Resumo: O objetivo deste artigo é sugerir uma agenda de pesquisa sobre o mundo do trabalho de jornalistas brasileiros a partir dos avanços nos estudos do tema no período 2000-2020. O procedimento metodológico consiste em levantamento bibliográfico e organização de tópicos relevantes para investigação, com abordagem qualitativa. A partir da elaboração de um conjunto de questões, propomos uma agenda de pesquisa para a próxima década, focada em quatro campos temáticos e um tópico conjuntural. Os campos temáticos são as mudanças estruturais do ofício, as transformações no padrão de regulação do trabalho, as novas formas de ação coletiva e os efeitos cruzados dos variados tipos de discriminações estruturais da sociedade brasileira sobre o mundo do trabalho de jornalistas. O tópico conjuntural diz respeito aos efeitos da pandemia de Covid-19 na atuação desses profissionais.
Palavras-chave: JornalistasJornalistas,Mercado de trabalhoMercado de trabalho,Identidade profissionalIdentidade profissional,Mundos do trabalhoMundos do trabalho.
Abstract: This article suggests a research agenda on the world of work of Brazilian journalists based on the advances in studies on the subject between 2000-2020. The methodological procedure consists of a bibliographic review and organization of relevant topics for investigation, with a qualitative approach. Based on a set of questions, we propose a research agenda for the next decade, focused on four thematic fields and a conjunctural topic. The thematic fields are structural changes in the profession, changes in the pattern of work regulation, new forms of collective action and the cross-effects of the various types of structural discrimination of Brazilian society on the journalists’ world of work. The conjunctural topic concerns the effects of the Covid-19 pandemic on journalistic performance.
Keywords: Brazilian journalists, Labor market, Professional identity, Worlds of work.
ARTIGO
O mundo do trabalho de jornalistas no Brasil: uma agenda de pesquisa
Journalists’ world of work in Brazil: a research agenda
Recepção: 15 Maio 2020
Aprovação: 04 Dezembro 2020
A pesquisa sobre o trabalho dos jornalistas brasileiros avançou significativa mente no século XXI, período em que pressões sobre o ofício impostas pela longa crise sociopolítica e econômica no país desde 2013 se combinaram a transforma ções estruturais no jornalismo, derivadas de mudanças tecnológicas que alteraram os padrões de leitura ou consumo de notícias em todo o ocidente. Neste artigo, recorremos à sociologia do trabalho para realizar um balanço dos avanços nos estudos sobre o mundo do trabalho dos jornalistas no Brasil entre 2000 e 2020, por meio de revisão bibliográfica, e, a partir disso, apontamos eixos para uma agenda de investigações.
O aprimoramento da pesquisa sobre o trabalho dos jornalistas nesse período se deve a um conjunto combinado de fatores. O primeiro deles foi a expansão da oferta de ensino superior no país, incluindo a pós-graduação. Entre 1990 e 2010, o número de cursos de graduação em jornalismo subiu de 60 para 317, tendo se estabilizado nessa escala de oferta desde então. Em paralelo, a pesquisa sobre o tema aprofundou-se em programas de pós-graduação da área de Comunicação e especializou-se em cursos dedicados exclusivamente a Jornalismo, nos níveis de mestrado e doutorado. O crescimento gradual do grupo de pesquisadores favoreceu a criação, em 2003, da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Em 2020, a SBPJor contava com mais de 500 associados, sólidas redes de pesquisa envolvendo investigadores de vários pontos do país no entorno de certos temas, além de relevantes conexões internacionais. Outros grupos de pesquisa em jornalismo se encontram regularmente nos eventos promovidos pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom), pela Asso ciação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós) e pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)
Nos encontros anuais da SBPJor, pesquisadores especializados no jornalismo como profissão organizaram, a partir de 2013, a Rede de Estudos sobre Trabalho e Identidade Profissional dos Jornalistas (Retij). Essa rede reúne estudiosos com diferentes perspectivas teóricas e distintas estratégias de investigação. Além do tema em comum, os grupos de pesquisa acumulam variadas experiências com estudos comparados, em cooperação com redes internacionais. Essas redes foram outra fonte de importantes contribuições para a compreensão do trabalho de jornalistas no Brasil nas últimas duas décadas. Elas levaram à realização no Brasil de dois amplos estudos sobre culturas jornalísticas e papéis ou valores profissio nais Worlds of Journalism Study (WJS) e Journalistic Role Performance (JRP). No mundo francófono, a Réseau d´Études sur le Journalisme (REJ) manteve pesquisadores brasileiros em contato fecundo com instituições da França, Bélgica e Canadá. Pesquisas sobre o trabalho de jornalistas brasileiros chegaram a alguns dos principais congressos mundiais sobre o tema.
Os principais resultados desses projetos e redes de pesquisa serão objeto deste artigo, que se divide em duas seções. Na primeira, o texto oferece um balanço das descobertas recentes sobre o mundo do trabalho de jornalistas no Brasil, produzidas pela pesquisa universitária. Na segunda, o artigo elenca um conjunto de questões a investigar e, com base nisso, propõe uma agenda de pesquisa sobre o tema para as próximas décadas. Para ambas as seções, seguimos a abordagem qualitativa adotada por Véras de Oliveira, Ramalho e Rosenfield (2019). O proce dimento metodológico envolveu o levantamento e a organização da bibliografia nos tópicos que nos parecem mais relevantes para o desenvolvimento da investi gação sobre os jornalistas no Brasil. Como o campo de estudos do jornalismo é por definição multidisciplinar (ZELIZER, 2009), as referências se alinham a diferentes tradições intelectuais, destacando-se as sociologias do trabalho e das profissões, os estudos culturais e os da comunicação.
A seção final propõe uma agenda de investigação sobre o tema. Tal proposta foi inspirada pelo artigo de Véras de Oliveira, Ramalho e Rosenfield (2019), que elegeu campos temáticos a partir dos quais apontou tendências na pesquisa de Socio logia do Trabalho, capazes de mobilizar a atenção de futuros estudos: mudanças tecnológicas, mudanças no padrão de regulação do trabalho, novas formas de ação coletiva e temas transversais (gênero, raça, geração, família, entre outros). A esses campos, somamos, como tópico conjuntural, a reflexão sobre os impactos da pandemia de Covid-19 sobre o trabalho desses profissionais.
