Resumo: O presente trabalho analisa a visibilidade como artefato político, na medida em que ela tem sido utilizada por jovens da periferia urbana em suas tentativas de garantir o seu “direito à cidade”. Quase sempre invisíveis, comumente, esses jovens aparecem na esfera pública como associados à violência, mesmo quando se dedicam às atividades vinculadas ao lazer, ao entretenimento e à indústria cultural. Por intermédio do acompanhamento de coletivos de jovens da cidade de Salvador que têm se dedicado à pixação, ao grafite, ao rap, dentre outras práticas artísticas marginais, argumentamos que há um processo de construção de visibilidade das demandas desses segmentos, uma vez que, antes, durante e após as chamadas “jornadas de junho de 2013”, eles passaram a se articular com os movimentos sociais mais tradicionais (aqueles centrados em bandeiras de cunho racial e social). Com essas articulações, esses jovens da periferia têm criado uma alternativa à “visibilidade perversa”, que é a projeção a eles conferida pela mídia e pelas autoridades policiais, sobretudo quando os enquadram nos termos da desordem e da anomia social. Por fim, consideramos que a politização desses movimentos artísticos tem possibilitado aos jovens a emergência de um outro tipo de juventude da periferia, nem vinculada ao tráfico de drogas, tampouco às iniciativas governamentais (isto é, os jovens de projetos sociais).
Palavras-chave: PixaçãoPixação,“Jornadas de Junho”“Jornadas de Junho”,VisibilidadeVisibilidade,Direito à CidadeDireito à Cidade.
Abstract: This paper analyzes visibility as a political artefact, since it has been used by young people from the slums in their attempts to guarantee their “right to the city”. Almost always invisible, these young people commonly appear in the public sphere as being associated with violence, even when engaged in activities related to leisure, entertainment and the cultural industry. Through the accompaniment of youth groups in the city of Salvador that has been dedicated to graffiti, rap, among other marginal artistic practices, we argue that there is a process of building visibility of the demands of these segments, during and after the so-called “June 2013 days”, as long as they began to articulate with the more traditional social movements (those centered on racial and social flags). With these articulations, these young people from the slums have created an alternative to “perverse visibility”, which is the projection given to them by the media and police authorities, when they frame them in the terms of disorder and social anomie. Finally, we consider that the politicization of these artistic movements has made it possible for these young people to create another type of youth from the periphery, not linked to drug trafficking, nor to governmental initiatives (young people from social projects).
Keywords: Graffiti, “June 2013 days”, right to the city.
ARTIGO
“Nós por nós”: visibilidade e politização entre a juventude da periferia de Salvador
“For us by us”: visibility and politicization of marginalized youth in Salvador
Este artigo é uma tentativa de olhar culturalmente para um capítulo recente de nossa história política. O capítulo em questão repercute a série de movimentos e passeatas políticas que ocorreram em junho de 2013 nas principais metrópoles do país. Se ainda não há um consenso sobre como nomear estes eventos - “acontecimentos” ou “jornadas de junho”, pergunta-se Singer (2013) -, tampouco parece haver uma narrativa mais consistente sobre as suas motivações e principais consequências para o futuro da nação.
Não é nosso objetivo recontar, de uma maneira supostamente mais fiel, o desenrolar de fatos e eventos que suscitaram as manifestações de junho de 2013. Antes, propomos uma inflexão às narrativas já produzidas sobre o assunto, tomando como recorte um encontro inusitado ocorrido na iminência e durante as passeatas que eclodiram na cidade de Salvador, qual seja, o encontro entre coletivos de pixadores e setores mais tradicionais dos movimentos sociais, notadamente aqueles vinculados às entidades estudantis e as que pautam questões étnico-raciais. Tal encontro, inclusive, não ficou restrito a estes acontecimentos, algo que também será analisado neste texto, pois é no contexto pós-junho de 2013 que surge o grupo de rap Nós por Nós, nome utilizado como título deste artigo.
Para contar esta história, tomamos de Sahlins (1990) a ideia de “estrutura de conjuntura”, mediante a qual compreendemos como as culturas reagem a um evento, promovendo o diálogo entre os contextos do presente com estruturas do passado. De acordo com o autor, “o grande desafio para uma antropologia histórica é não apenas saber como os eventos são ordenados pela cultura, mas como, nesse processo, a cultura é reordenada” (SAHLINS, 2008, p. 28). Desse ponto de vista, toda e qualquer recepção será pautada por estruturas anteriores, motivadas pela dinâmica da cultura (SCHWARCZ, 2005).
