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Direito à cidade: problema teórico e necessidade empírica
Derek Pardue; Lucas Amaral de Oliveira
Derek Pardue; Lucas Amaral de Oliveira
Direito à cidade: problema teórico e necessidade empírica
Right to the city: a theoretical problem and an empirical necessity
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 25, núm. 2, pp. 1-19, 2018
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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Resumo: Este ensaio abre o dossiê Teoria Social Urbana e Direito à Cidade: um debate interdisciplinar. O texto está dividido em duas partes. Na parte inicial, revisamos a literatura que informa, de modo mais direto, a ideia de “cidade” como dinâmica socioespacial e política, produção contínua de sujeitos sociais. Para tanto, discutimos abordagens das ciências sociais contemporâneas que, a partir de Henri Lefebvre, pensaram o “direito à cidade” como um campo de disputas e negociações. Por fim, introduzimos as contribuições que integram esta edição, apresentando os resumos articulados dos textos em relação à proposta epistemológica do dossiê.

Palavras-chave: Direito à cidadeDireito à cidade,Teoria urbanaTeoria urbana,Produção do espaço, Práticas culturaisProdução do espaço, Práticas culturais,FluxosFluxos.

Abstract: This essay serves as an introduction to the Special Issue entitled Right to the City: a theoretical problem and an empirical necessity. The text is divided into two parts. First, we critically review the academic literature that informs directly the idea of the city as a socio-spatial and political dynamic, in other words, a continual production designed by different social actors. We focus on contemporary perspectives from the Social Sciences, which, beginning with Lefebvre, reckon the “right to the city” as a field of disputes and negotiations. Second, we summarize the essays in relation to the proposed epistemology of the dossier.

Keywords: Right to the city, Urban theory, Spatial production, Artistic practices, Flows.

Carátula del artículo

APRESENTAÇÃO

Direito à cidade: problema teórico e necessidade empírica

Right to the city: a theoretical problem and an empirical necessity

Derek Pardue
Universidade de Aarhus, Dinamarca
Lucas Amaral de Oliveira
Universidade Federal de Goiás, Brasil
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 25, núm. 2, pp. 1-19, 2018
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
PENSAR A CIDADE, FAZER A CIDADE

Herdeiros europeus da Revolução Industrial, os “primeiros” sociólogos contemplaram a cidade moderna como um objeto intrigante e virtualmente promitente para as realizações humanas, salientando seu poder de transformação social (DURKHEIM, [1893] 1999; ENGELS, [1872] 1986; MARX, [1858] 2011; MARX e ENGELS, [1867] 2007; SIMMEL, [1903] 1973; [1903] 1997; TÖNNIES, [1887] 1972; WEBER, [1921] 1966). Tenha ela sido percebida como o grande “farol da modernidade”, a solução mais racionalizada e segura para a ordem social e a solidariedade orgânica ou, em vez disso, como um parasita capaz de corromper as liberdades burguesas recém-adquiridas (LOWENTHAL, 1985), a cidade tornou-se o quadro totalizador da ação humana, cenário máximo da estratificação social, horizonte histórico no qual a desigual relação entre capital e trabalho se concretiza. De qualquer forma, como motivo de receio ou de confiança, para os “clássicos” da sociologia europeia, a cidade passou a ser um mediador de tempo e espaço; para o bem ou para o mal, marca maior da modernidade ocidental.

Mas a cidade talvez seja, ainda hoje, o campo mais complexo, sedutor e em crescimento das relações humanas/não humanas, sendo que os imaginários nela inventariados insurgem como forças capazes de pautarem a política, prática e crítica da questão urbana. Pessoas vivem cada vez mais e desejam viver nas cidades. Isso não é notícia nova. No entanto, ainda assim, a cidade parece não ter oferecido tudo aquilo que poderia à teoria social, em termos de potencial analítico e recurso metodológico. Nos últimos anos, a legitimidade da categoria “cidade” tem sido periodicamente questionada nas ciências sociais, dada a difusão de programas econômicos neoliberais globalizantes que impactaram, diretamente, em seu arranjo atual, o que fez com que as cidades perdessem suas idiossincrasias (HARVEY, 1991). Nesse contexto, juntamente com a ideia de “nação” e de “identidade”, a “cidade” seria categoria caduca, em vias de expiração, em razão de fluxos liberadores e intensos que fazem circular, indiscriminadamente, pessoas, ideias, bens, serviços, extrapolando fronteiras e, em boa medida, homogeneizando paisagens urbanas.

Paralelamente, querendo fugir desse prisma analítico, teóricos urbanos contemporâneos, como Brenner e Schmid (2015), Harvey (2012), Merryfield (2013) e Agier (2011; 2015), têm discutido, de modo implacável, a noção de “direito à cidade”, tal qual elaborada pelo geógrafo urbano Henri Lefebvre ([1968] 2001) no final dos turbulentos anos 1960 parisienses. O slogan do teórico francês tem voltado à tona não só em virtude de sua eficácia analítica e aplicabilidade empírica, mas da força mobilizadora, isto é, de sua penetração popular nas ruas - em especial, no repertório discursivo de novos sujeitos que delas emergem. No Brasil, por exemplo, lembremos que o Movimento Passe Livre (MPL), ao qual foi atribuído o protagonismo inicial das “Jornadas de Junho de 2013”, empregou a frase em várias ocasiões, sobretudo em redes sociais, como estratégia mobilizadora e retórica política.

