Resumo: Este artigo resultou de uma pesquisa qualitativa sobre as publicações de periódicos em torno do concurso infantil de desenhos “Como vê você Paris Libertada?”, organizado em 1945, a partir do Rio de Janeiro, por Beatrix Reynal (1892-1990), francesa radicada no Brasil desde 1915, que atuou como filantropa, poetisa, colecionadora e mecenas de arte. A iniciativa privada, lançada por meio de veículos dos Diários Associados, envolveu cerca de 6.000 crianças e foi acolhida pelo Ministério da Educação. Compreendendo a memória individual e coletiva em interrelação e transformando os periódicos em fontes históricas das práticas culturais que as constituem, é possível mapear traços do processo de comunicação de uma memória celebrativa da Resistência Francesa e da Libertação de Paris em formação naquele momento. Problematiza-se essa memória, também como um investimento social e um recurso de distinção no meio das elites, relacionado à persona Beatrix Reynal. Trata-se da configuração de um enquadramento memorial gaullista, ligado às políticas diplomáticas e à importância atribuída pelo público de artistas e intelectuais brasileiros ao legado cultural francês, apostando na reconversão do passado recente perante as crises geradas pela guerra.
Palavras-chave: Memória e PeriódicosMemória e Periódicos,Resistência Francesa e Libertação de ParisResistência Francesa e Libertação de Paris,Intelectuais e ArtistasIntelectuais e Artistas,Rio de JaneiroRio de Janeiro,Beatrix ReynalBeatrix Reynal.
Abstract: This article resulted from a qualitative research on newspaper publications around the children’s drawing contest “How do you see Paris relesead?”, organized in 1945 from Rio de Janeiro, by Beatrix Reynal (1892-1990), who was a philanthropist, poet, collector and patron of art. This private initiative, launched through vehicles of the Associated Diaries, involved around 6.000 children and was welcomed by the Ministry of Education. By understanding the individual and collective memory in interrelation and transforming newspapers into historical sources of the cultural practices that constitute them, it is possible to map traces of the communication process of a celebratory memory of the French Resistance and the Liberation of Paris, in formation at that moment. This memory is problematized as a social investment and a resource of distinction among the elites, both related to the persona Beatrix Reynal. This is the configuration of a Gaullist memorial framework, which is linked to the diplomatic policies and the importance attributed by the public of Brazilian artists and intellectuals to the French cultural legacy, betting on the reconversion of the recent past, in the face of the crises generated by the war.
Keywords: Memory and Press, French Resistence and Liberation of Paris, Intellectuals and Artists, Rio de Janeiro, Beatrix Reynal.
ARTIGO
“Como vê você Paris Libertada?”: um concurso de desenhos e a memória da resistência francesa nos periódicos cariocas (1945)
“How Do You See Paris Released?”: a design contest and the memory of French resistance in newspapers from Rio de Janeiro (1945)
Recepção: 09 Julho 2020
Aprovação: 16 Outubro 2020
Este artigo propõe uma análise das publicações na imprensa carioca a respeito de um concurso infantil de desenhos, organizado no ano de 1945, a partir da cidade do Rio de Janeiro, por Beatrix Reynal (1892-1990), francesa radicada no Brasil desde 1915, poetisa filantropa, colecionadora e mecenas de arte. A atividade envolveu cerca de 6.000 crianças brasileiras que responderam à pergunta “Como vê você Paris Libertada?”, bem como vários intelectuais e artistas na sua produção e divulgação. Os desenhos vencedores ganharam exibições em instituições educacionais e eventos diplomáticos. Tal campanha sinaliza traços materiais de circuitos e atores que intervêm no trabalho de constituição e transmissão da memória da Resistência Francesa.
Ainda que tenha enviado contingentes e suprimentos, a maior parte da população brasileira que vivenciou os anos 1940 não esteve nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial. No entanto, ela foi comunicada, compartilhada, pensada e experienciada de diversas formas, a partir de ideias e imagens que circulavam em notícias, programas de rádio, panfletos, cartas, ações de assistência social etc. As fontes empíricas escolhidas são os periódicos cariocas1, considerados indicadores de práticas e dinâmicas culturais que se iniciaram na ordem privada, que obtiveram apoio estatal e se desdobraram em matéria de rememoração oficial. A apreciação de Paris como símbolo da conquista da liberdade e da almejada vitória mobilizava um repertório identitário, de modo que havia significados sociais e culturais mais amplos no enquadramento dessa memória (POLLAK, 1989).
Os episódios da Segunda Guerra Mundial transcorridos na madrugada de 6 de junho de 1944 (conhecido como “Dia D”), quando do desembarque das tropas aliadas na Normandia e expulsão dos nazistas de parte do território francês (do Noroeste da Europa), e da “Libération de Paris”, em 25 de agosto do mesmo ano, foram temas de destaque na imprensa brasileira. Essas notícias chegavam por meio de correspondentes e, não raro, eram revestidas de lição e comemorações cívicas. A guerra marcou as circunstâncias que favoreciam e demandavam a circulação acelerada da informação: as novas tinham que ser difundidas imediatamente, não se podia esperar até a manhã seguinte. Segundo De Luca (2008), edições sucessivas e folhas manutinas, vespertinas e noturnas buscavam dar conta do que se passara no próprio dia. Por meio de placares e anunciantes, os jornais diários lançavam aos leitores, muitas vezes transeuntes apressados, os últimos acontecimentos e as novidades.
Desde o ano de 1940, a França estava marcada pela instauração do regime de Vichy, chefiado pelo marechal Phillippe Pétain, que assinou o armistício e fez a política de boa vizinhança com Hitler, mas também por uma oposição de resistência a esse regime, que formou órgãos como o Gouvernement provisoire de la République française (GPRF) e a Assemblée consultative, criados pelo movimento liderado pelo General de Gaulle e que ganharam contornos específicos a partir de novembro de 1942, com o fim da “zona livre” (SUPPO, 2016, p. 2). A expressão “Resistência Francesa” era atribuída, em diversas dimensões, aos opositores, em algum grau, do governo de Vichy e aos combatentes contra o nazismo. Ela foi mobilizada nos jornais brasileiros em apelos dirigidos aos leitores e às crianças, que evocavam o passado recente em imagens e narrativas da guerra, centradas na chave “ocupação-desocupação”/“invasão-libertação” da França, mediadas pelas relações diplomáticas e culturais entre Brasil e França.
Entre meados da década de 1940 e de 1960, nas políticas culturais francesas e de vários países “aliados”, o resistente ou, ao menos, simpatizante da luta se tornou símbolo do cidadão francês legítimo (PEREIRA, 2014, p. 16). Optou-se por silenciar “sobre a página sombria do colaboracionismo, da deportação e do assassinato em massa. A memória das vítimas dos campos de concentração não tinha condições de se expressar” (HEYMANN, 2007, p. 40). Questões ambivalentes e culpabilizantes atravessaram os países “vencedores”, especialmente a França, “onde a colaboração com os nazistas marcou a vida cotidiana ao menos tanto quanto a resistência” (POLLAK, 1989, p. 6).