No caso em análise o contato entre pixadores, de um lado, e militantes universitários, artistas performáticos e ativistas das ocupações, de outro, ocorrido entre as manifestações de junho de 2013 e as ocupações de escolas, universidades e ministério da Cultura, provocou mudanças em ambos: os pixadores passam a conhecer grupos artísticos e militantes, e são iniciados em outras práticas artísticas, tais como a performance e a poesia urbana recitada em praças, e, especialmente, em ônibus coletivos. De outra ponta, os movimentos sociais mais tradicionais começam a aderir à pixação como forma de contestação política, reconhecendo o seu caráter de arte ao mesmo tempo engajada e anárquica.
A trama que tentaremos deslindar nas páginas vindouras apontará para um outro tipo de visibilidade, e porque não de “visualidade política” (MARQUES; CAMPOS, 2017), conquistado pelos pixadores a partir de sua participação nas manifestações de junho de 2013: não mais uma “visibilidade perversa” (SALES, 2007), porquanto quase sempre esses jovens estejam relacionados, pelas autoridades policiais e a grande mídia, à violência urbana, mas sim uma “visibilidade insurgente”, na medida em que suas práticas culturais passam a operar questionamentos referentes ao “direito à cidade” (LEFEBVRE, 2001).
Assim, na primeira sessão procuramos fazer um apanhado sobre a pixação antes das chamadas jornadas de junho de 2013. Em seguida, nos concentraremos no desenrolar dos acontecimentos suscitados por estas manifestações para encontrar o lugar do pixo nesta torrente de eventos. Uma vez elucidado o processo de circulação e de desterritorialização dos pixadores, como um ganho de sua participação em atividades políticas, partiremos às considerações finais. Cabe afirmar que este artigo está baseado em relatos orais coletados entre os pixadores e também na própria memória dos autores. Em outro momento, pretendemos fazer uma incursão de cunho mais analítico e etnográfico.
Como em outras capitais do Brasil, em Salvador, os pixadores não são um grupo homogêneo quanto ao estilo de vida e o tipo ocupacional. Tão diversificado como a arte urbana, também é o perfil dos escritores/pintores de rua. Por isso, é preciso cuidado para não tecer generalizações apressadas a respeito do perfil ou identidade dos praticantes. Mesmo assim arriscamos dizer que a sua quase totalidade é composta por homens jovens, negros, moradores do subúrbio da cidade e de bairros periféricos. Contudo, com isso não queremos dizer que todos os pixadores soteropolitanos se enquadram neste perfil. Mas como há pouco conhecimento sobre estes jovens e seus grupos autointitulados de gangues e sistemas, é pertinente oferecer maiores detalhes. São jovens estudantes, cuja idade varia entre 16 e 40 anos, trabalhadores do comércio, garçons, rodoviários, membros de torcidas organizadas de futebol, pintores de parede, trabalhadores informais. Normalmente, iniciam o treino dos letrados ainda na escola ou com algum vizinho. Treinam a escrita em cadernos, tanto sozinhos quanto em grupos. Muitos são ou já foram membros de torcidas organizadas de futebol, alguns entram em conflito com a lei por outros motivos alheios à pixação. A música também não é um critério definidor de suas identidades, pois muitos gostam do hip hop, tendo alguns MCs entre eles, mas também curtem pagode, vertentes mais radicais do rock’roll e a música percussiva do Olodum (gangue Olodunicos). A despeito da participação feminina ser pouco expressiva e, na maioria das vezes, estar associada às relações de amizade e/ou namoro com pixadores, recentemente surgiu um coletivo de mulheres que vem tentando se firmar em um cenário essencialmente masculino (SILVA, 2012).
As gangues de pixadores são grupos de homens jovens, normalmente amigos e que se identificam por uma sigla como U16, 163, Bactérias de Parede, FB etc. Estas gangues guardam um vínculo com o território, sem contudo serem determinadas por ele, porquanto existam membros oriundos de bairros mais distantes a fazer parte da mesma gangue. É comum as gangues se juntarem para formar os “sistemas” ou “coligas”. Em Salvador os primeiros sistemas e muitas gangues faziam sempre alusão a substâncias psicoativas, quanto ao uso ou venda. Este tema exigiria um estudo específico, bem como os codinomes dos pixadores, gangues e sistemas (SILVA, 2012).
Quando começamos a ter contato com alguns coletivos de pixadores, em meados de 2011, poucas pessoas do circuito universitário e da lida diária dos movimentos sociais tinham algum conhecimento sobre que prática social era essa, a pixação, que tanto incomodava as autoridades locais. Havia mesmo, dentro desses setores, uma opinião marcantemente etnocêntrica a respeito desses jovens da periferia urbana, uma vez que a ação mesma de pixar os muros da cidade era vista como vandalismo e destruição do patrimônio público, ou, eufemisticamente, como um intervenção de mau gosto na paisagem urbana.
