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Entrevista com Isabel Travancas. O mundo da comunicação em geral, e o jornalismo em particular, não tem sido um tema muito estudado pela Antropologia
Interview with Isabel Travancas. The world of communication in general, and journalism in particular, has not been a topic widely studied by Anthropology
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 27, núm. 2, pp. 270-282, 2020
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Autora de O Mundo dos Jornalistas (Summus, 1993), uma análise da identidade do jornalista e do trabalho nas redações, Isabel Travancas é referência no campo de estudos sobre o jornalismo no Brasil. Entre outras pesquisas, publicou, também sobre jornalismo, Juventude e Televisão (FGV, 2007), onde investiga a recepção do noticiário televisivo Jornal Nacional e O Livro no Jornal (Ateliê Editorial, 2001), onde analisa os suplementos literários de jornais franceses e brasileiros.

Atualmente, Travancas é professora na Escola de Comunicação (ECO) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). De formação interdisciplinar - é graduada em Jornalismo, mestre em Antropologia Social e doutora em Literatura Comparada - dedicou-se a pesquisar a imprensa e os jornalistas antes de diversificar seus objetos de estudos.

Nesta entrevista, fala sobre suas pesquisas nos campos da Antropologia e da Comunicação e compartilha conosco suas impressões acerca das transformações pelas quais atravessa o mundo da imprensa. A entrevista, que ocorreu em agosto de 2020 por videoconferência, é um convite para pensar acerca dos desdobramentos culturais recentes, bem como sobre as pesquisas sobre jornalismo e comunicação no Brasil. Deixamos registrados aqui nossos sinceros agradecimentos a Isabel Travancas por nos conceder esta entrevista.

Revista PluralVocê fez graduação em Jornalismo, mestrado em Antropologia Social e doutorado em Literatura Comparada, pós-doutorado em Antropologia Social e tem se aproximado da história do livro e da leitura. Como foi esse trajeto, e o que pautou essas escolhas?

Isabel Travancas Eu tenho uma trajetória bastante curiosa. É uma trajetória que começa com alguém que vai fazer jornalismo muito encantada pela profissão e que no meio do caminho vai se encantando por outras coisas.

Na faculdade o meu encantamento foi pela Antropologia e suas formas de ver o mundo. Gilberto Velho foi meu orientador, e Howard Becker foi no curso de Gilberto, deu algumas aulas. Com a ideia dos mundos sociais e do estudo das carreiras, eu me encontro. É quando faço a dissertação de mestrado sobre jornalistas, O Mundo dos Jornalistas, que virou livro e ganhou vida. Foi uma sorte ter uma editora - a Summus - que se interessou pela minha pesquisa.

Durante uma parte do mestrado eu trabalhava, como jornalista, como assessora de imprensa, e já tinha me dado conta de que achava muito difícil fazer um mestrado com a exigência do Museu Nacional trabalhando num jornal, sendo repórter. Acho muito difícil mesmo conciliar esses dois mundos, essa exigência de leitura, de aprofundamento. Então pensei: se for fazer doutorado, quero fazer alguma coisa que tenha a ver com o que eu estou trabalhando.

Ainda como assessora de imprensa, fui trabalhar na Nova Fronteira, que era uma editora muito importante nos anos 1990. Eu recebia toda semana os jornais franceses - Libération, Le Monde, às vezes Le Figaro, e seus os cadernos literários -, lia e tinha que dar uma notícia para o editorial. Ali foi se construindo a ideia desse projeto, de fazer uma análise desses suplementos literários dos jornais franceses e, também, sua cobertura do Brasil. Enfim, voltava um pouco para a minha monografia, que tinha sido sobre a cobertura da imprensa brasileira e francesa da campanha das Diretas.

Comecei a pensar em outra área - Letras - e fui conversar com o Ítalo Moriconi, que acabou sendo meu orientador. Entrei no Doutorado em Literatura Comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 1992 para fazer uma tese sobre suplementos literários que depois foi publicada (O Livro no Jornal, Ateliê Editorial, 2001).

