ARTIGO
Recepção: 21 Março 2020
Aprovação: 13 Novembro 2020
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2020.167988
Resumo: O artigo aborda o processo de aprendizagem da investigação no jornalismo, enquanto processo historicamente constituído de formação de habitus. A partir de situações etnográficas, serão discutidas as relações sociais envolvidas nas investigações jornalísticas e as fronteiras entre o legal e o ilegal. A análise desses casos conduz ao reconhecimento de múltiplas agências sociais de investigação e aponta para a persistência de estruturas de pensamento e ação arraigadas em relações autoritárias de ambiguidade ética.
Palavras-chave: Jornalismo, Etnografia, Ensino de jornalismo, Ditadura.
Abstract: The article focuses on the process of learning how to research in journalism, taking it as a historically constituted process of habitus formation. From ethnographic situations, we will discuss the social relations involved in journalistic investigations and the boundaries between the legal/illegal. Such an analysis will lead to acknowledging multiple social investigation agencies and pointing to the persistence of structures of thought and action rooted in authoritarian relations of ethical ambiguity.
Keywords: Journalism, Ethnography, Teaching journalism, Dictatorship.
A CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DO “FURO JORNALÍSTICO” ATRAVÉS DO HABITUS
O “furo” é um dos pontos altos do jornalismo. O interesse e o efeito de verdade das notícias jornalísticas estão pautadas pelo fato de serem as primeiras (e, nos casos de guerra, muitas vezes as únicas) inscrições sobre algum “fato”. Além disso, é na dinâmica do “furo” que os laços de solidariedade e de competição interpares são testados. Há uma tensão entre informações “feijão-com-arroz”, que podem ser compartilhadas, e informações exclusivas (NEVEU, 2006, p. 106).
Um “furo” é produzido a partir do cruzamento de informações dispersas publicamente disponíveis em diários oficiais, em despachos jurídicos, em balanços financeiros. Um estratagema também utilizado são as informações “em off”, ou seja, informações não registradas em gravador (“off the records”: de onde advém o termo) de fontes que oferecem ao jornalista em tom confidencial, extra-oficialmente, sem implicar em responsabilidade com as consequências de uma acareação judiciosa. A informação “em off ” pode ter o propósito de indicar alguma pista de investigação ou de manipular o jornalista para despistá-lo. Como um direito garantido pela legislação trabalhista da profissão, o jornalista também pode alegar “sigilo de fonte”: nesse caso, as revelações que sustentam a notícia (confirmada em checagem com cruzamento de dados vindos de outros meios) podem oferecer perigos para quem forneceu as informações. Esse direito então é utilizado para resguardar a fonte de possíveis ameaças à sua integridade física.
Daí deriva o valor de assuntos cuja apuração é difícil. A exclusividade, o ineditismo e a raridade da informação são erigidos em prestígio jornalístico (sinal de competência e empenho numa apuração difícil) e, ao mesmo tempo, em estratégias investidas no campo político. Não é por acaso que informações sigilosas de difícil apuração muitas vezes se relacionam com o domínio da política profissional: o poder político mantém barreiras estritas para controlar os fluxos, inclusive de informação. Nesse sentido, o jornalismo está imbricado com o poder institucionalizado porque é desse poder que pode obter as condições ótimas que transformam uma notícia num “furo”: informação de difícil acesso e com capacidade para impactar na vida de muitas pessoas (CHAMPAGNE, 1997, p. 76). O enfrentamento de processo judicial por publicação de reportagem é fato comum no jornalismo investigativo: é uma modalidade que requer quadros jurídicos para possíveis contestações, além de recursos para dispor de equipes com tempo de investigação e uma gama variada de anunciantes para suportar possíveis retaliações na área financeira, o que só grandes jornais em grandes centros urbanos possuem1.
A noção de “furo” simultaneamente movimenta interesses jornalísticos, econômicos e políticos (LOBO, 2013). Ou seja, uma mesma ação pode ser encarada de diversos ângulos, desencadeando efeitos em diversos campos, e que para entendermos certa configuração social devemos aliar esses diferentes pontos de articulação. A antiga denominação, em seu hodierno sentido pejorativo, de “jornalismo policial”, demonstra a duplicidade conectiva (polícia + jornal) da área atualmente conhecida, de maneira a ser menos vinculada a instituição militar, como “jornalismo investigativo”. Jornalistas e agentes policiais são aproximados em relações de contiguidade (como fontes de informações), de cumplicidade (como foi na ditadura) e também de tensionamentos e de ridicularizações.
No entanto, a capacidade de executar um procedimento investigativo não é um atributo exclusivo da polícia ou da esfera jornalística. O Estado não detém o monopólio legítimo da força investigativa. Nesse sentido, é importante constatar que não são somente jornalistas que realizam investigações numa empresa jornalística e que as relações com agentes investigadores (detetives particulares, ex-policiais) também estão presentes nas práticas de ensino do jornalismo e contribuem para a formação da práxis profissional.
Dentro desse quadro, proponho pensarmos a construção histórico-social do “furo jornalístico” através de processos pedagógicos de formação de novos profissionais. A realização de pesquisa etnográfica em empresas do jornalismo paulistano (Grupo Folha e Grupo Estado) entre os anos de 2008-2010 (LOBO, 2010), teve como objetivo acompanhar os cursos de ensino de jornalismo que esses influentes grupos empresariais, geridos há gerações por duas redes de parentesco (as famílias Frias e Mesquita), oferecem aos novatos no jornalismo. Os participantes do curso do Grupo Folha são chamados de “trainees”, denominação não específica ao campo jornalístico, mais comum entre os iniciantes em profissões administrativas: termo em inglês que apresenta ressonâncias estéticas empresariais modernizantes. O curso do Grupo Estado chama seus integrantes de “focas”, gíria jornalística estadunidense para os novatos (o slogan do curso durante a década de 90 foi “Adestramento de Focas”): uma metáfora animalesca que remete à performance circense desengonçada de focas empinando uma bola no fuço sob o estalar do chicote de seu domador.
