ARTIGO

Imigrantes e refugiados na cidade: reconhecimento pelo sofrimento e construção de “vítimas”

Migrants and refugees in the city: recognition of the suffering and construction of “victims”

Silvia Zelaya
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Imigrantes e refugiados na cidade: reconhecimento pelo sofrimento e construção de “vítimas”

Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 25, núm. 2, pp. 90-111, 2018

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Resumo: O artigo descreve e analisa os discursos e as ações de uma rede de atores governamentais e não governamentais produzidos durante uma série de eventos - uma audiência pública, a criação de um albergue emergencial e um festival cultural - que teve como objetivo central a visibilização da questão migratória como problema contemporâneo. Analisando essas iniciativas e as mais recentes práticas dos próprios refugiados e imigrantes na cidade, o artigo reflete sobre a articulação e o entrelaçamento da implementação de direitos com o humanitarismo no Brasil contemporâneo. A argumentação está amparada em uma etnografia multissituada das relações de saber e poder que produziram a imigração e o sujeito imigrante como tipo particular de população urbana suscetível de intervenção mediante uma complexa trama de atores, tecnologias, saberes e relações em Porto Alegre e São Paulo, entre os anos 2013 e 2016.

Palavras-chave: Imigração, Refúgio, Vítima, Sofrimento, Humanitarismo, Cidade.

Abstract: The article describes and analyzes the discourses and actions of a network of government and non-government actors produced during a series of events - a public hearing, the creation of an emergency shelter and a festival - that aimed to make the migration issue visible as a contemporary problem. By analyzing these initiatives and the latest practices of the refugees and immigrants themselves, this article reflects on the articulation and interweaving of the implementation of rights within the humanitarianism in present-day Brazil. The argument is based on a multi- situated ethnography of the relations of power that produced immigration and the immigrant subject as a particular type of subservient population of intervention through a complex network of actors, technologies, knowledge and relations in Porto Alegre and São Paulo between 2013 and 2016.

Keywords: Inmigration, Refuge, Victim, Suffering, Humanitarianism, City.

INTRODUÇÃO

Tarde de maio, 2016. Estou na sala de conferências da biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo. Ali tem lugar o Seminário “Migrações Internacionais e Direitos Humanos” promovido pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo. Estou acompanhada de Kamel Boulai1, líder do Grupo de Refugiados e Imigrantes sem Teto de São Paulo (GRIST). Em seguida, Kamel é convidado a unir-se à mesa de debate. Nela há expertos em educação, direitos humanos e a presidenta de uma conhecida organização de atenção a imigrantes. Depois das intervenções dos palestrantes, Kamel toma o microfone:

Vocês sabem por que nosso grupo é refugiados e imigrantes sem teto? Não é nada de sem teto! O que acontece é que em 2014 quando os imigrantes dormíamos lá na Missão Paz, tudo mundo se aproveitou. Os empresários brasileiros nos viam como mão-de-obra barata. Eles iam lá, contratavam, aí você vai trabalhar quatorze horas, sabendo que era trabalho escravo. Eles diziam que não tinham um lugar para a gente dormir. Aí os jornalistas se aproveitaram para fazer matéria e começaram a falar em trabalho escravo, mas ninguém sabia por que acontecia esse trabalho escravo. Então chegaram os pesquisadores que também nos tratam como objetos de pesquisa e desde os centros de acolhida nos falavam: “você não pode ir mais trabalhar lá porque é trabalho escravo.” E depois? O que a gente faz? (Registro de campo, Maio, 2016).

Kamel cita e critica cada uma das ações de acolhimento que haviam sido mencionadas durante as anteriores intervenções. Em relação ao mais novo Centro de Referência para Imigrantes da Prefeitura de São Paulo (CRAI) - criado em 2014 - avalia criticamente o caráter temporário do alojamento: “no CRAI temos 110 leitos, outros 150 e mais 70 leitos. Isso nós chamamos de moradia temporária, provisória, mas nós precisamos de moradia definitiva”. Kamel fala com propriedade, conhece os albergues, as ajudas e também o que acontece quando a pessoa tem que sair deles. Ele assinala que no tempo que a pessoa passa nessas moradias, “nem sempre consegue tirar todos os documentos”. Diz que muitas vezes só se consegue tirar o protocolo que, além do mais, diz: “é um papel”. Kamel remarca que em nenhuma imobiliária aceitam esse papel como um documento válido: “mas aí a pessoa precisa sair da casa de acolhida porque outras pessoas precisam entrar. É por isso que acabamos indo nas ocupações”, conclui (Registro de campo, Maio, 2016). 2

Não obstante, e embora os esforços das prefeituras de São Paulo e de Porto Alegre e das organizações vinculadas a congregações religiosas que oferecem serviços de acolhimento, assistência (jurídica, psicológica, cursos de português) e até abrigo transitório para os “recém-chegados”, encontrar um lugar para morar continua sendo um dos principais desafios para os refugiados e outros tipos de migrantes que chegam a cidades como São Paulo e Porto Alegre.3 É nesse cenário de demandas por moradia que se produzem várias iniciativas de acolhimento e mediação para imigrantes e refugiados chegados nos últimos anos.

O artigo descreve e analisa os discursos e as ações de uma rede de atores governamentais e não governamentais produzidos durante uma série de eventos - uma audiência pública, a criação de um albergue emergencial e um festival - que tiveram como objetivo a visibilização da questão migratória como problema contemporâneo. Esta analise está amparada numa etnografia multissituada das relações de saber poder que produziram a imigração e o sujeito imigrante como um tipo particular de população suscetível de intervenção mediante uma complexa trama de atores, tecnologias, saberes e relações, em Porto Alegre e São Paulo entre os anos 2013 e 2016. Discuto estes eventos em seus antecedentes, percursos e desdobramentos na medida em que articulam o discurso dos direitos e das práticas humanitárias. Ainda assim, longe de querer aprofundar uma visão que coloca de um lado a implementação de direitos (relacionada aos ideais de promoção da igualdade) e, de outro a ajuda humanitária (associada à solidariedade como suporte de justiça social), procuro seguir uma linha de reflexão que entende a articulação e o entrecruzamento da implementação de direitos com o humanitarismo contemporâneo. Isso porque, como apontaram Ferreira e Schuch (2010), no Brasil a linguagem da assistência social, da caridade e da filantropia combina-se à linguagem dos direitos e à retórica da cidadania.

O artigo está dividido em três partes. Na primeira, apresento brevemente o marco jurídico vigente durante todo o tempo da realização da pesquisa e interpreto alguns dos mecanismos empregados pelos membros da Congregação Scalabriniana no estabelecimento de relações com os imigrantes, com as autoridades do governo e com outras entidades da sociedade civil; na segunda, descrevo e analiso ações de mediação, com ênfase na centralidade da categoria vítima; na terceira e última parte, analiso a reação dos imigrantes e refugiados e procuro pensar alguns dos dilemas do humanitarismo no Brasil contemporâneo.

