ARTIGO
Militâncias culturais em contextos de violência rotinizada na zona oeste do Rio de Janeiro, Brasil, e em Guerrero, México
Cultural activisms in routine violence contexts in the west zone of Rio de Janeiro, Brazil, and Guerrero, Mexico
Militâncias culturais em contextos de violência rotinizada na zona oeste do Rio de Janeiro, Brasil, e em Guerrero, México
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 25, núm. 2, pp. 112-127, 2018
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Resumo: O texto analisa militâncias culturais em contextos de alto grau de coerção e violência, onde atores armados se instalaram ostensivamente. Assume-se que tais espaços seriam adversos para os militantes, que, neste trabalho, são homens e mulheres de idades entre 19 e 29 anos. Empiricamente, abordaremos parte da Zona Oeste do Rio de Janeiro, no Brasil, e o estado de Guerrero, no sudoeste do México, semelhantes pela convergência de pobreza e violência. A hipótese principal do trabalho é de que a violência auxilia a compreensão da forma de militância. A fim de verificá-la, para além de uma pesquisa bibliográfica, foi realizada uma pesquisa empírica nos lugares supramencionados, a fim de traçar as bases comuns e divergentes das estratégias contestatárias desses militantes. Dessa maneira, foi possível constatar o quanto as opções de militância se organizam em resistências culturais mais ocultas por intermédio de pautas que não dizem respeito diretamente à questão da segurança pública e nem sempre são manifestadas como documentado pela literatura dos movimentos sociais.
Palavras-chave: Militância, Violência, Estratégias, Zona Oeste, Guerrero.
Abstract: This text analyses cultural militancy’s in highly coercive and violent contexts, where armed actors have ostensibly installed themselves. Those spaces are supposed to be adverse for militants that in this paper are man and women aged 19 to 29 years old. Empirically, we will address part of the West Zone of Rio de Janeiro, Brazil, and the state of Guerrero, in Mexico, similar in their convergence of high rates of poverty and violence. The main hypothesis guiding this paper was that violence helps understanding the forms of activism. To verify it, an empirical research in the aforementioned spaces was conducted, to verify common bases and divergences of the contentious practices of those activists and a bibliographical research was conducted. Therefore, it was possible to observe how activist options are organized in cultural resistances and more hidden through practices that do not directly address public safety and not always manifested as documented in social movements theory.
Keywords: Activism, Violence, Strategies, West Zone, Guerrero.
INTRODUÇÃO
O presente texto versa sobre a importância de considerar a violência como parte indissociável do cotidiano em regimes democráticos, em uma discussão que parte da experiência de ativistas no Brasil e no México. Essa preocupação advém de uma lacuna na teoria dos movimentos sociais, em sua abordagem da violência, que ora a toma como variável excepcional, abordando-a como um episódio localizado temporalmente (em um período revolucionário ou autoritário) ou espacialmente (em um determinado território). Desta feita, as análises sobre movimentos sociais frequentemente alternam entre a violência estatal, com seu aparato repressor ou sobre a ação violenta dos militantes, excluindo reflexões sobre outros atores e manifestações menos ostensivas de opressão.
Os sujeitos abordados nesse texto são jovens autointitulados militantes, termo cuja própria etimologia denota sua relação ambígua com a violência. Do latim militantia ou “servir como soldado”, amplamente difundido ao longo do século XX, após conflitos no campo da política contestatória, a noção teve uma incidência diferenciada, de acordo com os diversos contextos políticos. Exploraremos essa ambiguidade, informada pelo seu uso corrente na América Latina, mas também pela escola francesa de estudo dos movimentos sociais, que partilha da sua utilização, ao invés do termo “ativista” (activist) empregado pela literatura norte-americana.