Paulatinamente, esse desconhecimento e estranhamento foram sendo suplantados, muito por conta da mediação da professora Roca Alencar1 que, dentro do Departamento de Antropologia da UFBA, começou a trazer aos estudantes de disciplinas tais como “Etnografia” e “Antropologia urbana”, fatos, relatos e discussões que versavam sobre a pixação. Essa intermediação foi aplainando o terreno de contato entre pixadores e movimentos sociais tradicionais, que disputam o protagonismo no palco da universidade, contato este que encontrou nos eventos políticos ocorridos em junho de 2013 uma conjuntura favorável para se estreitar e gerar frutos mais duradouros. Este será o tema do nosso próximo tópico.
Passados cinco anos, as chamadas “jornadas de junho de 2013”2 ainda surgem ante nosso olhar como uma esfinge a desafiar nossos poderes interpretativos. Politicamente heterogêneos, esses acontecimentos foram palco para a entrada de atores dos mais diferentes estratos sociais e ocupacionais: desde a classe média tradicional até o operariado, passando por diversas gradações que variam entre o novo “precariado urbano” (os sujeitos, em geral jovens, que foram integrados ao mercado de trabalho na Era Lula (2003-2013), mas que sofrem com a baixa remuneração e as péssimas condições de trabalho) e os excluídos sociais. Assim, esses eventos acabaram por ser, nos dizeres de Singer (2013), uma espécie de “jornadas de Juno”, cada intérprete vislumbrando na poeira levantada pelas ruas a imagem de uma deusa diferente.
Também em 2013 Castells publica um volume descritivo sobre os movimentos sociais que varreram o mundo desde o início da crise do capitalismo em 2008. Interpretando as mobilizações ocorridas na Espanha, nos Estados Unidos e nos países árabes, o autor destaca o papel importante desempenhado pelas redes sociais na convocação destas manifestações. Em comum, todas elas primaram pela horizontalidade das relações, o desencanto para com a democracia representativa (ou melhor, a dissonância entre participação social e representação política no âmbito dos regimes democráticos) e o desejo por uma política voltada mais aos cidadãos e menos ao grande capital. De acordo com Domingues (2013), as chamadas “jornadas de Junho de 2013” se enquadram, em parte, a este quadro descrito por Castells. Se, por um lado, o fim da deferência em relação às autoridades públicas e a articulação coletiva via novas tecnologias da informação apresentam-se como fenômenos globais, por outro, a des-democratização tecnocrática e a perda de vínculos e compromissos para com os cidadãos, características atuais dos sistemas políticos europeus e americano, destoavam do contexto brasileiro de então, marcado por um processo crescente de democratização e participação social, bem como pela diminuição da pobreza e das desigualdades sociais, frutos das políticas da era lulista.
Assim, o país parecia dormitar em berço de prosperidade e paz quando as ruas foram tomadas em junho de 2013 (ROLNIK ET AL., 2013). E aqui começa a nossa história. 2013 encontra uma periferia urbana que, embora ainda vivenciasse muitas das já conhecidas mazelas sociais (déficit de cidadania; más condições de trabalho e habitação; dentre outras), havia sido minimamente integrada ao mercado de consumo, em virtude das políticas redistributivas dos governos petistas. Cada vez mais essa periferia urbana conquistava acesso a bens de consumo duráveis, notadamente eletrodomésticos e telefones celulares. E esse é um dado bastante importante para toda a trama que pretendemos desenrolar.
Analisando a revolução egípcia, Castells (2013) utiliza o termo “rede multimodal” para descrever como a batalha entre governo e manifestantes se deu, simultaneamente, nas plataformas oferecidas pelos meios de comunicação e nas praças públicas. Segundo ele, o contrapoder revolucionário se expressou por meio de telefones móveis e frequências clandestinas de rádio e modens dial-up e outros expedientes para driblar a repressão governamental. Ora, a utilização dessas redes sociais também explica a formação da rede nacional do pixo. Esse movimento foi articulado por pixadores de diferentes cidades, dentre elas, Salvador, com o objetivo de coordenar ações de ataque (intervenções com pixo, participação em passeatas e bloqueios de ruas) durante as chamadas jornadas de junho de 2013. Essa articulação se deu no contexto de debates e seminários acontecidos em 20113 e 20134. Resta dizer que a realização destes eventos na Universidade com a participação de um pixador paulista produziu uma articulação nacional, culminando numa rede nacional de pixadores em diversos estados do Brasil.
