente despersonalização dos agentes, que se diluem e se confundem à formação do todo. No texto comemorativo dos 50 anos da revista, foram elencados os “pinta-monos grandes, médios e pequenos” (O MALHO, setembro de 1952). Crispim do Amaral vinha novamente à frente, sendo apontado como o recrutador de J. Carlos, Raul Pederneiras e K. Lixto, “os azes efetivos do traço e da troça”; em seguida, registros de outros colaboradores, “alguns firmes no traço mas pouco assíduos” e “outros talvez espirituosos mas ainda bem incipientes no desenho” (o mAlho, setembro de 1952). São esses os caricaturistas que apontamos como “de transição” e que abriram passagem para os novos talentos da época. Na mesma edição comemorativa sobre o cinquentenário d’O Malho, há, alguns textos adiante, um artigo publicado por Herman Lima intitulado “Meio seculo de dois mestres brasileiros”, dedicado a Pederneiras e K. Lixto. Nele, o autor sinaliza que ambos os artistas “teriam de sofrer inevitavelmente a influencia da caricatura francesa então em pleno esplendor”, ainda que, “naturalmente, com o passar dos anos, cada um adquirisse o traço proprio, a personalidade original que os caracterizaria toda a vida”. No jornal A Tribuna fora publicado, na mesma ocasião, uma reflexão sobre os domínios do caricaturista inscrito no circuito das transformações da linguagem gráfica, dos formatos e dos meios de comunicação cuja simbólica morte de K. Lixto terminara por evidenciar:
As charges mostram nossa vida social e política; mas o que precisamos ressaltar é que durante esse tempo, no final da Monarquia e princípio da República, a liberdade permitiu que crescesse, florisse e frutificasse a arte da caricatura. Sabido que a caricatura é a arma secreta da liberdade e que os humoristas do lapis sempre mantiveram uma independência invejável, críticos de seu tempo, daí sentimos com melancolia que de certa época para cá, vêm desaparecendo os grandes caricaturistas. Por que a falta de caricaturistas? Por que os artistas abandonaram as charges políticas? Coação? Condição economica? Nova orientação de proprietarios de jornais e revistas? Falta de artistas? (...) Na era do rádio ou dos jornais cinematograficos notamos a falta de caricaturistas, sentimos que com todo o progresso material, e com os acontecimentos contemporâneos, não teremos para o futuro a fixação exata e a compreensão dos homens e dos fatos (A TRIBUNA, setembro de 1952).
Não há, no entanto, para K. Lixto, um obituário publicado n’O Malho, já que a revista teve seu último número lançado em 1954, três anos antes da morte do artista. A identificação da posição institucional, nesse caso, fica por conta dos projetos de memória de outros periódicos para os quais ele também trabalhara. Pelo esforço de contextualização de vida e obra do artista, destaca-se a manchete de capa do Jornal do Brasil: “Morreu o caricaturista Calixto Cordeiro”, de 12 de fevereiro de 1957. Julião Machado fora lembrado, ali, como seu tutor; a Herman Lima, “o historiador da caricatura no Brasil”, e a outros colegas de redação, foram atribuídas ações de “solidariedade” e “companhia” em seus “últimos dias”19. Um episódio recorrente tanto nos relatos jornalísticos quanto biográficos conserva-lhe uma característica fundamental para o grupo: o “amor pelo desenho” e a determinação de, a essa arte, reservar toda a energia, recursos e engajamentos disponíveis. Em 1910, K. Lixto assinara a charge que melhor retrataria a saída de Hermes da Fonseca do governo, reunindo, na alegoria do cortejo fúnebre do militar, caricaturas de quase uma centena de políticos da época: “para isto trabalhou toda a noite, apenas com duas fortes lampadas, o que lhe custou séria hemorragia da retina, que o impossibilitou de trabalhar durante seis meses. No seu bom humor natural, dizia Calixto que aquilo era devido á ‘urucubaca’ do Marechal...” (LIMA, 1963, p. 1041).