Discutimos a seguir, em seis seções, a enorme gama de livros, artigos, teses, dissertações e relatórios de pesquisa sobre o trabalho das/dos jornalistas brasileiros publicados entre 2000 e 2020. A primeira seção reúne os estudos de natureza sociodemográfica que visaram traçar a morfologia do mundo do trabalho e as características gerais da categoria profissional. A segunda foca nos espaços de trabalho das/dos jornalistas. Esse tópico tem conexão com o anterior e insinua a problemática do momento seguinte, em que analisamos os estudos a respeito das condições de realização do trabalho jornalístico, com foco na precarização e nos efeitos da tecnologia. A quarta seção discute as pesquisas sobre trajetórias profissionais e a próxima reúne as investigações a respeito de cultura e identidade profissional. A parte final associa o mundo do trabalho às desigualdades estru turais da sociedade brasileira, em especial as de classe, raça, gênero e território.
Sem dispor de conselho ou ordem responsável pelo monitoramento da ativi dade profissional e sua autorregulamentação, os jornalistas brasileiros são uma categoria cuja dimensão e morfologia só podem ser aferidas por pesquisadores. Os registros profissionais mantidos junto ao Ministério do Trabalho são um parâmetro, mas não são o suficiente porque há parcela dos trabalhadores que atua sem registro e não há baixa no registro em caso de desistência ou abandono da profissão. Além disso, em função de limites impostos pela legislação de proteção de dados, é vedado o acesso público à listagem de profissionais registrados, o que permitiria estudos por amostragem. Outros dados, de sistemas como Rais/Caged, são imprecisos não apenas porque refletem apenas trabalhadores com carteira assinada, mas também porque os registros distribuem os jornalistas em diferentes classificações (THIBES; NICOLETTI, 2017). Por fim, a aferição do total anual de egressos de cursos de jornalismo (ou de comunicação social com habilitação específica) é um parâmetro insuficiente porque não considera o percentual elevado de formados na área que não exercerá atividade profissional de jornalista.
Diante de tais limites, pesquisadores brasileiros recorreram a técnicas de pesquisa em grande escala via internet, com diferentes tipos de amostragem, para traçar perfis sociodemográficos da categoria, de alcance estadual (FÍGARO; NONATO; GROHMANN, 2013, para o caso de São Paulo) ou nacional (MICK; LIMA, 2013). Tais investigações levaram a noções mais precisas sobre as características-chave dos jornalistas como categoria profissional. A pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro1, por exemplo, apontou que profissionais da área no país eram em 2012 majorita riainfmente mulheres, brancas, solteiras e jovens, com até 30 anos de idade. Em porcentagem, mulheres eram 64% das profissionais do setor, contra 36% de homens. Quanto à raça, o percentual de jornalistas negros(as) (23%) era inferior à metade da presença de pessoas pretas e pardas no território nacional (50,7%, segundo o IBGE). Nove em cada dez respondentes eram formados em Jornalismo, a maioria em instituições de ensino privadas; e quatro em cada dez tinham curso de pós-graduação (MICK; LIMA, 2013 para todos os dados do parágrafo).
Fenômenos como feminilização, juvenilização, alta taxa de formação supe rior específica em jornalismo e ainda baixa presença de pessoas negras (embora ascendente em função das políticas de cotas) foram confirmados em levantamentos posteriores. As pesquisas de perfil favoreceram quantificações, para o conjunto da categoria, relativas a tópicos que haviam sido bastante discutidos em estudos anteriores, como aqueles ligados à saúde dos jornalistas (HELOANI, 2003; REIMBERG, 2015), à incidência de assédio moral e assédio sexual (PONTES; LIMA, 2019) e as tensões que opõem o individualismo à associação coletiva em organizações como sindicatos (LIMA; MICK, 2013; GHEDINI, 2012).
Tais estudos também reforçaram, com indicadores quantitativos, as inves tigações que observaram os processos de formação superior de jornalistas, as dinâmicas de recrutamento de profissionais por organizações da área ou as estra tégias de inserção no mercado de trabalho por jovens trabalhadores. Pesquisas sobre formação superior focaram a importância dos estágios na construção da carreira (PEREIRA, 2015), os efeitos do fim da obrigatoriedade do diploma sobre a categoria (PEREIRA; MAIA, 2016), a percepção de estudantes de jornalismo sobre os valores profissionais (MAIA; FEMINA, 2012), entre outros tópicos.
Os estudos de perfil colaboraram para quantificar os diferentes ramos de atuação de jornalistas no Brasil. Ao contrário de países em que “jornalista” designa apenas a pessoa que trabalha em organizações de mídia, para os brasileiros essa identidade é utilizada em ampla variedade de inserções profissionais, incluindo a docência e todo tipo de organizações de fora da mídia. Na interessante formulação de Pereira (2013), “jornalista” é uma identidade que corresponde a três diferentes estatutos no país.
Mudanças no exercício do jornalismo são capazes de redefinir a forma como esses profissionais olham para si mesmos no presente e também no passado, para sua própria história (BERGAMO, 2011). Em 2012, a maior parte da categoria ainda se concentrava em trabalhos na mídia, em organizações jornalísticas (55% dos ocupados), mas parcelas significativas dos trabalhadores atuavam fora da mídia, em funções correlatas ao jornalismo, como assessoria de imprensa ou produção de conteúdo (40%), ou em docência (5%). Já naquele ano, cerca de um quarto dos profissionais não atuavam em nenhum desses segmentos: estavam desempregados ou estudando, eram aposentados, ou trabalhavam em outras áreas sem relação com o jornalismo (MICK; LIMA, 2013 para todos os dados). Os anos de crise que se seguiram foram marcados pelo fechamento de postos de trabalho na mídia e na docência, pelo abandono da profissão por um volume impressionante de jorna listas e pela diversificação do mercado de trabalho, tanto na mídia como fora dela.
A diminuição do emprego na mídia foi constatada por estudos baseados em estatísticas oficiais ou extra-oficiais (THIBES; NICOLETTI, 2017), e associada ao processo de precarização que também afeta o jornalismo (NICOLETTI, 2019, LELO, 2019). A desistência da profissão, especialmente por parte de trabalhadores da mídia, foi observada em pesquisas de análise longitudinal de carreiras2 (PONTES; MICK, 2018; QUESADA TAVARES; XAVIER; PONTES, 2020), confirmando estudos que constataram fenômeno semelhante nos Estados Unidos e na França.
