TRADUÇÃO
Aspectos aculturativos da festa do Divino Espírito Santo no Brasil1
Reconhece-se que a maior parte das culturas brasileiras locais representam um quadro em que elementos portugueses, africanos e indígenas são combinados de forma variável de uma área para outra. Algumas áreas parecem não ter sofrido a influência africana, em outras os traços indígenas são pouco visíveis, embora as fortes migrações internas tenham aglutinado pessoas vindas de áreas onde, antigamente, as características africanas ou indígenas poderiam ser claramente distinguidas. Apesar de toda a contribuição das culturas autóctones e negras, suspeita-se que em todos os lugares a influência cultural predominante tenha suas raízes históricas em Portugal.
Enquanto os elementos indígenas e africanos tem sido amplamente estudados por etnógrafos, as tradições portuguesas que constituem o peso da cultura brasileira contemporânea, tanto rural quanto urbana, tem atraído apenas a atenção de historiadores e folcloristas. Nenhum esforço tem sido realizado de antemão para dar uma descrição detalhada desses elementos, ou para analisar as mudanças que eles têm sofrido e a maneira pela qual eles têm sido integrados em novos complexos culturais.
Em cada aspecto da cultura brasileira moderna existem elementos importantes que devem ser rastreados em suas origens portuguesas. Alguns padrões familiares ou de organização comunitária, por exemplo, têm desaparecido em Portugal, mostrando-se necessário, prontamente, um plano de investigação histórica para descobrir as raízes ocultas de certos elementos culturais. Entre eles estão os festivais que atualmente são celebrados em todo o Brasil rural, sendo a Festa do Divino Espírito Santo uma das mais conspícuas.
Realizou-se, no presente artigo, um breve esforço descritivo deste festival, que evidencia suas origens portuguesas e as mudanças ocorridas em sua função e em sua estrutura no Brasil. Os dados que constituem grande parte desse estudo foram colhidos em Cunha, um município do Estado de São Paulo.
Cunha situa-se na porção nordeste deste Estado, em um planalto montanhoso que foi sitiado no século XVIII pelos portugueses advindos da região costeira próxima. O município cobre uma área de 1.000 Km2, sendo habitado aproximadamente por 27.000 pessoas, quase todos agricultores, criadores de gado e trabalhadores do campo. A cidade de Cunha foi fundada em 1729 e agora tem em torno de 1.500 habitantes, que são, em sua maior parte, comerciantes ou agricultores. Cerca de um terço da população é composta por negros e mulatos, apenas um pequeno número de habitantes mostram distintos traços indígenas2.
A população de Cunha por muito tempo tem preservado formas culturais que desapareceram nas áreas mais urbanizadas e industrializadas do Estado, mas podem ser encontradas em muitas regiões rurais de São Paulo e em outros estados. A Festa do Divino Espírito Santo é o mais elaborado dentre os festivais locais e, de um ponto de vista funcional, é de longe mais importante do que qualquer outra celebração religiosa. As fases principais do festival serão brevemente descritas a seguir.
Entre aqueles que desejam organizar a celebração, um homem, normalmente um destacado agricultor, é escolhido para cuidar dos aspectos econômicos. No último dia da festa ele é coroado “imperador” do Divino Espírito Santo e solenemente investido em seu ofício. Sua primeira tarefa é escolher os membros do grupo de homens, chamado de folia do divino que, sob sua direção ou do seu filho, sai em procissão por todo o município para recolher presentes das pessoas. O grupo inicia suas atividades após as primeiras chuvas de setembro ou outubro e, como todos os municípios são visitados, esse processo dura em torno de oito ou nove meses, interrompido apenas para curtos períodos de descanso.
A folia é composta por um porta-estandarte que carrega a bandeira do Divino Espírito Santo, cinco músicos que tocam violões, um que toca tambor e outro um triângulo, além de um cargueiro ou “guia” que tem como tarefa principal providenciar alojamento para o grupo. As atividades são extremamente ritualizadas. Chegando nas fazendas eles pedem presentes, tocando e cantando versos direcionados ao agricultor e sua família. Os presentes em si não são dados na hora, mas prometidos. Normalmente consistem em milho, feijão, porcos, galinhas e bezerros. Anotam-se os presentes em um caderno e logo após a folia canta uma música de ação de graças, cujo texto leva em conta o sexo e a idade do doador.