Concluí o doutorado num momento difícil no Brasil, não tinha concurso etc. Decidi então fazer um Pós Doc com o Gilberto Velho no Museu onde fiz uma pesquisa sobre recepção da televisão. Esta pesquisa que virou livro (Juventude e Televisão, FGV, 2007) é um estudo de recepção no qual eu vou para casa dos estudantes universitários ver o Jornal Nacional com eles.

É uma trajetória que tem um fio condutor, que é o universo da Comunicação e um olhar antropológico para esse universo, sejam os receptores, sejam os produtores, ou os produtos.

A pesquisa posterior que eu fiz foi também um Pós-Doutorado - no departamento de Antropologia -, seu título é A Experiência da Leitura entre Adolescentes. É um pouco uma continuação, em termos de perspectiva, do Juventude e Televisão, a ideia de fazer o estudo com adolescentes, com entrevistas, com um olhar antropológico, analisando a relação deles com o livro e com a leitura. O livro ficou pronto este ano, já na pandemia, mas está na gaveta porque ainda não pôde ter lançamento.

Para terminar, fiz um segundo Pós-doutorado que é a minha pesquisa atual. Estou fechando um artigo cujo título é “Correspondência amorosa em tempos digitais” em que busco entender, pensar a comunicação de casais que estão distantes, que estão separados, em um país, estado ou cidade diferente... e como eles se comunicam. Como se dá essa comunicação? Por Skype, pelo WhatsApp, pelo telefone, se escrevem, em cartas, mandam e-mails?

Revista PluralNota-se que o fio condutor é sempre a Comunicação e a paixão pela Antropologia. Já que você falou desse trajeto, poderia falar um pouco das influências que teve ao longo desse percurso, dos autores que te ajudaram a definir o seu percurso?

Isabel Travancas Na dissertação eu acho que foi muito Escola de Chicago, o próprio Howard Becker com a ideia de mundo social. A própria trajetória do Gilberto, dos antropólogos da Antropologia Urbana, dos americanos, Foote Whyte também foi importante. Bourdieu também foi muito importante para pensar tanto a questão da ilusão biográfica como para pensar como que se dá essa construção, essa ideia de ethos, de visão de mundo, de estilo de vida que o Gilberto usa tanto. Essa bibliografia, e, também a do interacionismo simbólico - Goffman, etc. foi muito importante para olhar e entender como eram esses mundos. O próprio conceito de mundo, pensar que os jornalistas têm uma especificidade - que é o que eu vou afirmar - que eles têm um estilo de vida e uma visão de mundo particulares, e é a profissão que vai definir uma maneira de ver o mundo, de viver em sociedade.

Revista PluralAo longo das últimas décadas no seu trabalho você observou o jornalismo como um espaço muito relevante para a cultura brasileira. No jornalismo, você pesquisou vários tópicos: a atuação de intelectuais, a promoção do trabalho de intelectuais por meio da imprensa, o desenvolvimento de gêneros narrativos, a formação e o desenvolvimento do trabalho de um grupo profissional dos jornalistas, entre vários outros temas. Hoje, você acha que o jornalismo perdeu o protagonismo cultural que ele teve no passado, mesmo no Brasil, um país em que as mídias eletrônicas sempre tiveram mais alcance do que as mídias impressas? Houve uma deterioração do poder e do alcance do jornalismo em relação a outras formas de circulação do conhecimento ou de produção de sentido sobre o mundo?

Isabel Travancas Eu acho que sim. A primeira etapa dessa resposta seria isso. Acho que perdeu a dimensão, acho que perdeu a importância. Você pensa nos anos 1950, na quantidade de jornais que havia no Rio. Quando eu chego na França nos anos 1980, também havia muitos jornais. Isso mudou.

Ao mesmo tempo acho que ele não desapareceu em importância. A gente vê nesse mundo de hoje, de fake news, nesse momento político que a gente está vivendo, em que você busca ler alguma coisa que tenha uma legitimidade e uma comprovação. Quem tem esse lugar de legitimidade para dizer se isso é verdade ou não? Ainda são os grandes jornais e seus sites.