Os militantes abordados estariam concentrados em coletivos culturais, atuando como fotógrafos, poetas e produtores culturais, em movimentos sociais localizados em periferias marcadas pela violência, onde grupos armados se instalaram de forma ostensiva. Nesse texto, a cultura será entendida como os princípios comuns que, associados às representações físicas criadas para expressá-los, são atribuídos como significado dado ao mundo (JASPER, 2016). O recorte empírico se situou na Zona Oeste do Rio de Janeiro, no Brasil, e em parte do estado de Guerrero, no México, em uma pesquisa de campo realizada entre os anos de 2012 e 2015.
Nesse texto serão abordadas as militâncias de ativistas vivendo em contextos de violência que, em suas manifestações, apesar de variarem em intensidade e configuração, serão doravante agrupadas como violência rotinizada. As atividades que desenvolvem esses jovens podem ser enquadradas como formas de a(r)tivismo (MONACHESI, 2003, NOSSEL, 2016, RHOADES, 2012, MOTTA E ALICE, 2017), em ações diretas incidindo em espaços públicos.
O artigo se divide em três partes. Na primeira, serão contextualizados os principais conceitos e conjunturas abordados, seguido de uma discussão sobre militâncias e violências, a partir da brecha na literatura dos movimentos sociais, junto ao debate sobre os atores armados presentes no Brasil e no México. Por fim, um argumento sobre como a cultura é empregada como forma de fazer política em contextos de violência rotinizada será mobilizado.
1. MILITANTES E MOVIMENTOS NA ZONA OESTE DO RIO DE JANEIRO E EM GUERRERO, NO MÉXICO
Nesse texto, os conceitos de militantes e movimentos sociais não são usados de forma indistinta1. O militante participa ativamente em um ou em vários movimentos, compartilhando disposições para a ação e uma socialização política para as lutas coletivas. Para MATONTI E POUPEAU (2004), tais sujeitos estariam inseridos em categorias concretas, recentes (imigrantes, sem teto) ou antigas, que conquistaram uma visibilidade inédita e que incluem o surgimento e a multiplicação de novas organizações e formas de ação. Por sua vez, os movimentos sociais serão, no presente texto, definidos como processos que buscam produzir mudanças no contexto político, nas condições socioeconômicas e na cultura, expressas tanto nas práticas simbólicas, como em suas condições materiais de produção e reprodução.
O recorte empírico desse trabalho foi uma região da zona Oeste do Rio de Janeiro, e o estado de Guerrero, no México, semelhantes em seus elementos estruturais e subjetivos, índices socioeconômicos, de pobreza e violência. A metodologia foi qualitativa, com vinte e sete entrevistas semiestruturadas, junto à observação participante e incursões etnográficas. Foram vinte militantes entrevistados2 no Rio de Janeiro e três em Guerrero, sendo quinze homens e oito mulheres3, entre15 e 29 anos4, engajados em distintos coletivos, frequentemente em mais de um, agrupados no que consideraremos aqui diferentes formas de militância cultural. Assim, tais jovens encontravam-se engajados em grupos de educação popular; movimentos culturais; comunicação comunitária; coletivos LGBT; feministas; movimento estudantil, e de hip hop. Na Zona Oeste do Rio de Janeiro residiam em Campo Grande, Senador Camará, Bangu, Santa Cruz, Realengo, Santíssimo, Paciência, Magalhães Barros e Guaratiba. Em Guerrero, no México, eram oriundos de San Luis Acátlan e Iguala. Os mapas abaixo situam os espaços pesquisados em seu contexto mais amplo, Rio de Janeiro, Brasil (mapa 1) e Guerrero, México (mapa 2).
Primeiramente, abordaremos a militância em frentes culturais em dois contextos distintos, um eminentemente rural e outro urbano, decorrendo em divergências importantes para a análise, a saber: suas formas de atuação territorialmente diferentes, que levam em conta a geografia, distância e possibilidades de deslocamento. No que tange à cultura, essa distinção ganha contornos importantes, devido à ausência de investimento em equipamentos e espaços públicos e à forma de mobilização dos sujeitos.