Considero esses espaços de aprendizagem como locais propícios para desvendar lógicas de socialização, com incorporação de modos de ver, avaliar, agir: um habitus, no sentido bourdieusiano (BOURDIEU, 1974, 1997, 1998; WACQUANT, 2002; para críticas a esse conceito ver LAHIRE, 2002). O texto seguirá o seguinte ordenamento: em um primeiro momento, apresentarei as premissas metodológicas para coleta de dados etnográficos, problematizando o espaço de formação e transmissão de habitus como um dispositivo político envolvendo concepções distintas do fazer jornalístico e de seu estatuto jurídico (certificações, diplomas etc.). Demonstro que trata-se de um dispositivo disciplinar (FOUCAULT, 1987) que tenta modificar as relações sociais do campo do trabalho sob o discurso político de neutralidade técnica dos espaços de aprendizagem e economia temporal na inserção profissional.
Na sequência, a partir da figura do “araponga” - desvelada por meio do procedimento etnográfico - enfocarei as relações sociais estabelecidas nesses processos de corporificação de maneiras de ação e pensamento no âmbito do trabalho, principalmente pela identificação das continuidades histórico-relacionais, dos modos de fazer jornalismo entre a ditadura instaurada em 1964 e o período vigente de eleições. A ditadura empresarial-midiática, eclesiástica, acadêmica e de elites militares de 1964 está incrustada no imaginário jornalístico brasileiro, principalmente na figura de Vladimir Herzog, jornalista morto nas dependências dos aparatos de tortura. A avaliação da credibilidade jornalística dos veículos atuais é feita, no mais das vezes, balizada pela atuação das empresas durante o golpe de 1964. Na história recente da imprensa brasileira, o período ditatorial sempre é acionado como uma forma de avaliar e julgar a atuação das empresas jornalísticas, desencadeando reflexos duradouros para o prestígio jornalístico. Por fim, conduzo o texto de modo a faiscar esses “relampejos do passado”, no sentido benjaminiano (BENJAMIN, 1994), que se estendem até os dias de hoje, evocando uma continuidade entre esse período e a atualidade (RIBEIRO, 2017).
OS ESPAÇOS DE APRENDIZAGEM ENQUANTO ESTRATÉGIA POLÍTICA
Neveu (2006) atenta para “preconceitos normativos” que rondam toda iniciativa de pesquisa no campo do jornalismo: a “mitologia profissional” que vincula jornalismo com democracia ao exercer um quarto poder fiscalizador, obliterando as condições desiguais de acesso à mídia; as teorias autorreferenciadas produzidas pelos jornalistas a partir de suas carreiras, que postulam que somente quem passou por uma redação pode julgar de forma pertinente a profissão; o aumento do poder dos jornalistas na consagração de obras culturais, muitas vezes ocupando o espaço, nos debates públicos, antes destinado aos intelectuais.
Fatalmente as tentativas de pesquisa que enfocam o jornalismo acabam sendo encaradas como uma forma de denúncia desrespeitosa de incompetência ou parcialidade (SCHUDSON, 1989). Os estratos sociais envolvidos nos contextos de aprendizagem jornalística no meio empresarial, em sua maioria, não estão acostumados a posições de subserviência ou servilismo: ao serem alvo de inscrições científicas, muitos reagiram ridicularizando minha posição de cientista social, impingindo-me uma atitude arrogante de superioridade (“veio observar os ratinhos de laboratório?” - foi uma piada recorrente dos jornalistas dirigida a mim durante a pesquisa). Nesse complexo emaranhado de acusações e discordâncias, o que está em jogo são categorizações divergentes sobre como ocorrem os processos sociais.
Nessa miríade de assimetrias e incompreensões, fluxos de anti-intelectualismo e de denuncismo, proponho explorar as práticas jornalísticas de maneira ampla, com especial atenção a estudos etnográficos, como os estudos de newsmaking ou teoria etnoconstrucionista que a partir dos anos 70 passam a mobilizar uma abordagem etnometodológica ou de construção da realidade no estudo do jornalismo (ver, por exemplo, TUCHMAN, 1978). O objetivo buscado é falar no jornalismo de forma plural, “jornalismos”: “O binômio jornalismo e sua “obra” precisa ser substituído pela ação de um complexo de “pequenas máquinas” (profissões, dispositivos técnicos, normas profissionais, hierarquias), frequentemente invisíveis ao público” (NEVEU, 2006, p. 82).
O trabalho de pesquisa consistiu no acompanhamento das interações que acontecem no decorrer do curso de jornalismo para iniciantes, “um processo sutil, de acumulação, baseado na experiência e nas transações diárias com colegas, fontes, superiores hierárquicos e textos jornalísticos” (TRAQUINA, 2003, p. 118). A metáfora que é comumente mobilizada pelos estudos de newsmaking é a “osmose”, usada para enfatizar o caráter de “absorção” paulatina e mínima que ocorre nas redações. As dinâmicas analisadas aqui passam por uma tessitura delicada, sutil, esparsa, de pequenas dicas, controles mínimos, um “emaranhado inextrincável de retóricas de fachada e astúcias táticas, de códigos, estereótipos, símbolos, padronizações latentes, representações de papéis, rituais e convenções” (GARBARINO, 1982, p. 10 apud WOLF, 2005, p. 195) que não são “simples tagarelice”2.