Os seminários e eventos acadêmicos ocorridos no triênio 2011-2013 foram articulados, conjuntamente, por intelectuais e pixadores, com o intuito de convidar o grande público a participar da construção de sentidos para a manifestação cultural da pixação. A perspectiva formulada pelos atores partícipes dessas atividades era baseada nas relações de expressão e produção estética das grandes metrópoles, articulando o pixo ao campo das artes. Para além da edificação de um outro tipo de discurso sobre esta prática (ou seja, de uma ação executada por vândalos a uma manifestação artística), o palco aberto a esses jovens da periferia, que não tinham nenhum vínculo institucional com a universidade, lhes possibilitou não apenas a escuta de suas falas, mas também um conhecimento dos debates e das polêmicas sociais que, por assim dizer, atravessavam o campus universitário, que é um espaço, desnecessário lembrar, plural e multifacetado. E assim, aos poucos, os pixadores foram se municiando de categorias sociológicas e antropológicas, que passaram a fazer parte de seu repertório político, motivando-os a se engajarem em outros movimentos sociais e ocupações da cidade, fazendo com que a pixação cruzasse fronteiras ainda não alcançadas. E foi desta maneira que se deu a articulação entre pixadores, black blocks e militantes estudantis durante e após às chamadas jornadas de junho de 2013. Para a narrativa a seguir, nos apoiaremos nos relatos ofertados por dois sujeitos participantes dessa torrente de acontecimentos, quais sejam, Juvenal Montes e Justino, o último servindo como o principal articulador de toda essa trama5. Vejamos.
20 de junho de 2013. Salvador, na qualidade de cidade sede da Copa das Confederações (evento futebolístico que sempre antecede em um ano a realização da Copa do Mundo), recebeu a primeira partida da competição em terras baianas, a saber, o confronto Nigéria versus Uruguai. Por meio das redes sociais, passeatas e manifestações foram marcadas, como uma forma de protesto contra os vultosos gastos públicos para com a infraestrutura necessária ao campeonato, tendo como destaque a demolição e reconstrução do estádio Fonte Nova, agora rebatizado como Itaipava Arena Fonte Nova6.
Os manifestantes se encontraram no largo do Campo Grande, centro da cidade, e saíram em cortejo rumo à Arena Fonte Nova, situada no Dique do Tororó. Em redes sociais não muito conhecidas pelo grande público, uma articulação já estava sendo feita entre pixadores, estudantes universitários e black blocks, com o intuito de perpetrar algumas ações durante as manifestações. Quem nos conta isso é Juvenal Montes, estudante de ciências da computação, que vislumbrou nessa ocasião uma oportunidade de ensaiar performances que questionassem o sistema. Juvenal se define como membro de uma “célula” de um “grupo de afinidade”. Em outras palavras, um integrante de grupos de ação direta, citados constantemente na grande mídia como sendo black blocks. Este termo procurava distinguir a ação de participantes de mobilizações e aquela executada por “baderneiros”. Os primeiros estariam interessados em lutar por direitos legítimos; os últimos, em cometer atos de vandalismo. Juvenal Montes se enquadraria, a princípio, nesta última classificação.
Mas Barreira (2014) nos explica que a ação direta mencionada por Juvenal Montes vem se desenvolvendo sob os auspícios da procura por um ideal de justiça não restrito à ordem legal. Recupera, pois, um repertório de indignação que, por vezes, se traduz na luta contra o “sistema”. Para Juvenal Montes, nesse confronto seria necessário, inclusive, a utilização de táticas de guerrilha porque as manifestações que até então ocorriam em Salvador eram despolitizadas e, por este motivo, eram ocasiões propícias apenas à bebedeira e à fanfarronice.
Foi com o objetivo de imprimir um ar mais politizado às manifestações, com a utilização, inclusive, da violência como uma forma de confrontar a ação repressiva dos policiais, que os “grupos de afinidade” começaram a se articular com os pixadores através de um software de troca de mensagens não muito conhecido pelo grande público, numa articulação que englobava sujeitos das cidades de Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. No tocante aos pixadores, esse contato terminou sendo estabelecido via rede nacional, conforme dito anteriormente, o que está em conformidade com as análises feitas sobre as jornadas de junho de 2013, como o espaço em que se deu o encontro de diversas classes e estratos sociais7.
Quando a passeata alcançou as imediações do Vale dos Barris, na descida que dá acesso ao estádio da Fonte Nova, os manifestantes se depararam com as barreiras de proteção erguidas pela FIFA, entidade organizadora do evento esportivo. Ali, encurralados, eles foram duramente reprimidos pelas autoridades policiais com a utilização de balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo. A cidade vivenciou cenas de batalha campal8, com dezenas de feridos e presos como saldo final do evento.