A Zona Oeste do Rio de Janeiro possui uma extensão territorial de 592,33 km2 e cerca de dois milhões de habitantes5. Além de uma ampla extensão territorial e densidade populacional, existem limitações impostas à militância pela atuação de grupos milicianos e altos índices de pobreza e violência estrutural, os mais elevados de toda a cidade. Ainda que seus bairros compartilhem de espaços de pobreza, essa não se observa de forma homogênea, com habitações de classe média e média alta junto às moradias precárias, características das favelas cariocas.
Os bairros dessa região aparentam uma dependência econômica e cultural de Campo Grande, o maior bairro da região, com cerca de 330 mil habitantes, como menciona Luis, de Paciência: “não tem opção de lazer, ainda são muito raras e segregadas. O bairro parou no tempo, não tem um banco, gira em torno de Campo Grande ou Santa Cruz, as pessoas acabam vindo mais pra Campo Grande, porque é um centro comercial maior”.
Já Guerrero possui uma extensão territorial de 63.794 km² e a terceira maior população indígena do México. No total, são 3 milhões e 388 mil habitantes (INEGI, 2010), 81 municípios, e sete regiões: Norte, La Montaña, Centro, Tierra Caliente, Costa Grande, Costa Chica e Acapulco de Juárez. A agricultura de subsistência é a maior atividade econômica da região e o estado ocupa o primeiro lugar no índice nacional de migração interna. O estado é um dos mais pobres do país, mas paradoxalmente rico em sua produção de minério e ouro. No que se refere ao nosso recorte empírico, La Montaña é um local de escasso saneamento básico.
Alguns eventos relativos à repressão no século XX são emblemáticos para os militantes de distintos movimentos nesse estado, como as mobilizações de 19686, que antecederam a Guerra Suja do governo contra os militantes e movimentos opositores, na década de 1960 e 1970 (SOLLANO, 2010). Nesse momento, houve uma ampla difusão de práticas estatais truculentas na região, que incluíram prisões arbitrárias, torturas e o desaparecimento forçado de pessoas, sobretudo com a acusação de associação com a guerrilha. Essa perseguição de estudantes, camponeses e outros inimigos do governo totalizou 332 desaparecidos e presos em Guerrero, de 532 em todo o México.
Passamos ao entendimento da militância em contextos de rotinização da violência no Brasil e no México, de maneira a melhor situar impedimentos provocados pelos atores coercitivos na região.
2. APONTAMENTOS SOBRE MILITÂNCIAS E VIOLÊNCIAS NO BRASIL E NO MÉXICO
Para entender a interseção entre militantes e violências é necessário antes refletir a partir de uma lacuna existente na literatura sobre movimentos sociais, que explorou parcamente os efeitos da violência nas mobilizações7. Atores armados, como narcotraficantes, agentes estatais e milicianos foram insuficientemente analisados, conquanto possuam uma grande influência na (des)organização das práticas militantes. A violência manifesta através do controle territorial, uso de armas ou ameaça e intimidação desvela os termos das disputas e o quanto são assimétricos os espaços públicos, além dos assuntos que podem ser tratados e que alianças podem ser feitas.
Essa interseção analítica deve ser considerada em categorias mais dinâmicas do que a repressão e a criminalização. Ainda que já existam análises que privilegiem contextos ditatoriais e mobilizações (DELLA PORTA; REITER, 1998 e ACSERALD, 2015), a violência permanente em regimes democráticos segue como uma lacuna relativa na teoria. Ainda assim, existem estudos sobre as periferias urbanas, examinando a organização da violência nas favelas no Rio de Janeiro (MACHADO DA SILVA, 2008), anunciando uma tendência no Brasil de análises que relegam à violência um atributo exclusivo de regimes autoritários ou, em menor medida, de favelas.