Os jornais não têm mais os suplementos literários. Por outro lado, revistas como a Quatro Cinco Um e a Piauí, e mesmo o Suplemento Literário do Diário Oficial de Pernambuco - que é espetacular -, têm uma presença, têm uma importância. Estão sobrevivendo com todas as dificuldades, com um público leitor restrito.

Então há muitas camadas. A gente vive um momento complicado, em que os jornais perderam espaço e ao mesmo tempo continuam tendo força principalmente em um momento como esse.

Revista PluralNo passado, muitos intelectuais tinham uma relação mais orgânica, mais constante, com a imprensa. Tanto para a sua autolegitimação quanto para um certo nível de intervenção pública, na política e em aspectos da cultura e da sociedade. Houve uma especialização do campo científico, então hoje a maior parte dos intelectuais prescinde desse espaço público da imprensa para construir a sua autoridade, a sua própria legitimação. Nós nos perguntamos que cultura, ou que alta cultura se produz em um mundo conformado por certo tipo de imprensa como o mundo até os anos 1990 e o mundo de hoje. Que tipos de diferenças a gente pode mapear no universo do mundo intelectual, no mundo das ideias, que conformam tanto o debate político como a discussão sobre as práticas culturais?

Isabel Travancas Acho que hoje a gente tem um cenário muito diferente. Tem a internet, com uma força incrível, com uma penetração muito grande. Esse espaço dos jornais, da imprensa, se transformou, se reduziu. Tem figuras surgindo que você muitas vezes não sabe de onde estão vindo até que ganhem uma expressão maior seja no movimento político ou mesmo no movimento cultural. A gente vê as minorias atuando nesse sentido também.

Fico pensando nos eventos, em como há uma força que estava subterrânea, ou de alguma maneira invisível. Uma área que me interessa muito é o mundo editorial. A FLIP por exemplo - a Festa Literária Internacional de Paraty - que parece uma festa literária de elite, de intelectuais e etc., e que se constrói desta forma, para um público também elitista, - porque os ingressos são caros - vai se transformando e vai produzindo outras coisas como a FLUP aqui no Rio, que é a Festa Literária das Periferias.

Então acho que no momento em que a gente está vivendo, é difícil medir as coisas, avaliá-las. Eu acho que tem uma força do movimento negro, em todas as áreas - Chimamanda [Ngozi Adichie], por exemplo, é o começo de uma história. E eu me lembro a primeira vez em que eu e meus alunos lemos O Quarto de Despejo da Carolina de Jesus. Hoje, acho que ela ganhou uma dimensão que é resultado disso. Falando aqui a Isabel otimista. Tem coisas que estão acontecendo nessa construção desse mundo literário, desses cânones. Tem a força de um movimento, no meio desse horror que a gente está vivendo, que é incrível. O movimento das mulheres que é forte, o movimento negro que também vai ajudando a construir novas referências, novos paradigmas. Inclusive em relação ao mundo literário.

Revista PluralPor outro lado, há também uma crescente postura anti-intelectualista, que de certa forma atinge não simplesmente a produção erudita, a produção literária e a produção científica, mas atinge também o jornalismo, diretamente, quase que como os jornalistas, assim como todos os intelectuais, fossem “inimigos”. O que você pensa a respeito disso?

Isabel Travancas Eu acho que essa minha visão otimista tem a ver com duas coisas. Com personalidade, apesar de tudo resta um pouco de otimismo em mim, um amor enorme pelo Brasil também. Mas eu acho que vem uma força que está na universidade. A universidade funciona para nós um pouco como esse bálsamo. Não estou dizendo que é um mundo perfeito, nem um mundo sem intrigas, brigas e muitos conflitos. Mas eu vejo na própria UFRJ esse momento que a gente está vivendo, de uma união inacreditável.

