Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
A cidade está em falência: viva a cidade! Entrevista com Morten Nielsen
Derek Pardue
Derek Pardue
A cidade está em falência: viva a cidade! Entrevista com Morten Nielsen
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 25, núm. 2, pp. 169-181, 2018
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
resúmenes
secciones
referencias
imágenes
Carátula del artículo

ENTREVISTA

A cidade está em falência: viva a cidade! Entrevista com Morten Nielsen

Derek Pardue
Universidade de Aarhus, Dinamarca
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 25, núm. 2, pp. 169-181, 2018
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Morten Nielsen é professor de Antropologia Social da Universidade de Aarhus, na Dinamarca. Um viajante, teórico e aficionado pela questão urbana, Morten aprecia a tempestuosa dinâmica da cidade como algo que gera seu próprio conhecimento. Financiado por organizações dinamarquesas e internacionais, Morten Nielsen tem realizado pesquisas de campo em Moçambique, Brasil, Escócia e Estados Unidos ao longo dos últimos quinze anos. Seu foco são questões ligadas à temporalidade, materialidade, cidadania, política urbana com relação ao acesso à terra, formação do estado-nacional, governabilidade formal/informal, arquitetura vernacular e as cosmologias políticas. Ele foi diretor da Coleção Etnográfica do Moesgård Museum, em Aarhus. Além disso, Morten fundou a URO (http: / uro. au.dk/), uma plataforma transdisciplinar para estudar participação cívica e design colaborativa da/na cidade. A entrevista foi realizada nos dias 1 e 2 de maio de 2018. A ideia da entrevista surgiu depois de uma conversa que tivemos, antes, em uma reunião de planejamento do projeto URO em Aarhus. Na conversa a seguir, o leitor irá se deparar com uma série de questões, entre elas os motivos de investigar, hoje em dia, a questão urbana e quais as formas possíveis de se engajar com a cidade. Para além disso, há uma discussão muito interessante sobre as dificuldades de definir, hoje, termos como “cidade”, espacialidade, temporalidade e globality.

Revista PluralMuito obrigado por ter aceitado o convite de conversar um pouco com a Revista Plural. Minha primeira pergunta é sobre seu background. O que levou você a explorar as questões urbanas dentro das ciências sociais?

Morten Nielsen Ok, perfeito. Podemos dizer que houve duas trajetórias simultâneas que me levaram ao problema da cidade. Foram, de fato, pontos de inflexão, pontos que mudaram meu percurso e me levaram a tomar decisões em um certo sentido. Um ponto é algo que pode ser considerado separado da parte empírica dos meus estudos. O outro vem da própria materialidade das minhas pesquisas em termos de localidade e geografia.

Com relação ao primeiro, meu interesse pela cidade começou com a estética da moradia (housing aesthetics). Eu me interessava pelas áreas mais pobres da América Latina. Eu me focava nas configurações das casas e na precaridade que elas articulavam. Tinha, também, um fascínio pela simultaneidade de estruturas massivas de classe média, em lugares com São Paulo, Brasília, mas também Recife, onde eu acabei me instalando por um período. Então, a primeira coisa que me chamou a atenção foi a relação entre as estéticas das casas e as relações de poder. Isso foi no fim dos anos 1990. Na academia, pelo menos aqui na Dinamarca, a nível de graduação, tudo girava em torno de Michel Foucault nessa época. Acho que li tudo que havia sido publicado em inglês. Eu era um geek total. Realmente, para mim, esse período constituiu uma espécie de nascimento intelectual. Tudo girava em torno da questão do poder. Eu caminhava pela cidade procurando esse negócio de simultaneidade, de táticas locais e de estratégias gerais - sabe, a noção de Foucault que você poderia ter essas estratégias gerais de poder como a manifestação de hierarquia, como uma estruturação da sociedade.1 E isso se expressa a nível de estratégias. A nível do cotidiano, existem as táticas que sustentam a configuração geral do mundo social, por exemplo, por intermédio das relações familiares e de parentesco, nas configurações da vida doméstica e do bairro. Então, há esses dois níveis que o filósofo francês chama de “estratégias” e “táticas”.2 E eu tinha uma obsessão de estudar isso. Então, quando comecei a pensar na estética da casa, pensei imediatamente nas relações de poder subjacentes. Como é possível reproduzir essas estéticas de moradia sem ser reprimido pelo aparato do Estado? Isso me interessava quando eu era, ainda, um aluno de graduação. Honestamente falando, eu não tinha tanto interesse nas particularidades da cidade local, nem no lugar geográfico em si. Eu estava pensando mais conceitualmente sobre essas coisas, pois queria encontrar um lugar que pudesse caber na ideia de poder de Foucault.