“Salvador não é uma cidade preparada à ação direta”, disse Juvenal Montes. Ele se certificaria disso por ocasião do desfile de sete de setembro, momento em que são realizadas paradas militares e passeata de grupos escolares em torno do centro da cidade, em comemoração à independência do Brasil. Mais uma vez a articulação pixadores, “células” e estudantes universitários, promoveu ações de cunho mais agressivo.
Mais uma vez eles foram duramente reprimidos. A repressão policial provocou muitas baixas dentre os integrantes. Uns foram presos; outros, precisaram mudar de cidade para não serem perseguidos. No entanto, alguns vínculos foram preservados. As manifestações de junho de 2013 e, posteriormente, a ação no desfile de Sete de Setembro foram os primeiros movimentos políticos na vida de um pixador cuja trajetória iremos abordar. Ele se chama Justino.
Justino se define como “pixador, ator, artista, arteiro”. Iniciou-se na pixação por volta dos 13 ou 14 anos, quando morava em um bairro periférico de Salvador. Atualmente aos 19 anos, reside entre a casa da mãe e a moradia compartilhada com amigos. Ainda não concluiu o ensino médio, mas pretende se inscrever no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), ainda este ano. Com mais 3 amigos, ele forma um coletivo de poetas urbanos que se apresenta em diversos espaços públicos e transita pelos ônibus que fazem o transporte da população, recitando suas poesias em troca de qualquer colaboração oferecida pelos usuários do serviço. As coisas nem sempre foram assim. Justino é irmão de Skilo, um pixador de 26 anos com bastante prestígio entre seus pares. Por volta de 2015, o ponto de encontro dos pixadores era o Campo Grande, às sextas-feiras do meio para o fim da tarde. Foi lá que Justino conheceu Bozó. Estes encontros serviam para trocar ideias, pixar, riscar as folhinhas, ou seja “fazer o lazer”, ou “fazer lama”. Estes encontros, itinerantes, já ocorreram em áreas internas de shoppings, praças do centro histórico, porém, atualmente, acontecem em uma pista de skate no centro da cidade. A itinerância é tanto pela prática da pixação, como pelo fato de serem negros, em sua maioria, e sofrerem com o racismo praticado por agentes do estado e município (Polícia Militar e Guarda Municipal).
O encontro de Justino com Bozó foi fundamental para esta nova configuração de pixadores “artevistas” e poetas. Bozó era um jovem de 28 anos muito amigável e conversador. Roca Alencar conheceu Bozó em 2013, durante um baba (expressão usada na cidade para tratar de uma partida de futebol)9 de pixadores na praia de Piatã. Depois o reencontrou muitas vezes em shows de rap, festa de pixadores (LAMA), em saraus e slam10 de poesias. Além disso, dialogaram muitas vezes em fóruns da internet dedicados ao tema. Morreu aos 28 anos, vítima de uma queda enquanto pixava e se tornou o símbolo desta nova geração de pixadores.
O relato de Justino nos aponta para a importância de Bozó enquanto um dos agentes responsáveis pelo trânsito entre os “repertórios” da poesia de rua e da pixação, isto é, da arte escrita e da arte falada. Ao construir a sua teoria da mobilização política, Charles Tilly define “repertório” como “meios definidos de ação coletiva”, um conjunto de práticas utilizadas para a reivindicação, que “estão à disposição das pessoas comuns” (TILLY, 1976, p. 22), em um dado período histórico. Este conjunto finito de formas de manifestação - passeatas, greves, campanhas na internet, paradas artísticas, protestos, dentre outros - sofrem mudanças, a depender do contexto histórico e da performance dos atores. Entretanto, foi com o estudo dos momentos de confronto, especialmente as manifestações de rua, que o autor passou a perceber o fenômeno da “transferência política” (TILLY, 2005), um processo que envolve escolhas e criatividade, na medida em que pode modificar uma rotina de interação já conhecida. Seria esta “transferência de repertórios” que estamos observando ao descrevermos este encontro entre pixadores e poetas e músicos de rua.
Em maio de 2016, como parte das mobilizações contra as reformas propostas pelo governo federal, dentre elas, a extinção do Ministério da Cultura, aconteceram ocupações em sedes da referida pasta em mais de uma dezena de capitais do Brasil. Em algumas cidades foram ocupadas sedes da Funarte (Fundação Nacional de Artes), em outras os prédios ocupados foram do IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional); em Salvador11, a ocupação ocorreu na Fundação Palmares, no Pelourinho, onde funciona a representação regional do MinC. Na manhã de 17 de maio de 2016, um grupo de artistas, ativistas de movimentos sociais e estudantis, além de grupos de militantes que atuam contra a gentrificação no centro da cidade de Salvador, ocuparam a sede da representação do MinC da Bahia e Sergipe, no Pelourinho12.