AS LEGALIDADES DA IMIGRAÇÃO: PROTAGONISMOS HISTÓRICOS E DILEMAS RECENTES

Como se sabe, no Brasil a relação com a imigração está longe de ser uma novidade. Não obstante, apenas nos últimos anos este assunto tem sido tratado como uma questão relevante. Isso poderia parecer estranho em um país onde os “imigrantes” não apenas fazem parte do imaginário da nação brasileira, mas há uma experiência precoce na criação de políticas migratórias.4 Entretanto, há muito tempo que as congregações religiosas estão comprometidas com a situação dos migrantes. No sul do país, a Congregação Scalabriniana consolidou-se como uma instituição de referência no atendimento às pessoas que ingressavam no país. Ela alcançou essa posição em um cenário caracterizado pela chegada de imigrantes latino-americanos em um contexto de regime político ditatorial e, portanto, certamente hostil perante os estrangeiros. A atuação das congregações religiosas focalizou-se tanto no acolhimento dessa população como na oposição ao Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815 de 1980), uma lei baseada na doutrina da segurança nacional.5

As ações de acolhimento incluíram práticas tais como auxílios à moradia, ao encontro do primeiro emprego, à doação de cestas básicas, de roupas e até de dinheiro para a compra de passagens. Essa assistência e esses auxílios configuraram ações de caráter individual por meio das quais os membros da Congregação Scalabriniana buscaram, ao longo do tempo, atender os imigrantes e criar canais de mediação entre eles e a sociedade brasileira. A assistência oferecida aos imigrantes era desenvolvida de acordo com a lógica cristã da caridade, sendo concedida sem a expectativa de uma contrapartida. Ao mesmo tempo, as ações dos Scalabrinianos em prol dos imigrantes atribuíram aos membros dessa congregação o papel de representantes dos imigrantes ante a administração pública e a sociedade em geral, cujo dever era o de denunciar determinadas situações sofridas pelos imigrantes.

Com a chegada da democracia durante o final da década dos oitenta houve certa esperança em relação à mudança do Estatuto do Estrangeiro. As congregações religiosas iniciaram então uma aproximação com outros atores da sociedade civil. Foram realizados encontros e reuniões com consulados, universidades e outras organizações sociais. Houve seminários onde se discutiam propostas sobre uma nova lei de migrações. Essas iniciativas visavam à construção de uma rede de conexões com outras entidades da sociedade civil e também com setores específicos do Estado. Porém, a saída de brasileiros para o exterior converteu-se no fenômeno migratório mais relevante. Assim, os esforços dirigiram-se para a organização política dos brasileiros no exterior. A mobilização de lideranças transmigrantes, organizações religiosas (especialmente as ligadas à Igreja Católica), estudiosos das migrações e outros militantes, no que tange aos direitos de nacionalidade e cidadania de brasileiros no exterior, resultou na institucionalização do diálogo entre o Estado brasileiro e sua “diáspora” e, portanto, no compromisso oficial de ações governamentais em prol de seus direitos de cidadania (FELDMAN-BIANCO, 2016). Entretanto, se até os anos 80 o país podia considerar-se como “emissor” de migrantes, a partir de então - e sobretudo com o avanço da grave crise econômica de 2008-2009 iniciada na Europa e nos EUA - o Brasil passou a atrair novos imigrantes. Junto com o retorno de brasileiros da diáspora, jovens profissionais europeus e norte-americanos foram atraídos pela oferta de trabalho em grandes projetos desenvolvimentistas. Ao mesmo tempo, o país também passou a receber fluxos migratórios de haitianos e solicitantes de refúgio da África e do Oriente Médio que se uniram aos mais antigos contingentes de bolivianos e de outros países do continente sul-americano que começaram a afluir ainda na década de 1980, à procura de uma vida melhor (FELDMAN-BIANCO, 2016).

Para o governo nacional, o aumento do número de imigrantes demostrava tanto o crescimento econômico e a consolidação do país no mercado internacional como a vocação de hospitalidade e acolhimento que caracterizaria historicamente ao Brasil reforçando a imagem do “Brasil país de imigração”. Nesse cenário, os atores que já atuavam no campo migratório intensificaram suas ações em prol da criação de uma Lei de Migrações que pusera fim ao Estatuto de Estrangeiro, aliás, muito criticado tanto por parte de organizações da sociedade civil como por certos setores do governo. A crítica mais comum referia-se ao tratamento do fenômeno migratório sob a perspectiva da segurança nacional, o que contradiz a Constituição Nacional de 1988.6

Além disso, o Estatuto de Estrangeiro dificultava a inserção de certos imigrantes no mercado de trabalho, já que requeria um papel ativo das empresas. Ou seja, eram as empresas que tinham que procurar legalizar e solicitar o visto de trabalho junto ao Ministério do Trabalho. A legislação brasileira não admitia que uma pessoa em caráter individual realizasse uma solicitação de visto de trabalho, nem que pudera transformar outro tipo de visto em visto de trabalho se a pessoa já se encontrava em território brasileiro.

Tradicionalmente, para tratar as situações não contempladas no Estatuto do Estrangeiro, o governo nacional atuava através de “anistias” e “resoluções normativas” do Conselho Nacional de Imigração (CNIg). As anistias são mecanismos tendentes a regularizar a situação das pessoas que entraram ou se encontram em situação irregular enquanto as resoluções normativas são instrumentos que o CNIg utilizava para lidar com as situações não enquadradas no Estatuto do Estrangeiro.7 Durante a concessão da última anistia, o secretário nacional de justiça explicou que ao contrário dos países da Europa e dos Estados Unidos, o Brasil queria dar “um tratamento completo”, mostrar que a criminalização da imigração não era aceita e que a imigração devia ser vista como “uma questão humanitária, uma irregularidade, não um crime”.