Para Brenner (2013) e Massey (2005), a importância crescente conferida ao fenômeno espacial, mormente nos dias de hoje, é devida ao fato de que a cidade se teria convertido em arena de lutas que vão além das meramente políticas, englobando, inclusive, guerras simbólicas e litígios por cidadania cultural1. Para os/as autores/as, a expansão definitiva da urbanização e dos elementos que a distinguem - fluxos e vias de comunicação e circulação de mercadorias, inclusive culturais - foi capaz de criar um tecido urbano fragmentado e contraditório, mas, ao mesmo tempo, indiciário e aberto para o futuro. À medida que o fenômeno urbano foi ganhando centralidade, tanto mais a cidade se tornou, concomitantemente, objeto, cenário e decorrência de interesses diversos, sobretudo de sujeitos coletivos ligados à produção de bens simbólicos.

No entanto, alguns cuidados devem ser tomados em relação ao que se pressupõe com os termos que integram essa bandeira política tão contemporânea. Primeiro, é preciso notar que a expressão “direito à cidade”, em alguma medida, pode reforçar a ideia (meio modernista) de existência de uma entidade supostamente estável, objetiva e a-histórica, “a cidade”, categoria sempiterna. Como estudos de distintas abordagens já corroboraram (AUGÉ, 2009; EARLE, 2017; HARVEY, 2012; LOW; LAWRENCE-ZÚÑIGA, 2003; LOW, 2018; MASSEY, 2005; SCHILLER; ÇAGLAR, 2011; SHELLER; URRY, 2006), a cidade pode ser tudo, menos entidade fixa, presa a condições temporais e especiais. Logo, a ideia de cidade como realidade dinâmica é central neste dossiê.

As duas palavras que arranjam o jargão de Lefebvre, “direito” e “cidade”, adquirem correspondência graças à contração da preposição “a” com o artigo definido feminino, o que implica movimento em direção a alguma coisa, moção cujo objetivo é estabelecer um processo de construção de algo desejado, concreção de uma potência de vontade, digamos. Contudo, o mote também nos instiga a preencher de sentido o hiato que se encontra por detrás de perguntas hipotéticas: afinal, de que direito estamos falando? E como conquistá-lo? Direito à integralidade dos lugares da cidade? Direito ao ir-e-vir que, normativamente, deveria contemplar a própria existência do espaço urbano? Ou direito de ocupá-lo com corpos, desejos e processos criativos?

De qualquer forma, esse direito implicaria, tal qual a cidade - que, nesse contexto, é seu objeto de cobiça -, lutas, reivindicações, contestações de poderes e saberes que se acham, volta e meia, em plena negociação. Talvez deveríamos pensar no direito de impor-se enquanto habitante e citadino/a; direito de ocupar fisicamente, criar materialidades e bens simbólicos, de performar corpos e fluxos de desejos, de narrar histórias, inventar novas memórias; ou do direito de combater, com os mecanismos apropriados a cada grupo identitário, a vulnerabilidade e a marginalidade, tão reais para muitos/as e, ao que tudo indica, tão intrinsicamente colados às inconstâncias da cidade pós-colonial. Ou, quiçá, deveríamos nos inspirar na cidade utópica do escritor Ítalo Calvino, como Eudóxia, que, mediante alegórica relação com a tapeçaria, mostra-se idealmente nesse objeto material, onde cada um “compara a ordem imóvel do tapete a uma imagem sua de cidade, uma angústia, e todos podem encontrar, escondidas entre os arabescos, uma resposta, a história de suas vidas, as vicissitudes do destino” (CALVINO, 1990, p. 92).

Arriscamos a dizer que a grande contribuição de Henri Lefebvre com o termo “direito à cidade” foi problematizar o lugar das tensões sociais no espaço público. Em vez de voltar-se para a fábrica ou o ambiente restrito de trabalho, mimese da racionalização moderna do espaço, a questão urbana tornou-se campo aberto de contestação social, cultural e política; a cidade é o local do encontro, mas, também (ou por isso mesmo), ambiente de negociação e conflito, muitas vezes violento. O “direito à cidade”, nesse sentido, pressupõe, segundo a equação de Tavolari (2016), uma ideia de cidadania e pertencimento múltiplos, demanda que está, em boa medida, vinculada à própria ideia de democracia e consenso. Logo, a questão espacial e as experiências urbanas de seus sujeitos são determinantes não só para a geração de sentimentos de pertença e identificação, e para a própria estrutura das relações funcionais de interdependência que esses sujeitos fundam entre si, mas, sobretudo, para a ampliação de seus espaços de atuação e de fala.

Se tomarmos tal abordagem como fundamento analítico, temos que o “direito à cidade” deveria contemplar uma ampla gama de prerrogativas, como o direito à educação, à moradia, à saúde, à arte, à permanência territorial, ao fluxo e a outras dimensões cotidianas, materiais e simbólicas, da condição humana. Como pilar da democracia, ainda deveria incluir a mobilidade, isto é, o direito de ir-e-vir na cidade, conforme um dos motes do MPL paulista: “uma cidade só existe para quem pode movimentar-se por ela”2. Podemos ir além da afirmativa, argumentando que, ao tomarmos a cidade como arena de luta por direitos - portanto, espaço em que micro poderes e micropolíticas se articulam -, teremos como implicação que ambos, cidade e política, são, inclusive, produtos dessas lutas dinâmicas e cruzadas. Cidade é arena, sim, espaço de negociação; mas, também, de produção e resultado de conflitos (LEFEBVRE, [1974] 2006). Se a cidade é cenário, objeto e fruto do desejo coletivo de sujeitos, deduzimos que o “direito à cidade” consta como epistemologia contemporânea, porquanto emerge como uma linguagem comum a partir da qual diferentes sujeitos ”fazem a cidade”. Trata-se, então, de um processo, uma busca, uma retórica, um projeto de construir uma cidade cheia de aspirações e esperanças.