Um conjunto de pesquisadores passou a observar os movimentos relacio nados à criação de novos espaços de trabalho para jornalistas, alguns sob a chave do “jornalismo empreendedor” (WARNER; IASTREBNER, 2017), e outros na forma de arranjos econômicos alternativos às grandes corporações de mídia ou outras nomenclaturas (NONATO; PACHI FILHO; FÍGARO, 2018a; NONATO, 2018; PACHI FILHO; MOLIANI; BELLAN, 2016; SILVA, 2017). Alguns desses estudos focaram experiências em que jornalistas cooperam com não-jornalistas, num movimento de desprofissiona lização, em geral envolvendo comunidades ou grupos de periferia (TAVARES, 2019). Outros observam a adesão de jornalistas a cooperativas, no Brasil assim como em outros países, como estratégia que ao mesmo tempo responde a um mercado de trabalho adverso e afirma assegurar liberdade editorial (GROHMANN, 2020, entre outros textos do autor). Alguns analisam o modo como vários tipos de inovação aperfeiçoam a governança do jornalismo (MICK; TAVARES, 2017), especialmente em termos editoriais e de relacionamento com as audiências (GIUSTI, 2019; MICK; CHRISTOFOLETTI, 2018; KIKUTI, 2019), que envolvem diretamente reconfigurações no trabalho dos jornalistas.
Mesmo na ausência de um mapeamento completo desses novos arranjos, já é amplo o debate teórico-metodológico sobre como caracterizá-los e como identificar as particularidades do tipo de trabalho que neles se desenvolve (ASSIS et al., 2017; HAUBRICH, 2017; SILVA, 2019). Destaca-se a dependência das possibilidades oferecidas pelos meios digitais para a organização e trabalho desses arranjos; o compromisso com valores sociais amplos e dissociados de interesses econômicos hegemônicos, ao mesmo tempo em que há uma disputa ideológica envolvendo a aproximação ou distanciamento com os conceitos de empreendedorismo e inovação (RAINHO, 2008; CARBASSE, 2015; OLIVEIRA; GROHMANN, 2015); condições de trabalho precárias do ponto de vista da remuneração e da reposição da força de trabalho; e fragilidade financeira como o principal desafio a ser superado por trabalhadores desses arranjos (FÍGARO, 2018, p.128): “Portanto, o ser jornalista aqui é um ser dividido que sofre porque vislumbra e faz acontecer o jornalismo em que acredita, mas é impedido de dedicar-se integralmente a essa atividade porque não sobrevive dela”. Fora da mídia, o trabalho jornalístico é ainda mais diversificado e envolve todo tipo de conexão com áreas ou atividades de algum modo conectadas ao jornalismo como a produção de conteúdos para rádio, TV, mídias online ou canais corporativos; a assessoria de imprensa e as relações públicas; a publicidade e o marketing. Descrições vagas de funções ou atividades ocupadas por jornalistas indicam a intensa miscigenação entre o ofício e outras áreas (MICK, 2015). Esse tipo de trabalho encontra abrigo em novas mídias, como redes sociais e canais próprios (SANT’ANNA, 2006) e tem vários tipos de conexão com mídias tradicionais, que veiculam as informações protojornalísticas produzidas sob a forma de rele ases, conteúdo patrocinado, branded content, infotenimento, opinião, análise e outros formatos que exploram a fluidez das linguagens midiáticas (SCHMITZ, 2012; MOLIANI, 2020). Configura-se assim um mercado mestiço (ou miscigenado) para os jornalistas, em que um número reduzido de profissionais atua em condições que favorecem e valorizam a produção de informação independente, a serviço do interesse público, cercados por uma maioria de discursos comprometidos com inte resses específicos (seja de indivíduos, seja de empresas ou organizações comerciais, políticas ou religiosas). A usina de produção de conteúdos de interesse particular explora estrategicamente a franja que conecta o jornalismo ao interesse público quando existe. Jornalistas, donos de mídias, anunciantes ou financiadores e outros agentes relacionados com o ofício ocupam diferentes posições hierárquicas nesse campo de atuação. Nessas posições, mobilizam as distintas espécies de capital de que dispõem para defender seus interesses e a topografia dessas relações é um tema particularmente desafiador.
Ao mesmo tempo em que são suscetíveis aos efeitos de mudanças sociais, jornalistas têm a capacidade de influenciá-las, ao construir narrativas sobre elas. Foi assim com a crise econômica iniciada em 2013 no Brasil, intensificada com
o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, e sucedida por reformas estruturais no Estado e nas relações de trabalho. Jornalistas foram narradores, intérpretes e vítimas dessa crise sociopolítica (PONTES; MICK, 2018), que associou-se à crise estrutural do jornalismo e produziu um efeito cruzado devastador para os profissionais: demissões, terceirização (“pejotização”) (GARCIA, 2015) e precarização foram consequências evidentes.
O processo de precarização que tem caracterizado o mundo do trabalho (STAN DING, 2014; HUWS, 2017; ANTUNES, 2018) afeta em múltiplas dimensões a atuação dos jornalistas no Brasil. Medida por indicadores comuns a outras categorias como a deterioração dos contratos e das condições de trabalho, a intensificação e o alongamento das jornadas -, a precarização no jornalismo tem particularidades que se relacionam às mudanças estruturais do ofício (ADGHIRNI, 2012; 2017) e ao modo como suas atividades se adaptaram a desafios conjunturais (como a crise sociopolítica e econômica no Brasil ou a pandemia de Covid-19). Essas particula ridades geraram práticas que, amplamente disseminadas, configuraram um novo padrão para as relações de trabalho precarizadas no setor.