O caráter muitas vezes minimalista que esses cursos assumem, com pequenos processos cumulativos, é interessante para revelar certos elementos já presentes tacitamente: forças sociais incorporadas. Os “focas”/trainees possuem uma história anterior incorporada, geralmente vinculada a classes médias urbanas brancas com ensino universitário, que serve como uma espécie de catalisador da inserção na redação daqueles que a empresa considera mais “aptos”, segundo seus critérios políticos e mercadológicos.
Os cursos estão colocados numa posição intermediária e ambígua entre o ensino universitário, que foi obrigatório no país entre 1969 e 2009 (BERGAMO, 2011), e outras formas de aprendizagem que já constituem um vínculo com a esfera profissional, como o estágio (que muitas vezes é utilizado como mão-de-obra barata substituindo contratações efetivas). Eles têm aproximadamente a duração de 3 meses. Os ingressantes assistem a aulas de professores universitários convidados (de matérias variadas como Economia, Política, Filosofia, Ética, Cinema etc.) e palestras de jornalistas de renome da empresa; fazem pequenos exercícios de reportagem e entrevista (geralmente o entrevistado é alguém do campo político), além de acompanharem o cotidiano dos profissionais nas redações, tendo acesso a todos os processos da confecção da notícia, passo-a-passo.
Durante meu trabalho de campo, constatei que os cursos trabalham com pequenos grupos - de 8 a 12 pessoas -, a idade dos novatos varia de 21 a 28 anos, com passagem por faculdades (privadas e públicas estaduais/federais, sejam de comunicação social/jornalismo ou não). Há equilíbrio entre homens e mulheres e a esmagadora maioria são brancos. Em conversas informais, vários iniciantes comentam que têm experiência em viagens internacionais e intercâmbios, dominando outras línguas. Para eles o principal atrativo dos cursos é a oportunidade de frequentarem a palestra dos jornalistas que estão localizados nas posições de maior prestígio e que já detêm nomes consagrados: os editores, os colunistas e os correspondentes internacionais, ou seja, aqueles jornalistas que já adquiriram um prestígio tão consolidado que possuem sua própria coluna assinada ou realizam as tarefas que mais recursos consomem do jornal, tais como as coberturas internacionais.
Há certa economia de tempo obtida por corte abrupto e exclusão dos novatos que não interessam aos objetivos empresariais. Ao invés dos novatos aprenderem os códigos não escritos da profissão de forma difusa por uma extensa convivência na redação, passível de atritos éticos e políticos, ocorre um primeiro esforço de normalização político-pedagógica e de exclusão dos “inaptos” já no curso de jornalismo para iniciantes. Com o avanço das tecnologias de comunicação que permitem uma divulgação ampla de notícias em questão de segundos, o processo de economia temporal na formação jornalística através de dispositivos catalisadores torna-se estratégico. No caso aqui colocado, isso também rebate na viabilização da pesquisa acadêmica nas empresas de comunicação, em decorrência das exigências da produção informativa sob essas pressões tecnológicas. O tempo de produção é extremamente reduzido, o que torna qualquer pesquisador um estorvo a exigir uma atenção que pode custar preciosos minutos (ou segundos, no caso da internet). Ainda que seja preciso o domínio de técnicas (textuais, corporais), há um discurso disseminado de que o jornalismo é algo que se “aprende rápido”. Talvez por isso soasse cômico para os novatos minhas idas a campo para assistir às suas aulas: nada de “importante” aconteceria, não há nada “intrincado” necessitando ser dirimido. O “aprender rápido”, refletido no caráter temporalmente curto dos cursos em comparação com a formação universitária, além de apontar para matrizes de ação e apreciação anteriormente constituídas, também é uma característica que o agente deve possuir para conseguir consagração no campo. Jornalista precisa aprender rápido, dentro de parâmetros político-culturais propícios para atingir os objetivos político-editoriais de uma empresa.
Como também acontece na dinâmica de diversas outras ocupações e profissões (FREIDSON, 1996, 1998), a socialização do novato no ambiente jornalístico ocorria lentamente num processo de incorporação dos traquejos profissionais. Os casos estudados permitem vislumbrar espaços de aprendizagem que aceleram a incorporação do principiante, criando um recrutamento que altera as redes de relações de apoio e indicação anteriormente constituídas. Aqui é possível desvendar uma série de modificações nos processos de recrutamento a depender das forças sociais em jogo. Para o contexto enfocado, a reconstrução histórica das relações entre mídia e ditadura é um ponto-chave para auferir credibilidade jornalística. No período ditatorial ocorreu certa confluência política entre jornalistas e algumas empresas no que diz respeito aos entraves provocados pela censura do conteúdo veiculado. Houve também afastamentos, com empresas muitas vezes deixando de contratar jornalistas fichados pelos órgãos de repressão, sendo beneficiadas por recursos financeiros propiciados pelos militares.
Ainda nesta época, houve um aumento das oportunidades de carreira para jornalistas na década de 60 e 70 devido a facilidade para linhas de crédito, isenções fiscais e financiamento (compra de equipamentos de impressão, principalmente) oferecida pelo regime militar-empresarial-midiático - tendo em vista um projeto de integração nacional, de acumulação de capital e de conquista da simpatia dos meios de comunicação. Durante o regime militar, houve uma correlação entre o crescimento da classe média com o crescimento da mídia (GHEDINI, 1998). As condições favoráveis de financiamento resultavam em melhores condições financeiras para os jornalistas se comparados com categorias trabalhistas da época, que sofreram com brutais arrochos salariais (MELO, 2014; TELES, 1999). Durante o trabalho de campo, um editorial do principal jornal do Grupo Folha causou polêmica ao designar o período militar de “ditabranda”.