A preocupação em organizar uma comemoração memorial, já em 1945, sinaliza que mal se inicia o retorno de deportados e soldados, “ideologias já estão colocadas, a batalha pela memória já começou e a cena política já está atulhada” (POLLAK, 1989, p. 9) de tabus e dificuldades para as vítimas integrarem lembranças na memória coletiva da nação2. As publicações em torno de “Como vê você Paris Libertada” integram um regime de memória no qual o pôr-se à procura da recordação da guerra, no plano das relações sociais com a memória coletiva, deu-se numa orientação celebrativa. Mediante a redefinição geopolítica em curso e os destroços da guerra, surgiram esforços em torno da memória patriótica de culto aos heróis, cuja comunidade portadora seria a nação. Isto é, “na especificidade histórica de uma sociedade caracterizada pela centralidade do Estado e pela valorização da ideia de consenso nacional”, identidades nacionais evocavam a ideia de unidade da população identificada ao Estado-Nação (HEYMANN, 2007, p. 18).
Aspecto relevante desse fenômeno de memória da França que emergiu no Brasil foi a evocação midiática do passado recente da guerra, mediada pelo concurso infantil, que envolveu gabinetes de diplomatas, além de rodas de educadores, escritores, artistas e associações de senhoras católicas. Os meios de comunicação em massa fizeram do tema uma constante. O conjunto das publicações de periódicos cariocas sobre o concurso, ao longo de 1945, registram regulamentos, chamadas, nomes, endereços, resultados e crítica.
Na cidade do Rio de Janeiro, o evento da libertação de Paris imediatamente figurou nos jornais, cujos registros deram vazão às formas da sua integração, como efeméride, no calendário histórico das nações, formas que se concretizaram movidas por múltiplos anseios. Conforme Ricoeur (2007), os fenômenos mnemônicos de comemoração têm gestualidade e espacialidade rituais, que acompanham ritmos nos quais espaço e tempo se desenrolam em figuras festivas da memória. Seus atos se ligam ao calendário do espaço público, com dimensões intelectuais e afetivas intercruzadas e respondem a necessidades e hábitos do presente, permeados por relações de poder.
Conforme circunstâncias sociais e culturais particulares, como se deu a emergência pública, no imediato pós-Segunda Guerra, dessa memória exercida e declarada, que deixou suportes materiais (textuais e visuais) no Brasil? Ao discutir um contexto de enquadramento de memória, intenta-se perceber as forças que tensionaram e que legitimaram a organização das narrativas identitárias em jogo, o que implica situar as práticas que permearam a produção do concurso, como a filantropia e o patriotismo, que eram cultivadas nos meios das elites e funcionavam como recursos de distinção social. Após descrever como se deu a comunicação do concurso nos jornais, problematiza-se as práticas de mediação e de reconversão simbólica da nação francesa e da comunidade francófila, mediante a crise da guerra. Procura-se demonstrar que a economia de trocas simbólicas que configura a memória da Resistência Francesa no Brasil, em 1945, passa, em seus modos específicos, por pressões vivenciadas ou presumidas por atores e grupos, cujas relações sociais de interdependência e alteridade agiam sobre ela. Minha problemática, por fim, é que a memória assumida como tarefa por Beatrix Reynal foi, também, um investimento individual, uma apropriação do espólio da França da belle époque na constituição da sua própria persona. Essa perspectiva permite refletir sobre a sua posição social, autorizada a falar em nome da memória coletiva, e como os signos articulados operavam uma via de mão dupla.
Beatrix Reynal era o pseudônimo assumido por Marcelle Jaulent dos Reis desde o início dos anos 1920. Segundo Correia (1998), de origem familiar francesa, ela nasceu em Montevidéu (Uruguai), em 1892, cresceu na Provença (França), e, ao que tudo indica, se mudou em 1915 para o Rio de Janeiro. A ligação com a Provença foi um “pedigree” cultural que reclamou para si, muitas vezes afirmando (ou deixando que outros afirmassem) que ela havia nascido na França. Marcelle Jaulent se casou no fim dos anos 1910 com José Maria dos Reis Júnior (1903-1985), artista plástico e professor que, na ocasião, mudou-se de Minas Gerais para o Rio de Janeiro. Foi como Beatrix que ela ficou conhecida, nos anos 1920, como a mecenas que promoveu o retorno do artista Oswaldo Goeldi ao Brasil. A partir daí, o casal manteria por décadas, em sua famosa casa provençal, em Ipanema, um quarto/ ateliê para o gravurista, além de comprar suas obras e destiná-las a exposições, museus e bienais de arte moderna. Ao longo do século XX, as trajetórias e obras dos três mantêm diálogos, além da sua amizade pessoal3.
Em meados dos anos de 1940, Beatrix era figura conhecida há, pelo menos, uma década nos circuitos culturais cariocas: o seu retrato em gravuras se tornou uma espécie de ícone nos jornais, não raras vezes acompanhando textos elogiosos sobre as suas ações sociais ou sobre a sua poesia, assinados por intelectuais renomados. Muitos desses frequentavam a sua casa e mantinham sociabilidades epistolares, nas quais se referiam à Beatrix como se fosse uma Adida Cultural francesa informal no Brasil. Em carta para Sergio Milliet, de 1939, Mário de Andrade a aprecia como uma “feliz e milionária poetisa francesa” que fazia jantares maravilhosos e aspirava ser elogiada por sua poesia “militante ou lírica, e para tanto não regateava pedidos aos amigos escritores e jornalistas, acompanhados de presentes” (CASTRO, 2016, p. 113). Ela se encontrava, portanto, atrelada a nomes, práticas e lugares, cujos circuitos de pertencimento conferiram legitimidade entre os domínios das artes e da intelectualidade. Proprietária de uma coleção de obras raras, mobilizava disposições sociais, tais como colecionismo, mecenato, filantropia e civismo.
Quando realizou o concurso de desenhos infantis, Beatrix Reynal já havia publicado três livros de poesia em língua francesa: Tendresses Mortes (1937), Au fond du coeur (1941) e Poèmes de guerre (1943). Este último, que foi o de maior tiragem e mais comentado pela crítica, assumia, desde o título, uma vinculação entre poesia e guerra, pelo gênero literário da epopeia. A venda do livro foi convertida para a Cruz Vermelha e para o seu próprio programa de rádio “Franceses, nós cremos em vós”, dedicado à Resistência Francesa, com mensagens poéticas e cívicas de apoio. “Neste período, produziu textos e programa radiofônico na emissora do Ministério da Educação, [...] engajando-se em diversas campanhas beneficentes na França e no Brasil” (Perez, 2018, p. 93).