A repressão às mobilizações foi considerada tanto a partir de seus efeitos de reforço das mesmas (OLIVER, 1991; DELLA PORTA; REITER, 1998), quanto de sua supressão, que inclui a possibilidade das ações coletivas radicalizarem-se (GOODWIN, 2001; FILLIEULE, 2006). Movimentos e militantes violentos, por sua vez, devem ser considerados a partir de suas respostas à recusa estatal em restabelecer direitos retirados, que os levaria a infringir leis de forma violenta. Os repertórios desses movimentos incluiriam a depredação, confrontação física, construção de barricadas, conflitos com forças policiais, greve de fome, implantação de bombas, entre outros, utilizadas por um amplo espectro de militantes e movimentos.
É preciso analisar as especificidades do que entendemos como violência rotinizada na América Latina, mormente nos dois países considerados, Brasil e México, a partir de condições estruturais relativas à multiplicidade de atores associados à violência, e como esses impõem obstáculos aos movimentos e seus militantes. Assim, tanto as práticas quanto as dinâmicas mais amplas existentes nos territórios, como as diversas faces da violência, tornam-se rotinizadas.
Portanto, a análise sobre a rotinização da violência deve considerar tanto aspectos mais gerais e objetivos (como os índices de homicídios, sequestros, roubos ou desaparecimentos), quanto dimensões mais subjetivas (como o medo e a insegurança). Assim, combina-se a violência visível - manifesta na criminalidade urbana, na atuação do narcotráfico e em seus impactos em territórios periféricos, e a violência menos visível, que escapa aos dados mensuráveis pelo Estado central ao promover a internalização da violência através do medo e da emergência de códigos e práticas informais.
Assim, a ameaça e o medo são cruciais nesses contextos de alta “acumulação social da violência” (MISSE, 2008), impostos por atores como a polícia e grupos criminosos em configurações perversas. Desse modo, dentre as práticas coercitivas presentes nos territórios analisados, muitas derivam do aumento da “paramilitarização”, com as instituições estatais, como as forças armadas e a polícia atuando junto a organizações paramilitares. As milícias, no caso da Zona Oeste do Rio de Janeiro, enquanto concorrentes dos traficantes de drogas, em sua maioria, podem ser enquadradas nessa categoria.
O caráter antitético da violência não oculta o medo nem as práticas violentas e as cifras de desaparecimentos, torturas e assassinatos na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Campo Grande é o campeão no índice das delegacias que mais registram desaparecimentos no estado do Rio de Janeiro8 (ALERJ, 2008). Entre janeiro de 2004 e julho de 2008, por exemplo, 8 dos 17 bairros da região concentraram 85% de todos os homicídios dolosos registrados no município (MUSUMECI, 2009). Em 2016, a região liderava os índices de homicídios na cidade, com registro de aumento no número de mortes, entre janeiro e maio9.
Em Guerrero, são altos os índices de desaparecimentos forçados10, sequestros e assassinatos11. Entre os anos de 2012 e 2014, no governo de Enrique Peña Nieto (PRI), foram registrados treze desaparecimentos por dia12. Em 2014, as cidades de Acapulco e Iguala, no estado, foram consideradas os municípios com maior índice de desaparecidos do país (ILLADES, 2014). Ademais, Guerrero é campeã nos índices de homicídios dolosos no México, notadamente relativos à atuação de 22 grupos criminosos em seu território13. Com um índice de 37 homicídios por 100 mil habitantes, é o estado com maior presença de agentes armados - do exército e da polícia federal - no México, com mais de 10 mil integrantes lotados em seu território14.
No que tange a práticas e atores, é importante conceituar o narcotráfico em seu âmbito nacional e internacional, composto por fluxos de drogas ilícitas, dinheiro, e pessoas que atravessam fronteiras, funcionando como uma espécie de empresa ilícita transterritorial, tendo simultaneamente bases e atuação locais (produção e comercialização) e trânsito transnacional (RODRIGUES, 2012). O crime organizado reorganiza-se após o desaparecimento, prisão ou morte de seus líderes, sem implicar na abolição de sua estrutura.