Então tem um lado meu que tem um certo otimismo, mas tem outro lado que vê essa realidade que esse governo reforça. Esses discursos dizendo que você não precisa de um médico ou de uma pessoa que conheça de medicina para ser Ministro da Saúde, e por aí vai. Tem uma corrente que é poderosa e assusta quando a gente vê os índices de popularidade desse governo e tudo o que está acontecendo.

Acho que tem duas perspectivas, que são para mim duas partes de um mesmo país. A questão é o olhar. Tem um lado com muita coisa que mudou e avançou no Brasil, principalmente em relação ao movimento negro, feminista etc., e ao mesmo tempo você tem essa manutenção que nos surpreende e nos assusta, de uma desqualificação do Saber, do conhecimento, porque está no poder.

Acho que os alunos que estão na universidade, oriundos desses projetos, estão com a gente nesse barco. Mas tem uma parte muito grande da sociedade que tem um desprezo, que tem um desconhecimento sobre a diferença, por exemplo, entre uma notícia bem apurada e bem pensada, e uma fake news.

Revista PluralO seu livro O mundo dos jornalistas vai fazer 30 anos. Nesse tempo, o mundo dos jornalistas mudou bastante. Uma dessas mudanças é a conversão do jornalismo de uma profissão quase inteiramente masculina para uma profissão majoritariamente feminina. Na sua opinião, por que o jornalismo passou a atrair tantas mulheres, e como você avalia o impacto dessa feminização sobre o jornalismo?

Isabel Travancas É verdade. O jornalismo acabou se tornando uma profissão mais feminina, e não era. Se eu penso na minha pesquisa - o campo foi em 1988-1989 - já tinha bastante mulher, mas nada que se compare a hoje. Acho que a diferença naquela época era a ocupação dos cargos de direção, de chefia... eram na grande maioria dos homens. Esse é um ponto. Hoje, a redação é um espaço muito feminino. Tem chefia feminina, mas ainda tem uma preponderância masculina nesse universo. Isto também tem a ver com os setores. O universo do esporte ainda é muito dominado pelos homens, o da economia e o da política também. Em termos de editoria, de cargo, de assunto, não é tão igualitário.

Acho que esse processo de mudança está em andamento, mas eu ainda diria que os cabeças, a direção, os principais editores, ainda são homens embora o número de mulheres jornalistas nas redações tenha crescido enormemente nesses últimos 30 anos.

Não dá para a gente estudar o jornalismo, muito menos os jornalistas, ainda mais de uma perspectiva antropológica ou das Ciências Sociais, descolado da sociedade. Esta sociedade é machista, é racista, então por que os jornais seriam essas ilhas de feminismo e antirracismo?

Revista PluralUm outro tópico que tem ganhado visibilidade atualmente, em linha com o que você acaba de dizer, é a presença desproporcional de negros e negras no jornalismo brasileiro. Eles são menos de 25% da categoria em um país que tem mais de 50% de negros na população. Eu gostaria que você analisasse o debate sobre representatividade étnica nas mídias, o seu impacto nos conteúdos e, também, na composição do mercado de trabalho.

Isabel Travancas No momento não estou fazendo pesquisa sobre jornalismo ou sobre jornalistas. Então eu vou falar da perspectiva de quem estudou o assunto e ao mesmo tempo de quem está numa Escola de Comunicação. Em uma perspectiva otimista, acho que há um movimento em andamento em relação ao crescimento dessa presença negra nos meios de comunicação. Acho que esse caminho não tem volta. Ele é muito lento, mas você já vê isso mais presente nos jornais, nas revistas. Na universidade é evidente a presença maior de negros nas disciplinas, nos cursos etc.