Beatrix Reynal frequentemente fazia e arrecadava doações de alimentos, medicamentos, roupas e móveis, em campanhas contra a Lepra e pela construção de educandários: circulava por orfanatos, asilos, escolas, sociedades de puericultura, clubes de serviços, festas beneficentes e pela Legião Brasileira de Assistência4.
Segundo Martins (2011), nos anos 1930 e 1940, em organizações caritativas, beneméritas e de assistência, que se constituíam paralelamente e em consonância com as ações do Estado e da Igreja, as mulheres de elite buscaram modernizar e mesmo implementar a sua atuação no espaço da cidadania, a partir do terreno do que então se chamava de ação social, que abrangia práticas voluntárias e de caridade cristã, mas também cargos nas instituições de saúde e educação públicas, ligadas a maternidade, infância, higiene, civismo, etc. A partir dos circuitos filantrópicos e das políticas de assistência, valorizava-se publicamente o uso de disposições acumuladas do lugar social de esposas e mães para exercer o cuidado social, perspectiva cultural que foi um dos pontos de apoio para constituições de subjetividades, mas também de políticas de memória. Conforme as relações de poder vigentes, essas atividades eram vistas como uma forma de “contribuição feminina”. O grupo que apoiou financeiramente o concurso reclamava o valor dessa cidadania à nação.
Em 8 de maio de 1945, “Delira o Rio com a vitória das Nações Unidas”, segundo a capa do Gazeta de Notícias. O jornal reproduzia a fala do presidente Getúlio Vargas em elogio à Força Expedicionária Brasileira e anunciava que em “regozijo pela cessação das hostilidades na Europa o presidente da República assinou, ontem, Decreto dando como feriado nacional o dia de hoje” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1945, p. 1). As comemorações foram retratadas como “insopitável jubilo popular”, que fechou o comércio, moveu comícios e um cortejo dos estudantes do Colégio Pedro II ao Gabinete do Prefeito, desfilando pela Avenida Rio Branco, com as bandeiras das Nações Unidas:
[...] Acabou a guerra, acabou a guerra! Esse o grito uníssono que irrompe de todos os corações cariocas [...] A certeza de que sangue brasileiro não mais será vertido nos campos de batalha europeus encheu de jubilo o povo - e na alegria feminina transluzia o orgulho da Mulher Brasileira pela bravura dos nossos soldados, que souberam honrar as tradições da Pátria. O Rio viveu ontem um dia inolvidável, ao agradecer as bênçãos da Paz que desceu sobre os homens livres. Esquecê-lo será impossível e há de viver por muito tempo na memória [...] (GAZETA DE NOTÍCIAS, 1945, p. 1-10).
Menos de dois meses depois desses festejos, nos dias 12 e 13 de julho de 1945, foi publicado o anúncio nos periódicos A Noite, O Jornal, Diário Carioca, Diário da noite, entre outros, que convidava as crianças de todo o país a participarem da memória festiva:
Em toda a América Latina se realiza, atualmente, um concurso infantil que dá as crianças a oportunidade de exprimirem plasticamente sua imaginação, prestando uma homenagem à Paris, capital do espírito latino. De um extremo a outro do continente tem sido formulada esta interessante pergunta aos meninos de 13 anos de idade: “Como vê você Paris Libertada?” [...] aqui, será realizado sob o alto patrocínio da Sra. Baronesa D’Astier, embaixatriz da França, e a pergunta às crianças será dirigida pela poetisa Beatrix Reynal. Os desenhos serão submetidos a um júri composto de intelectuais e artistas que distribuirá [prêmios] aos melhores (A NOITE, 1945, p. 2).
A data final de envio, prevista para 15 de agosto, seria adiada duas vezes, permitindo-o até 14 de setembro. Os dois primeiros prêmios seriam Hors Concours - sendo o primeiro um oferecimento da embaixatriz, e o outro, da “França Combatente”, isto é, do comitê dos “franceses livres” localizado no Rio de Janeiro (grupo atrelado à política do General de Gaulle). Além disso, mais 36 prêmios, principalmente livros, estavam sendo oferecidos por franceses e brasileiros “amigos da França”. Segundo Pereira (2014, p. 73), em telegrama de janeiro de 1945 para de Gaulle, o embaixador François d’Astier já explicava a “estranha proposta de Beatrix”, com o nome do governo francês e da embaixadora d’Astier (sua esposa): esta recomendava que fosse ela considerada, devido ao capital social da autora:
[...] com a colaboração de influentes grupos brasileiros, [fez] uma vasta campanha a favor das crianças francesas vítimas da guerra […] Ela (Sra. Reynal) viajaria para a França na próxima primavera para distribuir itens de socorro e estudar a fundação de um orfanato. Ela gostaria de colocar esta campanha sob o patrocínio do general de Gaulle e poder dizer, ao lançar sua campanha, que o general a convidou para vir a Paris (D’ASTIER, 1945 apudPEREIRA, 2014, p. 74, em livre tradução).
O trecho expõe as estratégias por parte da organizadora. Quando tomou forma nos meios de comunicação, a partir da metade de 1945, o concurso foi anunciado com regras claras: “os trabalhos deverão ser executados no formato de 35x25, a nankim, a cores ou cranyon, e remetidos acompanhados de envelope com o nome, para “Concurso de Desenho Infantil, avenida presidente Wilson, 306. Esplanada do Castelo, Rio de Janeiro” (A NOITE, 1945, p. 4). No seio das elites, em maioria residente na capital do país, recrutou-se para o júri artistas reconhecidos pelas vanguardas modernistas brasileiras. A comissão organizadora era formada exclusivamente por mulheres e as patrocinadoras, citadas sob os sobrenomes e títulos dos maridos, conforme a hierarquia de tratamento. No percurso da organização, os mesmos anúncios foram publicados várias vezes nos jornais diários de agosto e setembro. A partir do dia 16 de outubro, o Correio da Manhã veiculou notícias sobre a exposição dos prêmios arrecadados para os participantes, a essa altura retratados como “500 valiosos prêmios”, muitos doados pela própria Beatrix: “[...] como parte das comemorações da Semana da Criança, no grande salão de festas da Casa do Estudante centenas de prêmios valiosos se achavam expostos enquadrados por grandes painéis e fotografias alusivas no movimento libertador da França” (CORREIO DA MANHÃ, 1945, p. 8).
Passou-se também a divulgar amostras dos desenhos recebidos, selecionadas por Beatrix e seus colaboradores, juntamente com convites para o público participar da Grande Exposição dos Desenhos, no edifício do Ministério da Educação, entre o dia 20 de outubro e meados de dezembro. O evento esteve aberto, diariamente, das 13 às 19 horas, e os desenhos foram expostos nas mesmas paredes em que “encerrou-se, há poucos dias, a Exposição de Arte Francesa [...] os Picassos, os Matisses, os Utrillo, aquela gente toda que deixou saudade” (LESSA, 1945, p. 1).