Elegemos, então, como trajetórias exemplares as desses três artistas. Representativas pela visibilidade e publicização que sofreram por serem consideradas centrais pela história oficial e, também, como um efeito direto da primeira condição, por serem aquelas de que mais dispomos de registros históricos, sejam eles em âmbito de coleções privadas ou em acervos de memória da imprensa e da arte. Falar delas, a título de casos exemplares, significa, portanto, falar das condições de produção do caricaturista no contexto em pauta. Reclamam menção, além dos aspectos supracitados, fragmentos relativos à prescrição do papel social dos perfilados e à crença social produzida acerca desses papéis, no que tange às características peculiares do grupo, como a multiposicionalidade, a excentricidade, a irreverência e o acúmulo de capital social, os títulos e o reconhecimento pelos pares. Sendo “dos mais agudos observadores da alma humana”, o trabalho de J. Carlos, por exemplo, atenderia à exigência da versatilidade, atravessando os caminhos da sátira, da caricatura política e, até mesmo, do entretenimento infantil (o mAlho, novembro de 1950). Para Pederneiras, à medida que elencadas suas múltiplas funções exercidas no percurso profissional (desenhista, pintor, caricaturista, professor de Belas Artes, “mestre do Direito”, escritor, diretor e proprietário de jornais e revistas), sua versatilidade também seria enaltecida: “Raul Pederneiras sobressaiu-se galhardamente e com justiça em todos os ramos da inteligência e da cultura” (O MALHO, julho de 1952).
Fora ele quem incorporou a qualidade da diplomacia, correspondendo às expectativas do intelectual que, “em vez da lança contra os moinhos de vento, não brandia senão o lapis” (O MALHO, ano LI). Raul Pederneiras era “íntimo de tôda a turma de jornal” (O MALHO, agosto de 1953), de muitas figuras políticas e circulava em meio aos intelectuais e artistas renomados sob a chancela da ENBA e da FND, instituições onde ministrou disciplinas obrigatórias por mais de três e quatro décadas, respectivamente. Isso porque, em condições sob as quais não existem estruturas institucionais ou de mercado que garantam a equivalência de títulos - ou seja, onde há ausência de uma instituição que se imponha como distribuidora de prestígio frente a todas as outras, estruturando aquele espaço -, as estratégias de acesso e ascensão aos grupos dominantes centram-se, pelos agentes, nas relações de reciprocidade e de acumulação de capital personificado, isto é, de capital social (CORADINI, 1997, p. 426). Em última instância, essa é a condição de garantia das demais formas de capital (econômico, intelectual, simbólico etc.) igualmente importantes para a conformação das disputas e consequentes estratégias de dominação internas.
O traço da excentricidade paira sobre aspectos cotidianos da vida desses agentes. O celibato de Raul Pederneiras em função de um casamento que nunca ocorrera, por exemplo, conferiu-lhe o título de “solteirão ilustre” (O MALHO, julho de 1952); o “recolhimento” e a “solidão” do artista que vivia sozinho, “apenas assistido por uma velha empregada de muitos anos”, também endossam essa percepção (o mAlho, julho de 1952). Comum era a descrição de suas residências como ambientes exóticos: casarões antigos, por vezes estreitos demais, que reuniam coleções diversas entre “obras de arte, estatuetas, quadros, livros e um mundo de ‘charges’, caricaturas próprias e da autoria de outros grandes mestres do lápis” (O MALHO, julho de 1952). Seus traços físicos como estatura (muito alta no caso de Pederneiras), magreza e volumosos bigodes de pontas curvadas (no caso de K. Lixto, J. Carlos e tantos outros) associavam-se a estilos de vestimenta para completar a construção de um personagem quixotesco, “que pendia no cavaleiro dos tempos idos, mas no caricaturista se elevara” (O MALHO , julho de 1952). K. Lixto carregava a fama de só usar fraques: “Estes tinha-os de todas as cores, inclusive verde. Jamais se habituara com roupas modernas, sendo mesmo um dos poucos que conservava o colarinho duro e chapeus de abas largas” (JORNAL DO BRASIL, fevereiro de 1957).