Ante os obstáculos ocasionados pela legislação em vigor, alguns imigrantes que procuram trabalhar no Brasil e não possuem visto de trabalho têm recorrido à “solicitação de refúgio” como meio de regularizar a sua situação administrativa.8 Assim, a solicitação de refúgio foi vista do ponto de vista de alguns imigrantes como a única opção para não cair na irregularidade migratória provocada pelo próprio Estatuto do Estrangeiro. Resulta importante observar que os solicitantes de refúgio conseguem - preenchendo um formulário e com a obtenção do protocolo9 - acessar a alguns direitos como, por exemplo, obter uma carteira de trabalho, número de CPF e uma carteira de saúde pública (cartão do SUS). Porém, também há que se considerar que nem todas as solicitações de refúgio obtêm um julgamento favorável. Muitas delas são indeferidas pelo Conselho Nacional de Refugiados (CONARE), órgão que pode denegar os pedidos e assim a pessoa pode ficar com seus direitos limitados.10

Em relação àqueles que não conseguem um julgamento favorável o Conselho Nacional de Imigração (CNIg) vem emitindo, de forma excepcional resoluções normativas com caráter “humanitário”. Neste sentido, uma das resoluções normativas mais significativas durante os últimos anos, ocorreu no ano de 2012 quando por razoes humanitárias foi concedido o visto permanente por cinco anos aos haitianos que o solicitassem.11 De acordo com o artigo segundo da resolução normativa nº 97 do CNIg seriam concedidos mil e duzentos vistos por ano correspondendo a uma média de cem concessões por mês, sem prejuízo das demais modalidades de vistos previstas nas disposições legais do país. Conforme aponta Jardim (2015) as ações normativas adotadas pelo CNIg não são referentes à recepção de refugiados e sim “expressam uma preocupação institucional quanto aos riscos que a irregularidade impõe a quem migra: trabalho escravo, exploração, e subemprego e, em casos extremos, falamos de risco de vida” (JARDIM, 2015, p. 57). Esses entraves normativos incentivam também aos agentes da sociedade civil a demandar um tratamento humanitário para certos imigrantes cujos casos não conseguem se enquadrar nas lógicas administrativas vigentes. É nesse cenário de transformações recentes que a argumentação deste texto se situa, e como a noção de vítima é central para o argumento, em seguida apresentam-se algumas considerações a este respeito.

NO CENTRO DO DEBATE: IMIGRANTES E REFUGIADOS COMO OBJETO DE POLÍTICAS HUMANITÁRIAS

Vários autores que refletem sobre a vida nos campos de refugiados (AGIER, 2006; FASSIN, 2006, 2010; SCHINDEL, 2016) têm apontado para a centralidade que adquire a figura da vítima no seio de dispositivos de controle “humanitários”. Analisando a concessão de permissões temporárias de estadia entre os sírios, os afegãos e os iraquianos que chegam ao território grego e buscam sair rapidamente dali, Schindel (2016) levanta estimulantes inquietações tanto sobre os mecanismos de avaliação de vidas existentes nos campos de refugiados quanto sobre a necessidade das pessoas de mostrarem-se como vítimas para serem reconhecidos como cidadãos.

Cabe assinalar que estudos que abordam situações como a analisada por Schindel (2016) comumente assumem uma separação entre o humanitário e o político à luz do pensamento do filósofo italiano Giorgio Agambem (1998) que distingue entre uma vida qualificada (bios) e uma vida biológica ou natural (zoé). De acordo com Agambem, uma “vida nua” emerge de forma indeterminada entre estas duas formas de classificação da vida. Daí que a separação entre o humanitário e o político constitua, no caso dos refugiados, vidas vulneráveis que precisam de proteção (AGIER, 2006).

Desde outra perspectiva analítica, e observando a circulação de pessoas do campo da política ao das organizações humanitárias Fassin (2010) entende que, longe de distanciarem-se, o humanitário e o político aproximam-se cada vez mais, podendo-se observar uma “humanização das políticas públicas e uma politização das organizações humanitárias” (FASSIN, 2010, p. 327).

Através da análise das medidas, dos dispositivos, das formas de governo - governamentais e não governamentais - desenvolvidas desde finais do século XX e princípios do século XXI para administrar populações e indivíduos que atravessam situações de desigualdade em contextos de violência ou em experiências de sofrimento, o autor identifica uma “razão humanitária” governando sobre as “vidas precárias”: “vidas ameaçadas e esquecidas que o governo humanitário faz existir, protegendo-as e revelando-as” (FASSIN, 2016, p. 14).

Dialogando com o conceito de “biopolítica” definido por Foucault, Fassin realça a importância das significações e dos valores na diferenciação das vidas. A ação humanitária é definida por Fassin como uma “biopolítica” em dois sentidos: em primeiro lugar, levando em conta as tecnologias da administração de populações, por exemplo, mediante a instalação de campos de refugiados; em segundo lugar, no que se refere ao objetivo de salvar vidas. Isso implicaria não apenas arriscar-se em nome dos outros, mas também selecionar aqueles que devemos atender prioritariamente quando os recursos são escassos. Por último, a ação humanitária é uma política da vida, na medida em que defende as causas “publicamente”, o que implica desligar-se de outras e, sobretudo, construir certas causas selecionando a melhor forma de representar as vidas das pessoas assistidas como “vítimas” ao invés de “resistentes” (FASSIN, 2010, p. 331).

Analisando os mecanismos utilizados para responder às solicitações de asilo na França, por exemplo, o autor mostra como se produz um “regime de verificação” no qual o reconhecimento do sofrimento realiza-se mediante a perícia médica que emite pareceres baseados nos “corpos” dos demandantes de asilo. Através dessa exploração o autor expõe as tensões e contradições das sociedades ocidentais quando afirmam princípios generosos de “proteção das vítimas de perseguição e administram a presença deles em termos restritivos de controle da imigração” (FASSIN, 2010, p. 167).

As reflexões desses autores ajudam-nos a pensar sobre as implicações da centralidade da categoria “vítima” em relação à questão dos migrantes e da cidadania. A respeito disso, Gabriel Gatti (2016), referindo-se à extensa produção bibliográfica sobre a questão da vítima, identifica duas grandes formas de abordar o tema. Por uma parte, distingue uma perspectiva - na qual inclui autores como Chaumont (1997), Erner (2007), Garapon e Salas (2007) e Wieviorka (2003) - em que a figura da vítima transborda a noção de cidadão; noutra parte, identifica outra perspectiva que aborda a vítima como uma expressão do sofrimento humano. Os trabalhos de Gatti (2016) vêm apontando a conexão entre a ideia de vítima e o status de cidadania alcançado por aqueles que são reconhecidos a partir do seu sofrimento. Analisando os casos de pessoas que tentam se passar por vítimas - embora cientes de que não são - o autor observa que o desejo de ser vítima responde ao fato de que, na sociedade contemporânea, o status de vítima outorga reconhecimento e serve para sair da invisibilidade. Nesta perspectiva, é evidente o vínculo entre a noção de vítima e a de cidadão: “Hoje ser vítima é nada mais nada menos que uma via de acesso à condição de cidadão” (GATTI, 2016, p. 120).12

Na perspectiva deste autor, semelhante à de Martinez (2016), as figuras da vítima e do cidadão têm deixado de ser antagônicas. Para eles, a vítima e o cidadão agora não apenas convivem, mas têm chegado a fusionar-se numa nova entidade: o “cidadão-vítima” (GATTI; MARTÍNEZ, 2016, p. 8). Para os autores, a fusão entre os conceitos de cidadão e vítima estaria relacionada tanto à multiplicação das formas de violência contra o outro, quanto ao surgimento de uma nova sensibilidade coletiva altamente compassiva e emocional ante os fenômenos sociais.