A precarização do trabalho no jornalismo é um tema examinado por muitos pesquisadores do Brasil (DOS SANTOS; BARBOSA; ROCHA, 2018; FÍGARO, NONATO, GROH MANN, 2013) e de outros países (MIRANDA, 2017; ÖRNEBRING, 2018). Para Rafael Grohmann (2013), flexibilização e precarização não são fenômenos individuais, mas estruturantes das condições de trabalho de jornalistas em conglomerados de mídia. Janara Nicoletti (2019), a partir de um balanço dos estudos sobre o tema, propôs um modelo de análise capaz de correlacionar indicadores de precarização do trabalho com avaliação da qualidade das mídias3. Algumas pesquisas focaram nas consequências da precarização sobre a saúde dos jornalistas (PONTES; LIMA, 2019; LELO, 2019); outra procurou identificar quando o trabalho jornalístico é fonte de prazer ou de sofrimento para seus praticantes (REIMBERG, 2015). Thales Lelo (2019; 2020) propôs a instigante categoria “sofrimento ético” para interpretar efeitos do contraste entre condições de trabalho degradadas e a expectativa profissional de produzir conteúdo relevante para a sociedade.
Particularidades relevantes do trabalho jornalístico no contexto do debate sobre precarização derivam de impactos, sobre o ofício, das inovações nas tecno logias de informação e comunicação. A convergência digital ou interação, em um mesmo ambiente eletrônico, de mídias que antes operavam separadamente -, por exemplo, favoreceu um movimento de reversão na divisão do trabalho, com a elimi nação de inúmeras funções antes desenvolvidas por especialistas: diagramadores foram substituídos por softwares; revisores ou copywriters foram eliminados com a transferência de suas responsabilidades para repórteres e editores; funções administrativas foram incorporadas por editores e subeditores; laboratoristas foram demitidos quando a produção fotográfica tornou-se inteiramente digital (FONSECA; SOUZA, 2006; SILVA, 2011). Como parte desse movimento, desenvolveram-se práticas e expectativas ligadas à multifuncionalidade e à multimidialidade: muitos jornalistas foram convidados (ou pressionados) a produzir para diferentes mídias em um mesmo grupo empresarial (ou de grupos associados), acumulando numa pessoa só funções que antes eram realizadas por várias, geralmente sem acréscimo salarial (MICK; RIBEIRO, 2015). A juvenilização das redações foi intensifi cada como forma de reduzir os questionamentos trabalhistas, éticos e ideológicos, além de baratear custos da produção e diminuir atritos (FÍGARO; NONATO, 2017).
A inserção de Tecnologias de Comunicação e Informação (TICs) no trabalho jornalístico é relacionada, entre outras coisas, à busca por formas de diferenciação em contexto de hiperconcorrência (CHARRON; DE BONVILLE, 2016). Ela intensifica a necessidade de inovação de variadas formas, muitas vezes impondo-se ao trabalho jornalístico sem que seus trabalhadores tenham qualquer controle sobre os processos. Mais do que apenas ferramentas, as TICs são catalisadoras de mudanças estruturais na profissão, e constituem uma equação paradoxal: por um lado, faci litam a rotina, otimizam o uso de tempo e espaço nas redações, e possibilitam a construção de novos focos de atuação como, por exemplo, a especialização em jornalismo de dados (LIMA, 2018) ou a construção de reportagens hipermídia; por outro, as TICs favorecem flexibilização, intensificação e alongamento do tempo do trabalho, acúmulo de funções e consequente queda na qualidade de vida de jornalistas, além de produzirem diminuição de postos de trabalho (MARANHÃO; CARVALHO; SOUZA, 2017), fenômenos comuns em outras profissões ou ocupações.
Entretanto, o uso das TICs varia dependendo do tipo de mídia e do tipo de organização jornalística a qual serve. No caso dos arranjos alternativos à imprensa hegemônica, de menor porte, elas muitas vezes são fundamentais para a própria existência desses arranjos, nos quais o trabalho é organizado e distribuído em “redações virtuais” (MARQUES; KINOSHITA; MOLIANI, 2018; SILVA, 2019), substitutas das sedes físicas. Aplicativos de mensagens instantâneas, salas de reunião virtuais, mecanismos de busca e softwares de edição cumprem papéis que vão desde a garimpagem de dados e produção de materiais até a comunicação com colabora dores e leitores.
Esse conjunto de mudanças nas condições de trabalho acabou por transformar as diferentes temporalidades do jornalismo, que cruzam o tempo dos aconteci mentos com o tempo próprio (ou tempo social) dos jornalistas como comunidade. A aceleração da experiência, tema importante para a teoria social contemporânea, foi documentada, entre os jornalistas, por estudos empíricos e conceituais (a exemplo de MORETZSOHN, 2002).
Com o número de oportunidades de emprego na indústria de mídia declinando ou estagnado e o mundo do trabalho cada vez mais flexível, o tema do “projeto de vida e carreira” de jornalistas torna-se central, embora ainda pouco explorado pela pesquisa acadêmica. Estudos sobre trajetórias profissionais de jornalistas são úteis para entender como eles(as) entram no mercado de trabalho, o que fazem enquanto nele permanecem e em que momento se afastam da profissão. Também podem aferir, por exemplo, de que maneira fatores como escolarização, gênero, raça e outros marcadores influenciam nas tomadas de decisão sobre a vida profissional dos sujeitos. Como envolvem a dinâmica de escolhas ou imposições ao longo de muito tempo (às vezes, por décadas), esses estudos enfrentam desafios metodo lógicos singulares, já que tanto investigadores como pesquisados esbarram nos riscos da ilusão biográfica.
No ano de 2017, em pesquisa inédita no Brasil, pesquisadores aplicaram um websurvey à base de respondentes de pesquisa Perfil do Jornalista Brasileiro (MICK; LIMA, 2013) para saber como estava a vida desses jornalistas cinco anos depois4. Recortes nessa base de dados observaram as particularidades nas traje tórias profissionais de jornalistas que atuam na mídia (QUESADA TAVARES; XAVIER; PONTES, 2020), fora da mídia e na docência. Com 1.233 respostas válidas, o estudo observou que havia crescido de 22% para 38% a porcentagem de jornalistas que se afastaram da profissão entre os respondentes (seja por aposentadoria, desemprego ou emprego em atividade não-jornalística); com o aumento na idade e no tempo de carreira, a quantidade de docentes aumentou entre o grupo, assim como profis sionais que rumaram para o trabalho em assessorias, o que se explica pela busca por melhores condições de trabalho e salários; a atividade jornalística manteve-se instável em sua precariedade, e trabalhadores(as) de empresas de mídia sofreram mais com o impacto das crises do período (PONTES; MICK, 2018 para todos os dados). No recorte de gênero (KIKUTI; ROCHA, 2018), as mulheres continuaram com piores condições de trabalho ao longo dos cinco anos: acumularam mais atividades e ainda ganhavam salários piores que os homens executando as mesmas funções, A pesquisa foi uma atuação conjunta entre pesquisadores(as) da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). e isso talvez explique a maior migração delas para fora da profissão: menos da metade das jornalistas respondentes que estavam na mídia em 2012 permaneceu nela cinco anos depois.