Assim, salientamos aqui as disposições e interesses do grupo percebidos, principalmente, pela incorporação de atributos que os remetem aos domínios do humor e das artes no universo da imprensa republicana, e que flertam, de maneira híbrida, com as dinâmicas de organização do poder político local e de ingresso em espaços dedicados à produção intelectual, na medida que esses agentes assumem posições múltiplas na estrutura de divisão do trabalho. Por outro lado, as características comportamentais que os substancializam, e que tendem a compor o campo de forças nas disputas por autonomia, ficam por conta das bandeiras da excentricidade e da irreverência, preservados por um status de imparcialidade que pairava sobre a máxima “rir de tudo e rir de todos”: “A vida política brasileira, a internacional, os movimentos partidários e culturais deste meio século XX, estão todos analisados e comentados com charges célebres, artigos crônicas e rico anedotário”, com “os seus distintos dirigentes”, que mantinham “sempre a mesma independência moral”. O Malho pode reunir “nomes consagrados” e “estreantes de talento”, tornando-se à época grande referência, tanto popular quanto “selecionada” para as elites, em mais de 1.250 localidades do país por onde circulou (o mAlho, novembro de 1952).
3 DISPUTAS À LUZ DA REPÚBLICA: ENGAJAMENTOS E PERCURSO ESCOLAR
É sabido que, com a instauração da República, o conjunto de engajamentos que marcam as trajetórias biográficas dos agentes passou a impactar na composição dos quadros no campo do poder. Isto é, a “queda ou ascensão nos cargos do novo regime dependeu, diretamente, das relações com o regime deposto e/ou do apoio político passível de ser mobilizado” (BORDIGNON, 2015, p. 227). Pode-se inferir que, por trás das disputas estéticas, ou da imposição de uma postura e de uma técnica dominantes, havia dinâmicas de imposição mais profundas conectadas ao modelo ou ao projeto de país que se visava construir, como exemplifica o caso de Fleiuss. Natural de Colônia, na Alemanha, diplomou-se em Artes em Dusseldorf e em Ciências Naturais e Música pela Universidade de Munique. Decidiu se mudar para o Brasil aos 35 anos, sob aconselhamento de Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868), médico, botânico e antropólogo brasilianista, de quem era “amigo e discípulo” (LIMA, 1963, p. 743). Fixado no Rio de Janeiro, fundou uma oficina tipográfica que, por decreto de D. Pedro II, de quem era “amigo pessoal e admirador” (LIMA, 1963, p. 743), transformou-se no Instituto Imperial Artístico em outubro de 1863. Ali foi oferecido o primeiro curso de xilogravura do país, técnica que por longos anos fora dominante na produção editorial brasileira (FONSECA, 2016; CARDOSO, 2008). Lima, no entanto, o retrata como tendo um traço “gorduroso”, “grosseiro”, que resultava em composições visuais “confusas”, em crítica que se estende a Augusto Santos (Falstaff), caricaturista brasileiro discípulo do artista alemão. Aqui, a questão estética vela o esforço de desqualificação da opção política pela Monarquia.
Com relação aos engajamentos, sobressaem-se aqueles relativos às artes, à imprensa e à militância política. Nota-se, como ponto comum aos engajamentos, a manifestação de características republicanas e modernistas, indicando associações nas quais os agentes ocuparam, majoritariamente (61,1% das ocorrências), papel de alta representatividade (fundador/presidente/diretor). Max Fleiuss, filho de Henrique Fleiuss, é o único dos agentes que possui o que chamamos de “engajamento intelectual”, uma vez que mobiliza recursos em direção à Academia das Ciências de Lisboa, Academia Portuguesa da História, Academia Cubana, Academia Nacional de História da Argentina, Sociedade de Geografia de Lima e Sociedade dos Americanistas de Paris. Quanto às atividades de cunho político, destaca-se a militância de José do Patrocínio, cujas chances de ascensão pairavam justamente sobre a radicalização de seu engajamento (BORDIGNON, 2015).
Angelo Agostini, apesar de ter sido companheiro de José do Patrocínio tanto nas investidas do Partido Republicano como em variados periódicos da imprensa carioca e ter se mostrado militante expressivo da causa abolicionista desde a década de 1860, quando conheceu Joaquim Nabuco na Loja Maçônica América, na cidade de São Paulo, ocupou posições distintas acerca do conflito: na Revista Illustrada, sob a série Scenas da escravidão, exibiu conteúdos de denúncia sobre os abusos físicos sofridos pelos negros escravizados; já nas páginas de Don Quixote, seu projeto posterior, publicou diversos artigos abertamente racistas. Maringoni (2010, p. 33) levanta a hipótese de que sua luta esteve menos ligada à questão ética da igualdade racial ou da universalização do direito do que à questão do regime de trabalho escravo, uma vez que, não assalariados, aqueles sujeitos compunham um grande público em potencial interditados ao consumo. Como a abolição da escravidão não foi acompanhada de políticas assistencialistas ou inclusivas de garantias sociais básicas (saúde, moradia, ensino, emprego etc.), os negros libertos passaram a ocupar os morros, as ruas e as habitações coletivas compondo, junto aos imigrantes precarizados pelas novas dinâmicas da economia urbana, uma população sem ocupação definida e, frequentemente, associada à criminalidade, epidemias e imoralidades.