No fim da tarde, a folia chega à fazenda onde foram feitos os preparativos para o alojamento. Nesta, as cerimônias são mais elaboradas e um pedido de repouso - um requerimento formal por acomodação - é cantado junto com outras canções. Durante essa cerimônia o agricultor segura a bandeira do Divino Espírito Santo, a qual permanece durante a noite em sua casa. Tal detalhe é muito importante, pois acredita-se que esse símbolo sagrado traz bençãos para sua família, para o campo e para os animais. Em cada município vários agricultores competem pela honra de segurar a bandeira do Divino Espírito Santo em seus lares. Quem consegue a concessão desse privilégio oferece um elaborado banquete para os convidados que desejam participar dos aspectos seculares e sagrados da celebração. Isso não é um dado menor, haja vista que esporadicamente cerca de cinquenta homens ou mais seguem a folia a cavalo, participam do banquete e dançam após a refeição.
Essas festas estritamente locais podem ser consideradas festivais satélites da principal celebração que conclui todo o ciclo de rituais relacionados à adoração do Divino Espírito Santo.
Os dias em que se celebram os rituais principais nunca coincidem com o Pentecostes, o dia em que a Igreja comemora a descida do Espírito Santo aos apóstolos. Esse feriado oficial ocorre no início do ano, quando é época de colheita e a folia ainda não completou seu ciclo. Mantém-se, ordinariamente, a principal celebração em julho ou até mesmo mais tarde. Ela é precedida pela novena, um ritual de oração de nove dias com entretenimentos seculares. Uma grande casa - a “casa da festa” - é reservada aos “convidados” do Divino Espírito Santo, onde também muitas pessoas da zona rural são alimentadas pelo “imperador” e seus auxiliares. A sala frontal da casa é convertida em um santuário denominado Império do Divino onde os símbolos sagrados do Divino Espírito Santo, a coroa, a bandeira com a pomba e os instrumentos da folia são depositados no altar. Durante o dia as pessoas chegam para adorar o Santo3. Animais presenteados chegam durante os nove dias que precedem o rito principal. Cada presente é recebido com um ou mais foguetes, dependendo do seu valor correspondente. Milho, feijão e farinha são armazenados na casa da festa, enquanto os animais recebidos como presentes são removidos para um recinto especial nos fundos. É extremamente importante que todos os presentes sejam “restituídos” para quem os deu. Muitos objetos como facas, garfos, colheres, pratos, comida e combustível precisam ser comprados pelo festeiro para os primeiros dias de festa. Para tal fim, ele pega emprestado uma grande quantia de dinheiro que mais tarde precisará recuperar, leiloando uma parte dos presentes.
Cada dia da semana que precede o festival é caracterizado por algumas cerimônias que ocorrem apenas uma vez e representam os aspectos secundários de todo o complexo. Neste ínterim, um dia é devotado aos mendigantes locais que são convidados para compartilhar o banquete servido na estação central da cidade. No dia seguinte, o festeiro e seus ajudantes levam comida aos prisioneiros que estão na cadeia. Até recentemente, uma pródiga distribuição de comida ocorria sábado de manhã. Durante os últimos dias da semana, danças estilizadas que simbolizam as lutas entre “Cristãos” e “Mouros” são realizadas por grupos de homens chamados de moçambiqueiros4.
Entre as cerimônias comuns estão duas procissões, uma ocorre de manhã cedo e outra, chamada de alvorada, à noite. Ambas são conduzidas pelo festeiro e em seu decorrer a folia toca e canta cânticos sagrados especialmente arranjados para esse propósito. Nessa hora, centenas de pessoas acendem velas em honra ao Divino Espírito Santo. Há também ritos diários na Igreja Católica realizados pelo padre local. Observa-se que o festeiro e a folia, como as pessoas que participam em geral, mostram certo grau de antagonismo em relação ao padre. Em Cunha, como em outros lugares, o padre procura obter o controle de todo o festival e eliminar todos os elementos “pagãos” do mesmo. A Igreja também objetiva lucrar com os presentes dados aos Santos pelas pessoas, o que obviamente está em desacordo no que tange às funções que a organização econômica do festival tem realizado tradicionalmente. De forma curiosa, o padre tem fracassado nos esforços de tentar beneficiar a Igreja e organizar a cerimônia, pois quase ninguém se dispôs a dar presentes que não fossem usados de acordo com as funções institucionalizadas do festival.