É desta discussão que surgiu a ideia do dossiê Teoria Social Urbana e Direito à Cidade: um debate interdisciplinar. A ideia é justamente explorar o jargão de Lefebvre, que se encontra atualizado, hoje, na retórica dos movimentos sociais e culturais urbanos, e problematizá-lo nas ciências sociais, percebendo seus limites e suas potencialidades a partir de estudos de casos específicos. Para tanto, achamos de bom grado abarcar pesquisas empíricas, apontamentos metodológicos e reflexões teóricas que discutem as relações contemporâneas entre a questão urbana e os processos de “fazer-cidade”, tal qual elaborado recentemente por Agier (2015).

Michel Agier (2011; 2015), querendo escapar das armadilhas de uma teoria social sem objeto empírico, sem materialidade e afeto, argumentou que seria preciso tratar dos processos reais e diários de “fazer-cidade” como modelos de qualquer análise crítica do contemporâneo. Este alerta é motivado por um novo enquadramento de pesquisa nas ciências sociais, que gira em torno do movimento dinâmico de pessoas, imagens, bens, dados e narrativas no processo de produção do espaço. Tal recorte distancia-se de uma concepção estática do mundo, na medida em que explora a mobilidade de pessoas, ideias, projetos, performances e práticas, juntamente com suas decorrências culturais e epistemológicas, a fim de incorporar novas formas de pensar, sentir, viver e fazer a cidade (FORTUNA, 2012; FREIRE-MEDEIROS, 2015; PARDUE, 2015; SHIELDS, 2013). É nesse raciocínio que nos inclinamos a defender a importância de uma perspectiva espacializada e historicizada do social, para compreender a cidade contemporânea, seus espaços constituintes, a criatividade de seus protagonistas e a produção cultural que ela comporta.

Nessa medida, questões orientadoras incluem: se abordamos a cidade como recurso, cenário, objeto, dinâmica e produto da dinâmica social de sujeitos empíricos, em vez de apenas um lugar delimitado e fixo para a interação social, qual é a decorrência disso para a teoria social? Como tal abordagem pode influenciar a análise de políticas públicas, do fazer político e do próprio planejamento urbano? Que tipo de implicação tal perspectiva poderia ter em nosso entendimento acerca de questões ligadas à modernização, à diáspora, ao desenvolvimento, à produção cultural, etc.? A intenção, aqui, é saber sob quais condições a cidade deixa de ser uma metonímia desenfreada da violência, da desigualdade sociocultural, do estereótipo, da assimetria, da injustiça, da discriminação e da marginalização, inclusive em seu aspecto epistêmico, para converter-se em campo para o reconhecimento da cidadania cultural e social.

O “agir urbano”, nova acepção da ideia de agência no contexto da cidade (AGIER, 2011), formataria possibilidades de atuação no espaço público, cujo saldo seriam ocupações prediais, intervenções espaciais, performances corporais, instalações artísticas, manifestações políticas de rua, expressividades plástico-visuais, etc. Assim, em um esforço para apreciar de forma mais eficaz a urgência dessa dinâmica, este dossiê temático visa cultivar uma relação interdisciplinar entre sociologia, antropologia, geografia humana, estudos migratórios e teoria social urbana.

Doreen Massey, sobretudo em For Space (2005), produziu uma reflexão interessante sobre nossa forma de perceber o espaço urbano público contemporâneo. A autora esclarece que o espaço da cidade não pode ser visto como algo estático, neutro, entidade imóvel. Este espaço é algo que se acha interligado com o tempo e/ de seus agentes; por esse motivo, está sempre em transformação. Pensar o espaço é pensar dinâmicas. Seguindo Massey, o espaço público deve ser refletido, de um lado, como território físico que recebe pessoas, mas, de outro, como produto das inter-relações humanas, esfera da possibilidade de existência entre os diferentes, arena dos novos direitos e das novas cidadanias. Portanto, é o espaço da criação, do possível, do novo.

Em vez de problematizar a cidade como entidade estável, dada de antemão, os trabalhos expostos nesta edição juntam-se àqueles que priorizam variáveis afetivas, materiais, políticas e representativas da cidade, prismas que compõem a “experiência” da vida urbana dos sujeitos, a partir do qual torna-se possível desenvolver teorias e análises sobre migração e mobilidade, infraestrutura e planejamento, raça e classe, sociedade e cultura. Fundamentado em estudos de casos empíricos, os/as autores/as procuraram conexões entre temporalidade e espacialidade, produção artística e ocupação, experiência e conhecimento, rotina de vida e relações de poder.

O dossiê, como um todo, é a tentativa de tratar a vida urbana como método e a cidade enquanto ferramenta heurística que, potencialmente, pode gerar novos caminhos para a teoria social contemporânea, a partir da experiência empírica que ela abriga. Nessa medida, vale dizer que há uma proposta epistemológica a orientar este dossiê sobre “direito à cidade” que, de certa forma, tangencia os artigos. Trata-se de deslocar o ponto de vista da cidade, como entidade que narra a si em razão de atributos supostamente imanentes, para os sujeitos que a vivem e a fazem mediante práticas sociais - o agir urbano. Em estudos recentes sobre urbanização e fluxos de pessoas (HIKIJI; CHALCRAFT; SEGARRA, 2017; MAGALHÃES; BOGUS; BAENINGER, 2018; SCHILLER; ÇAGLAR, 2011), sobretudo atinentes à migração e à diáspora, nota-se um foco aguçado na agência nos processos de produção do espaço - ou, como argumentou Agier (2015), de “fazer cidade”. Com tal deslocamento, queremos trazer a questão sobre o que é a cidade para o que faz a cidade.