As diferentes abordagens sobre a categoria vítima e seu uso para refletir sobre as distintas situações de mobilidade humana coloca o pesquisador diante de não poucos paradoxos. Por uma parte, e como tem apontado Jardim (2013), há uma tensão entre a importância que adquirem nos debates sobre mobilidade humana noções como “tráfico de pessoas”, “crime organizado”, “vulneráveis em perigo” e as “experiências dos sujeitos com trajetórias potentes de migração que não se ajustam plenamente às zonas de urgência dos enunciados hegemônicos” (Jardim, 2013, p. 69). Por outro, a visão dicotômica que parece surgir de uma interpretação que distingue apenas entre vítimas e criminosos apresenta certos riscos quando vemos que rapidamente as vítimas podem se converter em culpáveis e até em criminosos. A seguir, veremos como essas discussões se apresentam no contexto pesquisado. Num primeiro momento, veremos como num cenário complexo no qual o sistema de refúgio tem grande destaque, a rede de ativistas e organizações religiosas vinculadas à Congregação Scalabriniana mobilizam-se preocupados com a situação atravessada por senegaleses no interior de Rio Grande do Sul. Conforme relatado pela irmã Maria do Carmo durante a segunda reunião do Comitê de Atenção a Migrantes, Refugiados, Apátridas e Vítimas do Tráfico de Pessoas de Rio Grande do Sul (Comirat) em abril de 2013, aproximadamente um total de 270 imigrantes senegaleses haviam chegado à cidade de Caxias do Sul e, encontrando-se sem nenhum tipo de acolhimento, pediram abrigo no albergue municipal. Porém, e ao contrário do esperado, as autoridades municipais não apenas negaram os serviços de acolhimento da rede pública socio-assistencial, como também o próprio prefeito da cidade declarou que “não tinha obrigação de atender a pessoas estrangeiras”. A informação trazida pela Irmã não foi indiferente aos membros do Comirat que avaliaram como inaceitável a posição do prefeito, muito menos à vereadora de Caxias do Sul, Denise Pessoa (Partido dos Trabalhadores), e a deputada Marisa Formolo (Partido dos Trabalhadores), que viram naquelas palavras claros signos de racismo. Alguns meses depois, as declarações do prefeito converteram-se em uma das razões pelas quais se convocou uma audiência pública em Porto Alegre para tratar da situação dos senegaleses em Caxias do Sul.

A CONSTRUÇÃO DE UM QUASE-REFUGIADO: AUDIÊNCIA PÚBLICA DOS SENEGALESES

Manhã de novembro, 2013. Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, no centro de Porto Alegre. Em alguns minutos, vai começar uma audiência pública para tratar a situação dos imigrantes senegaleses na cidade de Caxias do Sul (RS). Entre os convidados à mesa de debate há políticos, professores, pessoas de entidades religiosas e dois imigrantes senegaleses. Muitas das falas citam as limitações do Estatuto de Estrangeiro, há críticas ao “Estado” e intervenções emocionadas como a da representante do movimento negro enfatizando que “foram os negros que construíram o Brasil”.

Entre o público, algumas conversas. O que estava em jogo era o encaminhamento ao Ministério de Relações Exteriores das fichas dos senegaleses atendidos no Centro de Atenção ao Migrante de Caxias do Sul (CAM). Esperava-se que esse encaminhamento resultara a regularização da situação legal no país das pessoas atendidas.

Por fim chega o turno de Sammy, presidente da associação dos senegaleses de Caxias. Depois de emitir um longo suspiro e destacar algumas das adversidades ocorridas pela falta de documentação, assinala: “sem carteira de trabalho, a empresa não presta nenhum tipo de assistência, pagam por dia e, se há qualquer um machucado, ninguém ajuda, e a gente precisa muito de ajuda” (Registro de campo, Novembro 2013).

Na data em que foi realizada aquela audiência, os senegaleses, haitianos e outros imigrantes já constituíam uma intensa realidade em cidades como Caxias do Sul, Passo Fundo ou Bento Gonçalves. A região, considerada um “polo industrial” do estado riograndense - devido à presença de inúmeras fábricas alimentícias e metalúrgicas -começava a ser considerada um dos principais pontos do país na concentração desses imigrantes. A informação disponível naquele momento era que eles não tinham maiores dificuldades para conseguir empregos nessas áreas, não obstante, experimentavam sérias dificuldades para obter a documentação brasileira (RNE, Carteira de trabalho, CPF). A falta dessa documentação dificultava, por exemplo, o acesso à rede sócio assistencial.

Como apontado na audiência, obter a permissão de residência não é nada fácil para os senegaleses. Por uma parte, eles não são, em sua maioria, os trabalhadores altamente qualificados contemplados pela normativa vigente. Por outra parte, provir de Senegal não os posiciona automaticamente como sujeito cuja vida está em perigo de morte e tampouco os coloca exatamente na mesma situação dos haitianos para quem existe um visto humanitário a causa do terremoto de 2010. Desta forma, apelar ao reconhecimento mediante o sofrimento parece ser o caminho possível a ser trilhado pelos senegaleses e a sua rede de apoio para conseguir inserir-se no campo da cidadania.

Depois de participar de outras audiências públicas e de conversar com pessoas que atuam no campo mais amplo do acolhimento de pessoas em mobilidade percebi que, se por um lado, a categoria “imigrante” assumia diferentes significados para as pessoas envolvidas naqueles atos, por outro lado, no contexto das demandas por regularização de documentação e outros direitos de cidadania, a associação com a noção de vítima era mais que frequente. Nesse sentido, o que me chamou a atenção foi que, diferentemente de outros contextos no qual o imigrante era valorizado em função do aporte que representava para o desenvolvimento do país, naqueles cenários, o reconhecimento como imigrante era alcançado em base na demonstração de algum tipo de sofrimento.

Ou seja, se em outros contextos o “imigrante” que anseia por uma vida melhor, um trabalho e direitos reconhecidos no país de chegada assumirá um caráter de “desconfiança” e quem foge de perigos presumivelmente maiores e mais difundidos pela grande mídia “terá mais possibilidades de ser acolhido e obter permissão de residência” (SCHINDEL, 2016, p. 18) no Brasil, a dimensão econômica e política da mobilidade conjugam-se de um modo particular produzindo uma figura entre o imigrante e o refugiado, um quase refugiado digno de reconhecimento tanto pelo sofrimento quanto pela sua pobreza.