Ao longo do período de divulgação, a faixa de idade permitida foi ampliada para crianças entre cinco e quatorze anos e a quantidade de prêmios aumentou, mesmo depois do encerramento da exposição final. As publicações permitem perceber a inserção do concurso no Ministério de Educação. Após marcar as exposições nos prédios públicos, veiculou-se novo detalhe na regra relativa aos participantes premiados: a de que deviam ser alunos de nossas escolas. O tema foi tão comentado, a ponto de ser referido em títulos apenas como “Concurso infantil de desenhos”. Os redatores do Jornal do Brasil lhe conferiram caráter oficial de lembrança das crianças do Brasil. Após as prorrogações, contabilizaram-se 6.000 desenhos que chegaram pela caixa postal. Atualmente, parte deles se encontra na Coleção Beatrix Reynal, sob a guarda da Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional (desde 1987).
O concurso contou com ampla divulgação, sobretudo em veículos dos Diários Associados, que constituía a maior rede de jornais diários do Brasil, garantindo circulação matinal, diurna e noturna. Assis Chateaubriand, seu proprietário, foi um aliado. Beatrix e o marido trabalharam na década anterior para os Diários como correspondentes na França, no momento em que frequentavam os círculos de pintores como Suzanne Valadon e Albert Marquet, e da escritora Colette (a quem Beatrix dedicou seu primeiro livro). Os dois produziram poesias, gravuras e artigos para periódicos do grupo ao longo do século XX. Além disso, segundo Pereira (2014, p. 76), Chateaubriand foi um dos empresários que mais se mostravam dispostos a demonstrar o apego e apreciação do Brasil à França na imprensa: em junho de 1944, seus jornais lançaram um apelo ao público propondo que o nome de Bayeux, primeira cidade francesa libertada dos nazistas, fosse atribuído a uma localidade brasileira, em ritual de homenagem. O governador da Paraíba, Rui Carneiro, renomeou um local na vila de Barreiros, inaugurando um monumento com a expressão “Vive la France!”. Com o fim da guerra, em várias cidades brasileiras surgiram novos nomes franceses de ruas.
Enquanto isso, os gabinetes diplomáticos franceses estavam buscando redefinir e aprimorar os meios da diplomacia cultural, seu carro chefe: nas reuniões realizadas entre junho e novembro de 1945 pela Commission des Affaires Étrangères surgiu um plano de ação para a América Latina, que primava pelo tato com as pessoas, uma vez que, nos seus diagnósticos, aqui imperavam as relações pessoais. Segundo Suppo (2016), nas cartas e relatórios, embaixadores e adidos denunciavam que a influência e a língua francesas diminuíam (com queda significativa no período da guerra) no Brasil. O foco para o futuro seria a classe média em ascensão - intelectuais, burocratas, etc. - entendendo-se que ela se mostrava muito permeável à influência estadunidense. Apontava-se que após um “eclipse de cinco anos, os jovens latino-americanos começam a esquecer a França. Eles costumam considerar nosso país distante, um país de luxo, menos eficiente do que outros, que não pode lhes fornecer o que precisam para a vida cotidiana” (SUPPO, 2016, p. 9), mas que permanecia como símbolo das ideias liberais. Foram temas da pauta diplomática: “La langue française en Amérique Latine”; “La France et l’action des États-Unis en Amérique Latine”; “Radio et Cinéma, la Radiodiffusion française”; “Les Comités de France Libre”; etc.5 Exemplo que serve de termômetro é a missão Vallery-Radot para avaliar o “terreno perdido” pela cultura francesa nos países latino-americanos (PEREIRA, 2014, p. 76). Naquele momento crítico da identidade nacional, era “importante considerar a imagem que o mundo tem da França” e os esforços direcionados para recuperar-se (SUPPO, 2016, p. 8).
Esses objetivos da diplomacia francesa se encontravam com uma diplomacia brasileira que, durante o Varguismo, desenvolveu um bom relacionamento com os países do Eixo, com os quais tinha direcionamentos ideológicos e corporativos em comum: durante a ditadura do Estado Novo, a divulgação cultural da França no Brasil permaneceu, mas sua imagem ligada à Revolução, à liberdade, à democracia, ao Estado secular (e às ideais socialistas do debate político francês dos anos 1930) se tornou altamente tensionada (PEREIRA, 2014, p. 68-69). Em 1939, Denis Rolland, embaixador francês no Rio de Janeiro, por exemplo, explicitou seu pessimismo quanto à comemoração do cinquentenário da Revolução Francesa no Brasil, pelo contexto improvável de que ela fosse bem-vinda devido ao caráter anti-liberal, às tendências nacionalistas e “à posição de princípio que o governo brasileiro adotou contra qualquer ideologia de origem estrangeira” (PEREIRA, 2014, p. 69, em livre tradução). Durante a Segunda Guerra, o Brasil manteve pragmatismo nas relações internacionais, permanecendo neutro no início. Posicionou-se ao lado dos Aliados somente após a declaração dos Estados Unidos, quando ficou difícil contrariar os interesses políticos e comerciais dominantes no continente, e após ter alguns navios bombardeados pelos nazistas.
[...] neste contexto, a imagem da França em relação ao governo e à sociedade brasileira se torna ambígua [...] no sentido de que Vichy despertou a simpatia de muitos representantes do primeiro círculo do governo, como o ministro da Guerra Gaspar Dutra [...] e altos funcionários como o general Goes Monteiro; enquanto, por outro lado, desapontou os defensores do liberalismo, como o Ministro das Relações Exteriores Oswaldo Aranha, sem mencionar alguns grupos francófilos que veem uma parte significativa da elite e do povo francês como simpatizantes ou escravos ao nazismo e à ditadura do marechal Pétain. Para estes, a França da Ocupação é incompatível com a imagem tradicionalmente transmitida e admirada no Brasil (PEREIRA, 2014, p. 69, em livre tradução).
Beatrix Reynal certamente se situava num grupo de francófilos divididos, que se direcionaram de forma crescentemente crítica à Petain. Ela própria foi se aproximando da Resistência com o desenrolar da guerra, sobretudo a partir de 1943. De todo modo, houve a organização de uma grande festa no momento da libertação de Paris, e o concurso de começou a ser formulado em 1944 e se efetivou em 1945 nesses mesmos círculos. Durante a guerra, ainda segundo Pereira (2014, p. 68) “deux France, deux images” atravessaram a política cultural dos franceses: por um lado, representando os interesses de Vichy, por outro, os da Resistência liderados a partir da central em Londres. No Brasil, ao menos até o rompimento com o Eixo, em 1942, a política francesa era dirigida pela Embaixada Vichysta no Rio de Janeiro, o que não impediu a divulgação, fora dos circuitos diplomáticos oficiais, da França resistente6. Em algumas circunstâncias, suas prioridades convergiram pela defesa da legitimidade francesa no campo das artes e do pensamento. O Ministério da Educação, por exemplo, não interviu na situação dos professores em missão nas universidades no Brasil e a turnê teatral de Louis Jouvet no Rio de Janeiro (subsidiada pelo governo Vichy em 1941) teve apoio de representantes da Resistência.