Já as milícias combinam dominação territorial, venda de proteção, extorsão de moradores e comerciantes e ameaças de violência. Sua definição mínima inclui a associação de policiais e ex-policiais, bombeiros e agentes penitenciários, partícipes de instituições estatais, com outros criminosos que afirmam proteger e garantir segurança a vizinhanças supostamente ameaçadas por traficantes. O tema adquiriu notoriedade midiática em 2006, segundo DUARTE E CANO (2012), com a denúncia de grupos vendendo proteção, a partir da cobrança de taxas a serem pagas pelos comerciantes e residentes, além de lucrarem com o controle monopolístico sobre diversas atividades econômicas exercidas nesses territórios, como a venda de gás, o transporte alternativo e o serviço clandestino de TV a cabo. Na Zona Oeste, esses grupos, segundo MUNIZ (2007), atuariam em substituição ou em complementaridade ao policiamento público deficitário ou negligente na região.
Nos últimos anos cresceu a aliança entre a milícia e o tráfico de drogas ligada à tentativa de não desaparecerem de alguns espaços, como resultado da CPI de 200815 que investigou a ação de alguns grupos milicianos de alta projeção. Ademais, estes estão presentes em mais de 170 áreas do estado do Rio de Janeiro, e eram anteriormente conhecidos como “polícia mineira”, surgidas no bairro de Jacarepaguá, na década de 1970, compostas por policiais ou ex-policiais contratados para proteger comerciantes (sobretudo na Baixada Fluminense), e formando grupos armados para combater o tráfico de drogas, como agentes de segurança paraestatal.
A exploração econômica das populações desses bairros é crucial em sua atuação, e baseia-se na exploração de serviços ilegais e na cobrança de taxas específicas em locais valorizados por sua tranquilidade, nos quais o tráfico de drogas a varejo é o seu referente oculto.
3. CULTURA COMO POLÍTICA EM CONTEXTO DE VIOLÊNCIA ROTINIZADA
O ativismo de alto risco (MCADAM, 1986) se apresenta como uma forma de fazer política nos contextos abordados, um fino equilíbrio entre fatores estruturais e individuais para o engajamento na militância. Para esse autor, algumas militâncias seriam mais arriscadas que outras, sendo necessário considerar a ideologia e o movimento no qual se inserem como variáveis intervenientes. Ainda assim, a noção parece excessivamente enfocada no sujeito, desconsiderando a teia de relações em que este encontra-se envolvido.
Conquanto relativamente imprecisa, essa noção nos guia pelo panorama dos contextos abordados nesse texto. Em Campo Grande, Matheus16 afirma que “nossa ação vai até determinado ponto, até o ponto em que a milícia deixa. A partir de um ponto a gente começa a correr risco de vida e fica muito complicado por conta do medo”. A restrição imposta pela territorialização de espaços residenciais segregados por traficantes de drogas afeta os militantes dessas áreas (SOUZA, 2008; 2009), impactando no cerceamento da liberdade e nos empecilhos criados para movimentos sociais. Parece vigorar uma “lei da mordaça”, que impede a elaboração de trabalhos prioritários. Nas favelas, por exemplo, os líderes de associações comunitárias justificam ou amenizam a coação sofrida pelos traficantes, por exemplo, impedindo a “constituição de públicos que se sintam concernidos e se mobilizem na definição de problemas a serem tratados como prioridades e publicamente” (FREIRE, 2008, p. 171).