Revista PluralPois bem, então você não se interessava pela materialidade, apenas pelas relações de poder?

Morten Nielsen É como se eu andasse com duas pernas diferentes. Uma perna era esse interesse por Foucault, sua noção de dispositivo, sua conceituação de poder que não se baseia, apenas, nos discursos que construímos sobre verdade e conhecimento, mas também na materialidade da vida social. Edifícios, hospitais, prisões, etc. Tudo isso estava representado por uma perna. E a outra perna era uma influência que estava na moda na Dinamarca naquela época, que era a Actor Network Theory. Sabemos que um dos elementos fundamentais dessa teoria é que qualquer manifestação social se expressa na interface entre pessoas, coisas e ideias. Na minha mente, eu achava que havia uma conexão entre essas duas linhas de pensamento. Eu queria investigar as redes através das quais essas forças de poder se impunham e pelas quais as áreas mais pobres da cidade, como as favelas, apareciam como manifestações dessas configurações de poder. Em outras palavras, alguém poderia perguntar: se a favela é uma expressão específica de poder, que tipo de poder é esse? Depois, uma das minhas colegas, que na época era uma das minhas professoras, Anne Line Dalsgaard, que você também conhece, trabalhava nas periferias de Recife. Foi ela que me indicou a cidade e me guiou por Recife. Foi ela quem me abriu os olhos para o brilho da América Latina e, também, para o universo incrível que essas cidades manifestam.

Meu primeiro projeto, então, foi sobre a reprodução de lideranças de bairro durante uma época que era especificamente tensa no Brasil. Lembrando que isso foi antes da emergência, em termos de hegemonia, do Partido dos Trabalhadores (PT), a nível federal. O PT estava no poder, apenas, a nível municipal, como em Recife. O que era interessante para mim era que havia vários líderes locais, que foram socializados em um contexto de assistencialismo e clientielismo, em um ambiente onde o poder era pessoal, relacional e informal. E, de repente, eles precisavam navegar nesse novo mundo de orçamento participativo e participação cívica - todo esse jargão, que sugeria uma nova era política. E os líderes locais estavam posicionados nessa transição na qual eles não estavam mais totalmente próximos da política local, daqueles que os apoiavam financeiramente, socialmente e politicamente. Ao mesmo tempo, vários deles realmente acreditavam nessas novas ideias que emergiam da nova posição que o PT passou a ocupar no espectro político nacional. Então, eu me focava nesse double-bind, ou seja, nesse negócio moral que estava acontecendo. Meu primeiro projeto foi sobre isso.

Minha trajetória na África Subsaariana ligada a questões de moradia e de temporalidade resultou, também, de uma época específica de minha vida acadêmica. Foram os anos de 2004-05; na Europa, pairava um forte discurso de “anticorrupção”. As instituições de financiamento, também na academia, desenvolveram rapidamente esse discurso de “tolerância zero”. Esse discurso teve uma influência tremenda nas pesquisas em ciências sociais. Por exemplo, o fundador da ONG Transparency International se tornou um guru para muitas organizações cívicas e agências nacionais no mundo inteiro. Mas, baseado nas minhas pesquisas na América Latina, eu queria problematizar esse discurso de tolerância zero, porque eu havia observado que as operações consideradas maléficas de um novo discurso de poder era um pilar da vida política local e, de fato, poderia ser considerado produtivo na transição a uma nova realidade na América Latina. Então eu queria desafiar a definição de “corrupção”.