Segundo Suppo (2016), em declínio econômico desde a derrota de 1940, com exército e meios tecnológicos reduzidos, a estratégia do aparelho de Estado francês para conservar suas zonas de influência no mundo girou em torno da ação cultural e do poder simbólico prévio para tentar se reposicionar. Mas a França das Luzes e da Revolução concorria com modelos que reuniam mais poderes, como o capitalismo tecnológico norte-americano e a ideologia soviética, que também fariam da cultura um terreno privilegiado em estratégias de enfrentamento. A política cultural, como uma quarta dimensão das relações internacionais, ocupou lugar predominante naquela conjuntura. A França, assim como o Brasil, passava a depender de forma crescente, no plano financeiro, dos Estados Unidos. E intercâmbios voluntários ou forçados por razões políticas propiciaram uma tendência crescente para fortalecimento dos circuitos interamericanos no Brasil.
Embora os Estados tenham assumido papel central nessas relações internacionais, elas não podem ser compreendidas sem a atuação que indivíduos e grupos desempenharam. No circuito cultural franco-brasileiro, além do fenômeno de longa data das transferências culturais, no caso do concurso organizado por Beatrix, foi importante o estabelecimento de canais de comunicação que partiram do Brasil, em um momento frágil da democracia. Ela prometia que “os trabalhos premiados, serão levados para a França, onde serão mostrados às crianças, para que sintam o espírito de fraternidade dos meninos e meninas do Brasil” (O TICO-TICO, 1946, p. 11). E o concurso terminou sendo retratado como um acontecimento artístico-cultural, que contou com grande festa de encerramento:
Com a presença do representante do Presidente da República, realizou-se ontem a distribuição de prêmios às crianças brasileiras que participaram do concurso “COMO VE VOCÊ PARIS LIBERTADA?”, [...] notando-se a presença de autoridades brasileiras, amigos da França, centenas de crianças e numeroso público. Duas bandas de música, uma do Corpo de Bombeiros e outra do Corpo de Fuzileiros Navais abrilhantaram a festa. À chegada da embaixatriz da França ouviu-se a Marselhesa, no meio de profundo respeito. Discursou, abrindo a solenidade, o ministro da Educação Leitão da Cunha. [...] O Sr Liger Belair e a sra. Vani Michel declamaram poesias, sendo muito aplaudidos. Esta última recitou “Paris”, de Maria Eugenia Celso, e “Bresil”, da poetisa Beatrix Reynal. [...] Prestigiando o ato, viam-se representantes dos ministros da Guerra e da Marinha, o diretor do Liceu Francês, os professores Le Forestier, Michel Simon e Arbousse Bastide, o ministro Trajano Medeiros do Passo e adidos cultural e da Informação (CORREIO DA MANHÃ, 1945, p. 2).
Esses vestígios indicam o caráter oficial que o concurso assumiu, após suscitar vários textos sobre “Como seis mil crianças do Brasil vêem a cidade de Paris Libertada”, assinados por comentaristas como Jacinto Thormes, Bastos Tigre, Raquel de Queiroz, Tarsila do Amaral, Elsie Lessa, Rubem Braga, entre outros.
A recepção do concurso de desenhos na imprensa se orientou pela comoção, não só por conta do fim da guerra e das divisões internas francesas, mas também com a pletora de fantasia da mente infantil. Bastos Tigre (1945, p. 28), convidando os leitores para visitar a exposição, exprimiu que havia “trabalhos primorosos com imaginação; outros com sentimento instituído de proporção e perspectiva. Mas tudo ingênuo, infantil e, portanto sincero”. Afirmou que das formas de expressão a arte mater inicial é o desenho e que interessava para a intelectualidade observar como a criança começa a manifestar os seus pendores artísticos: “mal adquire o controle dos dedos; e inicia-se na representação a traço, de figuras humanas, navios, aviões, bandeiras, “tanks” (a de hoje que é francamente da guerra) em quantas superfícies plenas encontra a mão” (TIGRE, 1945, p. 28). A correlação entre imaginação e memória foram valoradas como positivas:
Beatrix Reynal, a insigne, resolveu aproveitar essa virtuosidade infantil, para fazer mais uma das suas campanhas pela aproximação espiritual franco-brasileira. E instituiu um concurso entre petizes nossos [...]. Confesso que, a princípio, quando li a notícia longamente propagada, de concurso, duvidei do sucesso que ele pudesse alcançar. É que, dos garotos de hoje em idade de concorrer, nenhum conhecia Paris, ou mesmo se algum lá estivesse estado, teria sido em idade de não lhe conservar memória. O cinema que é o turismo dos sedentários, em seis anos de guerra nada mostrou da cidade luz. O “contest” seria um fracasso. Enganei-me cubicamente. Eu não contava com a fina visão psicológica de Beatrix. Ela vira o que me escapara, que no Brasil já se nasce com a França no coração. Toda aquela gurisada conhecia Paris por instinto hereditário. Foram milhares de concorrentes, artistas em embrião. [...] E quantas vezes a Torre Eiffel, a Notre Dame aparecem nos desenhos, ambientando Paris! E a bandeira tricolor, a cruz Lorena, as notas da Marselhesa [...] dando cor e espírito local (TIGRE, 1945, p. 28-29).
Nas rodas artísticas, muitos buscavam uma estética nacionalmente orientada, em meio ao processo de demarcação do patrimônio histórico e artístico brasileiro, a profusão editorial das Coleções Brasilianas e da literatura regionalista, orientadas por um anseio de “sair” do paradigma estrangeiro (que tinha Paris como centro) e investir em conhecer o Brasil do ponto de vista do seu interior. O concurso vinha revestido da legitimidade conferida pelo júri e pelo apoio de Reis Júnior, que era formado pela Escola Nacional de Belas Artes e havia sido bolsista em Paris, onde o casal residiu entre 1932 e 1934. Ele publicou, em 1944, uma História da Pintura no Brasil (1944), elogiada por reunir amplo material acerca de artistas e obras do período colonial até a atualidade, e em 1945, era professor no Instituto de Belas Artes (ENCICLOPÉDIA, 2020, p. 1).
O concurso foi bem acolhido pelos articulistas do Rio de Janeiro, atentos à guinada à brasileira das artes. Isso foi mediado pelas ideias escolanovistas sobre a psicologia infantil e suas demandas pela modernização dos materiais e métodos do aprender7. Além das crianças serem vistas como categoria fundamental da comunidade nacional, o lúdico e o psicológico foram disposições que acionaram o quadro de referências e transferências de símbolos da França para o Brasil. Assim, ruas, casas e famílias de estilo colonial ou de bairros cariocas desenhadas, demonstravam transferências entre o vivido e o imaginado, estabelecidas no processo de criação de um relacionamento do próprio com o alheio.