Os militantes, nesses contextos, reinventam suas formas de ação, ao perceberem a discricionariedade estatal nos bairros em que vivem. Dessa forma, Carla17, em Guaratiba, afirma “as pessoas não saem em Guaratiba. Se elas querem sair pra ir a algum lugar de lazer, elas vão pegar uma condução, próximo da sua residência não existe esse espaço”. Já Laura18, em Senador Camará, comenta: “não existem bibliotecas na Zona Oeste, nenhum lugar assim onde podemos só pegar um livro”. Ainda que existam bibliotecas comunitárias em alguns desses espaços, é importante considerar que, dado o baixo poder aquisitivo da maioria da sua população, as opções culturais oferecidas são distintas daquelas disponíveis nas zonas centrais da cidade. A ideia principal do a(r)tivismo nesses contextos parece ser a mudança da relação dos jovens com seus espaços a partir da arte, redimensionando um certo “monopólio da cultura” dos grandes centros (GONÇALVES, 2017).
Os militantes entrevistados coexistem com grupos armados, como as milícias, e elaboram estratégias que se adaptam à organização político-institucional que rege esses bairros, seja por uma via legal/institucional, ou “por fora” dos canais oficiais. Assim, os partidos políticos e as associações de moradores são importantes de serem levados em consideração na análise, ainda que os candidatos a cargos públicos sejam encarados com desconfiança por parte dos militantes da Zona Oeste - já acostumados com a presença ostensiva dos políticos em época de campanha. Para Ruth19, em San Luis Acatlán, Guerrero, “é importante saber em quem confiar nas assembleias, não queremos que eles apareçam aqui só pra virem como candidatos depois”.
Os militantes na Zona Oeste dialogam frequentemente com o Estado pelo financiamento das ONGs atuantes na região, e pelos escassos apoios às iniciativas locais. Isso implica em um relativo direcionamento da agenda para ações que não abordem o tema da violência e segurança pública, ao passo que a militância cultural é frequentemente apoiada financeiramente.20 Assim, esse engajamento em iniciativas culturais, que não enfrentam a situação da (in)segurança pública local tem sido comum na região junto à formação de grupos de educação popular que buscam trabalhar a partir da realidade política dos educandos.
Outras atividades encontradas no contexto são cine-clubes, oficinas de poesia, saraus culturais, entre outras. Em Guerrero, desde o desaparecimento dos 43 jovens de Ayotzinapa, é realizado um festival de grafite e poesia chamado Resiste Iguala. Ademais, performances culturais em espaços de alta visitação, como o palácio Belas Artes, como demonstra GONZALEZ HERNANDEZ (2017), são mais frequentes no México desde esse episódio, uma inflexão política mexicana contemporânea. Outra estratégia relatada foi o deslocamento geográfico e a ações em territórios distintos aos de sua moradia. A militância nesse estado recorre a ações consideradas violentas, como o bloqueio de estradas e a ocupação de edifícios públicos.
O mais recorrente em Guerrero são as rádios comunitárias, um importante veículo para a militância cultural, tendo aparecido na década de 1970, promovendo a construção de meios de comunicação próprios, com programas educativos e culturais definidos pela comunidade (GASPARELLO, 2012). A maioria dessas rádios funciona sem licença, dado que a legislação mexicana para a sua atuação só outorga concessão a rádios comerciais e permissões, na maioria das vezes, para universidades e organismos governamentais. A população se mobiliza a partir de chamadas telefônicas, essenciais nas zonas rurais mexicanas, desafiando o isolamento geográfico e alcançando comunidades mais isoladas onde outros meios de comunicação não chegam.
Na rádio comunitária Cabañas21 (na região da Montaña, onde me instalei), os pedidos por músicas e notícias são feitos na língua indígena mixteca e em castelhano, um dado importante tendo em vista os altos índices de analfabetismo local, tornando a comunicação oral mais eficiente. A promoção da comunicação nas comunidades estimula a reflexão teórica e a capacitação prática, através de atividades como vídeo, imprensa, rádio e teatro populares, dinamizando as redes de movimentos locais (DOIMO, 1995).