Revista PluralOk, mas como esses questionamentos levaram você à África Subsaariana?

Morten Nielsen Vou explicar. Francamente, eu fico um pouco envergonhado em admitir que eu não considerava a região em si, sua localização geográfica. Eu não olhava para o lugar. Antes disso, eu pensava o tempo inteiro sobre as questões analíticas relacionadas com a situação. Na época, eu tinha interesse em temas como corrupção, moradia, acesso à terra, informalidades e transações informais de terras. Mas o que aconteceu na prática foi que eu apresentei essa ideia a uma agência dinamarquesa e eles me disserem que estava tudo fascinante e que a pesquisa tendia a ser significativa. Aí, eles me falaram que eles apoiariam o projeto se eu fosse a Moçambique. Eu concordei. Uma vez em campo, passei a descobrir várias outras coisas que me interessavam. Iniciei meus trabalhos em um bairro novo na periferia de Maputo, que nos meus textos é chamado Mulweni, que na verdade significa “menino de rua”. Obviamente, o nome do bairro é outro na vida real. O que é particularmente curioso sobre esse bairro é o timing. Mulweni mudou totalmente depois de devastadoras enchentes que aconteceram em 1999 e no começo de 2000. Os novos moradores de Mulweni vinham não somente de áreas metropolitanas de Maputo, mas também de outras regiões do país. Então, um bairro que tinha cerca de 100 famílias cresceu para até 40.000 habitantes em 3 anos. E o que chamou muito a atenção, na época, foi o imaginário, isto é, as aspirações de futuro dos moradores, os desejos ligados a esse espaço urbano.

O que aconteceu, depois, foi que o governo moçambicano passou a ver essa situação como uma oportunidade de mostrar ao mundo suas capacidades restaurativas. Eles declararam que iriam criar um bairro modelo de uma maneira eficiente com a ajuda de doadores internacionais. Mas, quando os institutos financeiros percebiam que as pessoas locais não estavam morrendo de fome, etc., eles gradualmente tiravam seus times do campo. O resultado foi uma utopia futura chamada Mulweni, um bairro modelo, uma promessa, mas sem recursos para realizer-se enquanto tal, para concretizar-se enquanto sonho. Em princípio, os recursos eram para os sobreviventes das enchentes; no entanto, rapidamente, muita gente percebeu que isso representava uma oportunidade de ter acesso a um pedaço de terra - uma propriedade barata e onde estava em vias de consolidação uma megaoperação de urbanização.

De fato, o que o governo não conseguia fazer os moradores faziam por eles próprios. A questão na perspectiva dos migrantes, dos novos moradores, era como conseguir os documentos de uma maneira informal para si próprios e para suas famílias, caso o governo chegasse a os acusar de estarem ocupando uma propriedade ilegalmente. Então, a ideia era construir uma casa que parecesse pertencer ao bairro modelo imaginado. Entretanto, é necessário lembrar que ninguém sabia exatamente como seria esse bairro modelo, porque não havia nenhum blueprint de fato. Tudo girava em torno do imaginário. Eles sabiam que deveria ser algo “urbanizado”, “formalizado” e “planejado”. Por intermédio de uma série de transações informais entre arquitetos, agrimensores, moradores antigos e oficiais, um acordo foi aos poucos emergindo. Então, o que ninguém conhecia se realizou. Imagine, você, um fiscal do governo indo até o bairro e vendo uma casa toda construída, arrumada e planejada. Ele imediatamente pensa: “isso é uma coisa que nós poderiamos ter construído. A gente não fez, mas poderíamos ter feito. Vamos deixar esse pessoal aqui em paz”.

