ARTIGO
Recepção: 15 Abril 2020
Aprovação: 29 Setembro 2020
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2020.168828
Resumo: A elite jornalística que se consolidou entre o período ditatorial e os anos de redemocratização se constituiu por meio de estratégias de legitimação e simbolização que podem ser deduzidas dos registros biográficos e memorialísticos de seus membros. A fim de perscrutar os processos de monumentalização de trajetórias e nomes consagrados, investiga-se as condições de produção de livros de memórias, biografias, depoimentos para produção científica, registros destinados a entidades de classe e instituições voltadas à preservação da memória e da história, datados entre a segunda metade do século passado e a primeira década do século 21. O objetivo é demonstrar por meio da análise das condições de produção - entendidas como contexto de publicação, autoria, origem na iniciativa e modelos textuais adotados - as potencialidades de tais registros para comprovar a existência material, política e intelectual de proeminentes personagens da história da imprensa brasileira.
Palavras-Chave: Elite Jornalística, Biografias e Memórias, Sociologia das Elites, História da Imprensa, Sociologia da Cultura.
Abstract: The premise that sustains the present argumentation is the inference that the journalistic elite consolidated between the dictatorial period and the years of redemocratization was constituted by means of legitimation and symbolization strategies that can be deduced from the biographical and memorialistic records of its members. In order to examine the processes of monumentalization of established trajectories and consecrated names, we scrutinize the conditions for the production of memoir books, biographies, testimonies for scientific production, records destined to class entities and institutions aimed at the preservation of memory and history dated between the second half of the last century and the first decade of the 21st century. The objective is to demonstrate through the analysis of production conditions understood as the context of publication, authorship, origin of the initiative and adopted textual models the potentialities of such records to prove the material, political and intellectual existence of prominent characters in the history of the Brazilian press.
Keywords: Journalistic Elite, Biographies and Memories, Sociology of Elites, Press’s History, Sociology of Culture.
INTRODUÇÃO
A última virada de século foi, para muitos jornalistas, pesquisadores e instituições um momento dedicado ao registro dos grandes fatos e personagens da história do jornalismo. Entre a década de 1990 e os anos 10 do século atual houve uma profusão de registros biográficos e memorialísticos de jornalistas e, entre eles, houve publicações que retrataram as trajetórias de indivíduos considerados representativos de uma época e de um fazer jornalístico peculiar a um tempo em que imprensa, literatura e política eram instâncias intrinsecamente relacionadas. Nelas a vida de jornalistas consagrados foi monumentalizada e associada a fatos históricos fazendo com que seus autores, muitos deles também jornalistas, se tornassem a um só tempo artífices e personagens da história.
Diante desse surto memorialístico, e considerando as fontes documentais dele derivadas, se sobressai uma característica especial que expressa um desencontro entre a identidade jornalística consagrada e a identidade profissional que se consolidou no final do século 20 . Em outras palavras, enquanto as narrativas memorialísticas difundem uma identidade jornalística aproximada da figura do escritor e militante político, a partir dos anos 90 essa identidade se tornou cada vez mais técnica e, portanto, díspar do ideal romântico que até o início do século 20 marcou o imaginário social e cultural no que diz respeito ao jornalista.
Objetivando compreender essa contradição, o presente estudo se concentra nas condições de produção dos registros biográficos e memorialísticos. Foi realizada uma investigação que visou compreender as estratégias de controle e coerência empreendidas pelos autores em narrativas de histórias de vidas. Objetivou-se com isso, destacar como essas estratégias expõem os percursos efetivados pelos jornalistas, uma vez que nos seus depoimentos estão registradas as transformações transcorridas não apenas no jornalismo, mas também na produção cultural (BOURDIEU, 1996).
A análise das condições de produção dos registros biográficos foi constituída por uma investigação do contexto de publicação, dos elementos autorais das obras e da origem das iniciativas memoriais. Em tais fontes estão presentes elementos identificadores das trajetórias pessoais e profissionais, mas não apenas isso. As especificidades das narrativas de história de vida - exposição de dados como origem social, escolaridade, trajetória profissional e histórico da produção intelectual - ensejaram várias análises associadas às formas como os autores retratam suas experiências e justificam suas vocações e como silenciaram sobre as circunstâncias que geraram suas inclinações. De acordo com Miceli (2001), a relevância dessa modalidade de fonte é que através das digressões contidas nas narrativas é possível para o pesquisador reconstruir as determinações sociais da existência dos agentes, os padrões de organização, os conflitos hierárquicos e a lógica de funcionamento do grupo social.
As fontes perscrutadas compreenderam livros de biografias e memórias, depoimentos dados a instituições voltadas para documentação e pesquisa científica, testemunhos dados a entidades dedicadas à preservação da memória, acervos constituídos pela institucionalização de arquivos pessoais, os livros de historiografia da profissão e a extensa produção acadêmica sobre o assunto. Além disso, foram realizadas entrevistas com alguns desses jornalistas biografados1 e pesquisadas as edições de jornais e revistas publicadas entre 1970 e 2010 e constantes do acervo da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional2 e Acervo Folha3 do jornal Folha de S.Paulo.
Os resultados da investigação dos registros biográficos e memorialísticos da elite jornalística brasileira que se estabeleceu entre o período ditatorial e os anos de redemocratização evidenciam o diálogo entre os registros da origem e as trajetórias sociais dos jornalistas consagrados, a estrutura hierárquica e os conflitos internos que permitem mapear o mercado profissional jornalístico. Cumpre destacar que o termo “elite” em questão não se associa à forma cristalizada pelo senso comum associada aos grupos detentores de poder político e econômico, tampouco está se falando de grandes empresários da mídia, âncoras de telejornais de emissoras de rádio e TV líderes em audiência. A elite jornalística em questão ascendeu em um contexto específico, a saber, a segunda metade do século 20 quando então se constituía a Indústria Cultural brasileira. No meio jornalístico os membros da elite em análise detêm um grande prestígio e influência e são celebrados com trabalhos acadêmicos e registros memorialísticos da profissão. Isto é, eles fazem parte de um seleto grupo dentro da hierarquia da elite jornalística, assim reconhecido por seus pares.
Este artigo objetiva desenvolver o argumento segundo o qual a elite jornalística da segunda metade do século 20 se constituiu por meio de processos de monumentalização e estratégias que garantiram aos seus membros existência intelectual, política e material. Para tanto é necessária uma análise das condições de produção - a saber, as origens das iniciativas, a questão autoral e o contexto de produção - das reminiscências desses jornalistas. Tais condições revelam tanto as instâncias de consagração dessa elite profissional quanto os recursos necessários de legitimação aos quais está submetida.