A “cor e o espírito local” dessas traduções infantis são sintomas da instabilidade do processo e da sua plasticidade. A incerteza quanto à eficácia do concurso foi mencionada pelos articulistas (ainda que para reafirmá-la). Ao mesmo tempo, isso permite pensar nas dificuldades, contradições e limites do trabalho de memória. A falta de referências precisas não foi encarada como ponto negativo, mas valorizada sob a ótica da inocência, do sincero, do afetivo e do original: “andam agora por aquelas paredes ilustres, coisas gostosíssimas, uma festa ingênua e colorida de emoção” (LESSA, 1945, p. 1), que também permitiram um encolhimento do elemento trágico do sofrimento.
E a gente fica de nariz na parede esquecida da vida e do tempo, nesse mundo de surpresa, de inesperado, de espontaneidade e doçura, que é uma imaginação de criança. Paris libertada é tudo: é a gaivota que vai para a escola de mão dada com a mãe, o livro embaixo do braço, um ramo de flores, a bandeirinha tricolor e uma grande língua de fora, bem vermelha, insultuosa para o invasor desmoralizado, de [...] suástica no peito. [...] Um vem do Asilo da Misericórdia, Paris foi libertada “para que se usem de novo os bons perfumes”. E com um jeito de propaganda de revista cara, os frascos [...] com o nome do fabricante. Um outro tem uma tragédia inteirinha, doída e infantil, num símbolo triste: Paris libertada é [...] uma casa séria, de janelas fechadas, sem gente na janela, sem flor no jardim: o “Orphenat”. E a legenda: Com a libertação de Paris os órfãos encontraram seus abrigos (LESSA, 1945, p. 1).
Chama atenção a reverberação autorizada pelos pares: o concurso teve grande repercussão na opinião pública de críticos e educadores, que atribuíram um sentido construtivista ao ato de desenhar, como parte do exercício do pensamento, da expressão e da memória: lembrança e homenagem foram evocadas como partes integradas do desenvolvimento da inteligência, dos valores e das condutas, também em termos de efeitos concretos nos cérebros das crianças. Uma vez que a legitimidade dessa memória se calcava, em parte, nesses atributos da evocação, certo “maternalismo público” nas dinâmicas da formação educacional infantil foram veiculados como virtudes, que estavam sendo comprovadas em torno do concurso.
Atente-se para a questão, agora no texto de Mário da Silva Brito, que defendia a expansão do concurso em São Paulo:
Através dela vão ser incentivados temperamentos artísticos, vão ser apreciadas as repercussões na alma das crianças do momento mais belo da história francesa dos últimos tempos, vão ser homenageadas as ideias democráticas e libertadoras, vão ser infundidas no intimo das petizes de forma livre, brotada do poder criador de cada um noções de solidariedade e fraternidade humanas. É também uma homenagem que se presta à França: cujo destino o mundo todo acompanhou com carinho, refletindo essa atitude nas populações miúdas do Brasil. Para os professores e os interessados de perto em problemas educacionais e de psicologia infantil que se reflete poderosamente nas suas atividades [...] esse Concurso deixará abundante material [...] sobre a mentalidade da infância brasileira (BRITO, 1945, p. 2).
Muitas crianças produziram a partir de orfanatos e escolas de periferia: apesar de a diferença de classe ser mencionada na avaliação dos comentaristas dos desenhos, a iniciativa era elogiada justamente por se estender a todos, no estilo de uma defesa de educação pública, pelo viés da responsabilidade das elites, que desejavam educar as “massas” e estudá-las, considerando o papel pedagógico dos estímulos sensoriais, visuais, motores, etc. A transmissão de referências de Paris, criadoras de memória, indica a promoção de uma aproximação com modos de vida e lugares distantes em termos geográficos (e sociais) da maioria dos participantes, com a cidade “favorita” dos intelectuais e artistas, cujos símbolos já eram acionados nos próprios anúncios do concurso:
As crianças do Brasil vão ter o ensejo de demonstrar sua admiração e sua carinhosa simpatia à Cidade Luz, traduzindo num desenho ou numa aquarela o significado de Paris libertada e como vêem os seus “boulevards”, suas praças, seus jardins [...] enfim, toda a sua espiritual paisagem. Deixando livre curso à imaginação das crianças, certamente se obterá trabalhos de grande e inocente lirismo e rara originalidade (A NOITE, 1945, p. 4).
Essa memória não pode ser construída arbitrariamente, mas precisa satisfazer exigências de justificação sobre as quais repousam as suas condições de possibilidades e de duração (POLLAK, 1989): nas intersecções entre ações privadas e estatais (ou para-estatais), de pessoas e grupos que se engajaram na gestão do passado, a eficácia dos instrumentos dependia da ativação de certas disposições8. O concurso se tornou uma maneira de validar os estudos escolanovistas e estes, a um só tempo, de lhe conceder reconhecimento em circuitos nos quais o tipo específico da atividade (de criação pelo desenho) possibilitou reverberar à temática da libertação de Paris que lhe motivou. O desenvolvimento infantil e a “infância brasileira”, pela arte, figuram como formas de legitimar a comemoração. Os textos indicam a necessidade de reafirmar que “os 6.000 desenhos apresentados e a distribuição de 1.000 prêmios demonstram o êxito do concurso” (CORREIO DA MANHÃ, 1945, p. 2).
Tendo isso em vista, é possível perceber a constituição e a reprodutibilidade de um léxico: “Terra do espírito e cultura” e “Cidade luz liberta do invasor nazista” eram figurações, cujas recorrências (tropos) estavam sendo desafiadas e deslocadas pelo contexto de redefinição geopolítica das grandes nações. No repertório narrativo dos comentaristas, as amostras selecionadas nos jornais exprimem uma unidade nacional imaginada no iluminismo e na Revolução Francesa dos direitos universais (liberdade, igualdade, fraternidade), reafirmadas pela Resistência Francesa. Ali, Paris figura não só como a capital da França, mas também como a capital cultural do mundo civilizado.
Dos trabalhos premiados, que foram expostos em jornais e revistas, em parte reproduzidos pela Figura 1, destacam-se os monumentos do Arco do Triunfo e da Torre Eiffel, representados dentro de um coração, com a frase em francês, em caixa alta “Paris Libertada... Aqui é a grande felicidade. Em alegria, em vida... Tudo ao fundo do coração”, com o nome da França lá em cima, junto ao Galo (símbolo da nação), que derrubam um mastro quebrado com a bandeira nazista e a águia alemã, situados fora. O terceiro trazia inscrito: “e, novamente, Paris ilumina o mundo”, com a bandeira da França disposta sob o Arco do Triunfo, do qual emana um feixe forte de luz que atinge um globo terrestre. No do meio, crianças e adultos fazem festa, com um grande sol que vem do céu e da própria cidade, enfeitada com bandeiras e com a palavra de ordem.