O rito atinge seu clímax no domingo. São realizadas grandes cerimônias na Igreja e milhares de pessoas reúnem-se dentro e fora da casa da festa. Os moçambiqueiros realizam suas performances dramáticas que sempre terminam com a derrota dos Mouros. Há também uma tourada caricatural em que dois homens representam um touro e um outro o toureiro. Os aspectos comerciais da festa não se desenvolveram amplamente, ainda que existam alguns vendedores de doces e de objetos manufaturados. As celebrações terminam com a transferência solene dos símbolos sagrados para o novo festeiro.
Não há dúvida de que o Festival do Divino Espírito Santo foi trazido pelos colonizadores portugueses. Desde o século XVI a festa era celebrada em todo Portugal. Sua principal característica foi a instituição do chamado vodos ou bodos: a distribuição de pão e carne ou pão e queijo entre os pobres locais. A origem desse costume não é muito clara, ainda que Ângelo Ribeiro5 o ligue ao panis gradilis dos romanos. No século XV essa tradição milenar parece ter passado por uma renovação atribuída à rainha Isabel6. No século seguinte iniciou-se sua desintegração, e na segunda metade do século XVII “o festival persistiu” somente em uma pequena porção de Portugal, com as características que tinha no século anterior, ou seja, com a cerimônia de coroação do imperador.
Nesse momento, o centro das celebrações parece ter sido a cidade de Leiria:
O Domingo de Pentecostes era o principal dia do festival. Na sexta-feira precedente, havia uma grande tourada na Praça de São Martinho. Lá, sete ou oito búfalos eram comprados para a ocasião e executados pela confraria do Divino Espírito Santo, que distribuía a carne entres os pobres. No domingo, os juízes da confraria e os superintendentes do festival iam à Catedral a fim de buscar a coroa. De lá prosseguiam ao Rossio (praça pública) e em seguida ao Terreiro do Pão e Queijo que era coberto por ramos e ornamentado com bandeiras. Por fim, acendiam-se velas sobre uma mesa que eram conduzidas até a Igreja do Divino Espírito Santo onde eram distribuídas entre os frades7.
Na mesma cidade, outro vodo era celebrado no primeiro de maio devido à doação feita pela confraria ao Divino Espírito Santo. Este vodo consistia em três distribuições de pão e queijo; uma aos prisioneiros, outra aos mendigos e a terceira aos pobres.
Outra tradição que está conectada com o Festival do Divino Espírito Santo tem sua origem em Açores. Nessas ilhas, curiosamente, ainda permanecem os impérios do divino, pequenas capelas onde as coroas de prata do Divino Espírito Santo são guardadas. Em algumas localidades, especialmente em zonas rurais, os mordomos, homens que contribuem com dinheiro para a festa, ainda são coroados com esse símbolo sagrado. Sem dúvida, esse costume foi introduzido no momento em que essas ilhas foram colonizadas pelos portugueses. Ainda em Açores, ressalta-se outro fator relacionado à folia do Divino Espírito Santo:
Em Ponta Delgada o ano infeliz de 1673 foi tão cheio de desgraças e epidemias que os vivos ficaram extremamente ocupados em enterrar os mortos. Todas essas calamidades cessaram quando os aturdidos habitantes recorreram à Terceira Pessoa da Santíssima Trindade e, de repente, como um milagre, o infortúnio terminou quando os tambores da folia do Divino Espírito Santo foram ouvidos na rua e o seu som conduziu as doenças para fora de modo que nenhuma pessoa se sentia doente; boa parte das pessoas que já estavam enfermas ou até mesmo morrendo recuperaram-se de seus males. Comemorando esse milagre, a festa chamada de da Pombinha tem sido celebrada todo ano em São Roque, na segunda-feira de Páscoa8.
Atualmente, em Portugal, o Festival do Divino Espírito Santo é encontrado em poucos distritos rurais, como pontuou Jaime Lopes Dias9. Ainda permanece uma folia composta por um porta-bandeira, um “rei”, um pajem que carrega a coroa, dois mordomos e seis fidalgos que tocam os instrumentos musicais. Afigura-se que tal folia executa a função de proteger as pessoas e os campos das pragas e doenças10.
Os fatos expostos indicam de antemão que um determinado número de características, a princípio separadas, têm sido integradas em novo complexo cultural cujos elementos estão centrados em torno do festival do Divino Espírito Santo na forma como ele é celebrado no Brasil.