ORIGEM DAS INICIATIVAS: EDITORAS, INSTITUIÇÕES, ENTIDADES, PORTA-VOZES
Abordar as origens das iniciativas memorialistas significa perscrutar os bastidores da produção, as estratégias e os investimentos subentendidos nesses registros. Em outras palavras, trata-se de evidenciar dados como autoria, editoras, patrocínio, instituições responsáveis e a natureza política, artística, mercadológica ou científica desses registros. E relacionar a procedência dessas iniciativas com a estrutura hierárquica, as mudanças na distribuição do poder, os mecanismos de recrutamento e a estrutura dos meios de produção e reprodução cultural no mercado jornalístico. A procedência de tais iniciativas memorialísticas também suscita reflexões acerca do processo de monumentalização a que são submetidos aqueles que são constituídos como nomes próprios da historiografia da profissão. Como será demonstrado nos parágrafos seguintes, descrever e categorizar de onde partiram os empreendimentos memoriais, evidencia as instâncias ou espaços de consagração dos membros dessa elite profissional. Previamente saliento que esses espaços de consagração são a imprensa, a literatura, a política e a universidade. Isso significa dizer que, em suas trajetórias os jornalistas transitam entre essas quatro esferas, sendo que às vezes podem abandonar e retornar a uma delas ou mesmo estarem em mais de uma concomitantemente, dependendo do contexto. Importa ressaltar que essa condição os circunscreve dentro desses limites no intercurso do processo de ingresso e ascensão às posições de destaque. Por isso, quando em seus relatos biográficos fazem referência à participação na modernização da imprensa ou em revistas e jornais emblemáticos, à conquista de um prêmio literário, à militância política, à reprodução de um padrão de narrativa e à ascensão na carreira acadêmica, os memorialistas estão acionando marcadores de prestígio, que na prática, funcionam como insígnias de notoriedade.
Primeiramente, no que se refere ao espaço de consagração do jornalismo, o registro das memórias de jornalistas consagrados é realizado sobretudo pelos próprios agentes, os jornalistas, amparados por pequenas ou grandes editoras. Existem também projetos institucionais, como a iniciativa do Grupo Globo que disponibilizou no seu portal institucional os depoimentos dos funcionários na seção Memória Globo4.
Quanto ao espaço de consagração da literatura, as instâncias legitimadoras são especialmente as academias de letras e os prêmios literários. No site da Academia Brasileira de Letras há uma seção na qual consta a biografia dos seus membros, entre eles, Carlos Heitor Cony e Zuenir Ventura. Ana Arruda Callado e José Louzeiro pertencem às academias de letras carioca e maranhense, instituições municipais congêneres. Outra instância legitimadora são os prêmios literários e nesse quesito o prêmio Jabuti funciona como uma instituição de relevância para a conquista de projeção, no caso do jornalismo, um atestado de pertencimento à elite profissional.
São detentores do prêmio aqueles profissionais que se situam em posições de maior visibilidade como Carlos Heitor Cony, que recebeu prêmio por A casa do poeta trágico (1997, Editora Nova Fronteira), Quase Memória (1996) e Romance sem palavras (2000) os dois últimos publicados pela Companhia das Letras; Zuenir Ventura foi premiado com o Jabuti na categoria reportagem em 1995 pelo livro Cidade Partida (1994, Editora Companhia das Letras) e por Sagrada Família (2013, Editora Alfaguara). Em 2011, Míram Leitão foi duplamente premiada com o Jabuti nas categorias livro reportagem e livro do ano por Saga brasileira: a longa luta de um povo por sua moeda (Editora Record). Em 1963, João Antônio recebeu o prêmio precocemente, aos 26 anos, pela obra Malagueta, Perus e Bacanaço (1963) cuja primeira edição saiu pela Civilização Brasileira, editora do renomado Ênio da Silveira. Naquele ano o Jabuti premiou João Antônio como autor revelação e pelo melhor livro de contos. Mas não foi a única vez que o escritor paulista recebeu a honraria, em 2013 foi premiado por Guardador. Fernando Gabeira e Alfredo Sirkis ganharam em anos consecutivos o prêmio Jabuti na categoria biografia pelos livros O que é isso companheiro? (1979, Codecri) e Os Carbonários (1981, Editora Global), respectivamente. Bernardo Kucinski conquistou o prêmio Jabuti em 1997 com O jornalismo econômico e os paradoxos da economia (1996), o livro ganhou na categoria Economia, Administração, Negócios e Direito e foi resultado de sua tese de livre docência defendida em 1995.
Não passa desapercebido o fato de Kucinski ter recebido o prêmio por um trabalho acadêmico e é possível inferir que o fato seja sintoma do processo de desenvolvimento profissional do campo acadêmico pois, como será demonstrado adiante, nos anos 2000, aumentaram os casos de publicações jornalísticas advindas de pesquisas científicas realizadas por jornalistas na condição de docentes. Além disso, tais trabalhos científicos publicados em livros empreenderam análises históricas e estão envolvidos diretamente no processo de monumentalização de trajetórias e produções jornalísticas. Muitas dessas obras receberam edições primorosas feitas por editorias de prestígio, como Jornalistas e Revolucionários de Kucinski, publicada pela Edusp em 2003. Outras foram publicadas por editoras menores, mas, ainda assim, resultaram na monumentalização de personagens e histórias como Realidade revista - a história e as melhores matérias da revista que marcou o jornalismo e influenciou as mudanças no país, livro de José Hamilton Ribeiro e José Carlos Marão publicado em 2010 pela Editora Realejo. Há também uma relação entre a publicação por grandes editoras e a notoriedade da obra. Mylton Severiano, por exemplo, que possui uma posição outsider - ainda que reconhecido entre os jornalistas como uma figura de prestígio na elite profissional - concorreu sem sucesso ao prêmio Jabuti na categoria reportagem em 1997 com um dos seus livros, Se liga! O livro das drogas, que foi publicado pela Editora Record.
No que diz respeito à literatura, é possível deduzir que os âmbitos de projeção elencados possuem gradações de poder de consagração, a exemplo da distinção entre o pertencimento à Academia Brasileira de Letras e suas versões estaduais, o que corresponde ao posicionamento distinto dos jornalistas deles integrantes. Carlos Heitor Cony e José Louzeiro se situam diferentemente na hierarquia da profissão embora tenham tido trajetórias semelhantes. Nos livros sobre história da imprensa essa diferenciação também se reflete. Entretanto, no território da historiografia alguns jornalistas somam à qualidade de personagem a condição de artífices da história.
Michel de Certeau (2010) postulou que devemos interpretar a História como uma operação, o que solicita compreendê-la como resultado da relação entre um lugar social, uma prática e uma escrita. O historiador assevera que toda a pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção social, econômico, político e cultural e é em função desse lugar que são instaurados métodos e estabelecidos documentos, interesses e questões. Como prática, a História é resultado de métodos e técnicas de produção empregadas costumeiramente por pesquisadores profissionais; como uma escrita ela já nasce impregnada da subjetividade do historiador, de seu repertório como membro de um corpo social e de uma instituição do saber.
É preciso ponderar sobre essas reflexões de Certeau especialmente quando tratamos das duas esferas em que os registros biográficos e memorialísticos são mais prolíferos: os âmbitos da política e da universidade. Essas duas instâncias de consagração demonstraram ser as mais preocupadas em deixar para a posteridade a história da vida de seus representantes, monumentalizar nomes e trajetórias e constituir uma narrativa que edifique uma memória coletiva do jornalismo. Os exemplos existentes na historiografia da imprensa demonstram o quão relevantes são as esferas de atuação da militância política e da universidade para a entrada no jornalista no panteão de notáveis da profissão.
Na instância de consagração da política é possível encontrar iniciativas memorialísticas que datam do final dos anos de 1990, como o livro Jornalistas: 1937 a 1997: história da imprensa de São Paulo pelos que batalham laudas (terminais), câmeras e microfones. O livro assinado por José Hamilton Ribeiro apresenta uma reunião de depoimentos de “quase 50 jornalistas” e foi publicado em 1998 em celebração ao aniversário de sessenta anos do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo. Ribeiro chegou a presidir a entidade junto com Carlos Fon entre 1990 e 1993 e participou do Projeto Memória que surgiu no sindicato em 1994 com o objetivo de resgatar e preservar a memória “ainda viva na cabeça dos nossos jornalistas mais antigos” (RIBEIRO, 1998, p. 16). Não é estranho portanto, que Ribeiro apareça na obra como autor e personagem, uma vez que é considerado um dos porta-vozes mais capacitados ao enquadramento da história da entidade (POLLAK, 1989).