No período de quase um mês, a OcupaMinC-Ba, dentre seus outros ocupantes, recebeu um grupo de quase dez jovens unidos por laços de amizade e a prática da pixação, liderados por Bozó, o pixador mais experiente da turma. A chegada destes jovens negros e pixadores à ocupação não foi bem vista por muitos militantes políticos e artistas. Os pixadores, por seu turno, não deixaram de perceber o tratamento excludente que receberam e uma hierarquização na distribuição das tarefas entre ocupantes: “Foi muito estranho, porque a gente ocupou o espaço, mas não tinha lugar de fala. A gente era silenciado toda vez que a gente tentava opinar em alguma coisa. Às vezes a gente até deixava de opinar, porque sabia que ia ser silenciado. E aí foi chegando mais gente do underground, da galera rua, foi chegando Sara, uma galera do Alto da Conquista e cada vez mais a galera foi ocupando. Teve um momento que eles falaram que a gente não poderia ficar mais lá, que tinha que sair porque estava dando errado. E a gente falou que não ia sair, a gente ocupou a ocupação, a gente ficou lá”.
Esta narrativa de Justino deixa claro os recortes de classe e raça que separavam e hierarquizavam os ocupantes do MinC. De um lado, estavam os ativistas militantes vinculados ao campo da arte e cultura. Do outro, estavam os jovens periféricos vinculados ao pixo. Segundo relatos destes ocupantes, a divisão do trabalho nesta ocupação também refletia esta hierarquização, pois os trabalhos de limpeza e outras tarefas similares eram designadas a estes jovens. Enquanto que as instâncias de decisão ou produção de textos e/ou peças de áudio visual, eram tarefas desempenhadas pelos demais ocupantes.
Nos estudos sobre os grupos desviantes, sustenta Gilberto Velho (2008), é recomendável sempre observar como se dá a dinâmica de solidariedade e diferenciação inter e intragrupal. O autor já havia demonstrado em Nobres e Anjos (VELHO, 1998) que quase sempre a identidade de grupo de status, baseada no ethos da classe social de origem, ou seja, nas visões de mundo e nos estilos de vida cultivados por um determinado estrato social, se sobrepõe aos laços de solidariedade surgidos a partir do compartilhamento de uma determinada prática social. Assim, de acordo com ele, o uso de tóxicos entre membros da classe média carioca não fez com que eles se identificassem com os usuários oriundos das favelas. Algo semelhante ocorreu por ocasião da ocupação do MinC: embora os pixadores tivessem ocupado o mesmo perímetro transitado por militantes políticos e artistas, o estranhamento proporcionado pelas distâncias sociais que separavam os distintos grupos não foi vencido.
Mais um evento importante para este grupo de jovens, e também citado por Justino, foi a aproximação com a Casa Antuak13. “A casa Antuak foi parte da ocupação do MINC. A galera (...) Manfred também colou, Mendonza também colou e eles foram as pessoas cruciais para a nossa evolução como pessoa dentro da ocupação”. Ele reconhece a importância do contato travado entre eles e dois artistas negros que ocuparam o MinC. Foram estes dois artistas e estudantes universitários que chancelaram a permanência de Justino e seus amigos no prédio do MinC.
Justino relata como foi importante este contato, pois foi a partir daí que participou pela primeira vez de discussões sobre gênero: “Eu nunca tinha parado para me questionar sobre gênero. Sobre sexualidade. Sobre roupa mesmo. Quando chegou no MINC, foi uma coisa. Eu estava me descobrindo. Rolava muito isso de homem tá passando batom, de homem tá vestindo saia, de homem de top. E eu fui olhando aquilo e me identificando e fui começando a fazer. Não pensei muito de porque eu vou fazer”. Esta nova subjetividade adquirida a partir do contato com artistas e militantes implicou em alterações na forma de vestir (uso de saias longas e brincos grandes); ao mesmo tempo em que abriu as portas de um novo mundo menos pautado pelo binarismo sexual, também trouxe choques entre os pares de gerações mais velhas e a família.