Até a década de 1970, a influência dos partidos políticos de esquerda conseguia inserir muitos novatos nas redações. Os partidos políticos de esquerda, ainda que contrários aos modelos capitalistas de difusão da notícia, eram locais de erudição, de disciplinamento da militância e que encaravam como estratégica a ocupação de postos de trabalho nas empresas de comunicação. Essa influência dos partidos políticos foi parcialmente quebrada com a obrigatoriedade do diploma, exigindo a frequência a um instituto de ensino superior para ratificar as qualificações para o trabalho. Nos cursos etnografados, ocorreu um desdobramento desse processo, em que uma reformulação nas dinâmicas de recrutamento também se concretizou. Se a obrigatoriedade do diploma foi vista pelas autoridades militares com o propósito de se obter um perfil profissional mais “técnico” e despolitizado, as redes de relacionamentos criadas nas universidades acabaram gerando, paradoxalmente, jornalistas mais críticos.
Na virada para a década de 1970, as universidades brasileiras - como de resto, as de todo o mundo - se tornaram um terreno fértil para os grupos de esquerda radical, os quais, diferentemente do PCB, adotavam uma retórica revolucionária e, em alguns casos, se engajaram na luta armada contra o regime. Em muitos cursos, os alunos de jornalismo foram apresentados na universidade a conceitos de extração marxista, tais como Indústria Cultural e Aparelhos Ideológicos de Estado, que os estimulavam a desnaturalizar aspectos da técnica do jornalismo e contestar o discurso da neutralidade jornalística. Paradoxalmente, mesmo as disciplinas técnicas dos cursos de jornalismo contribuíam para dissociar os seus alunos do ethos profissional sonhado pelas autoridades. (ALBUQUERQUE; SILVA,2007, p. 23).
Essas relações universitárias entre jornalistas novatos, que podem oferecer indicação e apoio, são por sua vez tensionadas (tal como ocorreu aos partidos políticos anteriormente) com esses cursos empresariais para “focas” ou trainees, que funcionam como uma triagem na ante-sala das redações, uma seleção conduzida por parâmetros definidos pelos jornalistas já estabelecidos e, consequentemente, por interesses das cúpulas dos proprietários dessas empresas.
A década de 1980 colocou fim ao período de crescimento contínuo do mercado de trabalho para jornalistas, concomitante ao aumento expressivo do número de formandos: surgem os “filhos da pauta”, menção pejorativa dos jornalistas estabelecidos à nova geração, saída das faculdades, que entrou nas redações após um período de intensas reformulações no fazer jornalístico, em que as funções internas da redação foram redefinidas (PEIXOTO, 1998; BERGAMO, 2011).É nesse contexto histórico que surgem os cursos aqui enfocados, em contexto de precarização das condições de trabalho através da contratação de freelancers mal-remunerados, implantação do aparato tecnológico computadorizado (que significou demissões maciças em funções tornadas obsoletas), jornadas de trabalho extensas que ultrapassam 10 horas diárias e o medo constante de demissões sumárias com o desmantelo das organizações trabalhistas, tais como sindicatos ou comitês de representantes das redações.
“ARAPONGA”: OS JORNALISTAS RIDICULARIZAM A INVESTIGAÇÃO DITATORIAL
Tive conhecimento das aulas oferecidas por investigadores não-jornalistas através de entrevistas com ex-participantes do curso do Grupo Folha. Uma figura um tanto peculiar foi desvelada: um investigador contratado para levantar informações sigilosas para o jornal e que aparentaria não possuir nenhum vínculo oficial com a empresa, jocosamente apelidado de “araponga”. Devido às informações que me foram fornecidas anteriormente por ex-“trainees”, eu sabia até mesmo o seu nome verdadeiro; por isso, quando ele apareceu assinalado no cronograma das atividades, pedi para participar de sua aula.
Acredito que a permissão para etnografar a aula do “Araponga” no Grupo Folha tenha sido um deslize decorrente do ritmo frenético que por vezes a rotina jornalística assume. Logo depois de terminada a aula oferecida pelo “Araponga”, a coordenadora do curso rapidamente entrou em contato e pediu-me gentilmente para que eu não publicasse nenhuma das informações que foram expostas, ou seja, não revelasse as investigações em andamento sobre políticos em evidência. O sigilo envolvia não citar os nomes de personalidades investigadas pela empresa, mencionados na aula. Informações essas têm relevância nas disputas jornalísticas; no entanto, para meu estudo, não eram primordiais pelo seu conteúdo explícito, mas como dado de análise: num curso empresarial de formação jornalística procedimentos questionáveis, que violam condutas éticas e mesmo leis (usar documentos pessoais sem autorização, apresentar-se como outra pessoa), são ensinados. As dificuldades para a concretização da metodologia antropológica de observação participante, portanto, também se deve em parte porque esses conglomerados multi-midiáticos (ou multi-plataformas: radiofonia, impresso, on-line etc.) são lugares de segredos, envolvendo táticas concorrenciais de distinção político-jornalísticas. Esses atritos também descortinam um panorama de múltiplas agências de investigação, incutindo uma generalização da relação entre empresas e atividades de espionagem mercadológica-industrial de uma forma ampla em todos os setores da economia (como empregar-se em firma para obter informação, entre outros).