Logo, o objetivo é entender a importância da cidade para os sujeitos que a habitam e a constroem usualmente. Entender a cidade feita dia-a-dia é notar como a representação ou subjetivação do espaço remete àquilo que Fortuna (2012), certa feita, denominou de “geografia emocional” do urbano, que transmite aos espaços físicos da cidade uma enorme carga afetiva. É como se o território, enquanto macroestrutura, fosse convertido em micro espaços a fazer parte efetiva das pessoas que o descrevem e o narram, como se passasse, de algum modo, a compor uma casa ou um habitat da experiência urbana subjetiva. O espaço da cidade não é só materialidade externa e objetiva, alheia aos sujeitos, palco para a expressão de identidades e a consolidação de vivências, mas, principalmente, território virtual que pode ser “incorporado”, porque envolve complexos processos de subjetivação formatados por novos enclaves e novas paisagens emocionais - processos que impõem um outro regime de interesses, reivindicações, exigências, atuações e intervenções de cada grupo e/ou sujeito (JAMESON, 1991; FORTUNA, 2012).

Ao que parece, há um forte investimento desses novos sujeitos urbanos em trazer para a narrativa (oral, escrita, performada, grafada, cantada, encenada, festejada) o território afetivo da cidade, de subjetivá-lo de alguma forma, ou melhor, de “presentificá-lo”, o que traduz uma maneira diversa de enunciar o “direito à cidade” e, por essa via, outra maneira de auto enunciar-se enquanto sujeito protagonista do “agir urbano”. A estratégia de enunciar a cidade a os sujeitos que a vivem, por assim dizer, seria uma tentativa de representá-la como espaço dos possíveis.

Em ambas as nossas pesquisas nas periferias da cidade de São Paulo, com o movimento hip hop, com refugiados/as, com os saraus periféricos e a literatura marginal, algo recorrente foi a insistência de nossos/as interlocutores/as e colaboradores/as com a expressão “conquistar espaço”3. Eles/as a usam, com frequência, para avaliar eventos, grupos ou até mesmo o próprio movimento. É um desafio colocado pelo espaço excludente da cidade e, simultaneamente, uma perspectiva de que ela é um direito ainda a ser conquistado - por meio da luta e da presença espacial. Isso mostra, aliás, que a luta por direitos foi sempre gramática social de quem vive nas margens da sociedade. A cidade, para eles/as, é de fato produto dessa dinâmica, algo por se fazer.

O antropólogo brasileiro Ruben Oliven (2010, p. 34) lembra que o uso da categoria “marginal” nas ciências sociais precedeu o estudo da “marginalidade” na América Latina, cuja origem sociológica parece ter sido a publicação do famoso artigo de Robert Park, “Human Migration and the Marginal Man”, de 1928. Pode-se dizer que Park (1928) abriu caminho para o desenvolvimento de toda uma corrente de estudos urbanos que, mais tarde, seria continuada por Everett Stonequist (1935) e outros intelectuais, que fizeram do “homem marginal” um problema sociológico, na medida em que esse tipo sintetizava o indivíduo moderno que, no seio da cidade, se “supunha viver na margem de duas culturas”, como o migrante, por exemplo4.

Mas “estar na margem”, como reconheceu a Bell Hooks (1990, p. 153), significa ocupar “um lugar de criatividade […] a partir do qual se constrói um outro sentido do mundo”. Pensar o mundo de outra forma, com base na experiência urbana e na ressignificação de uma história até então excluída das narrativas, é criar, também, uma experiência sensorial e estética com a cidade, algo próximo do que os/as artistas do hip hop fizeram ao propor, por exemplo, o “quinto elemento”5, que é o conhecimento, que, por sua vez, poderia ser traduzido como uma propriedade essencial - intelectual e afetiva - para a formação identitária, étnica e racial de sujeitos urbanos, sobretudo em contextos populacionais negros, pobres e periféricos.

Em termos sociológicos, cada país ou região dispõe de categorias específicas para lidar com suas comunidades periféricas e mais estigmatizadas, isto é, para tratar dos espaços sociais localizados nas “margens” do sistema hierárquico de regiões geográficas que compõem uma metrópole, nas quais os considerados “párias urbanos” residem, os problemas sociais se acumulam e o desamparo parece atrair a atenção desigual e desproporcionalmente negativa da mídia, de políticos e dirigentes estatais (WACQUANT, 2001). Nesse sentido, acredita-se que uma suposta combinação entre excesso de crime, miséria e desintegração social seriam as marcas constituintes e definidores desses espaços, cujos efeitos imediatos são violência e hostilidade.