Na medida em que nos importa a retenção ou perda desses elementos, percebe-se que muitas variações têm sido observadas no Brasil. As declarações seguintes referem-se apenas à região de Cunha, que é - ao menos em certos aspectos - diferente dos municípios adjacentes.
Os elementos originais que foram trazidos pelos primeiros colonos portugueses e que até o presente momento são encontrados em Cunha, embora talvez de forma um pouco diferente, podem ser listados do seguinte modo:
1 - Vodos: A distribuição de pão, carne e queijo aos pobres, em referência ao Pentecoste, transformou-se em uma distribuição de comida às pessoas que participam das refeições gratuitas. Essas refeições não são realizadas somente no domingo, mas também durante toda a semana anterior. Entretanto, a distribuição gratuita de carne tem sido preservada até recentemente, embora ela não seja limitada aos pobres. Há ainda uma distribuição separada de comida aos mendigos e prisioneiros, que parece ter sua origem no vodo que em Leiria vimos ser celebrado no primeiro de maio. Sua transferência ao festival do Divino Espírito Santo pode ser explicada pelo fato de que a distribuição, antigamente, era realizada pela Confraria do Divino Espírito Santo.
2 - Folia: Os músicos e o porta-bandeira que já havia em Portugal permanecem, mas o rei e o pajem têm desaparecido, além do número de participantes ser menor. Os instrumentos musicais usados pelos tocadores e as canções entoadas são muito parecidos com os que eram encontrados antigamente. A folia continua coletando presentes, mas sua função protetora tem passado por uma mudança significativa, como será visto mais adiante.
3 - Imperador: Como em Portugal, o imperador continua sendo coroado, mas em Cunha o seu papel é outro. Em Portugal, os imperadores normalmente contribuíam com dinheiro para o festival e em ocasiões singulares poderiam existir muitos deles. Em Cunha, nunca há mais do que um imperador, que é considerado o principal organizador da celebração; espera-se que o mesmo forneça dinheiro ou presentes. A Confraria do Divino Espírito Santo deixou de participar da organização do festival.
4 - Touradas: A tradicional tourada transformou-se em um espetáculo encenado.
5 - Símbolos materiais: Com exceção da varinha do rei, todos os símbolos têm sido preservados. O símbolo principal é a bandeira, que ergue uma representação pictórica do Divino Espírito Santo na forma de uma pomba. Em Cunha, a coroa é muito sagrada para ser exibida pela folia. Após a coroação, o principal personagem do rito a deixa em casa em um oratório. Durante a celebração, a coroa fica exposta em uma grande câmara chamada império do divino.
Observa-se que as mudanças mais significativas dessa cerimônia ocorridas em Cunha (como em quase todo o Brasil) relacionam-se com a distribuição de comida para as pessoas. Em Portugal, apenas pão, queijo e carne eram distribuídos entre os pobres da comunidade. Em Cunha, muitos tipos de comida e bebida são distribuídos entre aqueles que desejam participar das festividades públicas realizadas em cada dia da semana. Milhares de pessoas são alimentadas dessa maneira. Os presentes recolhidos pela folia são, pois, consumidos pelas pessoas, com exceção daqueles que são necessários para cobrir as despesas da folia, como o custo das cerimônias realizadas pelo padre local e a atuação das bandas locais.
Outra mudança que importa mencionar diz respeito a alguns aspectos ecológicos do rito. Ao passo que em Portugal o tipo predominante de fixação territorial é o aldeamento, no Brasil prevalessem os assentamentos isolados. A população vive dispersa ao longo de grandes áreas, enquanto o Portugal rural pode ser caracterizado por curtas distâncias e grande densidade populacional. É óbvio que esta diferença levou a uma descentralização da festa do Divino Espírito Santo, de tal modo que agora é precedida por um grande número de festas satélites. A área coberta pelas atividades da folia é tão ampla que as cerimônias podem ser chamadas de regionais em vez de locais.