A vasta produção escrita desses agentes, em termos de publicação de livros e coletâneas de textos no mercado editorial, também chama a atenção. Articulada à participação em associações artísticas e em exposições de arte, sobretudo aquelas mais próximas da ENBA, alinhada à produção intelectual acadêmica ou de manifestos políticos, essa característica reforça as noções de erudição e de representação do grupo como porta-voz da opinião pública e “especialista” (função relativa às aproximações entre o discurso da imprensa, o status de verdade e o discurso científico), tributárias de uma construção histórica e de memória das trajetórias de seus autores que se inserem em um universo mais geral e difuso dos “homens de letras”. Para Bordignon (2015, p. 195-197) essa produção está ligada, por um lado, à “ampliação das oportunidades de ganhos políticos”, particularmente “transfigurados em cargos após a instauração da República” e, por outro, ao “desenvolvimento do romance” que acompanha “as transformações sociais, econômicas e políticas que marcam o final do Segundo Reinado”. No segundo caso, verifica-se “uma transição progressiva do ‘romance idealista’ para o ‘realista’, cuja produção passa a incluir pesquisas históricas, observações da ‘realidade’, descrição de perfis e costumes, métodos a partir dos quais se desdobram o ‘romance psicológico’ e o ‘naturalismo’” (CÂNDIDO, 2000). Essas reivindicações emergiram sob “rótulos estéticos” que possibilitaram a legitimação de novos “modos de agir”, associados à posição social do grupo e às posições internas que os agentes ocuparam naquele quadro. O movimento de busca por inserção em frações das “elites”, através da produção escrita, implicando diretamente transformações no contexto da imprensa e das instituições de ensino superior, pode ser aferido pelo aumento significativo do número de engajamentos em sociedades literárias, científicas e artísticas no período. Verifica-se que, nesse cenário de valorização da produção escrita e de intercâmbio importante entre imprensa e instituições de ensino cuja ênfase curricular concentrava estímulos ao desenvolvimento e à difusão de um discurso cientificista, 15,55% dos agentes atuaram no magistério, alternando cargos entre o ensino superior, o técnico e o básico.
Há, ainda, uma parcela desses agentes com características marcantes de cunho administrativo, cuja concentração de mobilização de recursos (sobretudo, capital econômico e social) não visava a produção de conteúdo na imprensa, mas o controle de finanças e a maximização de desempenho no mercado da informação e do entretenimento. São eles: Jorge Schmidt, Cardoso Junior, Peres Junior e os próprios proprietários do Grupo Malho, Luiz Bartholomeu de Souza e Silva e Antonio Azeredo, que comandavam também as revistas Para Todos, O Tico-Tico, Leitura Para Todos e Ilustração Brasileira. Com frequência, as sociedades empresariais de sucesso comercial na imprensa da época eram formadas por parcerias entre um sujeito com esse perfil e outros de perfil engajado na atividade jornalística e/ou literária em si. Podemos citar aqui, para além dos periódicos já indicados, A Avenida (Cardoso Junior e Crispim do Amaral), O Tagarela (Peres Junior, Raul Pederneiras e Augusto Santos), Fon-Fon! (Jorge Schmidt, Mário Pederneiras - irmão de Raul Pederneiras - e Gonzaga Duque), Kosmos (Jorge Schmidt e Eugênio Bevilacqua), Careta (Jorge Schmidt) e Século XX (Max Fleiuss e Hugo Widmann Laemmert).