Mas as margens, que aparecem sócio espacialmente no fenômeno das periferias, ocupam posição de destaque nesse contexto, pois são capazes de redefinir espaços da cidade, fronteiras e narrativas, bem como pontos de interseção entre arte e urbanismo, a partir de sua intrínseca “intimidade porosa” (HOLSTON, 2008, p. 24). Esse espaço não é um fato dado de antemão, como mapas entregues a turistas em saídas de aeroportos, mas um fenômeno produzido socialmente por dinâmicas que podem ser de ordens políticas e culturais, locais e translocais, hegemônicas e marginais (OLIVEIRA, 2018). Esse espaço não coincide com a “esfera pública”6, tal como vista por Habermas (1989), uma comunidade interpretativa e racional das democracias ocidentais. Nós nos referimos ao espaço marginalizado, público, urbano, local físico-espacial e simbólico de sociabilidades populares, de convívio, encontros, afetividades, que, segundo Fortuna (2002), teria como arquétipos a rua, a esquina, o bar, o ponto de ônibus, a praça, o prédio ocupado. É o espaço de “cidadanias políticas e culturais insurgentes”, diria Holston (1996), onde se vislumbra a articulação de elaborações estéticas e políticas variadas, e cuja novidade consiste na produção e divulgação de uma representação local - nunca de “fora para dentro” - a emergir como conjunto polifônico de representações e narrativas (FRÚGOLI JR., 2005; PARDUE; OLIVEIRA, 2018).

Assim, deslocando o enfoque para as práticas de produção e de transformação da cidade, as abordagens de pesquisas empreendidas neste dossiê tendem a incluir dimensões translocais de luta por direitos. A cidade, nessa medida, manifesta-se não apenas como um objeto em si, tampouco como o fim derradeiro de um processo conflitivo, mas, sobretudo, enquanto um ponto inicial de compreensão e análise do mundo, que estrutura e é estruturado pelas lutas sociais.

ANALISAR A CIDADE, POLITIZAR A CIDADE

Os/as autores/as que participam deste dossiê partem da suposição de que a cidade condensa encontros, conexões, negociações, conflitos e disposições múltiplas de agenciamento. Nesse sentido, o dossiê centra-se na negociação de tensões sociais e políticas em torno de questões étnicas, sociais e culturais, incluindo modos performativos de ocupação e fluxos. Se seguirmos Siu (2005) e Pennycook (2010), por exemplo, podemos assumir a posição política, analítica e metodológica de dizer que práticas culturais expressivas, como a arte, não apenas possuem valor simbólico em si, como refazem as realidades materiais da vida urbana de forma marcante. Enfatizando a interdependência e contingência da cultura, adotamos a posição de que os processos de “fazer cidade” são instáveis e múltiplos; portanto, emergem do contato híbrido das interações sociais contemporâneas, dos encontros e das convivências, das epistemologias, da diferença cotidiana, que são elementos tão numerosos quanto presentes na vida da cidade.

Como o/a leitor/a terá oportunidade de apreciar, o dossiê tem uma questão metodológica e epistemológica que o orienta, qual seja: refletir sobre uma articulação possível com a cidade que não seja essencializadora, mas sim o exato contrário disso: um esboço dialógico e indutivo - ou seja, da observação à descrição, da etnografia à interpretação -, desprendendo a teoria de presunções normativas sobre “cidade”. Trata-se de examinar um processo em plena ocorrência, analisando a cidade que é vivida, sentida, narrada, negociada, tecida e em constante construção.

É justamente nessa toada que iniciamos o dossiê com a contribuição de Alex Flynn, da Universidade de Durham (Inglaterra), intitulada “Reconfigurando a cidade: arte e ocupação no Hotel Cambridge em São Paulo”. A partir de uma abordagem etnográfica, Flynn demonstra como artistas da Residência Artística da Ocupação Cambridge - da qual foi curador convidado - tentaram colocar em prática um tipo de “desobediência epistêmica”, no sentido de propor uma reconfiguração sociocultural dos espaços de criação da cidade. Um dos argumentos centrais do texto é de que o “direito à cidade”, tal qual teorizado por uma tradição de intelectuais das ciências sociais e humanas, pode ser, inclusive, um direito à ressignificação do espaço urbano por intermédio da arte, prerrogativa que deve envolver diferentes e criativas formas de participação popular, sendo que a localização e o posicionamento são condições essenciais na formatação da prática artística e nos processos plurais de produção de saberes.

Roselene Cássia de Alencar Silva, da Universidade Federal da Bahia, e Hildon Oliveira Santiago Carade, do Instituto Federal Baiano, em “’Nós por nós’: visibilidade e politização entre a juventude da periferia de Salvador”, analisam o pixo como artefato de cultura expressiva capaz de viabilizar e vocalizar demandas de jovens das periferias de Salvador em suas lutas diárias pelo “direito à cidade”. A análise é circunvalada pelas “Jornadas de 2013”, a partir das quais os dois pesquisadores, baseados em relatos orais, desenvolvem uma interessante narrativa a fim de assinalar o lugar do pixo e sua capacidade enunciativa na torrente de eventos que marcaram a história recente do país. O argumento contribui para pensar processos de circulação e desterritorialização de enunciados e performances artísticas praticadas por pixadores/as, algo que marca uma forma transgressora de participação política no espaço público.

Atento à emergência de novos/as protagonistas da cultura periférica, Leonardo de Oliveira Fontes, doutor em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, apresenta dados de pesquisa realizada em dois distritos das periferias paulistanas: Jardim Ângela, na zona sul, e Brasilândia, na zona norte. O objetivo do texto “Do direito à cidade ao direito à periferia: transformações na luta pela cidadania nas margens da cidade” é analisar as concepções de “cidadania” e “direito à cidade” formuladas a partir da perspectiva de sujeitos envolvidos em lutas das periferias urbanas. Para tanto, desenvolve o argumento de que a cidadania deve ser entendida como estratégia política e, ao mesmo tempo, circunscrita dentro de um embate pelo “direito de ter direitos”, categoria que Fontes empresta da filósofa alemã Hannah Arendt. O artigo oferece uma contribuição ímpar ao dossiê, na medida em que trabalha o “direito à periferia” como forma de entender o “direito à cidade” a partir da perspectiva epistemológica de sujeitos periféricos que buscam articular-se e entrar na cena política desde as margens territoriais e simbólicas da cidade.