O que é complexo nesse processo é saber se as empresas vão incorporar isso como uma “norma”, ou se isso vai continuar um pouco ao sabor do vento, dos acontecimentos, eu não sei dizer. O que a gente já começa a ver é o enriquecimento - nas matérias, nos artigos - desse outro olhar que começou muito na internet. Por exemplo, essa discussão que ocorreu com o artigo da Ivana Bentes e da Maria Rita Kehl sobre a Beyoncé, duas mulheres brancas discutindo o papel e o lugar da Beyoncé em uma crítica, uma compreensão, uma relativização. Acho que tem uma força aí presente. Esse mundo dos jornalistas, ainda que possa ser formado majoritariamente por homens, eu diria, liberais pseudo-esquerdas, é um universo conservador no sentido mais amplo. Os jornais são um pouco “elefantes brancos”, que andam devagar, aquela máquina tem um processo, um ritmo. Se eu penso no Estadão, que é um jornal conservador. Olha para ele ao longo do tempo. O Estadão mudou? Mudou! Tem diferenças, mas tem uma coisa, uma personalidade, um perfil do jornal, que eu acho que é muito difícil mudar.

Ao mesmo tempo, os jornais estão muito deficitários neste momento. Eles também estão passando por uma crise financeira. Um país que não é leitor também é um país em que os impressos de toda ordem sofrem. Quando você fala, fora do Brasil, que a média de tiragem de livros no Brasil é de dois mil exemplares, as pessoas não acreditam. Somos mais de 200 milhões, e um livro com cinco mil exemplares é um fenômeno! Em um país que não é leitor, qual o valor dos impressos? Quem vai defender as livrarias neste país? Quem vai defender as editoras? Essa discussão toda sobre o preço do livro, o imposto, a atitude do governo em relação a isso etc. O jornalismo entra aí e ganha mais força no jornalismo televisivo. Eu acho que se O Globo, O Estado e A Folha terminarem, seremos uns 500 reclamando. Qual é o significado disso?

Revista PluralUm tema importante do seu livro O Mundo dos Jornalistas é o conflito entre profissionais experientes e jovens recém-diplomados. O jornalismo, que já foi um ofício aprendido nas redações, converteu-se em uma atividade de formação universitária. Hoje quase a totalidade dos profissionais têm um diploma e só uma minoria em áreas diferentes de Jornalismo ou Comunicação. Os conflitos típicos dos anos 1990 deixaram de existir? Como pensar essas evoluções recentes no jornalismo em relação às formas atuais de formação do jornalista?

Isabel Travancas A partir da instituição em que estou - a Escola de Comunicação e das disciplinas que dou onde tem muitos estudantes de jornalismo presentes, o que eu vejo é que a maioria desses jovens ainda têm um sonho de trabalhar na grande imprensa, e tem uma parte que tem um desejo muito ligado à noção de empreendedorismo. De criar um site, de criar uma revista, de fazer um blog. Tem muito isso, um desejo de ter o seu próprio negócio e produzir um jornalismo específico. Muitos começam criando um blog, ele vai bem e consegue um patrocinador... muitos na área de esporte. Tem um interesse enorme por jornalismo esportivo. O número de pessoas envolvidas com jornalismo cultural é muito menor, aproximadamente uns 20%.

A minha percepção é via a disciplina Gêneros Literários que eu dou. Nessa disciplina tem muito estudante de jornalismo, e muitos bons alunos que já vêm com uma bagagem de leitura e que escrevem bem. Mas não é a maioria, nem de longe. Então acho que tem um perfil que busca essa vertente, uma vertente que sonha trabalhar na TV Globo, na GloboNews. Quando eu vejo esses canais, eu vejo que tem ex-alunos meus lá. Então tem, de um lado, um processo muito diversificado de entrada no mercado.

O fato de o jornalismo hoje exigir um diploma universitário também mudou esse perfil. Você ainda tem nas redações gente que não fez faculdade cada vez menos e acho que daqui a pouco você já não vai ter mais. Eu tenho 58 anos, e fiz faculdade. A geração acima de mim, jornalistas de 70 anos ou mais, muitos talvez não tenham feito jornalismo. Tem também essa discussão sobre o diploma universitário. Tem alguns núcleos, algumas pessoas atuando no jornal, mas que não são jornalistas. Por exemplo, o grupo de editorialistas do Estadão não é formado por jornalistas. Tem advogado, gente de Letras, outro perfil. Aí a gente pode pensar: “mas o editorial é um setor muito específico do jornalismo porque não é quem vai produzir a notícia, é quem vai escrever a opinião do jornal sobre um determinado assunto”. Eu acho esse um dado interessante porque me faz lembrar e voltar para os primórdios do jornalismo, onde você tinha uma presença grande de intelectuais nos jornais porque não existia essa categoria “jornalista”. Então essa discussão toda do diploma também propiciou uma reflexão e mudanças nesse cenário. Cada vez mais as empresas têm a liberdade de contratar outras pessoas para fazerem o papel de um jornalista. Em algumas áreas isso já está acontecendo com mais força.