Minha presença, em alguns momentos, criou embaraço e hesitações. Eu era um observador externo que poderia denunciar esses procedimentos que são mencionados em conversas francas. Ou, algo mais grave, revelar a identidade secreta do “araponga”. Entretanto, ao final da aula, o próprio “araponga”, para minha surpresa e leve decepção, mostrou uma reportagem em que seu nome aparecia publicado junto ao de um jornalista. Sua identidade não era mais tão secreta quanto a princípio eu imaginava. Com o avanço das tecnologias de informação e vigilância, o anonimato que elas proporcionam e a disponibilização de dados pela internet (inclusive a digitalização de processos judiciais), somente uma pequena parte do serviço de investigação precisa ser feita pessoalmente. Não é mais tão arriscado se expor: o “araponga” pode co-assinar uma reportagem e, portanto, abrir mão da função sigilosa para adentrar nas disputas por prestígio jornalístico.
A origem do termo “araponga” remonta a uma telenovela brasileira de Dias Gomes, Lauro César Muniz e Ferreira Gullar, produzida pela Rede Globo, exibida entre outubro de 1990 à março de 1991. A trama tem como início a morte de um senador durante uma entrevista a uma jornalista num quarto de motel. Esse acontecimento é investigado por um detetive atrapalhado (interpretado por Tarcísio Meira) de codinome Araponga, que trabalha para a Polícia Federal, depois de muitos serviços prestados ao regime militar-midiático-empresarial instaurado pelo golpe de 1964. O “araponga” da teleficção é anacrônico, conservando hábitos da ditadura e tentando convencer seus superiores da necessidade de reativar o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão da polícia política do período ditatorial. Os pormenores dessa história são explicados pelo próprio Ferreira Gullar, um dos autores da novela, em artigo publicado na Folha de S. Paulo.
O apelido “araponga” nasceu com a novela do mesmo nome, exibida pela TV Globo em 1990-91, escrita por Dias Gomes, Lauro César Muniz e eu. E surgiu da seguinte maneira: propusemos à emissora uma novela de caráter policial-humorístico e pensamos numa história que envolvesse um agente secreto da ditadura. Aceita a proposta, solicitamos uma pesquisa que nos fornecesse o máximo de informações sobre o SNI e soubemos, assim, que a direção da agência adotava o critério de usar, como codinome de seus agentes, nomes de pássaros e insetos, desde pipira até percevejo. Foi o Dias que, de molecagem, botou o nome de Araponga em nosso personagem. Parecia-nos realmente gaiato um agente secreto adotar o nome de um pássaro cujo berro metálico ecoa por quilômetros de mata. Quem viu a novela deve se lembrar de que o personagem, uma vez finda a ditadura, não tinha mais a quem alcagüetar nem torturar (isso de torturar era uma licença “poética”, que fundia o SNI com o DOI-Codi) e, por essa razão, trancado em seu quarto, torturava-se a si mesmo e depois sorvia leite de uma mamadeira (GULLAR, 2006).
Como expõe Gullar, para reforçar a característica delirante e desengonçada do investigador ficcional infantilizado como mamador3, o codinome “Araponga” faz referência à uma ave (Procnias nudicollis). O som que essa espécie de pássaro produz tem um timbre agudo e metálico, que se assemelha em alguns encadeamentos sincopados ao barulho de um martelo numa bigorna. O personagem da telenovela, admirador de James Bond e portando disfarces hiper-chamativos, que deveria ser discreto e sagaz como estabelece o perfil padrão de detetives ficcionais, possui como codinome uma ave conhecida pelo seu canto alto e estridente, sendo chamada em algumas regiões de ferreiro ou ferrador devido ao som que emite ser semelhante ao do trabalho dessa ocupação, com batidas estrondosas. “Foi a imprensa4 que, a partir da novela, passou a chamar de “arapongas” os agentes secretos em geral” (GULLAR, 2006). A expressão se transformou de nome de um personagem de ficção para uma designação pejorativa referente a uma classe de pessoas: os espiões, os detetives, os “olheiros” do futebol (SPAGGIARI, 2016) e os agentes secretos, em especial os ex-agentes do SNI.
É sintomática a escolha desse personagem de telenovela para apelidar, entre outros, o funcionário sui generis do Grupo Folha. O período de veiculação da obra, início da década de 1990, primeiros anos do que é comumente encarado como o final do período ditatorial, propiciou a oportunidade para que uma trama audiovisual5 abordasse de maneira ridicularizante o perfil de atuação dos agentes da perseguição política brutal feita pelos militares e financiada por empresários tais como Henning Albert Boilesen, dono do Grupo Ultra6.
Especificamente sobre a relação entre os grandes jornais e o Estado pós-1964, as acusações mais graves de colaboração com o regime ditatorial militar-empresarial-midiático recaem sobre o Grupo Folha, principalmente devido ao intenso apoio estampado, à época, nas páginas da publicação vespertina Folha da Tarde- também apelidada “diário oficial da Operação Bandeirantes”. Nela, foram divulgadas inúmeras falsas reportagens, em grande parte escritas obedecendo a “bilhetinhos” de generais (KUSHNIR, 2004). A empresa também fornecia carros utilizados na distribuição dos jornais impressos para que agentes da perseguição política armassem emboscadas.
Calcados no repúdio às ações de empresários em apoio à ditadura, quatro militantes das esquerdas armadas, no dia 21/9/1971, incendiaram duas caminhonetes que distribuíam os jornais do Grupo Folha. [...] A acusação é similar àquela feita ao grupo dirigido por Boilesen [a empresa Ultragás, que vende botijões de cozinha], ou seja, que carros eram emprestados à repressão e atraíam os militantes, que por não verem as indicações de policiais, caíam na armadilha. Contra a Folha da Tarde pesavam também as reportagens dando outras versões oficiais aos fatos, uma maneira de apoiar o governo [...]. Os veículos materializavam a modernidade da nova administração, que aumentava o seu universo de leitores tanto na capital como no interior, apostando na rapidez em atingir os mercados (KUSHNIR, 2004, p. 333-334).