Silvia Zelaya, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, nos brinda com uma discussão inadiável sobre a questão migratória no Brasil, problematizando o papel do espaço urbano e seu entrelaçamento com a implementação de políticas de direitos humanos. Partindo de uma etnografia multissituada em Porto Alegre e São Paulo, entre os anos de 2013 e 2016, Zelaya explora, em seu texto “Imigrantes e refugiados na cidade: reconhecimento pelo sofrimento e construção de ‘vítimas’”, as relações entre saber e poder responsáveis por produzir e reproduzir “o refugiado” como arquétipo da população urbana sujeita à intervenção de atores governamentais e não governamentais. Esses atores, muitas vezes, nos processos de construção de “ajuda humanitária”, empregam tramas, tecnologias, dispositivos, normatividades e saberes que por fim acabam por moralizar a questão migratória e, com efeito, reificar o grupo alvo das preocupações, nutrindo imagens que emulam a complexidade da realidade social.

Por sua vez, Simone da Silva Ribeiro Gomes, do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Pelotas, no artigo “Militâncias culturais em contextos de violência rotinizada na zona oeste do Rio de Janeiro, Brasil, e em Guerrero, México”, propõe-se a analisar as militâncias culturais em contextos urbanos com alto grau de coerção. Sua pesquisa empírica recai sobre uma região do Rio de Janeiro e outra do estado de Guerrero, no sudoeste mexicano, metodologicamente comparáveis, segundo a autora, devido à convergência entre os vetores pobreza e violência - em ambas as localidades, por exemplo, agentes armados se instalaram ostensivamente e vêm ditando rotinas sociais. A pesquisadora argumenta que muito das opções de militância desses/as jovens se organizam em torno de resistências culturais ativas a tais constrangimentos e ameaças. Não é necessário dizer que o tema abordado pela socióloga é urgente nos belicosos dias de hoje, em que a violência acaba despontando como forma legitimada de resolução de conflitos. Olhemos para o caso da brutal execução de Marielle Franco e Anderson Gomes, na zona central do Rio de Janeiro, em março de 2018, honradamente lembrado por Simone Gomes, fato ainda não devidamente apurado por autoridades locais, mas que já evidencia o risco que corre quem ousa enfrentar-se com os poderes armados da cidade.

Marina Abreu Torres, pesquisadora do Observatório das Metrópoles da Universidade Federal do Rio de Janeiro, trata do papel dos transportes coletivos na vida urbana das pessoas. Seu artigo “Cruzar a metrópole: segregação urbana, exclusão social e a lógica restritiva dos serviços de transporte” condensa um estudo de caso de Ribeirão das Neves, município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, explorando as relações conflituosas entre transporte, segregação urbana e exclusão social. A autora mostra, a partir de dados quantitativos e qualitativos, os processos restritivos de direitos que levam a mobilidade urbana em Ribeirão das Neves a ser tão baixa, o que afeta a possibilidade de moradores/as acessarem outras regiões da cidade, em função das barreiras sociais impostas pelo sistema de transportes da região.

Para encerrar a sequência de artigos, em “Fantasmas na teoria urbana contemporânea? Notas para reivindicar uma atitude crítica”, Cristhian Parrado Rodríguez e Andrea Cevallos Aráuz, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, em Quito (Equador), propõem um modelo teórico de análise urbana articulado a debates sobre colonialidade na América Latina. Com isso, colocam em xeque a concepção tradicional de cidade e as práticas coloniais presentes na teoria contemporânea - para eles, fantasmas analíticos do Norte Global que, inevitavelmente, geram saberes hegemônicos e marginais sobre o urbano. Tensionando epistemologias variadas nos processos de “fazer-cidade”, o artigo sugere a construção de uma noção de cidade a partir, e capaz de dar conta, das reivindicações políticas e sociais de vários movimentos em torno da bandeira do “direito à cidade”, respeitando dinâmicas fenomenológicas e demandas políticas.

Dentro das análises teóricas, e compreendendo a cidade enquanto laboratório do social, os/as leitores/as terão acesso a trabalhos do imprescindível Robert Ezra Park, um dos pioneiros da sociologia urbana e, talvez, o mais eminente colaborador da chamada Escola de Chicago. Trata-se de uma resenha feita pelo sociólogo Thiago Oliveira Lima Matiolli, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do livro A sociologia urbana de Robert Park, organizado por Licia do Prado Valladares, professora emérita da Universidade de Lille, na França.

Excepcionalmente nesta edição, oferecemos duas traduções de artigos lançados em revistas internacionais e que são significativos dos debates urbanos mais recentes. A primeira, publicada na Cultural Anthropology, é o texto “Autoconstrução Redux: a cidade como método”, de Alberto Corsín Jiménez, pesquisador do Conselho Superior de Investigações Científicas da Espanha. Jiménez recupera o conceito de autoconstrução como heurística possível para se pensar o método antropológico e a teoria social urbana. Para tanto, parte de um relato de sua etnografia com coletivos de arquitetura contracultural em Madri, mostrando mudanças de um terreno abandonado no coração da cidade para um projeto comunitário auto organizado. Assim, analisa a forma como ativistas tensionam a cidade enquanto método de labor. A segunda tradução é a de um texto publicado na Social Analysis, “Cidadãos Transitórios: práticas de habitação contenciosa na África do Sul contemporânea”, de Kerry Ryan Chance, professora associada da Universidade de Bergen, na Noruega. A pesquisadora examina práticas informais de moradia que “pobres urbanos” mobilizam para construir, transformar e acessar a cidadania sul-africana. Circunscrevendo sua análise em consequências históricas do regime do apartheid, e examinando como residentes ocupam papéis políticos a partir das margens urbanas, Chance argumenta que tais práticas informais evidenciam um aspecto essencial de luta pelo “direito à moradia”, redefinindo os domínios legítimos da vida política, por meio da produção de novas formas de cidadania e identidade, nunca perdendo de vista a intersecção de raça e classe.