Tanto as crianças, quanto o público de leitores e de visitantes, tiveram diante de si essas recorrências, reproduzidas pelos suportes da cultura histórica de forma mais ampla. O estabelecimento da coerência narrativa e de uma ordenação cronológica entre acontecimentos (os nazistas saindo da cidade, logo a cidade retomando a sua luz) se fez por meio de chaves com tendência estereotipada: a libertação de Paris representa o fim da barbárie. Dialogando com Pollak (1989), vemos, também no Brasil de 1945, desaparecerem dessas comemorações os deportados de roupa listrada, que se integram mal no desfile de ex-combatentes, ainda que o autor do crime (“a Alemanha”) ocupasse o primeiro lugar entre os acusados e fosse representada como perdedora. As amostras selecionadas para os jornais coadunam com a imagem da tradição civilizadora da França e com os eufemismos que eram usados para justificar a própria política colonial (uma França que civiliza e liberta ao invés de colonizar, por exemplo).
Retomava-se um conteúdo prévio de representações dominantes que valorizavam a ideia da civilização francesa na sua primazia no campo artístico, que tanto inspirou o Brasil das letras, da arquitetura do Rio de Janeiro e outras cidades, em contraste e em reação à imagem de um país que saiu da guerra humilhado pelo nazismo, que dominou por anos Paris e cerca de três quintos de seu território, e teve parte significativa de sua população como partidária (PEREIRA, 2014, p. 73). Os produtos culturais franceses que as elites brasileiras consumiam (teatro, livros, moda, gastronomia etc.) alimentavam essa memória gaullista. Parte dela, criticamente direcionada contra o imperialismo ianque. Os artigos registram os vestígios da crescente influência dos Estados Unidos e do americanismo, sobretudo pelo cinema, e pelos produtos comerciais tecnológicos9. A premissa de uma unidade cultural da comunidade francesa e dos países do continente americano de origem lusa e espanhola (“America Latina”) era articulada pela latinidade, isto é, pelas tradições comuns do catolicismo e das línguas derivadas do latim, em suas diferenças com o universo cultural anglo-americano.
Perante o hiato gritante do regime vychista, a semântica da liberdade foi incorporada ao tema da guerra, por meio de categorias focadas na reconstrução e no esquecimento da colaboração, ou melhor, vê-se uma reconversão operada, de modo que o repertório que faz jus ao passado revolucionário e democrático fosse possível de ser expresso pelo signo da Resistência, contra a imagem de um lugar decadente ou corrompido. A profusão de tantos artigos indica a necessidade de reafirmar que se manteve “viva a chama do espírito gaulês entre nós” e que a iniciativa no Brasil:
[...] foi recebida no mundo escolar onde as nossas crianças, desde cedo, aprendem a admirar a pátria de tantos vultos da Humanidade. O espírito infantil, simples, mas por isso mesmo profundamente sintético, apreendeu com facilidade o tema do concurso, daí resultando [...] variadas concepções da cidade-luz libertada [...] oportunidade de verificar que também as crianças brasileiras creem na terra de liberdade, onde foi escrita a música da imortal Marselhesa, e onde se proclamaram os Direitos [...] (TICO-TICO, 1946, p. 11).
Esse passado glorioso e embelezado ganhava um núcleo ancestral simbolicamente imune. A França da Resistência, pelo episódio da Libertação, é uma atualização da França da Revolução e da belle epoque, “mas sem radicalismos.
Um país respeitoso e defensor da autodeterminação dos povos americanos” (SUPPO, 2016, p. 13). Pela memória, a Paris que circulou nos periódicos cariocas representa a resistência aos extremos, e, possivelmente o anseio de uma espécie de posição intermediária entre o capitalismo e o comunismo.
Em 1946, alguns desenhos premiados (não se sabe ainda quais) foram escolhidos por Beatrix e seu juri e enviados para Paris, mais ou menos no mesmo período em que o Ministério das Relações Exteriores da França da Quarta República enviou oradores aos países da América Latina para afastar a imagem de França do nazismo e de Vichy, com a ideia de que o regime teria sido “um incidente incompatível com o espírito francês” (PEREIRA, 2014, p. 76). A missão do coronel Livry-Level passou por vários estados brasileiros e depois pelos países vizinhos, com palestras nos polos da Aliança Francesas e em auditórios públicos. Esforços diferentes convergiram para transmitir que as causas da derrota de 1940 e da ocupação não se deviam a um declínio da nação, mas ao sofrimento e às perdas materiais causadas pela Primeira Guerra, e que o povo francês teria permanecido patriótico e anti-alemão, com exceção de alguns “bandidos encontrados em todos os países” (PEREIRA, 2014, p. 77).
A principal questão que dizia respeito à cena pública brasileira, naquele ano, a da transição de fim do Estado Novo, também foi acionada nos artigos por meio da memória da Resistência francesa. O dissenso de parte do grupo atuante em torno do concurso com relação ao autoritarismo do governo pode ser percebido no retrato da exposição como “uma festa, no pitoresco, na doce ingenuidade destes meus brasileirinhos sem DIP na imaginação” (LESSA, 1945, p. 1). Se a conjuntura se apresentou desfavorável às memórias marginalizadas da guerra, ela também suscitou a irrupção de uma vontade de memória crítica da Ditadura do Estado Novo, mediante as transformações políticas em andamento, que colocou em crise o seu aparelho de Estado10. A queda da Era Vargas se une com o “triunfo das ideias liberais que a França encarnava” (SUPPO, 2016, p. 10) e muitos intelectuais, mesmo os que eram seus colaboradores, adotariam, de forma menos velada, uma tomada de posição em nome da liberdade. Mas essas identificações se deram muito mais via usos de tropos da liberdade, do que por ataques diretos à pessoa ou ao governo de Vargas na imprensa, naquele momento.
A partir dos objetos confeccionados, dos desenhos-monumentos em papel, os artigos de jornais e as revistas mobilizaram e ajudaram a construir suportes de memória, com datas e personagens, e a organizar lembranças que se inserem na memória da coletividade, cuja importância os leitores eram incessantemente relembrados, revestida de uma suposta leveza, própria do infantil. Tudo isso indica um processo de “negociação” para conciliar memória coletiva e individual e o alargamento do “papel” das mulheres no “cuidado” das nações, em direção à tarefa da memória. “Como vê você Paris libertada” serviu socialmente, politicamente e culturalmente de argumento para legitimar proximidades entre Brasil e França, em função dos combates do presente e do futuro, presumidos por pessoas e grupos, cuja autoimagem se ligava a das vanguardas parisienses, e que atuaram no sentido de transmitir valores, ideias e identidades, que fazem da memória parte do domínio da cultura, e da lógica da configuração social que uma pessoa forma, em sua interdependência com outras e com movimentos sociais da época. Esses registros nos periódicos emergiram na cena social trazendo uma memória para a qual buscaram reconhecimento.