O estado de Guerrero possui uma alta presença de efetivos militares, iniciado na década de 1970, com o pretexto de combater a guerrilha. Um dos efeitos dessa ostensiva ocupação militar, para PANSTERS (2012), é sentido pelos militantes, quando se controla militarmente a contenção, que implica, em termos práticos, na dificuldade de distinguir a força empregada para combater o crime organizado da dissuasão e repressão dos movimentos sociais. O estado foi recentemente alçado a um dos maiores produtores mundiais de amapola22, aumentando os perigos para os militantes e para a população, cada vez mais cerceada.
Finalmente, os militantes culturais seguem uma certa internacionalização dos movimentos, buscando em redes transnacionais uma estratégia de publicização segura, de denúncia e atenção internacional que não implique na retaliação local de suas causas (ROVIRA, 2009). Dessa forma, o intenso diálogo estabelecido entre as organizações locais com organismos internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA), e com a Organização das Nações Unidas (ONU), somado às redes transnacionais de apoio, parece ser uma estratégia importante para a sobrevivência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O brutal assassinato da parlamentar Marielle Franco, no centro do Rio de Janeiro, em 14 de março de 2018, evidencia algumas das dinâmicas violentas de quem ousa enfrentar-se com os poderes armados na cidade, quer em sua institucionalidade, pela violência policial, quer em suas formas ilegais e paralegais. Dessa maneira, o texto buscou desvelar algumas das características das militâncias culturais, dentro do que convencionamos chamar de a(r)tivismo, em contextos de alta conflitualidade, nos quais a maioria dos problemas experimentados por seus moradores não pode ser veiculado abertamente, devido à falta de segurança e a extorsão imposta pelo tráfico de entorpecentes.
A militância em coletivos culturais aparece para os jovens nos contextos trabalhados como uma saída menos vigiada, mas de grande importância para a discussão dos problemas vividos nessas regiões, uma maneira alternativa de falar sobre problemas relativos à violência. Afinal, o enfrentamento que implica a resistência direta ao narcotráfico tem de levar em consideração os severos riscos de vida em jogo. Opor-se ao narcotráfico implica, por exemplo, obstaculizar suas extorsões e atingi-los economicamente, atitudes perigosas nesses territórios.
A proeminência das rádios comunitárias, no caso mexicano, dimensiona a importância para as redes militantes de mobilizarem seus vizinhos, ao mesmo tempo que a articulação com ONGs e organismos multilaterais explica parcialmente a visibilidade global adquirida por casos como o de Ayotzinapa. A inserção das pautas locais em redes de solidariedade internacional aparece como visivelmente mais consolidada em Guerrero do que na Zona Oeste carioca.
Ainda assim, o medo constante vivenciado pelos militantes nessas regiões, por trazerem à luz detalhes das configurações entre o legal e o ilegal no território onde vivem, é retrato de um panorama mais amplo de desmobilização. As análises sobre os movimentos igualmente devem atentar para expressões menos visíveis de organização, para que possam enxergar manifestações culturais que denunciam opressões relativas ao narcotráfico, por exemplo.
No Brasil, Araújo (2012), relata a experiência do Tribunal Popular, um esforço de alguns anos de construção de um espaço político de formulação de críticas políticas capazes de mobilizar atores políticos contra a violência estatal e por justiça, a partir de denúncias públicas, com análises, depoimentos orais, vídeos, peças de processos jurídicos, para, simbolicamente, julgar os crimes cometidos pelo Estado. O Rio de Janeiro, nessa experiência, foi apresentado como parte de um laboratório militar, ainda que na zona Oeste da cidade, particularmente, não existam ativismos, ao menos aparentemente, que abordem direta e ostensivamente a violência policial e miliciana, como acontece em outras regiões de menor presença de grupos milicianos.
Assim, nessas novas formas de fazer política mediadas pela violência foram diversas as adaptações encontradas, individuais ou coletivas, como uma busca pela invisibilidade e, ao mesmo tempo, visibilidade em suas ações - com atos públicos, reuniões e distribuição de panfletos, por exemplo - que sob o pretexto de algum assunto aceitável, podem introduzir discussões consideradas inaceitáveis, como as relativas à violência.
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Notas