POBREZA E A AJUDA HUMANITÁRIA NOS ALBERGUES PARA IMIGRANTES

Na metade do ano de 2015 improvisou-se um albergue no Centro Humanístico Vida, localizado no bairro Rubem Berta na zona norte de Porto Alegre, para alojar os imigrantes haitianos e africanos chegados do Acre.13 O Centro Vida foi inaugurado na década de 1990 como um “espaço de cidadania” no qual se realizam ações em matéria de saúde, trabalho, lazer, educação, esporte e cultura.14

O alojamento para os “imigrantes” organizou-se nos fundos. Em um espaço relativamente amplo improvisou-se um quarto coletivo com quase 100 colchões distribuídos no chão. Bruno, o coordenador do Centro, mostrou-me as instalações e falou-me acerca do trabalho de acolhimento realizado através da Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social (FGTAS).

Durante o tempo que permanecemos conversando naquele quarto, Tiago explicou algumas coisas sobre o funcionamento do lugar. Disse-me, por exemplo, que tudo o que foi conseguido foi por meio de doações. No entanto, apontou que ainda precisavam de coisas tais como roupa de cama, materiais de higiene e roupa de inverno. Também comentou que a Defesa Civil planejava a compra de mais 100 colchões. Afirmou que a maioria dos imigrantes eram haitianos e que havia também senegaleses. Sugeriu que entre eles (senegaleses e haitianos) existia certa rivalidade e que por isso decidiram que seria melhor que “não ficassem juntos”.

Ao sair do “quarto dos haitianos” nos dirigimos rumo à cozinha onde havia algumas mulheres próximas ao fogão preparando o que supus ser o almoço. Alguns homens também estavam envolvidos na organização da comida. Tiago esclareceu que estava tudo organizado por “turnos” e que eram eles mesmos que faziam as suas coisas. Continuando com a visita, chegamos até o “quarto dos senegaleses”. Este quarto era menor que o dos haitianos, mas no lugar de colchões no chão, havia beliches. Senti que estava sendo bastante invasiva. Havia pessoas ali dentro deitadas na cama ou pendurando as roupas que me parecia terem acabado de lavar. Saindo do quarto, Tiago mostrou-me uma pequena despensa, repleta de alimentos.

No total, quase 60 haitianos e senegaleses estavam morando lá. A ideia era que permaneceriam ali até encontrar emprego e receber o primeiro salário. Isto lhes permitiria alugar uma moradia. Segundo Tiago, vários moradores do bairro chegavam diariamente ao Centro para oferecer aluguéis a preços “acessíveis”. Além de providenciar o albergue, a FGTAS intermediava com as empresas a comunicação para conseguir vagas de emprego. De acordo com Tiago, são os frigoríficos os que mais contratam “este tipo de mão de obra estrangeira”.

Depois de recorrer aos principais espaços destinados aos “imigrantes”, Tiago apresentou-me a duas colaboradoras da Afinca, uma ONG que realiza ações de formação e capacitação no Centro Vida. Alguns dos imigrantes haviam começado a frequentar os cursos oferecidos pela ONG como, por exemplo, o curso de computação. Patrícia, uma jovem voluntária, ministrava esse curso e com muita simpatia parecia estar entusiasmada por contar-me que seu pai, dono de uma empresa madeireira, havia empregado alguns haitianos.

O relato de Júlia Patrícia surpreende tanto pela sinceridade quanto pelo conteúdo. Segundo ela, seu pai estava muito contente com os haitianos que havia empregado porque eles “não eram como os brasileiros”. De acordo com Patrícia isso queria dizer que eles “trabalhavam as horas que fizeram falta” e, sobretudo “não reclamavam”. Além disso, contou-me que seu pai às vezes se irritava com facilidade e costuma gritar: “quando meu pai grita com eles, eles ficam quietos, isso não acontece com os brasileiros”. Uma outra coisa havia chamado a atenção de seu pai, segundo Patrícia, “além disso os imigrantes tinham estudos”.

Não devemos pensar, contudo, que Patrícia relatava suas percepções com sarcasmo ou arrogância, pelo contrário, o que me surpreendeu foi a normalidade com que essas palavras saíam da sua boca entrelaçadas com uma demonstração de “simpatia” com os recém-chegados, várias vezes afirmou estar “muito contente” pelos “imigrantes” estarem ali.

Pela potência enunciativa de declarações como esta acima citada, é relevante considerar que a diferenciação baseada no fundamento da nacionalidade pode ser fortemente mobilizada não apenas em períodos de crise de emprego, mas também em épocas caracterizadas como de crescimento econômico e prosperidade. Pensando no cenário brasileiro, as considerações de Patrícia nos permitem refletir acerca de certa imagem da realidade socioeconômica brasileira muito divulgada pela mídia e por membros do governo durante a última década.

Se bem é certo que, durante muito tempo, olhar para as migrações no sul do Brasil era olhar para um encontro com a alteridade num contexto de “sociedades empobrecidas” (ETCHEVERRY, 2011; MORAES, 2013), durante os últimos anos observa-se uma tendência a pensar que o crescimento da economia brasileira, junto às crises que afetaram os três maiores polos de desenvolvimento mundial (Estados Unidos, Europa e Japão), transformaram o Brasil num “imã de mão de obra legal e ilegal”. Neste sentido, de acordo com as declarações de um alto funcionário do Ministério da Justiça “o país voltou a ser um país de imigração e não mais de emigração”. De acordo com este mesmo funcionário, “na medida em que o país vai se enriquecendo, a questão da imigração vai se tornando cada vez mais importante” 15.

A diferença dos contextos de crises econômicas em que os imigrantes são criticados por ocuparem postos de trabalho que pertenceriam aos “nacionais” - o que ouvi várias vezes durante a pesquisa, sobretudo de parte dos empresários que os contratavam - é que os imigrantes “faziam o trabalho que os brasileiros já não queriam fazer”.

Quando havia se passado quase dois meses da chegada dos haitianos e senegaleses ao Centro Vida, organizou-se uma reunião com os diretivos da FGTAS nas instalações do centro. Entre os presentes, além de Matias estavam Andres e Dario, ambos diretores da Fundação. Eles tinham convidado Martin, um funcionário haitiano da Prefeitura de Lajeado que trabalha na inclusão dos imigrantes naquela região. Simon é um homem de aproximadamente 30 anos e que fala cinco línguas. No Haiti trabalhava como tradutor em uma organização internacional. No Brasil, foi contratado pela prefeitura de Lajeado para realizar um “trabalho de inclusão”. Além disso, estuda relações internacionais na universidade Univates.

Simon, afirmou que era preciso mudar a forma como a mídia e outros setores abordavam o tema:

Eu tenho uma crítica muito forte em relação à mídia: vejo um lado muito preconceituoso da mídia; a mídia procura saber as coisas ruins sobre os imigrantes. Por exemplo, vão no Acre para filmar os imigrantes nos lugares muito precários, e colocar no Youtube, aí falam que está chegando a dificuldade, a miséria nos imigrantes. Vão procurando nas rodoviárias para mostrar como eles chegam, mas nunca vejo eles mostrando outros aspectos. Precisamos mudar isso, pois quando divulgaremos nossas capacidades, ai isso vai mudar. É uma luta que aí eu estou junto. É o meu direito como imigrante (Registro de campo, agosto 2015).