Após 10 anos, em abril de 2008, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro lançou o CCMJ (Centro de Cultura e Memória do Jornalismo) com uma finalidade similar, a de “preservar e registrar a história da imprensa brasileira, através da constituição de um acervo e do desenvolvimento de atividades e produtos a serem difundidos entre profissionais, estudantes e o público em geral”5. Além disso, em seu site o CCMJ prevê que o centro seja um espaço para o aprimoramento e o debate acerca da atividade jornalística na atualidade. Foram entrevistados por pesquisadores da entidade carioca os jornalistas Alberto Dines, Mylton Severiano, Ana Arrruda Callado, José Louzeiro, José Hamilton Ribeiro e Zuenir Ventura. Salienta-se que os citados tiveram algum grau de atuação, seja sindical, seja na imprensa alternativa, o que os capacita como porta-vozes aptos para a edificação da memória corporativa.
A imprensa alternativa dos anos de 1970 detém significativo valor para os jornalistas do século 20. A fim de resgatar sua história por meio do relato daqueles que a fizeram, o Instituto Vladimir Herzog intensificou esforços no final dos anos de 2000 ao desenvolver o projeto “Resistir é Preciso”6 e produzir o registro dos depoimentos de sessenta jornalistas considerados protagonistas da imprensa alternativa.
Os depoimentos podem ser conferidos no portal do “Resistir é Preciso”. Entre os jornalistas entrevistados pelo instituto estão Ana Arruda Callado, José Hamilton Ribeiro, Bernardo Kucinski, Mylton Severiano e Carlos Azevedo. O Instituto Vladimir Herzog foi responsável ainda pelo portal “Memórias da Ditatura”, criado para difundir junto ao grande público, e em especial ao público jovem, a História do Brasil entre 1964 e 1985. Em ambas as iniciativas se sobressai a intenção de contar a história pela perspectiva daqueles que se posicionaram contra a repressão no passado e as premências do presente relacionadas ao dever de memória.
O espaço de consagração da universidade é destacadamente o mais profícuo em registros memorialísticos e atua fortemente no processo de monumentalização de nomes consagrados. Pode-se conjecturar que a copiosa quantidade de depoimentos de jornalistas e projetos memoriais oriundos do âmbito acadêmico é um desdobramento da consolidação do sistema nacional de apoio à pós-graduação e à pesquisa7 que, a partir dos anos 70, propiciou inúmeros trabalhos a respeito das personalidades e produções da imprensa que se convencionou categorizar como dignas de registro histórico. Os trabalhos acadêmicos centrados na história da imprensa produzidos a partir de então se engajaram na narração de uma memória coletiva, ao mesmo tempo monumentalizadora de personagens e unificadora da classe profissional em torno de uma história comum.
No registro científico e historiográfico da elite jornalística, os notáveis profissionais da imprensa podem figurar como objeto de pesquisa (fonte histórica, testemunha, tema), como autores de livros de história da imprensa, ou ainda, como personagens e artífices da história ao mesmo tempo. Entre as iniciativas científicas citarei as que tiveram maior projeção e se tornaram obras de referência no processo de monumentalização de trajetórias profissionais e produções editorais jornalísticas.
Os testemunhos de jornalistas foram alvo de dois trabalhos de pesquisa publicados pelo Centro de Documentação e Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC-FGV), Eles Mudaram a imprensa: depoimentos ao CPDOC (2003)8 e Elas ocuparam as redações: depoimentos ao CPDOC (2006)9. A primeira publicação reúne os depoimentos de profissionais considerados agentes da modernização da imprensa e a segunda apresenta um conjunto de jornalistas consideradas pioneiras e modernizadoras ao se destacarem na profissão na segunda metade do século 20. Elas ocuparam as redações apresenta um enfoque especial na relação intrínseca entre a obrigatoriedade do diploma e o processo de feminilização da profissão, fenômeno ilustrado pelo depoimento de Míriam Leitão e Ana Arruda Callado. A segunda obra faz um contraste com a primeira que elenca alguns nomes masculinos da elite profissional que ascenderam na profissão destituídos de diploma, a exemplo de Alberto Dines.
Alberto Dines e Ana Arrruda Callado, ambos jornalistas cariocas consagrados referendados na pesquisa do CPDOC estão presentes no Memória do Jornalismo Brasileiro, projeto desenvolvido pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro no final da primeira década do século 21. No site do projeto consta que a iniciativa visa à montagem de um arquivo de memória oral composto por entrevistas com profissionais que atuam ou atuaram na imprensa brasileira e que possam falar sobre fatos e processos importantes para o entendimento da dinâmica histórica dos meios de comunicação jornalísticos. Entre os objetivos está a formação de um quadro de pesquisadores da história da comunicação e da mídia. Em outras palavras, existe a intenção de formar uma nova geração de historiadores da mídia capazes de atuar na consolidação dos registros da história da imprensa.
A dimensão que a história da imprensa conquistou no âmbito acadêmico pode ser inferida pela institucionalização de arquivos pessoais de jornalistas realizada nas últimas décadas, como os de João Antônio e Carmen da Silva, o primeiro sediado do Centro de Documentação e Apoio à Pesquisa Profa. Dra. Anna Maria Martinez Corrêa (CEDAP) da Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho (UNESP) e o segundo sob custódia do Programa de Pós-Graduação em Letras da FURG (Universidade Federal do Rio Grande). Tanto no caso do Acervo João Antônio10 como no projeto de pesquisa intitulado “Carmen da Silva, uma rio-grandina precursora do feminismo brasileiro” que resultou em um site11 dedicado à jornalista e escritora, podem-se encontrar desdobramentos comuns ao processo de institucionalização dos arquivos pessoais. Em ambos os casos pode-se perceber que a deliberação em torno da monumentalização desses dois jornalistas está implícita tanto em seus registros autobiográficos quanto nas conformações de seus acervos. Os jornalistas memorialistas já falecidos deixaram obras literárias plenas de investimentos autobiográficos12 e ambos estão entre aqueles que mais vezes foram tema e objeto de produções acadêmicas, grande parte delas originadas nas universidades que abrigam os seus arquivos pessoais. É possível supor que a deliberação em torno da construção da imagem desses jornalistas foi continuada pelos trabalhos científicos que tiveram esses acervos como fonte de pesquisa. Considerando que não se pode equiparar vida e obra, ou ainda, trajetória e arquivo pessoal - uma vez que no primeiro caso se silencia a respeito da construção individual empreendida pelos jornalistas e escritores quando vivos, e no segundo caso, se escamoteia o investimento dos agentes que atuam para controlar o legado dos titulares (HEYMANN, 2012, p. 75) - pode-se deduzir que o percurso de monumentalização desse nomes próprios do jornalismo começou com o ingresso no campo literário e foi continuado pela institucionalização dos seus acervos nas universidades.
Há casos de jornalistas que se tornaram produtores da história após migrarem para a carreira universitária. Alberto Dines, Zuenir Ventura e José Hamilton Ribeiro conciliaram as carreiras jornalísticas e acadêmicas e produziram obras históricas, porém utilizando a linguagem literária e jornalística. Ribeiro dedicou-se a escrever sobretudo a partir do seu lugar de sindicalista e membro da primeira equipe de redação da revista Realidade. Cumpre lembrar que Realidade13 consta como um símbolo de revista de reportagem em vários trabalhos acadêmicos nos quais o testemunho de José Hamilton está presente, bem como, os de outros jornalistas que dela fizeram parte.