O dossiê ainda apresenta duas entrevistas inéditas e bastante relevantes para o debate. A primeira delas, realizada por Derek Pardue, foi feita com o antropólogo dinamarquês Morten Nielsen, que tem estudos atuais sobre a relação entre cidade, presença espacial, temporalidade e globalização. A segunda entrevista foi feita com Jean Comaroff e John Comaroff, pela socióloga da Universidade de São Paulo Andrea Soledad Roca Vera, que conversou com o casal de intelectuais sobre criminalidade na cidade contemporânea, objeto de seus últimos trabalhos. Por fim, é preciso dizer que este dossiê, no limite, congrega um exercício e um clamor político de nossa parte. O objetivo é que a reflexão acadêmica desenvolvida sobre a cidade se some aos, e dialogue com os, sujeitos sociais históricos que a produzem cotidianamente. Um exemplo dessa produção cotidiana pode ser observado nas práticas artísticas desenvolvidas por Sonia Regina Bischain, escritora do movimento marginal paulistano, fotógrafa e ativista do Coletivo Cultural Sarau da Brasa no distrito da Brasilândia, na extrema zona norte de São Paulo. Sonia Bischain vem produzindo, para além de uma obra literária já conhecida dentro da literatura brasileira contemporânea, imagens indiciárias, políticas e de uma coloração diversa sobre formas possíveis de exercício do “direito à cidade”. A fotografia que compõe a capa deste dossiê é parte do projeto gráfico da Revista Plural iniciada em 2011, e compõe uma visada - que é afetiva, mas também de ordem epistemológica - para a cidade de São Paulo desde as ruas da Brasilândia, a partir de onde se vê símbolos arquitetônicos que marcam a paisagem mais consagrada da metrópole paulista, como os edifícios Copan, Itália e Altino Arantes, por exemplo. O título da obra é “Janelas da Brasa”, produzida em 2017 para um projeto local.

Talvez outra ideia que sintetize pressupostos políticos do dossiê possa ser localizada em “A Cidade”, composição de 1994 do pernambucano Chico Science e seu grupo, Nação Zumbi7. O grupo musical, parte do movimento de contracultura denominado Manguebeat, que surgiu em 1991, nas ruas de Recife, já alertava que a cidade é um híbrido social, local de “embolada, samba e maracatu”, o “centro das ambições”, caleidoscópio de mendigos, pobres e ricos, “coletivos, automóveis, motos e metrôs, trabalhadores, patrões, policiais e camelôs”. A cidade é aquilo que não para. Pode ser, de um lado, o grande trampolim para quem, a partir de cima, só se faz crescer, acumulando privilégios e lugares sociais, e, de outro, obstáculo maior para quem, de baixo e marginalmente, só despenca no espectro social - afinal, a cidade é espaço de produção e reprodução da vida, laboratório social da humanidade: “uns com mais, outros com menos”, dizia o poeta. As “pedras evoluídas” que constituem tal laboratório só foram armadas devido à força de “pedreiros suicidas”, migrantes do Brasil real. E a cidade é, finalmente, campo de conflito, local de “cavaleiros” armados que circulam “vigiando as pessoas” que a produzem. Esta última frase é significativa, trazendo-nos ao desfecho desta apresentação. Sempre escrevemos de um lugar determinado e imersos em um contexto sócio-político específico. Por isso, querendo ou não, nossa escrita evidencia algo além do tema estudado - e revela muito mais do que nós mesmos. O exemplo de Marielle Franco - assassinada em 14 de março de 2018 por “cavaleiros armados” da cidade ou, como prefere Rita Segato (2014), pela esfera paraestatal de controle da vida - é sintomático destes dias, marcados pela brutalidade extrema travestida de normalidade. E não podemos ignorar algo representativo disso, que foi o salto drástico à direita anunciado nas últimas eleições, a nível federal e estadual, fato que, certamente, terá sérias implicações nas disputas e negociações políticas sobre a produção da cidade brasileira, bem como nos sentidos sobre suas dinâmicas diárias. Para ficar em um exemplo, em setembro de 2018, o Instituto Pólis, via Observatório das Metrópoles, publicou um guia8 prático para entender o compromisso dos candidatos à presidência com os princípios orientadores do “direito à cidade”, conforme lei federal conhecida como Estatuto da Cidade9. Ainda que nenhuma das candidaturas oferecesse uma plataforma inteiramente coerente com o Estatuto, uma delas se destacou negativamente pelo desprezo em relação à lei e pela inversão de seus princípios constitutivos. Dentre os 14 eixos ligados ao “direito à cidade”, o futuro presidente, antes do processo eleitoral, apresentava, em sua proposta de governo, pontos que tangenciavam apenas 3 desses eixos, pautando mais a questão da vigilância social e da repressão biopolítica ao “agir urbano” do que, propriamente, os temas ligados à acessibilidade, à sustentabilidade, à garantia de direitos fundamentais e à democratização de espaços públicos. A avaliação dessas categorias, segundo a análise do Instituto Pólis, mostra que o programa de governo de Jair Bolsonaro para os próximos anos explicita diretrizes antagônicas à ideia de “direito à cidade”.