Revista PluralDepois de termos especulado bastante sobre o jornalismo em sua feição contemporânea, queríamos voltar à sua experiência mais recente de pesquisa. Você trabalhou também com pesquisa comparativa, você comparou por exemplo os jornalistas do Brasil e de Portugal. Gostaríamos que você refletisse sobre as dificuldades metodológicas de estudos internacionais sobre o jornalismo uma vez que o jornalismo é bastante marcado tanto pelo processo histórico de sua constituição em cada país quanto pela configuração da sociedade a que ele serve. Quais são as vantagens de fazer pesquisa comparativa internacional e quais são as dificuldades que isto implica?

Isabel Travancas Pesquisa comparativa internacional, qualquer que seja o tema, traz uma complexidade. Em minha monografia, comparo Le Monde e Libération com Jornal do Brasil, O Globo e a A Folha. A princípio são incomparáveis, são países muito distintos etc. Na minha tese de doutorado fiz a mesma coisa ao analisar suplementos de dois jornais franceses e dois jornais brasileiros.

Uma base teórica e conceitual da Antropologia ajuda muito. Porque a gente trabalha muito nas Ciências Sociais de modo geral, e na Antropologia em particular, partindo dessa questão de discutir o próprio etnocentrismo. Olhar o mundo a partir do nosso viés, da nossa cultura, da nossa sociedade. Esse exercício de estranhamento é fundamental.

Quando eu analisava os jornais franceses e brasileiros nos anos 1980, eu tentava entender como é que eles funcionavam, como é que eles se organizavam. Vendo a cobertura da campanha das Diretas por exemplo, era importante notar essa presença maciça dos intelectuais nos jornais, em primeiro lugar. Também havia uma liberdade de linguagem muito grande, em particular do Libération.

Acho que a perspectiva é sempre tentar entender a cultura. Então acho que é essa perspectiva antropológica da cultura, um pouco a partir da definição que [Clifford] Geertz defende, sobre o ponto de vista dos nativos; que é uma noção semiótica da cultura. Essa ideia de que ela é multifacetada, e tem muitas leituras, muitas interpretações. Acho que o bom jornalista vai ter um certo pé na Antropologia. Inclusive escrevi um artigo pequeno, anos atrás, falando dos pontos de contato entre a Antropologia e o jornalismo e que, apesar de serem carreiras distintas, com características distintas, têm semelhanças. Acho que o jornalismo ganha muito com esse diálogo. Penso no New Journalism, que tem isso, que são reportagens feitas com muito tempo, são pessoas que estão produzindo com uma bagagem grande. Hoje há jornalistas que vão entrevistar um escritor e que, dependendo do jornal em que ele está, ele não leu nada, ou só leu um resumo no Google. Qual a qualidade disso? É o oposto dessas revistas literárias em que o jornalista leu tudo do autor para entrevistá-lo, leu as críticas sobre a obra. Como conciliar isso em um jornalismo diário? É difícil!

A perspectiva comparativa é interessante porque ela abre o leque, alarga, e ao mesmo tempo ajuda a perceber os pontos de contato, as particularidades. Há dois anos escrevi um artigo com uma amiga sobre a Festa de Sant Jordi em Barcelona. É a festa do livro em Barcelona que acontece no dia 23 de abril e é um acontecimento extraordinário. Então escrevi um artigo sobre essa festa e a sua cobertura. Que cidade é essa no mundo que para e fica totalmente voltada para o livro?