A pesquisa permitiu ainda observar o fenômeno da dualização estrutural, ou seja, a subdivisão da carreira em dois grupos: uma maioria que sofre com condições adversas de trabalho tem menor autonomia, um teto de remuneração e tende a desligar-se da profissão depois de dez anos de carreira; e uma pequena elite, que usufrui de certa estabilidade, remuneração mais alta, maior autonomia e permanece por longo tempo na profissão (MICK; ESTAYNO, 2020).
Outras pesquisas versaram sobre as carreiras de jornalistas no ambiente digital. Zélia Adghirni (2013) entrevistou jornalistas seniores no Brasil e concluiu que os “dinossauros” que sobreviveram à transição para o digital ocupavam os melhores lugares, tinham os melhores salários, dominavam as tecnologias e afirmavam que só iriam parar de trabalhar quando morressem. Em âmbito inter nacional, Fábio Pereira (2020) percebeu outra dualidade presente nas carreiras de jornalistas com longo tempo de profissão entrevistados na Bélgica, Brasil, Canadá, França e Portugal: há aqueles que aprenderam novas habilidades ao longo do tempo, talvez por apreço à tecnologia, e os que fizeram a migração para o digital pela necessidade de adaptação ao mercado de trabalho.5
O tema que mais concentrou a pesquisa comparativa internacional sobre o trabalho dos jornalistas nas duas primeiras décadas do século XXI foi a cultura profissional. Amplo conjunto de estudos visou observar semelhanças e diferenças entre valores ou finalidades atribuídas ao jornalismo, práticas e representações identitárias partilhadas ou não pelos profissionais de diferentes países. Equipes brasileiras participaram de algumas dessas pesquisas, que nos ajudaram a compre ender em que aspectos os jornalistas formam uma “comunidade interpretativa transnacional” (TRAQUINA, 2013) e em quais seu trabalho é marcado por uma inserção sócio-histórica, que reflete culturas nacionais ou diferentes sistemas de mídia.
Os primeiros trabalhos de referência nessa área foram dois estudos de Heloiza Herscovitz. No primeiro, ela comparou percepções de jornalistas de São Paulo com profissionais da França e dos Estados Unidos (HERSCOVITZ, 2000; 2004); no segundo, reuniu respostas de jornalistas de todas as regiões em estudo compa rativo com países de todos os continentes (HERSCOVITZ, 2012). Essas pesquisas deram continuidade a investigação anterior (HERSCOVITZ; CARDOSO, 1998), também conectada ao trabalho de David Weaver nos Estados Unidos, inspiração impor tante para dois projetos de pesquisa comparativa internacional sobre jornalistas de largo alcance e longa duração desenvolvidos nos anos 2010 sob a liderança de Claudia Mellado (Journalistic role performance) e Thomas Hanitzsch (The worlds of journalism study).
No Brasil, o The worlds of journalism study foi realizado pela equipe de Sônia Virgínia Moreira. O estudo mapeou, por meio de survey, diferenças nas culturas profissionais de jornalistas de 67 países. Os resultados da primeira etapa, experimental, foram reunidos em publicações coletivas (por exemplo, HANITZSCH et al., 2011) e permitiram a realização de estudos comparativos com outros países na América Latina (MELLADO; MOREIRA; LAGOS; HERNANDEZ, 2012) e com Portugal (NOVAIS; MOREIRA; SILVA, 2013). Para a segunda etapa, os instrumentos de pesquisa foram aperfeiçoados e os dados, compartilhados para uso da comunidade acadê mica (MOREIRA, 2017), reunidos em livro (HANITZSCH; HANUSCH; RAMAPRASAD; DE BEER, 2019) e em parte analisados num dossiê publicado na Brazilian Journalism Research (MOREIRA; OLLER ALONSO, 2018).
O Journalistic role performance foi realizado no Brasil entre 2013 e 2020 por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (SCHMITZ, 2018). O escopo desse projeto é mais específico: visa compreender a diferença entre o que os profissionais afirmam sobre as finalidades do jornalismo e o que efetivamente fazem em seu trabalho cotidiano. Os papéis profissionais foram agrupados em seis modelos de desempenho e a articulação entre papéis e práticas foi aferida por meio da combinação de técnicas de pesquisa: análise de conteúdo aplicada a itens noticiosos produzidos por jornalistas entrevistados em survey. Os resultados foram igualmente apresentados em publicações coletivas em revistas internacio nais (MÁRQUEZ-RAMÍREZ et al., 2019; MELLADO et al., 2020) e livro (MELLADO, 2020). E permitiram estudos comparativos regionais, envolvendo países da América Latina (a exemplo de MELLADO; MÁRQUEZ-RAMÍREZ; MICK; OLLER ALONSO; OLIVEIRA, 2016). O projeto desenvolveu a ideia de culturas profissionais híbridas, depois de identificar padrões multinivelados de hibridização no desenvolvimento de papéis profissionais entre jornalistas de países democráticos, autoritários e em transição (MELLADO, 2020)6.
Outro espaço de cooperação internacional fecunda envolvendo pesquisadores brasileiros é a Réseau d´Études sur le Journalisme. Essa rede conecta o Brasil a França, Bélgica e Canadá e resultou em estudos sobre identidade profissional (RUELLAN, 2017), o trabalho de ombudsman (MAIA, 2004a; 2004b; MAIA; ROMEYER, 2007), de jornalistas intelectuais (PEREIRA, 2007), de jornalistas online (LE CAM; PEREIRA, 2018), a relação entre o período de formação e o ingresso no mercado de trabalho, entre outros temas.