Sendo a maioria dos agentes formada em instituições de ensino superior no Brasil e/ou no exterior (77,8%), sobressaem-se as áreas de Artes (42,2%), Direito (13,33%) e Ciências Médicas (8,9%); as Escolas Politécnicas (Engenharia) e a formação militar também se fazem presentes. Com apenas uma ocorrência cada, houve passagem por um Seminário Católico, no caso do fotógrafo Augusto Malta, e pela Escola Normal de Lisboa, no caso do também fotógrafo Antonio Leal. Compõem os casos de dupla formação (15,55%) Henrique Fleiuss (Artes e Ciências Naturais), Bordalo Pinheiro (Artes e Letras), Antônio Azeredo (Engenharia e Direito), Raul Pederneiras (Artes e Direito), Olavo Bilac (Medicina e Direito), Max Yantok (Artes e Engenharia) e Seth (Artes e Farmácia). Por outro lado, somam 22,2% do total aqueles que não frequentaram quaisquer universidades; têm-se registros de que Gonzaga Duque e Paulo Barreto (João do Rio) teriam sido educados em regime de ensino domiciliar, não frequentando, portanto, instituições de ensino formais. A amostragem sugere alguns aspectos dos processos de institucionalização desses agentes, possibilitando a adesão a determinadas disposições a partir de sua exposição e/ou circulação nesses espaços, como a ENBA, a FND, a Faculdade de Medicina, a Escola Politécnica e a Escola Militar da Praia Vermelha20, ou de consagração, como a ABL e a ABI.
4. ESTRATÉGIAS DE HIBRIDIZAÇÃO
Se por autonomização de um campo ou grupo entende-se o processo de enunciação de suas próprias leis, critérios e princípios específicos de hierarquias internas, em detrimento de valores externos, e a luta por uma desterritorialização ou redução a instrumentalizações políticas (CASANOVA, 2002, p. 113-115), a primeira e mais sensível mobilização deve estar ligada à impossibilidade de uma posição múltipla, híbrida, que transite e/ou se aproprie de outros domínios ou agentes. Mas Vasco Lima, por exemplo, em entrevista ao Correio da Manhã21, relatara que “o artista foi prejudicado pelas suas outras obrigações”. Isto porque “a fatalidade” o perseguira quando Bartholomeu o descobriu “bom administrador”, deixando-lhe a cargo as direções d’O Malho, O Tico-Tico, A Noite e Rádio Nacional. “Eu comecei ganhando trezentos e cinquenta mil réis; mas passei logo para quatrocentos”, contou o cartunista22. Muitos outros, além dos cargos de direção e de produção de conteúdo para a imprensa, atuavam também como publicitários, como nos casos de Cícero Valadares (Dudu), K. Lixto e Bastos Tigre 23 (compondo ilustrações, jingles e slogans para a Bayer, Bromil ou Saúde da Mulher), ou músicos, como Yantok e Falstaff; professores, pintores, cenógrafos, escritores e/ou editores também compuseram os arranjos.
Identifica-se a elaboração de um projeto de manutenção de multiposicionalidades do grupo no Brasil, o que chamamos aqui de estratégias de hibridização entre os domínios das artes, da política e dos intelectuais. Não como um atestado de debilidade em comparação aos países centrais, cujos campos literário ou artístico se fizeram autônomos, mas como o imperativo da fração dominante do grupo local que reclamava a circulação simultânea nos circuitos boêmios e artísticos da cidade do Rio, reduto das “elites culturais” (bares, clubes, sociedades literárias etc.), assim como nos circuitos das “elites políticas e intelectuais”, alocadas, por força de seus cargos, em instituições escolares, consagratórias ou da burocracia do Estado. O primeiro caso facilitava o acesso aos espaços de socialização e circulação daqueles que produziam os bens culturais e/ou simbólicos requeridos, conferindo aos agentes, para além da entrada no grupo, a possibilidade de complexificação de suas redes de lealdade; o segundo representava as chances de reconhecimento oficial. A estrutura desse espaço aparece representada na ACM a seguir (figuras 2 e 3).