A análise das mudanças pelas quais o festival tem passado nos conduz aos seus aspectos funcionais. Entre as muitas funções que o trabalho de campo elucidou, ressalta-se uma de cunho religioso. O principal mecanismo propiciatório acionado pela população rural do Brasil é a promessa a um santo. Prometem-se serviços ou bens aos santos na condição de receber saúde ou de evitar doenças, de melhorar a plantação e o gado, ou de evitar pragas. Uma vez que o Divino Espírito Santo é um santo poderoso, espera-se que as promessas feitas a ele produzam bons resultados. Dessa forma, a participação das pessoas no principal festival feito em honra ao Divino Espírito Santo pode ser interpretado em termos de promessa. Geralmente, o festeiro e seus ajudantes ficam ocupados em função das promessas. As pessoas oferecem presentes porque, muito antes da folia chegar em suas casas, elas fazem promessas para que essa visita se realize. As festas satélites são sempre consequências das promessas que alguns agricultores realizam meses antes com o objetivo de obter favores dos santos. Em outras palavras, não há uma performance pública ou privada, relacionada ao festival, que não possa ser explicada em termos de promessa. Embora a folia em si não reze pela proteção dos homens, animais ou plantas, sua presença faz com que o cumprimento das promessas seja possível, uma vez que resulta, portanto, na proteção contra calamidades, afigurando-se da mesma maneira que ocorria em Portugal. Ademais, alguns benefícios mágicos são antecipados com a presença da bandeira sagrada na residência.
Durante os seis meses que antecedem a cerimônia observada no curso do trabalho de campo aqui relatado, a festa não havia sido celebrada, devido ao conflito já citado entre a Igreja e a população de Cunha. Destarte, acumulou-se um grande número de promessas que não puderam ser cumpridas. O equilíbrio entre as pessoas e o Santo havia sido destruído; safras ruins e epidemias que assolaram a região foram atribuídas a essa infeliz circunstância. Esses fatos mostram que a dimensão do controle sobre os poderes sobrenaturais depende da celebração do festival e do papel marcante que ele expressa na vida da população rural.
Uma segunda função que a Festa do Divino Espírito Santo realiza é claramente social. A folia é um elemento que liga famílias amplamente dispersas e pequenos grupos vizinhos. A visita da folia os faz lembrar que pertencem a uma grande comunidade. Aproximadamente cem ou mais pessoas se reúnem nas festas satélites onde oportunamente os valores tradicionais e a cultura comum são reforçados. O maior festival, um evento que dura nove dias, exerce um grande força centrípeta sobre milhares de pessoas, oferecendo a elas uma oportunidade única para unir os objetivos sagrados e seculares. É difícil ver outro dispositivo cujos efeitos integradores possam ser comparados com os que foram aqui mencionados.
Outra função, claramente social em seus fins, é observada nos aspectos econômicos do festival. As funções de caridade do vodos português ampliou-se em uma pródiga distribuição de comida para as pessoas em geral. Este fato também pode ser interpretado como uma redistribuição de bens, desde que os consumidores não sejam idênticos aos donos. Os participantes das refeições públicas são membros das classes rurais menos privilegiadas, que raramente são capazes de contribuir com presentes dados, em sua maioria, pelas classes médias e superiores do meio rural. A redistribuição de bens ocorre com a intenção de diminuir o antagonismo entre as classes sociais e para manter o consenso tradicional, ameaçado pelas diferenças econômicas que estão crescendo continuamente desde o rompimento da barreira, há vinte anos. Compreensivelmente, as próprias pessoas não são conscientes dessa função, apesar de enfatizarem o fato de que “tudo aquilo que se tem dado, precisa retornar”.
A importância dessa função se expressa no valor econômico dos presentes, que alcançou 100.000 cruzeiros (cerca de 5.000 dólares) em 1945. O resultado dessa soma pode ser devidamente avaliado quando comparado ao município de Cunha, que totalizou no mesmo ano um orçamento de 140.000 cruzeiros.
Sob essas circunstâncias, o desaparecimento da tradicional distribuição de alimentos ressurge sob nova luz. A forte crítica infligida aos organizadores do festival, de que eles eram incapazes de manter esse elemento tradicional, reflete o fato de que as pessoas estavam sutilmente conscientes do princípio de desorganização da celebração. O ritual distributivo de comida entre os mendigos e prisioneiros pode, por outro lado, ser interpretado como um reconhecimento formal de que essas pessoas não deixaram de ser consideradas como membros da comunidade. Claro que em uma cultura como a de Cunha, onde formas de divertimento são raras, os festivais públicos exercem a função de compensar os encargos sociais que a sociedade estabelece. Assim, o maior festival do ciclo anual precisa ser compreendido como o principal mecanismo da euforia social, que parece ser necessária para manter uma vida comunitária psicologicamente bem equilibrada.