Os estudos internacionais contribuíram com dados e interpretações para dar robustez à vasta reflexão sobre identidade profissional de jornalistas no Brasil. Por exemplo, um estudo sobre a identidade profissional de assessores de imprensa (quando comparada a jornalistas de mídia) tomou como ponto de partida os indi cadores do projeto Worlds of journalism study (ROSSO, 2017). Para explorar o tema, pesquisadores brasileiros também se demoraram sobre a relação entre identidade, liberdade de imprensa (MAIA; PEREIRA, 2010; PEREIRA; MAIA, 2011) e representa ções sociais (OLIVEIRA, 2005). A identidade profissional também foi estudada nas narrativas de trabalhadores envolvidos com jornalismo independente (PATRÍCIO; BATISTA, 2017; TAVARES, 2019).
O estudo das conexões entre as desigualdades estruturais da sociedade brasileira (sobretudo as de classe, gênero, raça e território) e as trajetórias profis sionais de jornalistas diversificou-se, aprofundou-se e especializou-se nas duas primeiras décadas do século 21. As pesquisas sobre desigualdades de gênero foram alimentadas pela expansão do interesse nas teorias feministas nas universidades brasileiras (como em outros países) no período. As investigações quantitativas permitiram observar em escala a persistência dessa desigualdade (PONTES, 2017), uma vez que as jornalistas, a despeito de terem se tornado a maioria na categoria, têm salários menores que os homens e enfrentam preconceitos para chegar a posi ções de comando o “teto de vidro”. Ao estudo pioneiro de Paula Rocha (2004), somaram-se trabalhos enfocando aspectos variados desse problema: implicações da recente ascensão de mulheres jornalistas a cargos de chefias médias (BANDEIRA, 2019); a relação entre a crescente precariedade laboral e a feminização, no que diz respeito à divisão sexual do trabalho, culturas organizacionais, culturas profissio nais e rotinas produtivas (LELO, 2019); as variáveis que influenciam na percepção das jornalistas sobre suas carreiras, aspirações, frustrações, sacrifícios pessoais e negociações nas rotinas de trabalho (LEITE, 2017); a procura de mulheres jorna listas por arranjos alternativos de trabalho que possibilitem reportar temas como direitos humanos, gênero e feminismos (FÍGARO, 2018b).
As investigações sobre racismo e jornalismo foram estimuladas por efeitos de políticas de ação afirmativa que criaram cotas no ensino de graduação e, mais tarde, na pós-graduação no Brasil. Com isso, mais pessoas negras passam, aos poucos, a compor a categoria profissional e o mundo acadêmico, estimulando o debate sobre preconceito racial e seus efeitos sobre o mercado de trabalho. Apesar disso, pessoas negras continuam sendo minoria no jornalismo, ganhando salários menores do que seus colegas brancos e tendo menos oportunidades de subir nas carreiras (MICK; LIMA, 2013), e as pesquisas dedicadas ao problema do racismo na profissão de jornalista ainda são raras. Os poucos estudos encontrados (dois deles, trabalhos de conclusão de curso) abordam temas como estratégias de apagamento do preconceito racial no trabalho (FRANÇA, 2006), a inserção de jornalistas negros nos impressos, a partir das perspectivas desses(as) profissionais (SANTOS, 2019), e as percepções de jornalistas de TV sobre gênero, raça e profissão no Rio Grande do Sul (SANCHOTENE; PEDROZO; ZUCOLO, 2018).
Os efeitos dos marcadores sociais de gênero, raça, classe e território podem ser melhor compreendidos quando olhados a partir de seus intercruzamentos, ou interseccionalidades, como demonstram os estudos sobre jornalistas da periferia (NONATO; CAMARGO; PACCHI FILHO, 2020). Morar distante das áreas centrais das grandes cidades, não graduar-se em escolas de jornalismo de elite, ter de trabalhar enquanto estuda, ser mulher e acumular atividades domésticas/de cuidado, ser negro(a) e pertencer à classe média-baixa são fatores que dificultam e diferenciam a entrada e a permanência desses(as) jornalistas na profissão. Sem vislumbrar a possibilidade de trabalhar em empresas tradicionais de mídia, muitos acabam atuando nas próprias periferias onde moram, produzindo um jornalismo voltado às suas comunidades. E a afirmação do vínculo com os territórios periféricos é parte constitutiva da identidade profissional desses jornalistas, que demarcadamente se afastam do jornalismo tradicional, característico das áreas centrais.
As conexões entre o mercado de trabalho para jornalistas e as desigualdades regionais foram ainda menos exploradas, apesar da relevância da territorialidade para o tema (BORGES, 2013; AGUIAR, 2016; ROVIDA, 2020). Estudos sobre a distri buição das mídias no Brasil indicam que o processo de fechamento de veículos jornalísticos e criação de desertos de notícias é desigual, afetando com maior intensidade as cidades médias e pequenas e as regiões de menor desenvolvimento socioeconômico7. Mesmo os dados das pesquisas de perfil profissional da última década não foram comparados com vistas a observar diferenças de renda, condi ções de trabalho, perfil sociodemográfico ou tipo de ocupação, configurando uma lacuna significativa.
A extensão do corpus de textos reunidos neste artigo indica que a extensão e a qualidade da produção científica sobre o mundo do trabalho de jornalistas no Brasil contribuíram para ampliar significativamente o conhecimento do tema pelos especialistas e pela sociedade. Temos hoje uma percepção mais realista e completa da complexa trama de relações que tecem as potencialidades e os obstáculos rela cionados às várias modalidades de atuação profissional no jornalismo brasileiro. Trata-se de um avanço notável, ante a situação em que a pesquisa sobre o tema se encontrava 15 anos atrás: num balanço de 30 artigos publicados na Revista Brasi leira de Ciências da Comunicação entre 2000 e 2004, Sonia Virgínia Moreira (2005) encontrou apenas cinco textos a respeito dos tópicos desenvolvidos neste artigo.
A partir do conjunto de pesquisas articuladas até aqui, propomos a seguir uma agenda de investigação sobre o trabalho de jornalistas no Brasil para a próxima década, organizadas a partir de quatro campos temáticos (VÉRAS DE OLIVEIRA; RAMALHO; ROSENFIELD, 2019) que julgamos centrais: mudanças estruturais do ofício, transformações no padrão de regulação do trabalho, novas formas de ação coletiva e efeitos cruzados dos variados tipos de discriminações estruturais da sociedade brasileira sobre o mundo do trabalho de jornalistas8. A esses quatro eixos soma-se um quinto, que versa sobre as consequências da pandemia da Covid-19 sobre o trabalho jornalístico (Quadro 1).