Eu quis pensar essa festa a partir do olhar de um jornal - o La Vanguardia - que é conservador, mas em uma perspectiva antropológica. Qual é o significado do livro em Barcelona e no Brasil? É muito distinto, para além das desigualdades econômicas. Você tem aí um projeto de governo, com a construção de bibliotecas extraordinárias, o estímulo à leitura, a quantidade de editoras, de livrarias que a cidade tem. Como o jornal pode expressar isso? Essa era a minha ideia. Tentar olhar para a festa a partir de uma perspectiva antropológica da própria cobertura dos jornais. Esse pequeno artigo me ajudou a pensar Barcelona e suas características em uma perspectiva antropológica, e também a festa. E como é a cobertura desse jornal? Quem ele entrevista, como aparece, a capa... uma análise mais jornalística. Acho que tem aí muitos elementos. A história do jornalismo também abre um monte de leques.

Revista PluralGostaríamos de fazer um convite para você pensar um pouco em como o campo dos estudos sobre o jornalismo se desenvolveu ao longo das últimas décadas. Você ocupou um lugar importante nesse campo no Brasil, e ele se diversificou em muitas direções. Você pôde acompanhar isso não só como uma autora de referência, mas também como um agente importante para o desenvolvimento de várias investigações e também para a constituição de redes entre os pesquisadores.

Isabel Travancas Esse campo cresceu muito, ele se solidificou. Eu vejo isso em algumas áreas, em alguns lugares. Vou falar de dois lugares mais próximos de mim.

A ECO - Escola de Comunicação da UFRJ - tem uma demanda grande de alunos, tem uma produção e um perfil de docentes em jornalismo importantes Muniz Sodré, Raquel Paiva, Marialva Barbosa, Beatriz Becker. Eu sou professora da pós-graduação na ECO e acho curioso que a gente não tenha um número grande de ex-alunos entrando na pós. A maior parte vai para o mercado. Isso não é uma crítica, é só uma constatação. A gente tem um curso de graduação considerado bom e uma pós considerada boa também. E você não tem muita gente que fez jornalismo passando para essa carreira acadêmica.

Outra instituição - da qual estou relativamente próxima - que também tem uma área de jornalismo importante e constrói um campo é a UNB [Universidade de Brasília]. Eu sou próxima do Fábio Pereira, que é professor de jornalismo e organiza eventos, editou alguns números da revista Sur le Journalisme/Sobre Jornalismo/About Journalisme, que sai em três línguas, muito preocupado com a questão da identidade do jornalista, da construção do jornalista.

Também tem muita gente interessada nesse diálogo do jornalismo de forma específica com a Comunicação. Em dezembro do ano passado eu dei um curso sobre Etnografia da Comunicação na UnB. Acho que tem muita gente que está sendo formada com essa bagagem mais sociológica e antropológica do jornalismo, com mais consistência. Acho que isso acontece também na UFF, na [Universidade Federal de Niterói], onde você tem uma produção também interessante. Acho que você tem o jornalismo muito presente no contexto da Comunicação nos dois grandes eventos que são a COMPÓS, o Congresso dos grupos de GTs de pós-graduação, e, a INTERCOM [Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação], que é o maior de Comunicação e tem vários grupos específicos no jornalismo.

Esses são os dois maiores, mas acho que tem muito pouco espaço na Antropologia, nas Ciências Sociais, em geral, para Comunicação. Isso não se solidificou. Houve um momento em que isso foi frutífero, mas acabou não acontecendo. A última vez que eu coordenei um GT sobre Comunicação na ABA [Associação Brasileira de Antropologia] foi em 2016. A chegada do digital e do virtual, que ganharam uma especificidade, fez com que tudo o que é digital ou virtual fosse para essa outra área. Hoje, acho que tem pouca gente pesquisando Comunicação no viés da Antropologia no Brasil. No último GT tinha 20-25 pessoas, mas já teve 50 pessoas.