As instituições policiais e jornalísticas se confundiam em uma alternância de papéis investigativos cruéis. Policiais se disfarçavam à paisana como entregadores de bujões de gás ou de jornais, resguardados pelo logo da Ultragás ou do periódico estampado em seus automóveis. “Arapongas” jornaleiros eram complementados pelas falsas notícias de jornalistas colaboracionistas, muitos deles também policiais, o que gerou outra piada vexatória nos bastidores da mídia: a Folha da Tarde era achincalhada como “o jornal de maior tiragem” devido ao número de policiais, “tiras”, presentes em seus quadros. Nesse sentido, o jornalismo era parte de uma engrenagem militarizada de contra-informação: estratégia de guerra que considera os fluxos informacionais nos seus efeitos bélicos de provocar confusão contra um inimigo. Muitos casos demonstram os absurdos que ocorreram nesse período e servem de reminiscência benjaminiana (BENJAMIN, 1994) para o enfrentamento de perigos vindouros. A história de Eduardo Collen Leite talvez seja a mais chocante: o próprio preso político leu a falsa notícia de sua fuga nas páginas da Folha da Tarde7, o que já profetizava sua morte sob tortura.
O comandante da tropa de choque do DEOPS/SP, tenente Chiari, da Polícia Militar paulista, mostrou a Eduardo [Collen Leite, que estava encarcerado], no dia 25[/10/1970], os jornais que noticiavam sua fuga. [...] Em 8 de dezembro [de 1970], 109 dias após sua prisão e 42 dias após seu seqüestro do DEOPS, os jornais do país publicavam nota oficial informando a morte de Eduardo em um tiroteio nas imediações da cidade de São Sebastião, no litoral paulista. [...] O corpo de Eduardo foi entregue à família, que constatou torturas. Além de hematomas, escoriações, cortes profundos e queimaduras por toda a parte, apresentava dentes arrancados, orelhas decepadas e os olhos vazados (COMISSÃO..., 2009, p. 213-214).
O jornal foi utilizado pelo torturador Tenente Chiari como forma de tortura psíquica: a notícia falsa como instrumento de sevícia e perversão a serviço das investigações da polícia política, “coadjuvante dos aparelhos repressivos do Estado” (KUCINSKI, 1998). As notícias publicadas como contra-informação pelos jornalistas colaboracionistas na era pré-internet serviam como o prenúncio das diversas máquinas torturantes de extorsão de informações, como a “cadeira do dragão”8. A tortura obedecia a uma gradação, como se as falsas notícias fossem o estágio mínimo da “pimentinha” ou “pianola”9. Funcionando como profecia, a notícia falsa materializava um tipo de pau-de-arara virtual, que se atualizava nos corpos desfigurados dos que resistiram à ditadura. Nessa toada, é importante lembrar também que a falsa notícia ainda funciona como tortura da memória histórica, visto que há reticências de diversos jornais para se retratarem de suas notícias falaciosas. Cria-se, assim, um arquivo de mentiras, que potencialmente servirá de fonte para historiadores incautos que não realizarem a crítica dos arquivos no futuro.
O “ARAPONGA” ENSINANDO INVESTIGAÇÃO
A alcunha (como dizem os policiais) jocosa de “araponga” mobilizada pelos jornalistas novatos (que repetem o que dizem os jornalistas estabelecidos que também nomeiam assim esse tipo de espião), é reveladora do aspecto liminar dessa figura detetivesca. Contratado pela alta direção da empresa e respondendo diretamente aos donos do jornal, o “araponga” tem algo de mercenário: é o braço político mais secretamente ostensivo dos proprietários das redações. Investigando personalidades políticas sensíveis para as estratégias políticas do conglomerado midiático, o “araponga” tem em seu anonimato um salvo-conduto dos patrões para realizar qualquer contravenção mais grave que os jornalistas se recusem a realizar por motivos de princípios éticos. Se o serviço “sujo” for bem-sucedido, um jornalista pode aproveitar o dossiê gerado para assinar mais um “furo”. E o “araponga” parte para mais uma missão, clandestino em sua duplicidade profissional identitária.
Entretanto estamos lidando com zonas limítrofes: realizar uma contraposição entre jornalistas e “arapongas” é deixar escapar lógicas sociais importantes para pensarmos o contexto contemporâneo. Pretendo demonstrar como a negociação das fronteiras sobre o que é legal/ilegal, ético/não-ético no jornalismo são constitutivas da identidade profissional e estão presentes nos processos de ensino empresarial de investigação da profissão. A etnografia da ocorrência desse tipo de aprendizado corrobora estudos empreendidos (CARDOSO, 1995) e as informações tácitas de conhecimento comum no meio jornalístico. O fazer jornalístico emprega diversos meios controversos para obter informações. Geralmente, esse tipo de operação é considerado uma maneira legítima de atuação quando o fato revelado por meios antiéticos também viola regras éticas, e portanto não mereceria a salvaguarda dos preceitos morais postulados para todos. A quebra da ética é naturalizada pelos jornalistas tanto quando atinge camadas sociais mais marginalizadas (flagrantes policialescos de compra de drogas ou de venda de armas, por exemplo, a partir de câmeras escondidas, como no caso do jornalista assassinado Tim Lopes) como mais poderosas (políticos e artistas que tem sua privacidade publicizada).