Alberto Dines14é exemplo de jornalista autodidata que a despeito de ausência de diploma de nível superior conseguiu dar aulas em cursos universitários de jornalismo em função do seu “notório saber”. É autor de O papel do jornal, livro que aborda a crise do papel de imprensa ocorrida em 1973 e objetivava, no contexto de seu lançamento, 1974, traçar novos balizamentos e perspectivas no jornalismo diante de um novo contexto (DINES, 1977). O papel do jornal foi reeditado em 1977 e até o ano de 2014 podem ser contabilizadas oito edições. À medida que a obra foi sendo referendada por acadêmicos, a reputação de Dines como intelectual se consolidou. José Marques de Melo é autor da apresentação da edição de 1986, nela o catedrático sublinhou que O papel do jornal já nasceu um clássico e ao fazê-lo legitimou a posição de Dines como “cientista do jornalismo” (MELO apud DINES, 1986, p. 12). Por fim, Melo engrandeceu a figura de Dines perante os pares ao considerá-lo um dos protagonistas em seu livro História do Jornalismo (MELO, 2012).
Zuenir Ventura, formado em Letras, foi professor de jornalismo por várias décadas e escreveu livros sobre a história cultural e política do Brasil, como 1968 - o ano que não terminou (1988) e Chico Mendes - Crime e Castigo (2003), respectivamente15. Porém, assim como no caso das publicações de Alberto Dines, são as habilidades de jornalista que são aplicadas nas obras, uma vez que podem ser consideradas como grandes reportagens. Pode-se perceber com isso que mesmo na esfera acadêmica onde ambos atuaram eram a prática e a vivência jornalística que predominavam na segunda metade do século 20. Tais qualidades foram determinantes também para os dois casos seguintes, entretanto, neles coerções da carreira acadêmica começaram a se fazer presentes devido ao processo de profissionalização no âmbito universitário.
Na condição de docentes, Bernardo Kucinski e Ana Arruda Callado empreenderam pesquisas empregando as técnicas e a linguagem científica, no entanto, sem negligenciar as temáticas associadas à militância política do jornalismo, isto é, a atuação política na imprensa alternativa. Kucinski é autor daquela que talvez seja a obra definitiva a respeito da imprensa alternativa no Brasil, Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa (Edusp, 2003), nela são citados os colegas José Hamilton Ribeiro, Carlos Heitor Cony, Carlos Azevedo, Mylton Severiano, Roberto Freire e Ana Arruda Callado. Jornalistas e Revolucionários foi escrita originalmente como tese de doutorado apresentada à Escola de Comunicação da Universidade de São Paulo, onde atuou como professor16 da disciplina técnica dirigida à produção do jornal laboratório da instituição. Cumpre acrescentar que Kucinski, físico por formação, ingressou na atividade docente na área de Comunicação Social sem os títulos de mestrado e doutorado e foi instado a obter o título de doutor nos anos de 1990.
Circunstância similar vivenciou Ana Arruda Callado que conquistou os títulos de mestrado e doutorado depois de atuar como professora concursada na Escola de Comunicação da UFRJ. Entretanto, o caso de Ana Arruda Callado é exemplar porque condensa vários fenômenos de transformação do mercado jornalístico. Callado é um dos poucos membros da elite jornalística de sua geração a ingressar e progredir na profissão munida de um diploma de curso superior em jornalismo.
Nos anos de 1980, migra para a carreira acadêmica e para progredir é instada a conquistar os títulos de mestre e doutora nos anos de 1990. A maior parte das obras publicadas pela jornalista e escritora são resultados de trabalhos de pesquisa, a começar por sua tese de doutorado sobre a escritora Jenny Pimentel de Borba publicada sob o título Jenny, Amazona, Valkíria e Vitória-régia (1996)17. Sendo assim, pode-se constatar que Ana Arruda demonstra a um só tempo os processos de feminilização da profissão de jornalista, implantação da exigência do diploma e migração para a carreira acadêmica.
Considerando a recorrência de jornalistas que migraram para a carreira acadêmica e são autores de pesquisas nas quais fizeram remissão a suas atuações como jornalistas militantes, seja na imprensa alternativa, seja como partícipes de movimentos sociais, é possível identificar uma mudança no eixo de legitimação que baliza o mercado jornalístico. Do que precede, pode-se postular então a hipótese segundo a qual a partir das décadas de 1990 e 2000 houve um aumento da importância da universidade como instância consagradora em detrimento da política, particularmente potente nas décadas de 1970 e 1980. A isso se deve a regulamentação da atividade profissional a partir da exigência do diploma e a consolidação dos cursos de graduação e programas de pós-graduação que criaram uma alternativa de inserção profissional para onde se orientaram jornalistas já reconhecidos no meio. Em função disso, a escrita da história da imprensa será marcada por um lugar social politicamente determinado. Considerando que muitos ex-militantes se tornaram pesquisadores e docentes, pode-se compreender o motivo da história da imprensa ter se politizado e ter se integrado aos conflitos em torno da memória traumática da ditadura e temas a ela relacionados.
A QUESTÃO AUTORAL NAS BIOGRAFIAS E MEMÓRIAS JORNALÍSTICAS
Uma forma recorrente de registro das origens e trajetórias sociais de jornalistas são as biografias e memórias, modalidades às quais me ocuparei nesse tópico dedicado à autoria dos registros. Cumpre enfatizar que a investigação realizada nessa categoria de fonte possibilita apreender as relações objetivas entre as posições ocupadas pelos autores no interior do mercado profissional, a formação cultural dos jornalistas e, por consequência, as modalidades de capital cultural que detêm. Tais fontes também deixam entrever as representações que eles mantêm com o ofício, incluindo-se as demandas e as exigências do mercado cultural. Enfim, podem-se identificar as determinações sociais de existência, evidenciar a estrutura hierárquica e as transformações do grupo social em análise (MICELI, 2001, p. 83).
Primeiramente, é necessário destacar que, por vezes, em narrativas como essas o silenciado é mais importante do que o explicitado. Na biografia de Carlos Heitor Cony, a narração do episódio de encontro com a escrita expressa ao leitor a ideia de um escritor nato. Ele conta que até os 11 anos ainda tinha dificuldades para pronunciar certos fonemas, pois trocava o “c” pelo “t”, fato que possivelmente dificultava a pronúncia do próprio sobrenome. Essa limitação causava muita zombaria por parte das outras crianças. Foi então que ele encontrou uma solução ao problema: passou a escrever em um caderno várias vezes as palavras que para ele eram difíceis e as mostrava aos zombadores como descreve o seu biógrafo Cícero Sandroni:
Mostrou o caderno aos outros meninos, ninguém riu. Mas ninguém compreendeu. Então o menino descobriu que ali estava um caminho, um destino, ele iria escrever tudo o que pensava, seria finalmente igual aos outros. Nem se tratava de ser aceito - ele já não dava importância a isso, adquirira o vício da solidão e gostava de ser só. E quando quisesse poderia escrever o que sentia e até o que não sentia - escrever, coisa fabulosa. Melhor do que falar, porque quando se escreve é como se a gente falasse diversas vezes, primeiro consigo próprio depois com os outros. Se houvesse outros (CONY APUD SANDRONI, 2003, p. 35).