O campo da Comunicação ainda está muito restrito no universo das Ciências Sociais. Vejo mesmo aqui, eu fui professora durante dois anos, como substituta, no departamento de Antropologia do IFCS [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais UFRJ), e não tinha ninguém, nenhum grupo. Tem estudos urbanos etc., mas a Comunicação como um grupo, como uma coisa sólida - eu achava que era viável construir um campo com uma bagagem teórica ou bibliográfica para pensar esse campo - acho que não aconteceu. Aconteceram GTs, eu participei de muitos, coordenei vários, mas isso não se institucionalizou. A última vez tinha pouquíssima gente.

Às vezes me incomoda quando eu vou participar de alguma banca na área das Ciências Sociais - tanto na Sociologia quanto na Antropologia. Acontece que muitas vezes esses sociólogos e antropólogos têm um certo handicap, talvez. Percebo um certo desconhecimento de algumas coisas básicas da Comunicação. Alguém está fazendo uma tese de doutorado muito boa, mas tem uns elementos ali que você aprende no começo para pensar o jornal, para pensar a lógica do jornal, como ele se constitui, como se constrói, como fazer uma leitura do jornal a partir do próprio jornal, que tipo de leitura é essa... e a Antropologia pode contribuir. Da mesma maneira como você pode pensar tanto o receptor quanto o produtor - que foi um pouco o que eu tentei fazer nas minhas pesquisas - a partir de um viés antropológico, como uma pesquisa etnográfica, com uma escuta que é resultado de uma etnografia.

Revista PluralComo antropóloga, quais são as dificuldades que você tem encontrado para construir esse espaço legítimo de pesquisa dentro das Ciências Sociais? Quais são os seus principais interlocutores, nas Ciências Sociais, na História, na Comunicação? E como você inseriria o estudo do jornalismo dentro das Ciências Sociais, ou seja, dentro de uma Sociologia ou de uma Antropologia da Comunicação, das mídias, da cultura, ou do trabalho...? Como pensar essas possíveis institucionalizações dos estudos sobre o jornalismo dentro das Ciências Sociais?

Isabel Travancas Quando eu penso na história, na história das ciências, na história do pensamento, não tinha nem faculdade e essas coisas não eram tão delimitadas. Tem um pouco isso. “Qual é a bibliografia que você usa?”, “Qual é o referencial teórico?”. Eu já recebi essa crítica. Já recebi parecer de artigo dizendo que toda minha bibliografia era de Ciências Sociais e de Antropologia, e que tinha pouca bibliografia da área de Comunicação. Eu acho um equívoco isso ser um elemento de avaliação negativa. Qual vai ser a graça de um texto de um antropólogo sobre o jornal? Exatamente o fato de ele não ser um jornalista, de ele ser um antropólogo. Então eu acho que essa interdisciplinaridade, de maneira geral, é uma conversa “para boi dormir”. Tem muito isso, tem essa cobrança, “vamos expandir etc.”, mas na prática não funciona assim. Eu tenho que escrever e pontuar em revistas de Comunicação. Se eu tiver muito afim de escrever para aquela revista, dependendo da revista, aquela pontuação não vai pontuar para mim. Isso é horrível como uma estratégia. Estou falando do mundo acadêmico, desse homo academicus do qual Bourdieu falava. É toda uma estrutura de produtividade, e a gente vem reclamando disso.

Eu tenho um perfil muito híbrido, para o bem e para o mal, e paguei um preço altíssimo por isso. Fiz muitos concursos para entrar na ECO, dois outros concursos eu não pude fazer porque o meu doutorado era em Letras. Eu tinha que ter dois diplomas na Comunicação - graduação e mestrado ou graduação e doutorado - e eu não tinha. Isso me impedia de prestar um exame. Acho um equívoco.

A Comunicação tem uma coisa fascinante que é abarcar um monte de áreas. Acho que são muito bem-vindos perfis diferentes, e a própria Escola de Comunicação reflete isso. Na ECO tem eu e a Janice, duas antropólogas. Tem gente que veio da Sociologia, tem gente que veio da Ciências Políticas e tem muita gente que fez tudo na Comunicação. Isso ajuda a ampliar horizontes, para dizer o mínimo. A gente vive um momento que é o contrário disso.



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