No processo de criação e divulgação em torno do concurso de desenhos, notam-se que formas de autoidentificação, de valorização e de reconhecimento público foram se formando, também, com estratégias de inserção social da persona de Beatrix Reynal no espaço público anteriores e que também se estendem para depois do concurso. Seu nome era destacado em negrito e/ou em caixa alta nas publicações, fazendo questão de ser mencionada como poetisa, marca reverberada na recepção pelos pares: “Fecha-se, assim, com chave de ouro, a atuação da grande poetisa Beatrix Reynal no período da guerra em que tanto trabalhou para manter a chama do entusiasmo e da fé na redenção da França” (O MALHO, 1945, s.p.). O trabalho da memória envolve a escolha de porta-vozes autorizados que investem nele: ela foi a responsável pelo concurso, “confiável aos olhos dos dirigentes, a tomar publicamente a palavra” (POLLAK, 1989, p. 10).
Parabéns a Beatrix Reynal, cujo sopro de poesia manteve e está mantendo ainda a chama sagrada do amor pela França, o culto pela espiritualidade francesa. A vitoriosa exposição organizada por Beatrix foi mais um dos seus encantadores poemas pela glória, pelo esplendor da França eterna (TIGRE, 1945, p. 29).
Ao confrontar os vestígios da sua trajetória com os condicionantes de classe e de gênero, destaco que o mecenato privado intelectual e artístico exercido por Beatrix se aliou a iniciativas empreendidas por famílias de diplomatas e magnatas da imprensa, que sinalizam a presença, ainda que em parte velada, de mulheres da elite nos quadros dirigentes de entidades culturais e de assistência. Como poetisa, periodista e filantropa, sua atuação reafirma a relação existente na época entre intelectuais e Estado, já ressaltada por vários pesquisadores como uma característica estruturante da produção cultural brasileira a partir dos anos de 1930, e indica caminhos de investimentos privados em direção ao Estado ainda pouco conhecidos, ligados às disposições aqui exploradas. Na cidade do Rio de Janeiro, capital federal, a cooptação para os quadros do Estado e o uso de capitais públicos para seus projetos era mais evidente (MICELI, 1996, p. 16), mas o caso de Beatrix permite pensar percursos de origem inversa.
A memória opera ressignificações e atualizações de repertórios identitários nacionais, mas também reconversões sociais no seio da competição entre as elites locais, conforme as mudanças políticas em curso e o tipo de ajuda material e moral prestada por Beatrix pelo engajamento nessas campanhas. A distinção social era gerada ou reforçada em função delas, ao mesmo tempo que uma narrativa foi sendo articulada sob o signo da atuação social e cívica, que marcou sua própria identidade enquanto “mulher da resistência”, uma vez que, a partir de 1946, ela foi condecorada com várias medalhas (Itamaraty, Cruz Vermelha, FEB, Legião de Honra, Associação de Ex-Combatentes, Associação Francesa dos Amigos Combatentes, etc.) (CORREIA, 1998, p. 304). Artigos posteriores a 1945 insistirão na memória do próprio concurso e em destacá-la como “condecorada poetiza” e “convidada pelo governo francês” (A MANHÃ, 1946, p. 8).
Estabelecendo um diálogo com Neiburg (1993), pode-se dizer que, em seus usos das “coisas francesas”, Beatrix e outros atores procuravam fazer de sua capacidade de interpretar o mundo um aspecto de sua própria “sociodicéia”, isto é, uma forma de construir sua identidade como intelectuais e artistas, produzindo uma imagem do mundo social pela via da memória e, ao mesmo tempo, um lugar para si mesmos nele/nela. A construção social da memória individual e coletiva mantém essa interrelação constante, com modos específicos em cada caso empírico. Neste caso, o concurso de desenhos apresentava convergências com o programa de rádio que a mecenas coordenou na mesma época e com os livros de poesia de sua autoria, como “Poèmes de Guerre” (1943), no qual a autora incorpora na linguagem poética uma evocação de seu passado provençal, junto aos sofrimentos e heroísmos observados pelo eu poético, relativos à guerra.
Semelhante à exigência de justificação coletiva no trabalho de reinterpretação do passado, nota-se uma exigência de credibilidade do lugar de “amiga da França”, que dependia da coerência dos discursos sucessivos. Essa identidade estava ligada às possibilidades de ela sustentar uma narrativa: o pertencimento francófilo de Beatrix “não poderia mudar de direção e de imagem brutalmente, a não ser sob o risco de tensões e cisões difíceis de lidar se os aderentes não pudessem mais se reconhecer nelas” (POLLAK, 1989, p. 10).
A movimentação do concurso resultou no translado e na exibição de desenhos vencedores na França em 1946 e também culminou numa reclamação pública, por parte dos intelectuais brasileiros ao Estado francês, pelo reconhecimento oficial a Beatrix, como uma obrigação de reconhecer o heroísmo de seus membros, ainda que se encontrassem em outro país. Uma reparação perante a contribuição de Beatrix caberia ao Estado, como se a nação estivesse, para sempre, em dívida com ela. A memória se desloca para o ato individual (do herói), responsável pela grandiosidade da nação. A memória acionada, por meio de demandas do presente, era capaz de estimular medidas que influiriam no futuro da comunidade francófila e da própria Beatrix, e adquire também uma função de recompensa. Como a pesquisa lida com meios sociais das elites, reside aí uma função e um sentido de distinção social: a memória pode ser um caminho de se lançar como autora e como liderança, de validar sua produção e trajetória afrancesadas no Brasil.
Desse modo, representações da nação eram atravessadas por auto-representações da escritora. Trata-se de um modo de transmissão cultural da Resistência Francesa como um modo de salvaguardar a amada França, duplamente enquanto referência civilizacional e afetiva, frente à explicitação dos horrores que se tramaram no velho continente e às diversas crises desdobradas da guerra (entre elas, a falência financeira que atingirá a família de Beatrix). Elas respondem a experiências específicas e a uma agenda, que exprimem uma gestão da memória que teve Beatrix Reynal como porta-voz no Brasil.
A construção de uma coerência e de uma continuidade que Beatrix buscou para sua própria história de relação com a França indica que, assim como as memórias coletivas, a memória individual (de uma persona), resulta da gestão “de um equilíbrio precário, de um sem número de contradições, tensões” (POLLAK, 1989, p. 13) e regras, que dependem das possibilidades de enquadramento e comunicação em cada configuração social. A memória coletiva funcionou como um investimento e um recurso individual mobilizado por ela, com os ônus e os bônus de sustentar essa identidade ao longo do tempo e do espaço.