Em outra passagem de sua biografia, Carlos Heitor Cony relata que durante a escolarização doméstica, seu pai lhe disse que o grande escritor Machado de Assis também tinha dificuldades de fala. O registro dessa memória sugere a mensagem transmitida pelo pai: Cony não precisava se sentir mal, pelo contrário, seu futuro poderia ser extraordinário. Havia uma vocação para a escrita a ser explorada. A partir de então, sentiu que a comunicação escrita poderia suplantar aquela limitação. Décadas depois, quando recebeu o prêmio Machado de Assis da ABL, em 1996, em seu discurso de agradecimento, Cony recordou o episódio dizendo que se dependesse da comunicação oral, ele teria cumprido a profecia que uma vizinha havia feito na infância, a de que ele “não iria longe”. No entanto, na ocasião o escritor pôde analisar retrospectivamente: “A palavra escrita, a letra - litera - sobrava-me como alternativa e logo ela se tornaria um caminho, um destino. Não fui longe, mas cheguei até aqui” (CONY APUD SANDRONI, 2003, p. 40). Tais colocações funcionam como uma alegoria do encontro de Cony com sua vocação literária, uma vez que escamoteiam os recursos e esforços mobilizados para a entrada e o reconhecimento nos meios jornalístico e literário. Cony ingressou no jornalismo com auxílio do pai jornalista, Ernesto Cony Filho, e acabou por herdar o capital social deste, isto é, a rede de contatos com jornalistas, artistas e políticos. Certamente, esse capital social herdado, somado ao que foi conquistado pelas redações nas quais circulou, auxiliou o escritor a difundir e fortalecer o seu nome como autor.
Por outro lado, o êxito na carreira também pode ser justificado pelo imprevisível, como o fez Zuenir Ventura. No livro Minhas Histórias dos Outros (2005) ele escreve que o jornalismo e a literatura apareceram por acaso em sua vida. O contraponto com Carlos Heitor Cony, também um imortal da Academia Brasileira de Letras, faz-se evidente não apenas pelo alegado acaso que levou Ventura às letras, em contraste com a predestinação do Cony à literatura, mas pelo ponto de partida.
Ventura de origem humilde e interiorana iniciou a carreira intelectual na universidade. Foi por meio dos contatos auferidos no meio acadêmico que conseguiu ingressar no jornalismo e construir uma carreira como escritor e jornalista. Após ser admitido como arquivista do Tribuna da Imprensa ele conta que não cogitava a hipótese de se tornar jornalista, tampouco escritor. Entretanto, uma ocasião fez com que fosse compelido ao jornalismo. Conta que o próprio Carlos Lacerda, diretor e proprietário do jornal, ao tomar conhecimento da morte de Albert Camus, quis saber quem seria capaz de redigir um artigo sobre o escritor argelino. Na ausência de candidatos, Zuenir Ventura logo se prontificou, pois Camus era um de seus escritores preferidos. O artigo “Camus, um humanista” foi publicado em janeiro de 1960 em uma seção nobre do jornal e o transformou magicamente em um jornalista, como relata: “No mesmo dia da publicação, virei jornalista, porque passou a circular nos corredores do jornal a versão de que o ‘contínuo do arquivo é um gênio’” (VENTURA, 2005, p. 35). Ao atribuir ao acaso o seu prestígio, o escritor jornalista do presente escamoteia as possíveis estratégias profissionais que propiciaram essa ascensão, como acontece quando contesta a vocação inata ao jornalismo.
Foi, portanto, sem vocação aparente e por acaso, que comecei uma carreira que acabou sendo para mim uma segunda natureza. Por isso, não acho grave quando um jovem de vinte anos se angustia: “Não encontrei ainda minha vocação”. No meu caso, pelo menos, não nasci com ela; peguei um vírus, e bem tarde (VENTURA, 2005, p. 36).
Em comparação, pode-se dizer que se trata de dois casos de registros biográficos de descrição de ingresso na profissão que diferem em termos e justificativa, porém ambas silenciam com relação às injunções do meio jornalístico. A esse silenciamento relativo às regras internas pode-se atribuir à natureza performativa das narrativas autobiográficas. Bourdieu (2005, p. 74) apontou para o caráter seletivo e totalizante imanente às biografias e que essa qualidade compõe a edificação de um nome próprio, posto que são resultado de estratégias que visam a dar coerência e unidade às narrativas de histórias de vida.
Tendo como ponto de partida essa especificidade dos registros memorialísticos, pode-se proceder à análise das reminiscências jornalísticas as quais podem ser categorizadas em biografias e memórias. As biografias consistem em produções dedicadas a jornalistas escritores que se consagraram em vida e geralmente são escritas por outros jornalistas em vias de ascensão ou que ambicionam certa projeção. São exemplos a biografia de Carlos Heitor Cony datada de 2003, quando esse já havia sido eleito um imortal. Quase Cony foi escrita por Cícero Sandroni meses antes de ser também admitido como membro da ABL. Outros exemplos são a biografia do escritor paulistano João Antônio, Paixão de João Antônio (2005), escrita por Mylton Severiano e baseada na comunicação epistolar entre os dois ex-colegas de redação da revista Realidade e O Jornalista mais premiado do Brasil: a vida e as histórias do repórter José Hamilton Ribeiro (2015), originalmente um trabalho de conclusão do curso de jornalismo do jornalista Arnon Gomes. Nesses três casos, guardadas as devidas proporções relativas à gradação de capital simbólico18 envolvido, temos produções que ensejaram dar visibilidade a seus autores à medida que conjugaram seus nomes às trajetórias de escritores e jornalistas consagrados na historiografia ou que, pelo menos, detinham um montante de capital simbólico significativamente maior do que os seus biógrafos.
No que concerne às memórias, essas podem apresentar distintas modalidades textuais de acordo com a autoria e o posicionamento dentro do universo jornalístico. Primeiramente, elas podem ser escritas por jornalistas escritores prestigiados a fim de reiterarem suas habilidades no ofício da escrita. São exemplos o livro Quase Memória (2010) de Carlos Heitor Cony, e o conto Abraçado ao meu rancor (1986) de João Antônio. As duas obras não são biografias tradicionais, mas experimentações estilísticas nas quais é possível identificar elementos autobiográficos difusos pelos textos.
Em Quase Memória (2010) familiares e pessoas próximas se tornaram personagens de uma história centrada na figura do pai de Carlos Heitor Cony. Essa é uma das obras em que Cony tratou de monumentalizar sua origem e trajetória social. Para o escritor, falar a respeito de seus pais, avós, amigos feitos no jornalismo e fora dele, com ou sem influência paterna, é por si uma evidência de sua posição de notoriedade. Por isso, pode-se dizer que Cony é o tipo de escritor para o qual a própria vida pode ser convertida em obra de arte.
Abraçado ao meu rancor é uma coletânea de contos escrita nos anos de 1980, marcados pelo ostracismo, segundo seu biógrafo e pelo próprio escritor. De certo modo, o escritor paulista antevia que nos anos de 1990 ele seria quase completamente esquecido pela mídia. Sua derrocada foi resultado de uma conjunção de fatores nos quais os reveses da conjuntura cultural e política apenas fizeram parte. Um dos fatores é a profissionalização do jornalista e do escritor. Em determinado momento de sua carreira, ao fundir sua literatura com o jornalismo, a exemplo da criação do gênero conto-reportagem, ele não contava que a profissão de jornalista estava gradualmente se autonomizando da literatura e da militância. Quando essa relativa autonomia se efetivou, a obra de João Antônio perdeu a relevância no mercado editorial, uma vez que seu distintivo era a mistura inextrincável entre expressão literária e jornalística. No conto que dá título à obra ele assim exprime o seu descontentamento:
Esta profissão não presta. Com o tempo, você vai empurrando a coisa com a barriga, meio pesadão. Sem qualquer alegria, garra ou crença, cutucado pela necessidade de sobrevivência apenas. O pior, se existe um, é que esta ocupação sovina e instável acaba como que atraindo azares, vícios, mortificações e levantando desejos de destruição, pespegando sentimentos culposos […] com honestidade, garra e jeito vivo, a profissão seria magnífica. Linda [...] (JOÃO ANTÔNIO, 1986, p. 81).