No campo das mudanças estruturais no jornalismo, os estudos apontaram que tanto organizações tradicionais como novos arranjos produtivos têm experi mentado todo tipo de inovação em seus sistemas de governança, com o objetivo de viabilizar a sobrevivência do ofício num contexto de crise. Enquanto novos modelos de governança não estiverem consolidados (quando então poderão ser mais rapidamente reproduzidos), a observação dos processos de transformação das organizações e seus efeitos sobre o trabalho continuará relevante. Neste domínio, importa identificar, interpretar e propor tipologias de classificação dos novos arranjos produtivos para o jornalismo impulsionados pelos próprios profissionais ou por organizações interessadas no fortalecimento (ou na reinvenção) do ofício. Tais experiências, contudo, continuam minoritárias em termos quantitativos e alcançam número pouco expressivo de jornalistas. Desse modo, tão interessantes quanto os novos arranjos devem ser os movimentos de transformação que afetam as organizações tradicionais, em especial as maiores, que concentram grande número de profissionais e são responsáveis pela imagem pública do ofício.
Mídias tradicionais têm alterado sua organização do trabalho em função da adesão a novas tecnologias e novos processos, em geral combinados à precarização. Nesse movimento, aprofunda-se a diluição de fronteiras entre o discurso jornalís tico produzido (em tese) em sintonia com o interesse público e narrativas orientadas por vários tipos de interesses particulares não só por assessorias de imprensa, mas por uma miríade de indivíduos ou empresas especializadas em “produção de conteúdo”. Nesse ambiente crivado por interseções, não circulam repórteres, assessores de imprensa ou editores (denominações clássicas da profissão), mas analistas de redes sociais, gestores de conteúdo, assistentes, auxiliares, consul tores um emaranhado de denominações genéricas precisamente para facilitar os deslocamentos entre um e outro territórios de atuação. Isso resulta em pressões pela redefinição de perfis, competências e habilidades, às vezes com implicações diretas nos currículos de formação de profissionais para a área9. Tal miscigenação dos campos de atuação poderá produzir transformações tanto no produto jorna lístico, uma vez que esses trânsitos de perfis incidem na própria noção do que é jornalismo, quanto na cultura e na identidade profissional, reforçando a relevância de fortalecer a visão do jornalismo a partir do mundo do trabalho, como têm desta cado, por exemplo, pesquisadores(as) do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (ECA/USP).
Inovações tecnológicas favoreceram a desespecialização multifuncional do trabalho jornalístico que, nos grupos de mídia, combinou-se à exigência de veicu lação dos conteúdos em múltiplas plataformas, o que alterou o processo produtivo e intensificou exponencialmente a exploração da jornada de um mesmo profis sional. Essas são interfaces relevantes para os estudos que envolvem relações entre forças de trabalho e meios de produção, entre eles os de precarização, que poderão continuar a testar os vínculos entre as relações de trabalho e a deterioração da qualidade do jornalismo (desenvolvendo, por exemplo, o modelo analítico proposto por Nicoletti, 2019). A deterioração da qualidade e sua relação com a desinformação parece ser outro eixo relevante de pesquisa, uma vez que suscita novos nichos de negócios jornalísticos, como, por exemplo, as agências de fact checking.
A tendência de alargamento e aprofundamento da precarização no Brasil foi consolidada pelas recentes mudanças na regulação do trabalho, que favoreceram a adoção de contratos com jornada intermitente ou parcial, legalizaram a contratação exclusiva de um autônomo por um empregador (ou a “pejotização”) e o trabalho remoto. Os efeitos da reforma trabalhista sobre o mundo do trabalho de jornalistas não foram ainda aferidos sistematicamente, mas eles se combinam com algumas das práticas impostas pelas rotinas experimentadas ao longo da pandemia de Covid-19 (das quais trataremos em seguida). Entre as consequências da reforma, entendemos como particularmente relevantes aquelas que se relacionam às formas de assédio (moral e/ou sexual), tanto porque a mudança da legislação pode ter favorecido a intensificação dessas práticas, como porque pode ter desestimulado a apresentação de demandas judiciais contra empresas para coibi-las
A reforma também afetou a relação dos trabalhadores com suas organizações sindicais. Jornalistas tinham taxas de sindicalização próximas a 25% em 2012, quando já havia um descasamento entre os perfis dos dirigentes (homens mais velhos) e da categoria (mulheres mais jovens). Desde então, com a deterioração da atividade econômica, o avanço do desemprego e da precarização e a legislação que dificultou o recolhimento de contribuições sindicais, é provável que as entidades ligadas à Federação Nacional dos Jornalistas tenham sido fortemente fragilizadas.10 Ainda há que se avançar na compreensão e aferição dos efeitos da flexibilidade do mercado de trabalho na incidência de riscos biográficos nas trajetórias profissionais de jornalistas. Entre as questões estão a ocorrência de trabalhos “mestiços” ou híbridos, que misturam funções jornalísticas e não jornalísticas; a relação entre escolarização e os tipos de cargos ocupados por profissionais; as diferenças e espe cificidades das trajetórias forjadas na mídia tradicional e no chamado jornalismo independente; as diferenças entre os tipos e a duração das carreiras a depender de marcadores sociais como gênero, raça, classe, região geográfica, religião e orientação sexual. Estudos que aprofundem causas, configurações, significados e efeitos da dualização estrutural da profissão também são necessários.