PODE O IMIGRANTE FALAR?

Inicio da tarde do domingo 19 de junho de 2016. Em um palco colocado na interditada Rua Álvaro de Carvalho, justo embaixo do viaduto “Nove de Julho”, Sammy Delas, um músico congolês e são-tomense que vive no Brasil há pouco mais de um ano, canta em diversas línguas africanas (lingala, kimbundu, kicongo). Enquanto isso, Samyra, uma mulher senegalesa mostra suas roupas feitas com tecidos coloridos a possíveis compradores. Nas proximidades do palco, no restaurante palestino “Al Janiah”, há uma enorme fila para os shawarmas e para o fufu - comidas “típicas” da Síria e do Congo, respectivamente, oferecidas naquela tarde. Enquanto Yannick canta, alguns ativistas repartem um panfleto com informação acerca do surgimento da Frente Independente de Refugiados e Imigrantes (FIRI) - coletivo organizador do festival. “A Frente será a voz dos refugiados para que dessa forma possam falar por si mesmos”, pode ler-se em um dos parágrafos do folheto.

“Chega/corrupção, Chega/manipulação, racismo/Chega, xenofobia/Chega, imperialismo/Chega, injustiça/Chega, hipocrisia/Chega” canta Yannick, na sua composição “Biliwê”, uma expressão em créole que significa “abra os olhos”. Diante da mirada atenta dos espectadores - que gravam a atuação do músico com seus telefones celulares - Yannick critica o imperialismo e as situações de desigualdade e discriminação vividas pelos negros tanto em seu país de origem quanto no Brasil.

Entretanto, Nazym, um artista plástico também de origem congolesa, realiza a performance “Não à Guerra do Congo. Nazym, descalço e com o corpo coberto por papéis e plásticos pintados como se fossem sangue, caminha entre a multidão exibindo vários telefones celulares pendurados em seu corpo. A ação silenciosa de Nazym faz referência aos metais extraídos da República Democrática do Congo, utilizados na fabricação de celulares e outros equipamentos eletrônicos. De acordo com os refugiados congoleses que ouvi durante o trabalho de campo em São Paulo, como Bouba, um jornalista que vive no Brasil há pouco mais de um ano, a exploração do coltan sustenta o sangrento conflito que, segundo eles, já deixou mais de 20 milhões de mortos.

Depois de algumas horas, quando a concentração alcançou um determinado número de pessoas, os representantes dos quatro coletivos que fundaram a FIRI - o Grupo de Refugiados e Imigrantes sem Teto (GRIST), o Movimento Palestina Para Todos (Mopat), a Equipe de Base Warmis, Convergência de Culturas e o Visto Permanente, Acervo Vivo das Novas Culturas Imigrantes - subiram ao palco para oficializar o lançamento do movimento. Não era a primeira vez que eu via aos membros desses grupos atuarem conjuntamente; não obstante, até aquele dia as atividades realizadas pelos quatro coletivos não tinham sido divulgadas como parte de um mesmo projeto. Até então, cada grupo organizava suas atividades de forma independente, ainda que a ideia de diálogo e de “somar as lutas de cada movimento” já estivesse presente entre os ativistas dos grupos.

Já no palco, Kamel se referiu à possibilidade de unir refugiados e brasileiros sem vitimizar as pessoas que solicitam refúgio no país:

Criamos nosso movimento para poder mostrar que o refugiado pode falar por ele mesmo e ser protagonista da própria história. Não queremos competir com as ONGs, que fazem um trabalho muito importante para as pessoas que chegam, mas promover a participação efetiva de imigrantes e refugiados (Registro de campo, Junho 2016).

Taha, palestino nascido no Brasil, integrante do Mopat e proprietário do restaurante Al Janiah, também destacou a necessidade de os refugiados serem protagonistas da própria causa. Em suas palavras, os refugiados deviam falar por eles mesmos, e não apenas por representação:

Aqui no Brasil eles acabam não tendo voz, sendo representados pelas ONGs e governos. Este é um momento de organização entre refugiados e migrantes árabes, africanos e latinos, para que dentro dessa Frente possamos nos informar sobre a situação política do outro (Registro de campo, Junho 2016).

Para os membros da FIRI era importante deixar clara a necessidade de se criarem “novas formas de representação sobre a questão migratória”. Para Regina, uma jovem luso-brasileira portadora de um Visto Permanente, é necessário mostrar a parte positiva, construtiva, artística e cultural dos migrantes, deixada de fora na cobertura de grandes meios de comunicação: “Achamos por bem criar outro espaço midiático, prioritariamente audiovisual, para dialogar sobre as comunidades migrantes de forma geral. Se a grande mídia se recusa a dizer que isso está acontecendo, nós vamos criar um canal para mostrar” (Registro de campo, Junho 2016).

Soube posteriormente que, mesmo estando em viagem à Bolívia, Jobana, militante boliviana e integrante da Equipe de Base Warmis, havia deixado uma mensagem de união e articulação entre migrantes e refugiados:

Queremos ser vistos como sujeitos políticos, capazes de nos organizar, colocar nossas pautas e posicionamentos. Acreditamos que juntos, sim, somos mais fortes, e que nossa diversidade cultural nos enriquece e fortalece como Frente. Nosso papel é importante para visibilizar a causa de migrantes e refugiados (MIGRAMUNDO, 2016).

Os festivais, seminários e rodas de conversa promovidos frequentemente por grupos de refugiados e imigrantes a partir de 2015, dirigiam-se de modo específico à autorrepresentação e reconhecimento. Em um contexto de visibilização dos imigrantes e refugiados a partir dos “problemas” que padecem ou geram, os debates, as apresentações musicais e até as comidas, eram apresentadas com orgulho como meios de aproximação cultural e como formas de valorização da presença imigrante para além dos discursos hegemônicos. Esses eventos aconteciam com relativa frequência e poucas vezes contavam com autoridades do governo ou das congregações religiosas. Organizados pelos próprios imigrantes, eram convidados, principalmente, outros refugiados e imigrantes, músicos, artistas e intelectuais que puderam falar a partir da sua própria experiência migratória. No período que esteve em campo, os eventos trataram especialmente da situação de violência da República Democrática do Congo e da Palestina.

Vítimas de perseguições em seus países de origem e de situações de precariedade no Brasil, refugiados e imigrantes expunham suas visões sobre os conflitos em seus países de origem assim como no Brasil. Tentando reverter as condições de poder, frente a eventos similares realizados em prédios públicos ou de congregações religiosas, os refugiados e imigrantes sentiam-se cômodos para expressar suas críticas:

Como funciona hoje o tema da ajuda aos refugiados? Funciona assim, se tenho muita roupa sobrando na minha casa, vou dar para os refugiados, aí o cara chama a imprensa e tira uma foto entregando roupa aos refugiados. Um dia um cara me ligou e me falou: - “Kamel tenho muita roupa” - “Sério?”, eu falei “Para fazer o quê?” - “Para dar para os refugiados”, me diz. As pessoas gostam muito de dar roupas e dar dinheiro às ONGs que ajudam os refugiados, mas quando vem um refugiado na rua, eles atravessam para o outro lado porque confundem com um delinquente (Registro de campo, Julho 2016).