As memórias jornalísticas podem ser igualmente o resultado do trabalho de profissionais situados em posições com gradações distintas de reconhecimento. Nesses casos, eles dão o testemunho da desigualdade na distribuição de poder na estrutura do mercado jornalístico. São exemplares dessa modalidade textual os livros, Isso não deu no jornal (2001) de José Louzeiro, Realidade - a história da revista que virou lenda (2013) de Mylton Severiano e Cicatriz de reportagem - 13 histórias que fizeram um repórter (2007) de Carlos Azevedo. São nesses registros memorialísticos em que a exaltação ao autodidatismo e a noção de jornalismo como arte se acentuam uma vez que, tendo em vista que o jornalismo não era uma profissão regulamentada no momento em que muitos desses jornalistas nela ingressaram, nesses casos há recorrentemente a transmutação do fracasso - em carreiras cuja ascensão se faz tradicionalmente via diploma - em sucesso profissional. A nova geração diplomada compeliu os memorialistas a intensificarem o discurso do jornalismo como arte vocacionada.
Jornalismo como vocação e como porta de entrada à literatura são referências comuns, como já foi notado nos relatos de Cony e Dines supracitados. É o que pude ouvir em entrevistas concedidas a mim por antigos jornalistas, entre eles Mylton Severiano, enfático ao se posicionar sobre a questão da exigência do diploma. Para ele “jornalista é vocação, é como ser pintor, escritor, poeta (...) como você pode pedir a um poeta: deixe-me ver seu diploma de poeta?”. Tais posicionamentos reforçam um modelo de profissional oposto ao perfil técnico resultado do aumento no número de profissionais diplomados que se encontrava em declínio no período em que esses depoimentos foram proferidos, portanto, compõem um cenário de conflito de narrativas incorporado pelo conflito geracional.
Entre as produções referenciadas, existem também aquelas nas quais o autor apresenta de forma entrelaçada a história individual e a história do país, por exemplo, 1968: o ano que não terminou de Zuenir Ventura, O ato e o fato: o som e a fúria que seu viu no golpe de 1964 (2014) de Carlos Heitor Cony e Onde está tudo aquilo agora? (2012) de Fernando Gabeira. Especialmente nos livros de Fernando Gabeira, o narrador realiza um resgate de suas experiências políticas, o que ocorre desde o primeiro livro O que é isso companheiro? (1979), escrito assim que Gabeira retornou do exílio. A obra de 2012 citada acima foi lançada quando Gabeira estava prestes a deixar a vida pública após quatro mandatos consecutivos como deputado federal pelo PV (Partido Verde). Apesar de Gabeira analisar retrospectivamente suas reorientações políticas, do jornalismo para a luta armada, da guerrilha urbana para a ecologia, e da militância ambiental para a política oficial, o marco temporal constante da narrativa é o seu envolvimento no sequestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrik, motivo de sua prisão, tortura e exílio. Com isso, pode-se perceber que o peso da memória coletiva se sobrepõe à memória individual ainda que o próprio Gabeira considere outros momentos de sua trajetória significativos. As confluências entre as memórias relativas aos fatos já consolidados na historiografia oficial atestam a assertiva a respeito da memória. Para Halbwachs (1990, p. 87), a memória individual, autobiográfica, é indissociável da memória coletiva, inclusive no que se refere à relação entre memória coletiva, tempo e espaço, o que explica a fusão entre memória individual e memória coletiva como insígnias de notoriedade no caso das narrativas memorialísticas dos jornalistas.
Por fim, existem aquelas produções memoriais que conjugam a trajetória profissional e a história da imprensa. São variadas as publicações em que a história do jornalista é relacionada a títulos de jornais e revistas incensados pela historiografia, como os já citados livros de José Louzeiro Isso não deu no jornal (2001) e de Mylton Severiano e Realidade - a história da revista que virou lenda (2013). Esse formato de memória apresenta ao leitor uma reprodução de matérias já publicadas na imprensa, a exemplo dos livros O Melhor de Carmen daSilva (1994) organizado por Laura Teves Civita; Eu, aos pedaços (2010) de Carlos Heitor Cony; Manual dos Sobreviventes (2009) de Fernando Gabeira. Em todos esses exemplos temos obras constituídas como coletâneas de materiais já publicados na imprensa.
Essa categoria de registro memorialístico também contempla aqueles livros compostos como exaltações ao gênero reportagem, como os dos memorialistas da revista Realidade, Realidade Re-vista, de José Hamilton Ribeiro e José Carlos Marão e Cicatriz de Reportagem - 13 histórias que fizeram um repórter, de Carlos Azevedo. O primeiro busca decifrar o sucesso da revista do qual fizeram parte e reproduz vários textos de reportagens da publicação. Já o livro de Carlos Azevedo trata da trajetória pessoal e profissional de seu autor. Nele, a importância da revista Realidade se impõe, pois, das treze histórias do subtítulo, cinco são de reportagens da revista Realidade19 que contrastam com a menor quantidade de reportagens publicadas em outros veículos.
Chama a atenção nos livros, a ênfase no simbolismo da reportagem como gênero emblemático do jornalismo e o seu contraste com a notícia. Na historiografia, a reportagem é o gênero textual que se aproxima da literatura, portanto trata-se de um estilo que se diferencia do padrão noticioso da notícia. A notícia se caracteriza pela concisão e pela ausência de marcas autorais e se contrapõe à reportagem, plena de marcadores de autoria e referências literárias. A distinção entre esses dois gêneros textuais reverbera o conflito geracional entre antigos e novos jornalistas. Em outras palavras, o embate entre os autodidatas e os diplomados, jovens profissionais que ingressaram na profissão trazendo consigo uma visão técnica e menos ideológica acerca do ofício. Tendo a linguagem como campo de batalha entre essas duas concepções contrapostas sobre o jornalismo, a redação da notícia foi destinada aos neófitos, enquanto a reportagem foi reservada aos veteranos, já que a posição de autor destinava-se aos notáveis. Isto é, a desigualdade estrutural entre as posições dentro da hierarquia profissional se equiparou às desigualdades entre os textos produzidos por eles, suas designações de autoria, os valores documentais de seus registros e a desigualdade presente nas memórias da profissão (BERGAMO, 2014, p. 227).
Com isso, pretendo evidenciar que o pano de fundo de todas essas publicações elencadas é o contexto de redefinição da identidade profissional, processo no qual a figura clássica ou romântica do profissional da imprensa se transmuta em profissional diplomado. Portanto, as biografias e memórias do período referido se destinavam à edificação simbólica do modelo de jornalista a ser reproduzido e cultuado para as novas gerações, mas que ao mesmo tempo se encontrava em declínio. Uma das características que amalgama os livros citados é a referência, ainda que indireta, à obra A regra do jogo - o jornalismo e a ética do marceneiro (1988), que faz um resgate da trajetória pessoal e intelectual do renomado jornalista Cláudio Abramo e apresenta uma compilação de textos do biografado publicados pela primeira vez na imprensa. A exemplo da biografia de Abramo, em todas as últimas publicações o perfilado é retratado como integrante de um grupo específico de profissionais competentes que obtiveram sucesso devido às suas qualidades intelectuais enquanto elemento de uma corporação profissional. Pode-se assim conjecturar que por meio dessas obras alinhadas a uma matriz narrativa, os jornalistas ensejaram ser reconhecidos como autores legítimos da história da imprensa (CHARTIER, 2012, p. 27).