O “Araponga” do Grupo Folha tem um perfil que não condiz com seu atrapalhado homônimo ficcional. É extrovertido e simpático, veste-se de maneira jovial ( jeans, camisa polo), tem cabelo curto levemente grisalho. As aulas de seu curso são designadas como sessões sobre “Investigação Jornalística”: o mesmo nome dado à palestra da premiada jornalista Maria Elvira Lobato (LOBO, 2013). O “Araponga” se utiliza bastante dos meios virtuais, dando dicas de como realizar buscas em sites, fornecendo orientações quanto a conceitos jurídicos básicos para facilitar o uso de endereços eletrônicos do judiciário. Além disso, ele ensina como conseguir a segunda via de conta telefônica de terceiros a partir de dados obtidos em publicações de exposição pública (lista de aprovados em concursos, por exemplo), em que constam os números de documentos pessoais (RG, CPF etc.). Com esses números inseridos em sites de provedoras de serviços de telefonia, quebra-se o sigilo telefônico. Uma obtenção de dados que mescla informações públicas com usos escusos de plataformas digitais, uma espécie de ‘hackeamento’ de baixa intensidade, talvez atualmente obsoleto frente a novas formas de criptografia.
Orgulhoso da qualidade de seu trabalho de investigação, ele mobiliza metáforas de cunho higiênico: “Quem passa ‘limpo’ por mim recebe certificado”. Durante a aula, o “Araponga” distribui para os trainees cópia de materiais que serão utilizados em aulas posteriores - não tive acesso nem às cópias, nem às aulas, pois não me foi dada permissão - e pede para que não divulguem (“não pode nem deixar jogado na sala”). Como exemplo jornalístico dos resultados de seu trabalho, o “Araponga” cita a publicação pelo Grupo Folha da primeira matéria investigativa contra um juiz corrupto. Devido a essa reportagem, o Grupo Folha foi processado.
As quebras de legalidade foram pedagogicamente ensinadas. Por exemplo, o “araponga” passou alguns truques de como conseguir documentos em cartórios: vestir-se de modo apropriado (terno, portando maleta), falar pouco e de forma convicta, sem insegurança, na maioria das vezes se fazendo passar por um advogado envolvido no caso. Aconselha levar uma segunda pessoa para simular uma conversa casual e apressada entre profissionais, deixando a performance mais convincente, para que o funcionário subalterno encarregado de localizar a documentação não cogite pedir identificação profissional. Como já mencionado, esse tipo de procedimento performático arriscado e ilegal tem sua eficácia modulada pelas modificações contextuais impostas pelas novas tecnologias disponíveis. Nesse sentido, o “araponga” pós-internet perde seu caráter detetivesco presencial de falsidade ideológica na busca por “furos”. Suas táticas o aproximam do hacker digital que produz uma grande quantidade de dados (“vazamentos”) utilizados em denúncias publicadas de forma serial. Hacker esse que também utiliza da falsidade ideológica, porém no ciberespaço dos perfisfalsos, para obter um clique num link enganoso que permitirá o acesso a informações, se passando por assessores que convidam para festas, universidades que prometem bolsas de estudo, sites com filmes para download, empresas que dispõem de empréstimos para negativados ou de propostas de emprego, simulando inclusive farsescos ambientes virtuais de netbanking.
UM “ARAPONGA” EX-SNI INFILTRADO NA AULA DE ETIQUETA
Passo agora a um episódio conflituoso envolvendo um ex-“araponga”, ocorrido na aula de etiqueta do Grupo Estado. Segundo o coordenador do curso, essas aulas são importantes pois possibilitam que os “focas” participem de eventos cerimoniosos públicos ou entrevistem pessoas importantes em restaurantes “chiques”. A aula foi conduzida por um especialista em “marketing pessoal” que mescla concepções de mundo firmadas sobre princípios empresariais (“o mundo é predatório”, “pessoa também é produto”, “roupa é embalagem”) e dicas de como se comportar na mesa. O professor ensina qual a ordem correta de utilização de cada elemento na mesa e dá conselhos para situações embaraçosas. Os novatos perguntam sobre detalhes: “o que fazer quando não gostou da comida?”, “Quem deve pagar a conta, após uma entrevista?”, “E se o entrevistado pedir um prato muito caro?”, “O guardanapo fica no colo ou estilo babador?”, “Qual o modo correto de cruzar as pernas?”. Vários “focas” já experienciaram um jantar de gala, pois mobilizaram alguns exemplos pessoais de quando tiveram algum tipo de constrangimento semelhante. Porém, como as perguntas mostram, não se tratava de uma experiência corriqueira: havia dúvidas sobre os procedimentos. Após essas aulas, vários participantes comentaram, em conversas mais reservadas, como acharam ridículo participar dessa atividade.
Na metade de sua aula, de maneira repentina e despojada, o especialista responsável por essa atividade revelou ter sido do SNI, órgão da polícia política da ditadura, na “época da revolução”, designação utilizada pelos apoiadores do golpe de 1964 para se referir àquela época. Ele foi agente de operações e fez treinamento anti-guerrilha na Amazônia: em suma, um legítimo “araponga” que participou das instituições ditatoriais militares. Instaurou-se então o silêncio, um mal-estar na classe, que antes estava sorridente com as gracinhas das performances dessa espécie de showman. Logo após a revelação, ainda em meio ao choque provocado, todos foram convidados para ir a um andar superior no prédio para aprender modos à mesa. Os jornalistas novatos foram levados até o andar em que se encontrava o restaurante da empresa onde uma mesa estava preparada com diversos pratos, talheres e copos para que dúvidas sobre o comportamento correto à mesa fossem dirimidas. No elevador surgiram comentários mordazes: “Como ele pode falar uma coisa dessas numa sala de jornalistas?”.