Após os eventos acadêmicos na UFBA (2011 e 2013) que tiveram sua centralidade no pixo, percebemos que houve uma inserção deste tema na agenda destes jovens universitários. Primeiro semestre de 2014, além de a temática ter entrado na arena de debates acadêmicos, surgem gangues de pixadores na UFBA. No começo de junho de 2014, início de semestre letivo, a convite do Centro Acadêmico de Ciências Sociais, a professora Roca Alencar participou de um debate sobre o documentário “Pixo”. Naquela oportunidade, uma estudante fez um comentário sobre as gangues de pixadores estudantes da UFBA. E assim, percebemos o quanto esse tema havia ganhado importância dentro do ambiente acadêmico, na medida em que, em 2011, quando o referido documentário fora apresentado pela primeira vez, pouquíssimas pessoas detinham algum tipo de conhecimento sobre o assunto. Após um período inicial de resistência de muitos pixadores aos novatos universitários, em 2016 um grupo de pixadores de rua e pixadores universitários formaram um coletivo (Lama) com a intenção de fazer festas. Tem início a primeira festa Lama, festa de pixadores para pixadores, palco hoje de muita visibilidade para o movimento.
Essas formas de expressão - as festas e a pixação em si - teatralizam o lugar marginal que elas, geograficamente e culturalmente, ocupam. A publicização do pixo para além do seu locus de origem fez com que os pixadores passassem a transitar em outras esferas sociais, o que lhes proporcionou ganhos culturais e a aquisição de novos “repertórios”. É nesse diapasão que se torna importante retomarmos a ideia de multipertencimento. “As pessoas têm uma experiência complexa, movem-se em múltiplos planos, articulam-se a redes diversificadas e suas identidades não são homogêneas nem se desenvolvem de modo unilinear” (VELHO, 2010: 20).
Chegando a este ponto, percebemos que o Lama parece ter sido a coroação de todo esse processo de disseminação e mesmo de inserção da pixação em outras esferas da cidade e outros grupos sociais, para além do próprio ato de pixar muros e paredes. Um dos produtos desse processo foi a criação do grupo de rap “Nós por Nós”, onde o Mc é um pixador. Em si, a expressão “nós por nós” já era muito difundida entre os pixadores, numa referência às diversas ausências do estado e das políticas culturais que não atingem estes jovens. De outra ponta, a estética do pixo, pelos efeitos que produz, sempre foi um artefato político, mas a politização em si dos jovens participantes deste ciclo de sociabilidade, pelo menos entre os nossos interlocutores, é um processo mais recente, que cabe mais algumas análises. Este será, pois, o nosso objetivo nas considerações finais deste artigo.
O contato entre pixadores e militantes de movimentos sociais, ainda que tenha ocorrido por meio de seminários sediados pela universidade, se intensificou com a adesão dos primeiros às manifestações de rua durante as chamadas jornadas de junho de 2013. Após este evento, encontros, saraus de poesia, festas de hip hop passaram a ser os novos espaços ocupados pelos jovens pixadores. A pixação se desterritorializou e começou a alcançar outros segmentos sociais mais vinculados à luta política dentro dos moldes do regime democrático de direito. Nesse processo, assistimos às descobertas de Justino que, sendo um dos sujeitos da nova geração do pixo, passou a confrontar a geração anterior a partir do aumento de seu repertório identitário, conquista suscitada por sua adesão às bandeiras vinculadas às questões de gênero, sexualidade e raça. Para finalizar este texto, cabem ainda algumas análises.
Desde quando passamos a conhecer melhor o universo da pixação, sempre esteve em nosso horizonte uma preocupação em definir o que representa a ação dos sujeitos vinculados a esta prática, mas uma definição que assumisse o ponto de vista nativo. Assim, em termos êmicos, enxergar os pixadores como uma espécie de movimento social significava a utilização inapropriada de nossas ferramentas teóricas, uma vez que faltava aos jovens das gangues e das galeras um linguajar próprio às tópicas do reconhecimento e da redistribuição, discurso mais costumeiramente encontrado entre os segmentos mais tradicionais dos movimentos sociais. Essa realidade vem mudando após os eventos aqui descritos.