CONTEXTO DE PRODUÇÃO
Embora as biografias e memórias remontem a fatos passados, essas formas de narrativa são frequentemente impregnadas por questões do presente. Quando os membros da elite jornalística brasileira se predispuseram a escrever ou relatar suas memórias, fizeram remissão aos momentos vivenciados por eles, mas que igualmente são fatos históricos relevantes na historiografia, entre eles, dois se destacam: a modernização da imprensa e a efervescência cultural e política dos anos de 1960 e 1970. Com relação à modernização, a menção a ter participado da redação de jornais e revistas que encabeçaram a chamada reforma gráfica e editorial20 é algo que confere um atestado de artífice do desenvolvimento do jornalismo nacional e funciona como um recurso de consagração. É exemplar desse tipo de narrativa o conjunto de depoimentos reunidos no livro Eles mudaram a imprensa: depoimentos ao CPDOC. Nele Alberto Dines é indagado sobre o seu papel na consolidação da reforma de 1956 no Jornal do Brasil que chefiou entre 1962 e 1973, ele então discorre sobre sua proximidade com aqueles que encabeçaram a reforma.
Quem fez a reforma foi o Odylo Costa Filho, que eu conhecia bem, com o Amilcar de Castro, que eu conhecia muito bem, porque ele tinha sido diagramador da Manchete. Enquanto eu trabalhava na Manchete, ele também estava lá, levado pelo Otto. Mas, na Manchete, ele fazia uma coisa mais quadrada. Foi no Jornal do Brasil que ele criou um modelo de jornalismo que vige até hoje. Durante 30 anos, foi copiado do Oiapoque ao Chuí. Foi a mais importante reforma gráfica feita no Brasil. Gráfica e jornalística também, eu acho [...] (DINES apud ABREU et al. 2003, p. 87).
Carlos Heitor Cony, Fernando Gabeira e Ana Arruda Callado também atuaram na redação do Jornal do Brasil e todos eles mencionam a experiência reformadora desse jornal em seus testemunhos.
Os jornalistas também têm em comum em suas reminiscências outro marco temporal recorrente, a ebulição cultural e política que antecedeu e procedeu o golpe civil-militar de 1964. De acordo com Ridenti (2014, p. 8), o imaginário social contestador não se restringia apenas à imprensa da época, uma vez que o “sentimento de brasilidade romântico-revolucionária” perpassava a maior parte das obras culturais e influenciava as lutas políticas e culturais dos anos de 1960 e 1970, “do embate da esquerda armada às manifestações político-culturais na música popular, no cinema, no teatro, nas artes plásticas e a na literatura”. Cumpre destacar que, a partir do recrudescimento do regime militar, alguns desses memorialistas se envolveram em outras searas da produção cultural e se lançaram à militância política dentro e fora das redações. Remissões aos embates com a censura são constantes nesses registros. Quando o jornalista e escritor Zuenir Ventura escreveu o livro 1968 - o ano que não acabou assim ele definiu a essência de sua geração:
Na verdade, a aventura dessa geração não é um folhetim de capa e espada, mas um romance sem ficção. O melhor do seu legado não está no gesto - muitas vezes desesperado; outras autoritário -, mas na paixão com que foi à luta, dando a impressão de que estava disposta a entregar a vida para não morrer de tédio […] Ela experimentou os limites de todos os horizontes: políticos, sexuais, comportamentais, existenciais, sonhando em aproximá-los todos (VENTURA, 2013, p. 16).
Ventura, que se destacou como porta-voz dos intelectuais remanescentes daquele período, quando redigiu em 1988 o livro 1968 - o ano que não acabou, teceu uma trama na qual suas memórias se diluem aos fatos históricos relevantes e contou uma história de não-ficção que tangencia a grande reportagem, gênero emblemático do jornalismo.
O livro começa com a descrição de um “rito de passagem” vivenciado no “réveillon da casa da Helô”, Heloísa Buarque de Hollanda, que prefaciou a obra em suas três edições. Ventura relata que na ocasião da festa se encontrava presente “parte considerável da inteligência brasileira que produzira, ou iria produzir, do bom e do melhor” (VENTURA, 2013, p. 24). Ele se refere a profissionais da cultura envolvidos em várias esferas da atividade, tais como Glauber Rocha, Celso Martinês Corrêa, Geraldo Vandré, Ênio da Silveira, Millôr Fernandes, Fernando Gasparian, entre outros, pertencentes a uma geração de intelectuais, artistas e jornalistas que se contrapuseram ao regime ditatorial, inseriram a contracultura na produção nacional e ascenderam em suas carreiras na mesma época em que Zuenir Ventura ascendia na profissão. As passagens do livro suscitam reflexões importantes para análise da trajetória social do jornalista. Primeiramente, pode-se mensurar o capital social acumulado, relevante a ponto de ser monumentalizado em formato de livro. É também possível deduzir a confluência entre jornalismo, política e arte que preponderava no período. Seu colega, Alberto Dines, também remanescente da geração de autodidatas, ao responder à pergunta sobre o que é jornalismo destacou que esse ofício é uma vocação, assim como a arte.
É um estado de espírito, é uma disposição existencial. Eu já disse em outra entrevista que o jornalismo é uma das últimas profissões românticas. Talvez o termo esteja mal empregado. Não é, estrito senso, uma questão de romantismo. É, no sentido de que o jornalismo não é um emprego em que você chega, faz aquilo que a pauta lhe deu, cumpre o horário, e estamos conversados. Não. É uma disponibilidade para a vida, uma vocação de participação, ainda que não-intervencionista, é também uma atividade eminentemente cultural. Eu chamo de arte. O jornalismo é uma arte ligada à arte literária. Não é à toa que, nos últimos 200 anos, as maiores figuras da literatura escreveram em jornal (DINES apud ABREU et al, 2003, p. 117).
A despeito das remissões ao passado, a conjuntura atual dos testemunhos é por vezes mais significativa. Mas que contexto é esse? Trata-se do intervalo de tempo compreendido entre as últimas décadas do século passado e as primeiras do século 21 quando houve uma profusão de publicações e registros biográficos de jornalistas. O contexto sócio-histórico em que vieram a público essas produções deixa entrever a estrutura hierárquica da profissão, suas transformações e conflitos internos, bem como os “bastidores” da mudança na identidade profissional iniciada há cinco décadas e ainda em curso. Esse aumento não foi episódico, mas atrelado aos desdobramentos de profissionalização do jornalista cujo processo teve início ainda na década de 1950 com o advento da Indústria Cultural nacional. Os jornais se tornaram empresas e os jornalistas tiveram um aumento salarial que permitiu que a profissão deixasse de ser apenas uma ocupação temporária. Nesse período foram criados os primeiros cursos superiores de jornalismo, da Fundação Cásper Líbero (1947) e da Universidade do Brasil (1948), atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contudo, o ápice do processo de profissionalização foi a promulgação do Decreto-Lei n. 972 em 196921 que estabeleceu o diploma de jornalismo obrigatório para o exercício da profissão. Mylton Severiano, integrante da primeira equipe da revista Realidade no livro Realidade a revista que virou lenda assim relacionou a formação dos seus colegas de redação e a posterior exigência do diploma:
Eis um flagrante da turma: andar de ônibus devorando letras. Autodidatas […] Não havia exigência do diploma para exercer o jornalismo. Realidade não teria sido possível se já existisse a invencionice, gestada no auge da escalada fascistóide da ditadura. Quase todos éramos filhos de classe média baixa ou da pobreza. Havia filho de ferroviário, telefonista desquitada, professor, sapateiro, comerciante, barbeiro, chofer de praça, contador, funcionário público. Vários trabalhavam em banco e, no fim do expediente partiam para a vocação (SEVERIANO, 2013, p. 26).