Em se tratando especificamente dos efeitos dos diversos tipos de discriminação sobre o trabalho jornalístico que configuram, na verdade, alicerces históricos nos quais o próprio campo do jornalismo é estruturado -, muitos temas demandam a atenção de futuras pesquisas na área. O racismo parece ser uma das princi pais, tanto pela urgência do problema quanto pela falta de estudos específicos, que compreendam, por exemplo, como ele incide no ingresso e na permanência de pessoas negras na profissão. No campo dos estudos de gênero, é importante compreender mais a fundo os processos históricos de feminilização (aumento quantitativo) e feminização (transformação qualitativa) da profissão, ocorridas em um ambiente em mutação, mas ainda pautado por valores masculinistas, bem como o recente movimento de expulsão das mulheres da profissão em contextos de crise, a “desfeminilização”, favorecida pela manutenção do jornalismo como atividade masculizada. As relações entre trajetórias profissionais e assédio ainda são pouco debatidas (LOPES DE AMORIM; BUENO, 2019), sendo importante compre ender de que forma o assédio motiva mudanças ou o abandono da profissão, ou como jornalistas traçam estratégias para lidarem com o problema e permanecerem em seus empregos. As desigualdades regionais suscitam questões que associam eventuais diferenças sociodemográficas e de perfil da ocupação a variações nos valores e práticas profissionais, derivados da configuração sócio-histórica dos sistemas locais de mídia. Em outros termos: num país das dimensões do Brasil, a cultura profissional é homogênea ou guarda particularidades relacionadas às desigualdades regionais?
Por fim, os efeitos da pandemia da Covid-19 estão impactando e continuarão por algum tempo a impactar de maneira severa o trabalho de jornalistas. Na rua, há estresse, insegurança e risco à saúde. No trabalho em casa, os desafios incluem a gestão da vida doméstica e o cuidado dos filhos, em paralelo às responsabilidades de reconhecimento, apuração e narração das notícias. O regime em home office impôs fragmentação e alongamento da jornada de trabalho, intensificação do uso de comunicação eletronicamente mediada, controle externo de metas e jornada de trabalho e cobertura, pelos trabalhadores, dos custos da infraestrutura. Somada às crises antes vigentes no setor, a pandemia agravou ainda mais o quadro de demissões: houve fechamento permanente de jornais, sobretudo de impressos, precarização de contratos, diminuição salarial, densificação do trabalho, aumento no adoecimento, estresse e incertezas sobre o futuro. As mulheres jornalistas foram as mais afetadas, por conta do acúmulo de atividades domésticas e de cuidado (FÍGARO, 2020). As medidas sanitárias para prevenção do contágio também impac taram nas rotinas de apuração, ao diminuir a interação das equipes, estagnar ou reduzir a diversificação de fontes nas matérias por causa do home office (justo em um momento marcado por discussões sobre diversidade no jornalismo), e trans formar a estética das reportagens televisivas pelo uso de máscaras, por exemplo. Resta saber se esse agrupamento de efeitos produzirá transformações de médio e longo prazo na vida de jornalistas, sua saúde mental e suas perspectivas de trabalho, ou se será revertido na hipótese de superação da pandemia.
Ora vistos como protagonistas de grandes momentos da história nacional, ora descritos como títeres manipulados por interesses ocultos (não raro, transnacio nais), os jornalistas sofreram como poucas categorias os efeitos combinados de mudanças em seu ofício e na sociedade brasileira nas últimas décadas. A expansão da oferta de ensino superior colaborou para que o jornalismo se tornasse uma ativi dade predominantemente feminina e escolarizada (depois de décadas como ofício dominado por homens que haviam aprendido a profissão ao exercê-la); pela mesma razão, mais pessoas negras do que nunca passaram a atuar como jornalistas nas mídias e fora delas, embora em percentuais ainda inferiores à presença de pretos e pardos na população. Com mais mulheres e pessoas negras, o jornalismo de fato tornou-se mais diversificado, sem contudo reverter padrões cristalizados pela dominação masculina. Em outro domínio, o da política, paradoxos semelhantes também se impõem: à direita e à esquerda, simetricamente, há ativistas dispostos a denunciar a parcialidade dos jornalistas, utilizando inclusive as mesmas expres sões; em paralelo, outros ativistas defendem a imprensa livre como fundamento para a democracia, como arma contra o arbítrio e a tirania.
Jornalistas são sobretudo trabalhadores e sofrem cotidianamente as sequelas da perda de direitos, da deterioração da atividade econômica, do desemprego e da precarização, assim como de ataques simbólicos cometidos contra eles com sistemática regularidade pelos governantes eleitos em 2018. A pesquisa sobre o mundo do trabalho no jornalismo, cujo balanço desenvolvemos neste artigo, divide-se entre abordagens críticas e descritivas, mas é no geral solidária, generosa, produzida por investigadores que se identificam com o grupo que pesquisam. No Brasil, professores e pesquisadores de jornalismo se descrevem como jornalistas (e são reconhecidos assim por seus pares); se tal intimidade com o tema da pesquisa carrega inevitavelmente o risco de enviesamento, a proximidade entrega vanta gens como maior facilidade de abordagem das organizações e agentes sociais que compõem o campo jornalístico.
O balanço dos estudos do período 2000-2020 corrobora o notável desenvol vimento da pesquisa na área, que se confirma com o desenho de uma agenda de pesquisa para o próximo período: a complexidade de questões e temas que cons tituem essa agenda é um sinal dos progressos na investigação desse mundo do trabalho. A internacionalização continua a ser um desafio para a pesquisa sobre os jornalistas brasileiros. Apesar da integração recente aos maiores projetos de pesquisa comparativa na área, os autores nacionais têm aproveitado pouco os dados obtidos nesses estudos para compartilhar insights com a comunidade de pesquisadores estrangeiros. Maior interlocução internacional contribuirá para o aperfeiçoamento dos métodos e a densidade das explicações; também permitirá que, por meio de maior circulação externa das pesquisas feitas aqui, se supra a antiga lacuna que torna o jornalismo brasileiro, a despeito de sua relevância, tão pouco presente nas abordagens sobre o tema no exterior.
A discussão sobre a exequibilidade da agenda aqui proposta não é pertinente a este artigo, mas não queremos concluir o texto sem observar que, nas condições atuais de redução continuada de verbas para a pesquisa e de ataque sistemático ao trabalho acadêmico no Brasil, o alcance dos estudos e a possibilidade de expansão das articulações com a comunidade científica internacional restam severamente ameaçados. Pode-se, contudo, confiar na resiliência de pesquisadoras e pesquisa dores dedicados ao tema e acreditar que, quando todas as ameaças se tornarem passado, as investigações sobre o mundo do trabalho de jornalistas brasileiros retomarão a potência que as trouxe até aqui.