Entretanto, é necessário ainda especificar como e porque a pixação pode ser um artifício para aqueles que lutam por de um direito à cidade, independentemente da vinculação ou não dos pixadores aos movimentos sociais tradicionais, bem como aos partidos políticos. Desde Lefebvre até Harvey, somos informados de como a urbanização, e não mais a industrialização, se tornou a principal força motriz das transformações sociais a partir do século XX. Ambos os autores, ainda que permaneçam dentro dos ditames marxistas, redirecionam o nosso olhar para outras paragens. Agora, para falar sobre a alienação e a consciência de classe, não olhemos mais as fábricas, mas sim à urbanidade. Assim, a miséria urbana descrita por eles é aquela motivada pela redução do espaço urbano à apropriação do capital; é a da cidade que não oferece ao trabalhador nenhuma possibilidade de dela tirar proveito; é, enfim, a da transformação do corpo dos sujeitos em mera força de trabalho, o que os impede a manifestação de seus desejos e prazeres. Neste sentido, se falamos em direito à cidade como algo atrelado à ação dos pixadores não é porque, em primeira instância, eles passaram a se apropriar desse linguajar jurídico e acadêmico, mas por conta de um tipo de sociabilidade e modus operandi que ousa a dar um outro sentido à cidade diferente daquele dado pelo capitalismo. Quando os pixadores saem para fazer os seus rolês, nas altas horas da madrugada, eles estão, inclusive, desafiando a lógica dos enclaves fortificados14, para quem a urbanidade, por si só, é sinônimo de perigo. Ainda que esta lógica enxergue os pixadores como um dos sujeitos responsáveis pela insegurança e a violência que rondam as grandes cidades, estes cultivam um tipo de ocupação do espaço urbano, um tipo de conhecimento e vivência da cidade, praticamente inacessível aos indivíduos não vinculados a esta prática.
Por fim, sabemos, conforme já foi dito por Marques e Campos (2017), que não apenas exploramos visualmente o mundo, mas também ajudamos a criá-lo visualmente.
O Estado, a igreja ou as grandes empresas também agem neste campo. Seja na arquitectura monumental que ostenta o seu poder e o seu domínio sobre o espaço, seja na monopolização ou domínio de certos canais de produção e difusão de imagens, seja na imposição de uma certa mundividência, seja pelo aperfeiçoamento dos mecanismos de vigilância, entre muitas outras situações. (...) Actualmente, o poder de intervenção na esfera pública não é exclusivo daqueles que detém capacidade económica e técnica para produzir imagens em termos profissionais. Cada vez mais há circuitos extra-institucionais, minoritários e amadores que desafiam a hegemonia de alguns (MARQUES E CAMPOS, 2017, p. 06).
Hegemonicamente, a pixação sempre oscilou entre a esfera da invisibilidade e a redoma da “visibilidade perversa” (SALES, 2007), ou seja, ou eram quase que um grupo de desconhecidos para o público em geral ou sua prática compreendida nos termos de uma ação cometida por vândalos e depredadores do patrimônio público. Quando o pixo passa a ser incorporado por outros segmentos sociais, uma outra “política de visualidade” (MARQUES E CAMPOS, 2017) parece estar sendo erigida para esse coletivo. Do efeito estético promovido pelas escrituras nas vias e muros da cidade, paulatinamente emerge uma outra imagem da pixação: ao se poetizarem e mesmo se musicarem, os pixadores ampliam as suas competências criativas, se apropriando de uma variedade de linguagens e artefatos até então não disponíveis a eles.
Enfim, é neste sentido que podemos propor o conceito de “visibilidade insurgente”15 para estes sujeitos. Claro está o parentesco para com outro tipo de insurgência, a saber, aquela promovida pela cidadania, etnograficamente estudada em bairros paulistanos por Holston (2013). O referido autor sustenta que o processo de consolidação das periferias se deu a partir de elementos que, a princípio, seriam considerados como fatores excludentes para a assunção da cidadania plena. São eles: a ocupação ilegal de terras; os conflitos em torno de seu usufruto; a organização de novas formas de articulação política; a edificação e a melhoria das moradias. De acordo com ele, não foi o poder público quem incentivou a classe trabalhadora a lutar pelo seu direito à cidade; em verdade, foram os reinos do cotidiano e da vida doméstica que cumpriram esse papel, tendo como núcleo principal a construção de residências.
Guardadas as suas devidas proporções, o mesmo poderia ser dito a respeito dos pixadores, na medida em que eles passaram a se integrar aos movimentos de rua, manifestações estas que, nos dizeres de Harvey (2013), implicariam o sentido de retomada da cidade: a rua, pois, como o lugar da atividade política. Entretanto, em nosso entendimento, muito embora o contato entre pixadores, militantes políticos e estudantes universitários tenha ampliado o repertório acadêmico e cultural dos primeiros, eles não fizeram ainda uma apropriação de uma retórica dos direitos, mais comum aos movimentos sociais, o que sugeriria a busca de um outro tipo de cidadania, talvez uma cidadania vinculada aos direitos culturais do grupo em ter a garantia do exercício da prática da pixação. Portanto, por este motivo, enxergamos entre estes pixadores uma “visibilidade” e não uma “cidadania insurgente”, na medida em que a própria presença e performance deles no espaço público os tornam elementos disruptivos para o sistema. E assim, está havendo a criação de uma juventude ainda não assimilada pelas políticas governamentais, tampouco ao usual comércio de entorpecentes: a juventude do pixo.