Duas décadas de vigência do referido decreto foram suficientes para gerar o estopim do embate entre veteranos e neófitos. Os primeiros, forjados pela experiência nas redações em um cenário de lutas políticas contra a censura imposta pela ditadura militar, e os segundos, formados pela universidade e frutos de uma geração que não havia vivenciado tal conjuntura. O conflito geracional entre “antigos” e “novos” jornalistas por posições de maior autoridade e autonomia compeliu os jornalistas veteranos a imporem estigmas aos da nova geração. Os egressos dos cursos universitários de jornalismo que entraram nas redações durante os anos de 1980 e 1990 foram considerados pelos seus antecessores como alienados, desprovidos de vivência e de crítica instaurando, assim, um embate entre dois capitais simbólicos distintos, de um lado o capital tradicional pautado pela trajetória profissional como sinônimo de vivência e, de outro, o capital representado pela formação universitária (BERGAMO, 2011, p. 252).
No depoimento dado à jornalista e antropóloga Isabel Travancas e que consta no livro O mundo dos jornalistas, Zuenir Ventura esboça o cenário desse conflito geracional, bem como deixa entrever a forma como é vista a nova geração pelos profissionais veteranos.
Esses jovens sofreram um verdadeiro processo de lobotomização e ficaram sem memória, que a ditadura conseguiu apagar. É uma geração, segundo ele, individualista, narcisista e muito pragmática. Sem desprendimento nem sentido de doação. Acredita que quem entra para o jornalismo só para ganhar dinheiro não será um bom profissional. Mas, ao lado disso, aponta para aspectos positivos, como ausência de um caráter messiânico da profissão. Não querem com o jornalismo transformar o mundo, não acreditam nisso. Trata-se de uma geração bem menos engajada. Ele espera que com isso ela seja mais profissional e menos política, pois para ele o jornalismo não pode estar, não deve estar a serviço de nada. A contrário, tem de ser descompromissado a priori. Sua condição é ser testemunha de seu tempo, e, por conseguinte, deve ser independente. Mas, por reconhecer que a contaminação com o objeto torna-se inevitável, ele insiste na ideia de que é fundamental não haver engajamento prévio. O jornalista não pode ser um militante (VENTURA apud TRAVANCAS, 2011, p. 92).
Pode-se notar pelo depoimento de Ventura, que no final do século a identidade jornalística edificada pelos novos tempos e pelas novas configurações do mercado de trabalho se associa à figura do técnico no levantamento, elaboração e difusão da informação, ao passo que nas biografias e memórias dos jornalistas a constituição identitária ainda conservava o status de escritor, militante político, ou mesmo, de artista e intelectual. Por isso, embora os registros biográficos e memorialísticos se refiram diretamente às décadas de 1960 e 1970 - momento de militância na imprensa alternativa22 e turvamento das fronteiras entre arte e jornalismo - é ao contexto em que foram gerados que estão intrinsecamente relacionados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do que precede pode-se identificar que a produção memorialística em questão é reveladora do conjunto de interesses e estratégias envolvidas em iniciativas de simbolização e legitimação com as quais esses profissionais puderam comprovar sua existência material, política e intelectual. Pode-se fazer algumas constatações a partir da análise das condições de produção dos registros biográficos e memorialísticos. Primeiramente, com relação ao contexto é possível inferir que embora as narrativas se remetam a um passado de atuação na modernização da imprensa e em lutas contra a censura durante a ditadura civil-militar, nelas estão impressas as marcas indeléveis do presente, este que se manifesta pelo elogio ao autodidatismo e à consideração do jornalismo como uma forma de arte literária por oposição ao jornalismo como profissão ancorada em uma técnica e uma formação universitária. Ao demarcarem a vocação, os jornalistas memorialistas se contrapõem aos jornalistas diplomados da nova geração e expressam que a linguagem é um campo de batalha no conflito geracional.
Em segundo lugar, ao que concerne à autoria, tem-se que há modalidades de biografias e memórias que uma vez alçadas em posições de matriz são reproduzidas pelos jornalistas e tal reiteração os legitima como autores dentro do campo jornalístico. Assim, pude constatar que a reprodução de modelos de memórias que entrelaçam memória individual e coletiva, história pessoal e história da imprensa e reportagens foram primeiramente publicadas na imprensa e são republicadas nessas obras. Em muitas delas pode-se verificar jornalistas que biografam outros profissionais de imprensa estabelecendo uma troca que recorrentemente favorece o biógrafo de nomes já reconhecidos. Com relação à condição de produção relativa à origem das iniciativas, deixa entrever o empreendimento de instituições e entidades envolvidas nesses registros. Cada qual representa uma esfera de atuação e um poder ou capital simbólico distinto.
A análise das condições de produção evidencia as instâncias de consagração às quais os jornalistas estão circunscritos, a imprensa, a política, a literatura e a universidade. Restritos a esses âmbitos de projeção na carreira, os jornalistas são submetidos às instâncias de consagração específicas, umas com menor, outras com maior poder de consagração. Em outras palavras, pode-se inferir que a constituição de uma elite jornalística depende de uma consagração conjunta entre, de um lado, certos marcadores de prestígio presentes nas trajetórias desses jornalistas - como o registro da participação na modernização da imprensa, reconhecimento como escritor, militância política, docência em disciplinas de cursos superiores de jornalismo e conquista de títulos acadêmicos - e de outro lado, o poder de consagração dessas instâncias ou instituições.
E, por último, mas não menos importante, pode-se concluir que somente são considerados membros da elite jornalística aqueles que, circunscritos a essas instâncias de consagração, conseguiram se legitimar nelas e por elas serem monumentalizados. Em síntese, somente são dignos de registro histórico os profissionais de imprensa que atravessaram o longo percurso da monumentalização realizado por meio dos registros biográficos e memorialísticos, citações, referências, conquistas de títulos e prêmios.
No final do século passado, parcela significativa desses registros é realizada no meio acadêmico em função da consolidação de programas de pós-graduação e a consequente orientação de muitos jornalistas em direção à carreira acadêmica. É possível inferir até mesmo que o aumento no número de cursos de pós-graduação e o ingresso de jornalistas nas universidades como pesquisadores e professores resultou em um impacto maior no mercado profissional jornalístico do que propriamente a exigência do diploma para o exercício da profissão entre 1969 e 2009. A migração de jornalistas para a carreira acadêmica teve desdobramentos sobre a pesquisa que realizaram na universidade. Uma vez que muitos dos docentes jornalistas eram oriundos da militância política, esse fato imprimiu um caráter politizado à escrita da história da imprensa e a demarcou como um dos polos de lutas em torno da memória traumática do período ditatorial. Conflito que se faz nítido ao se observar que dos registros das reminiscências emerge um modelo de jornalista digno de pertencer ao panteão de notáveis e a ser seguido pelas próximas gerações.
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Notas