Contudo, neste caso, a negligência não é inócua; e, por isso, não pode ser ignorada. Pelo contrário, ela nos parece proposital, reveladora, nociva. O “direito de ter direitos”, que Hannah Arendt (1989, p. 330) situou como condição necessária para o exercício mínimo da cidadania, periga de tornar-se, cada vez mais, prerrogativa marginalizada. Isso nos leva a deduzir que políticas públicas básicas de inclusão urbana estão sob forte ameaça. Pelo menos, é isso o que vem sendo aclamado na retórica nacionalista e anacrônica que ocupará o posto maior do executivo, especialmente quando ataca minorias sociais e movimentos do campo progressista.

No entanto, ainda que afetados por um derrotismo intelectual momentâneo, precisamos buscar explicações, exemplos e saídas para tal condição. Muitos sujeitos sociais coletivos vêm demonstrando que a resistência não é de hoje e, para além disso, que ela é grande, rebelde, indomável e heterotópica nas frestas das cidades. É isso o que os/as autores/as do dossiê nos informam. Há um exuberante, variado e colorido processo de invenção e reinvenção da cidade e de seus espaços possíveis colocados em prática, todos os dias e obstinadamente, pela aguerrida juventude periférica, em toda a sua abundância identitária e performática. A cultura expressiva marginal e antifascista é potente, rizomática. Existe muita coisa nela que buscará interditar, de maneira radical se necessário, o avanço do conservantismo social, cultural e político. E é nessa produção ressignificada de saberes, corpos, agências, identidades, espaços, bens, projetos, ideias e valores “marginais” que devemos nos amparar para ver mais além da cortina de fumaça imposta por representantes do retrocesso. Os próximos anos serão decisivos para o “direito à cidade”, ideia e realidade que, não é demais salientar, e hoje mais do que nunca, exige proteção intelectual e muito ativismo de todos/as nós. Marielle, presente! Anderson, presente!

Material suplementar
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Notas
Notas
1 Marilena Chauí (2006) critica visões de cultura como saber de peritos, campo de belas-artes ou arma persuasiva, e propõe a noção de “cidadania cultural”, em que o Estado administra o acesso ao patrimônio artístico, assegurando a dimensão participativa e reflexiva de práticas e processos criativos. Ver: Rosaldo (2000) e Stevenson (2003).
2 Ver: https://bit.ly/2K906Ci. Acesso em: 16 de setembro de 2018.
3 Em publicações recentes, Derek Pardue (2011; 2015; 2018) tem enfatizado o papel da produção espacial na construção e expressão identitárias, sobretudo em comunidades marginalizadas, tais como o movimento hip hop e grupos de imigrantes/refugiados africanos que habitam o centro e a periferia de São Paulo. Lucas Oliveira (2016; 2018), por sua vez, tem analisado o impacto de experiências urbanas variadas no labor literário e nas estratégias de atuação cultural de escritores/as oriundos/as das periferias de São Paulo, sobretudo ligados/as a saraus e slams.
4 Isso faz lembrar a figura do “estrangeiro” da cidade, de Simmel ([1908] 2005), cujos atributos são o anonimato e a errância, o que marcaria um posicionamento diferenciado no espaço urbano, uma dubiedade, isto é, distante e próximo ao mesmo tempo: “O estrangeiro, o estranho ao grupo, é considerado e visto como um não pertencente, mesmo que este indivíduo seja um membro orgânico do grupo, cuja vida uniforme compreenda todos os condicionamentos particulares deste social. O que não se parecia saber, até agora, apenas, era designar diferentemente a unidade estranha desta posição, de modo que se acumulava em certas massas de uma proximidade e certamente de uma distância que caracteriza quantidades em cada relação, mesmo que em porções específicas. Onde cada relação caracterizada induziria a uma tensão mútua nas relações específicas, solidificando mais e mais as relações formais com respeito ao considerado ‘estrangeiro’, que dela resultam” (SIMMEL, 2005, p. 271).
5 No final dos anos 1970, o DJ Afrika Bambaataa, visando estruturar o hip hop enquanto movimento artístico, estabeleceu seus quatro pilares: “o DJ (disc-jockey), responsável pelas batidas para o cantor rimar; o MC (master of ceremony) ou rapper, caracterizado por uma maneira de cantar marcada por frases longas e rimadas - seu estilo musical recebe o nome de rap (rhythm and poetry); o Break, dança executada pelo b.boy (dançarinos); e o Grafitti, expressão visual que tem como foco a pintura de muros e prédios das cidades, torna[ra]m-se as características fundamentais do hip hop”. Posteriormente, um quinto elemento foi integrado aos quatro já existentes, o “conhecimento social”, saber que integra os anteriores no contexto da cultura periférica, mas, também, expande e insere o movimento cultural na economia e na política (SILVA, 2012, p. 33).
6 A título de referência, remetemos o/a leitor/a a Arendt (2005, p. 212), para quem “o poder é o que mantém a existência da esfera pública”; a “cassação da palavra” significaria a sua destruição. Sobre isso, ver: Sennett (1988), que compreende o espaço público como ambiente de convivência criativa, encontro do diferente e permanência.
7 Ver: https://www.youtube.com/watch?v=UVab41Zn7Yc. Acesso 15 de novembro de 2018.
8 Sobre isso, ver: https://bit.ly/2Q0lKik. Acesso em: 15 de novembro de 2018.
9 Sobre a Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, ver: https://bit.ly/1O6qbRX. Acesso em: 15 de novembro de 2018.
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