Antes de começar a discorrer sobre talheres e a forma certa de cruzar as pernas, um dos “focas” perguntou: “É tabu para você falar de sua época de exército?”. Nessa entrevista coletiva improvisada, não planejada pelo cronograma das atividades, foi acionado um discurso conservador que não dispunha de expressão política nos idos de 2008-2010, mas que se tornou cada vez mais presente nos tempos pós-eleição de 2018. Para justificar o período ditatorial nesse diálogo entre alcunhas inter-espécies, frente aos “focas”, o ex-“araponga” se serviu da teoria dos “dois demônios” (RIBEIRO, 2015): “Houve excessos dos dois lados [grupos de esquerda e militares]: onde já se viu matar um jovem de 19 anos na porta do quartel!”. Essa teoria, sustentada em âmbito sul-americano pelos apoiadores das ditaduras que aconteceram na região, tem como objetivo mascarar o caráter sistemático e institucional do uso da tortura (e não apenas em situações eventuais de “excessos”) contra pessoas com comportamentos considerados dissidentes. Os “focas” retrucaram: “Mas e o Vladimir Herzog?”. Convicto de seu ponto de vista político, o ex-agente do SNI descortinou um contexto intenso de contra-informação digno de cinema: “Aquilo foi queima de arquivo. Os militares não fizeram nada, o cara era intelectual e já estava preso. Tinha gente infiltrada nos dois lados, igual filme de espião”. No embalo, sobraram críticas preconceituosas a Lula (à época, no final de seu segundo mandato) e ao ateísmo de José Dirceu, encadeando chavões conservadores e caricatos. Enfim, o especialista encerrou o assunto dizendo que em outro momento “contaria mais histórias da TFP, dos maçons”.
Essa revelação repentina e desconcertante de um ex-“araponga”, um “relampejo do passado”, expôs indícios da rede de relações que ainda hoje sustenta financeiramente os ex-agentes da ditadura. Sua transformação em um mediador de boas práticas de etiqueta, ensinando artificialmente para quem não possui a naturalidade desse saber “portar-se à mesa” enraizado em sua condição social “de berço”, não deixa de ter um sabor de disfarce detetivesco. Jornalistas iniciantes, provindos de posições sociais oscilantes da classe média, aprendem a se portar com uma espontaneidade farsesca em refeições de elite com a ajuda de um ex-“araponga” do SNI. Em sentido ampliado, não deixa de ser uma aprendizagem de investigação, não sendo demasiado conspiratório imaginar que parte dos traquejos e gestos ensinados componham algum escuso manual de espionagem.
CONCLUINDO: A NATURALIZAÇÃO DA PRECARIEDADE E DA AMBIGUIDADE ÉTICA
O ensino do jornalismo investigativo nos cursos de formação proporcionados pelas empresas propicia elementos para entendermos a formação da nova geração de jornalistas e suas relações precarizadas de trabalho. O próprio oferecimento de um curso anterior ao ingresso efetivo dos novatos na estrutura trabalhista é ambíguo no sentido de reforçar a importância do ensino universitário (afinal, ainda é necessário apresentar algum diploma) ao mesmo tempo em que não considera suficiente os ensinamentos oferecidos nas faculdades para o pleno exercício da profissão (o que enfatiza a importância do saber produzido nas redações). Os cursos podem ser vistos como táticas institucionais de controle das redes de indicação e apoio para obtenção de emprego, funcionando como um desdobramento de ideias autoritárias que imaginam uma aprendizagem técnica despolitizada.
Os cursos criam um espaço de convivência entre ingressantes e investigadores particulares, de forma a naturalizar e estabelecer de maneira duradoura uma relação de apoio mútuo para atender os interesses de investigação e controle dos proprietários do jornal. A ridicularização da figura do “araponga”, através de crítica política imposta sobre a figura dos agentes da ditadura, vai se diluindo numa constatação sem repúdio da obviedade da existência de uma rede panóptica de capilaridade vigilante que comumente comete excessos, podendo extrapolar os direitos à privacidade, e que está a comando dos grupos mais ricos. São esses grupos poderosos que sustentam antigos agentes da ditadura, como visto no caso da aula de etiqueta. O jornalismo se torna assim um local de conversão e reconversão de violência simbólica em violência bruta, da linguagem denunciatória do jornalismo investigativo em tortura desumana e sádica.
Os horizontes de atuação jornalística se modificaram desde a época da realização da pesquisa (2008-2010) e é preciso enfatizar essas mudanças. As falsas notícias apresentam nova dinâmica tecno-política, sendo divulgadas amplamente em período eleitoral na esteira de aparatos sócio-técnicos de comunicação portáteis de audiovisualização em tela, fenômeno que mobiliza discussões sobre o conceito de fake news compartilhadas pelas plataformas de redes sociais digitais. Surgem agências de notícias especializadas em checagem de fatos: uma espécie de atualização de propostas como a de ombudsman ou de observatórios da imprensa. Organizações da sociedade civil conseguem obter recursos via financiamento coletivo (crowdfounding) para realizar reportagens investigativas sobre temas negligenciados pela mídia tradicional, um caminho auspicioso para efetivar também a produção jornalística nos cursos universitários. Outra novidade, no sentido jurídico, são os esforços para a implantação de leis de acesso à informação que viabilizem o trabalho de investigação jornalística e o dê respaldo institucional.
No entanto, complementar a essa visão que enfatiza as novas possibilidades contemporâneas, a análise dos casos apresentados também aponta para a persistência de estruturas de pensamento e ação arraigadas em relações autoritárias de ambiguidade ética. Sem a necessária criação de um controle social da mídia mais efetivo e construtivo, os modos de fazer jornalismo persistirão em reproduzir historicamente o oligopólio empresarial-familiar plutocrático que determina o que é uma investigação jornalística e quais concepções e valores devem ser ensinados aos novos jornalistas.
AGRADECIMENTOS
Agradeço imensamente os comentários de Amanda Brandão Ribeiro.
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Notas