As ações e falas desses refugiados e imigrantes transformavam-se nesses contextos em recursos políticos que traziam à cena pública não apenas as experiências de dor - tanto nos seus países de origem, como no Brasil - mas novos projetos e formas de realizá-los. Além disso, existia um “convite” para que a rede de “apoiadores” - incluída a academia - repensássemos nosso próprio papel num processo de múltiplas desigualdades. O que tenho observado nos eventos a que assisti, assim como em outras experiências acompanhando as atividades e outras cenas da vida cotidiana das pessoas do GRIST é que a crítica ao trato recebido pelas organizações humanitárias é acionada conjuntamente com o rechaço a serem representados apenas a partir do sofrimento e da vulnerabilidade.

O fato dos eventos incluir bandas de música, comidas e roupas típicas além dos debates e rodas de conversa é fundamental porque há uma ressignificação constante das fronteiras culturais e identitárias, assinalando seus posicionamentos diante das desigualdades e levando adiante ações específicas para promover mudanças num contexto de desigualdade.

Isso implica refletir sobre a intencionalidade envolvida nos projetos artísticos do Grupo de Refugiados e Imigrantes Sem Teto (GRIST), mas também sobre as relações de poder e desigualdade no qual essas ações acontecem.16 Nesse sentido há que se lembrar, tal como assinala Malkki (1996), que inclusive as representações visuais convencionais associam os refugiados à carência, à invisibilidade, ao vazio e à falta de voz. Argumento que, a partir de práticas musicais e artísticas, esse grupo de refugiados e imigrantes encontrou ferramentas para levar adiante um projeto coletivo tendente à transformação de imagens negativas que pesam sobre as populações deslocadas e, ao mesmo tempo, uma forma de participação política e cidadã. Em outras palavras, considero que para além da proposta de autorrepresentação, essas manifestações - desde rodas de conversa sobre a situação de guerra na República Democrática do Congo até apresentações musicais em bares e restaurantes, passando por palestras em bibliotecas e instituições educativas - contribuíram para a modificação dos significados de categorias como “cidadania” e “participação política” estimulando a construção de representações mais plurais e menos estereotipadas sobre os imigrantes e refugiados.

Entretanto - e longe de ser um fato isolado - a crítica e até a denúncia do tratamento recebido por amplos setores da sociedade brasileira (ONGs, empresários, governos, pesquisadores, mídia) nos fala de movimentações significativas em cenários complexos: entre experiências particulares de mobilidade internacional e a construção de um projeto coletivo, entre sofrimentos no lugar de origem e sofrimentos no país de “acolhida”, entre formas de visibilidade e formas de participação. Os refugiados e imigrantes que lutam por seguir adiante numa cidade como São Paulo, interpelam-nos assim sobre os significados particulares dessa condição de mobilidade: falam tanto da necessidade de problematização dos discursos sobre refugiados e imigrantes quanto dos lugares onde esses discursos são produzidos e, assim, diante de representantes de ONGs, governos e pesquisadores, dizem alto e claramente: “não somos objetos”.

Este é, portanto, o cenário de fundo em que refugiados e imigrantes do GRIST vêm construindo suas próprias formas de participação política. Um cenário complexo, caraterizado, além das próprias dificuldades de viver numa cidade como São Paulo, pela precariedade das condições de vida, de trabalho, de moradia e pela falta de reconhecimento de documentos oficiais. Um cenário no qual o reconhecimento formal do status de refugiado coexiste com múltiplas invisibilidades e formas de exclusão que inclusive se inscrevem no âmbito simbólico. Assim se num nível mais geral há, por um lado, um intento por parte do governo de posicionar o Brasil como um país “acolhedor” e com uma tendência “natural” a receber “bem” a todos os que chegam de fora, por outro lado, há inúmeras tensões relacionadas com a criação e execução paradoxal de políticas públicas dirigidas a refugiados e imigrantes.

BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS

A imagem de um imigrante negro, com estudos universitários, trabalhando na administração pública e instando à organização política dos imigrantes para efetuar suas próprias demandas e mostrar outra imagem além da “miséria” não parece ajustar-se à imagem do imigrante pobre que somente aparece em fóruns, seminários e audiências públicas para pedir ajuda. Também não parece adequar-se à imagem do refugiado que, temendo por sua vida, apenas precisa da intervenção “humanitária”.

No seu trabalho O Índio Hiper-Real, Alcida Ramos (1995) já alertou sobre os descompassos entre figuras burocratizáveis feitas à imagem de ONGs e ativistas brancos e pessoas de “carne e osso”, pessoas “reais”. Continuando com esta ideia, Stephanie Mc Callum (2012) chama a atenção para a criação de um refugiado hiper-real na Argentina, cujo temor pode ser aprendido, classificado e comprovado e cuja condição de vítima requer assistência urgente e por parte de organismos estatais e não governamentais (MCCALLUM, 2012, p. 44). Creio que no caso dos imigrantes e refugiados chegados ao Brasil nos últimos anos, existe o risco de estar-se criando imigrantes e refugiados hiper-reais e burocratizáveis cuja condição de vítimas mobiliza a rede de apoio e os poderes públicos a tomar medidas “urgentes”.

A condição de vítimas tem sido bastante recorrente nos discursos de ONGs e também de organizações religiosas de ajuda a refugiados, solicitantes de refúgio e imigrantes. Além disso, imagens como a da fotografia que abre o segundo tópico formam parte do “imaginário do refugiado arquetípico” (MALKKI, 1996) como objeto de intervenção humanitária.

Não obstante, para muitos imigrantes e refugiados certas formas de oferecer ajuda produzem sentimentos de humilhação e desrespeito. É claro que a representação da vulnerabilidade no espaço público não é a causa do mal-estar experimentado por alguns migrantes. Não obstante, esta ajuda a consolidar uma imagem preconceituosa que coloca os migrantes apenas como pobres e vítimas que precisam da atenção humanitária.