As maiores contribuições ao eixo 1 vêm da carreira pública (20,9%) e do lugar de formação (15,8%); em seguida têm-se o engajamento artístico, produção literária e área de formação, com porcentagens de contribuição bastante próximas. Para o eixo 1, as relações de oposição mais pronunciadas se dão entre aqueles nascidos no Brasil e que ocuparam cargos públicos e aqueles que não ocuparam cargos públicos e, também, não se engajaram em sociedades ou movimentos artísticos de maneira explícita. As maiores contribuições ao eixo 2 vêm da área de formação (22,3%) e da participação em exposições (19,3%), seguidas pela nacionalidade (18,2%). O eixo 2 não apresenta relações de oposição ou afastamento, mas de aproximação entre aqueles europeus, formados em Artes na Europa e com passagem por exposições, concentrando-os. As maiores contribuições ao eixo 3 vêm, respectivamente, da área de formação (24,6%) e do lugar de formação (24,4%), seguidas em menor escala pelo engajamento na imprensa (13,8%). Contudo, a relação estruturante entre área e lugar de formação não é aquela de oposição entre saberes, instituições de ensino ou Brasil e Europa, mas a ausência da formação superior (ou, nos casos de Gonzaga Duque e João do Rio, ausência de educação formal); esses agentes opõem-se àqueles com engajamento em associações de imprensa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São as questões da nacionalidade, a formação, a carreira pública e a participação em exposições de arte que estruturam aquele espaço, implicando tanto no engajamento artístico quanto no da imprensa. Assim, pode-se discutir algumas possibilidades de arranjos desses agentes que se articulam, diretamente, às disputas por autonomização ou hibridização do grupo frente ao universo dos “homens de letras”. Em primeiro lugar, a aproximação entre o domínio das artes e a Europa, seja através daqueles agentes europeus ou dos brasileiros com formação no exterior, reclamando uma maior mobilização de recursos pela militância artística. Em segundo lugar, as associações entre carreira pública e produção literária e entre a formação no Brasil e o engajamento político. Com menor expressão, nota-se a associação entre aqueles que ocuparam cargos de direção na imprensa ou que foram proprietários de periódicos e que cursaram, para além das Artes, Direito, Medicina, Engenharia ou que frequentaram escolas de formação militar, reforçando a especificidade de uma ocupação que emergia no contexto da inserção da imprensa nacional, sobretudo do Rio de Janeiro, no modo de produção industrial.
Esquematicamente, pondera-se sobre uma relação de oposição entre as militâncias artística e política, e se pode dizer que é a questão da formação em associação às posições ocupadas frente às instâncias de consagração da arte (prêmios, exposições, sociedades das “elites culturais”) que permite a manutenção desse arranjo. A produção escrita aparece, pois, como instrumento de mediação e interseccionalidade entre eles, sendo um canal de visibilidade e legitimação para ambas as posições.
Verificou-se, ainda, a impossibilidade de se viver exclusivamente dos rendimentos da produção literária, seja no mercado editorial ou na imprensa, gerando “investimentos múltiplos” que variam “a partir da relação entre origens sociais e pontos de chegada visados” (BORDIGNON, 2015, p. 201). Essa multiposicionalidade impediu a produção de uma crença de “pureza” sobre o grupo e reforçou a noção de um métier que não só expressava os desejos e gostos das “elites” como também cooptava e apreendia seus desejos e gostos.
Lima (1963, p. 1667-1668) sugere os termos “escritores caricaturistas” e “caricatura literária” na intenção de associar as atividades da obra escrita e da obra plástica por intermédio da inspiração ou da motivação intelectual, inferindo uma transição natural entre os domínios em questão: “a caricatura aparece certamente entre tôdas as manifestações artísticas, como a mais vizinha da obra literária”; e discute a possibilidade de legitimação da ocupação enquanto uma categoria profissional híbrida e de “interêsse real”, desvinculando-a das ideias “puras” de uma “fantasia provisória”, de um “passatempo agradável” ou de um “primo pobre do desenho”. Sob o argumento de que há uma preocupação de retratação do curso de uma história social na motivação de todo caricaturista, toma como referência para um trabalho de excelência na imprensa aquelas publicações periódicas dedicadas às “charges de combate”.
Percebe-se que está em jogo a valorização de um evidente projeto de manutenção da indistinção da atividade dos “artistas do traço”, ao passo que se reivindicam, em igual proporção, rupturas com os domínios fronteiriços. Quer-se a atividade cristalizada, legitimada e autorizada a assumir posições múltiplas, conferindo aos agentes qualidades tão artísticas quanto políticas, tão pertencentes à esfera do entretenimento quanto da produção de informação e de conhecimento. Uma preocupação menor com a autonomização “do campo” e maior com a autonomização daqueles sujeitos que podem acionar suas identidades e capitais de maneira estratégica, a depender do processo institucional em que se inscrevem ou, ao contrário, do qual desejam se desvincular.
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Notas