Por último, quero destacar que não se trata aqui de questionar as ajudas aos imigrantes, muito menos as intenções dos ativistas que lutam pela defesa dos direitos dos migrantes. Trata-se, ao contrário, de mostrar alguns efeitos não esperados provocados pela construção moral da imigração. Como aprendemos com Fonseca e Cardarello (1999), a criação de uma “frente discursiva” - fruto da negociação entre diversos grupos de interesse trabalhando em torno de um mesmo tema - pode ser uma “faca de dois gumes”. Por um lado, fundamental para impulsionar o apoio político em bases amplas e eficazes, mas, por outro lado, propensa a reificar o grupo alvo de preocupações, nutrindo imagens que concorrem com a complexidade da realidade (FONSECA; CARDARELLO, 1999, p. 85).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Notas

1 Por razões de preservação da privacidade dos agentes, optou-se por fazer uso de nomes fictícios.
2 Cabe destacar que no âmbito municipal São Paulo conta com uma estrutura em matéria migratória formada pela Coordenação de Políticas para Migrantes no marco da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. Para aprofundar nas experiências da Prefeitura de São Paulo com imigração e direitos humanos advindas da criação da Coordenação de Políticas para Migrantes (CPMig) na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania (SMDHC), se recomenda o artigo da pesquisadora Beatriz de Barros Souza: “Pelos imigrantes: Experiências com Direitos Humanos e Imigração na Prefeitura de São Paulo (2013-2014)” na revista ARACÊ - Direitos Humanos em Revista, Ano 2, Número 3, Setembro 2015.
3 Por exemplo, a Prefeitura de São Paulo, disponibiliza - através do Centro de Referência e Atendimento para Imigrantes (CRAI) - um total de 690 vagas para imigrantes e refugiados distribuídas entre quatro centros de acolhida (Bela Vista, Bom Retiro, Pari e Penha) e um abrigo gerido por uma irmandade italiana ligada à Igreja Católica, chamado “Arsenal Esperança”.
4 Em termos gerais, se distingue entre a introdução de maneira forçada de cerca de quatro milhões de escravos provenientes da África, desde o século XVI até o século XIX, e a chegada de imigrantes livres de origem europeia, sobretudo de alemães e italianos que chegaram ao final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX atraídos pelo projeto colonizador do governo brasileiro. Uma vez encerrada essa etapa de atração no final dos anos 1930, entende-se que houve uma redução dos fluxos internacionais, os quais foram quase interrompidos com o início das hostilidades da Segunda Guerra Mundial. Desde então, embora outros grupos populacionais continuassem chegando, considerou-se que o Brasil era um país fechado à imigração em termos demográficos (Patarra, 2012, pp. 8-9).
5 Esta lei esteve vigente durante todo o tempo em que durou a pesquisa. Ela mudou em 2017. No dia 18 de abril de 2017 o Plenário do Senado aprovou a nova Lei de Migração. Posteriormente, no dia 25 de maio foi sancionada a Lei 13.445/2017 (Lei de Migração) que garante direitos de estrangeiros no Brasil e assistência a brasileiros que moram no exterior. De acordo com o informado pelo Senado, o presidente Michel Temer vetou 18 trechos do texto. Um dos principais foi o veto à anistia a imigrantes que entraram no Brasil até 6 de julho de 2016 e que fizerem o pedido até um ano após o início de vigência da lei, independente da situação migratória anterior. De acordo com a justificativa para o veto, o dispositivo concederia “anistia indiscriminada a todos os imigrantes”, retirando a autoridade do Brasil de selecionar como será o acolhimento dos estrangeiros. Informação disponível em: <http://www12.senado.leg.br/noticias/mate- rias/2017/05/25/nova-lei-de-migracao-e-sancionada-com-vetos>. Acesso em 27 out. 2018.
6 A Constituição estabelece a igualdade perante a lei de brasileiros e estrangeiros, sem distinção de qualquer natureza “garantindo a todos os residentes no país, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, e à propriedade” (Constituição Federal de 1988, Título II, Capítulo I, Artigo nº5).
7 O Brasil concedeu anistias em 1980, 1988, 1998 e 2009.
8 De acordo com a Lei 9.474 de 22 de julho de 1997 (Lei do Refúgio), são reconhecidos como refugiados quem: I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país (Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, Título I, Capítulo I, Secção I, Artigo 1º, Incisos I, II e III).
9 Documento provisório entregado pela Policia Federal depois da realizada a solicitação de refúgio.
10 Atualmente, ao examinar as estatísticas em matéria de refúgio no Brasil, constata-se que a evolução das solicitações de refúgio mudou significativamente a partir do ano de 2010. Se até esse ano as solicitações de refúgio não chegavam a 1.000, em 2015 superavam 28.000.
11 O artigo 1º da Resolução se estabelece que “ao nacional do Haiti poderá ser concedido o visto permanente previsto no art. 16 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, por razões humanitárias, condicionado ao prazo de 5 (cinco) anos, nos termos do art. 18 da mesma Lei, circunstância que constará da Cédula de Identidade do Estrangeiro. Consideram-se razões humanitárias, para efeito desta Resolução Normativa, aquelas resultantes do agravamento das condições de vida da população haitiana em decorrência do terremoto ocorrido naquele país em 12 de janeiro de 2010” (Resolução Normativa CNIg nº 97/2012-DOU: 13.01.2012, artigo 1º).
12 Tradução da autora.
13 Desde o mês de novembro de 2014 vários ônibus com haitianos e africanos foram enviados pelo governo de Acre para Porto Alegre. Esta questão preocupava ao Comirat e a rede de acolhimento que desde então se debruçava sobre qual seriam as estratégias de acolhimento.
14 Alguns dos programas que funcionam no Centro Vida são: “Pati” - Programa de Atendimento à Terceira Idade, concebido como um espaço de convivência e de fortalecimento da cidadania, através de atividades culturais, esportivas, artísticas, de promoção da saúde, educativas e de lazer. “Biblioteca e Telecentro”, um espaço de livros, revistas e jornais e do programa de inclusão digital com acesso à internet. “Atividades abertas”, atividades gratuitas de hapkido, ginástica rítmica e basquete, além de ser também um espaço para eventos onde se realizam torneios esportivos, feiras, seminários e reuniões comunitárias.
15 Declarações do ex-secretário Nacional da Justiça, Paulo Abrão, no jornal o Globo em 2011. <http://oglobo.globo.com/economia/crise-global-crescimento-do-brasil-fazem-numero-de-imigrantes-crescer-52-no-ano-superando-2-milhoes-3079211>. Acesso em 27 out. 2018
16 Para Sherry Ortner (2007) agência tem dois campos de significado. Em um campo de significado, “agência” tem a ver com intencionalidade e com o fato de perseguir projetos (culturalmente definidos). No outro campo de significado, agência tem a ver com poder, com o fato de agir no contexto de relações de desigualdade, de assimetria e de forças sociais. Para a autora, “agência” nunca é meramente um ou outro. Suas duas “faces” - como (perseguir) “projetos” ou como (o fato de exercer ou de ser contra) o “poder” - ou se misturam/transfundem um no outro, ou mantêm sua distinção, mas se entrelaçam em uma relação de tipo Moebius (Ortner, 2007: 58).
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