Revista PluralGrande história! Isso me faz pensar em uma trajetória que foi resultado de uma convergência de ideias sobre o urbano, uma convergência de formas materiais e ideológicas…

Morten Nielsen Sim, exatamente. Nesse sentido, para concluir esta parte, me deixe complementar com o seguinte: o conceito que eu desenvolvi para capturar esse processo que eu narrei foi inverse governmentality (governamentalidade inversa). De alguma forma, eu acabei voltando para o meu ponto de origem, mas de forma avessa. Foucault escreveu que a “governamentalidade”3 é a vontade de ser governado. Mas, o que é interessante aqui é que tudo parece se expressar de forma invertida. Há uma configuração informal de moradores, que por meio de práticas sem aparente coordenação desenvolvem uma forma precisa de governo, que eles oferecem ao governo “formal” com a seguinte mensagem: “por favor, use isso para nos governar”. E isso aconteceu concretamente. Eu percebi isso de forma direta. Eu estava no bairro procurando um blueprint, porque tudo parecia tão organizado e bonitinho que pensei: “alguém deve ter arquitetado isso tudo”. Porém, depois de seis meses, eu percebi que ninguém tinha feito nada. Foram os próprios moradores. Aí, voltei à prefeitura e finalmente achei alguns blueprints e descobri que eles foram produzidos informalmente depois das transações já terem sido realizadas. Então, algum arquiteto esboçou algo, em acordo com os potenciais moradores. Ele foi pago por um antigo propietário (sem recibo), que queria vender toda a sua terra. O documento parecia ter sido registrado como algo totalmente formal. Aí, um potencial novo morador que chegasse na prefeitura e falasse que queria comprar o lote 3B, “a prefeitura daria o ok” e lhe mostraria esse blueprint. A mensagem seria que o poder público usaria aquele modelo para “governar” aqueles futuros moradores. E eles concordaram com isso, afinal todo mundo queria aquilo.

Revista PluralTendo em vista essa experiência, como você definiria, hoje, a categoria “cidade”? Obviamente, há amplas discussões dentro da antropologia, da sociologia, dos estudos culturais e urbanos. Mas como se poderia defini-la em termos básicos e mais ou menos comuns?

Morten Nielsen De fato, trata-se de uma categorização difícil. Poderíamos voltar à Escola de Chicago nos anos 1930 e refletir um pouco sobre isso. Para eles, a cidade ou a urbanidade constituía uma série de aspetos sociológicos do mundo social, tais como o tamanho, a densidade e a heterogeneidade demográfica de determinada população. Setenta anos depois deles, temos acadêmicos escrevendo que a cidade é tudo e que ela está em todo lugar. De uma definição precisa chegamos a uma postura tão vaga. Eu entendo a frustração nos dias de hoje. Mas voltando a sua pergunta, talvez seria interessante começar com Doreen Massey e sua ideia de throwntogetherness4 (“lançado à convivência”). Ela fala sobre uma série de conexões fragmentadas, um processo contínuo de fazer e desfazer entre o humano e o não-humano em constelações de trajetórias múltiplas, organizações invisíveis e afetos infraestruturais. É uma mescla de operações que, na verdade, não se constituem tal qual o esperado. Voltarei ao conceito de throwntogetherness daqui a pouco.

Antes, gostaria de dizer que, para mim, responder à sua pergunta - o que é a cidade, ou o que é o urbano - não sugere que comecemos com a Escola de Chicago. Para mim, devemos começar com a Escola de Manchester. Eles queriam entender o contexto urbano na África Central. Os pesquisadores da Escola de Manchester queriam estudar esses contextos urbanos que estavam sendo cada vez mais caracterizados por funções instáveis, normas instituicionais e conexões fragmentadas, que não podiam ser entendidas mais em termos de parentesco e filiações tribais. Naquela época, havia os adeptos do funcionalismo-estrutural, que iam ao campo e diziam: “este é o mundo, esta é a cosmologia. Agora eu sei como funcionam estas pessoas, porque eu defini a estrutura que explica seu mundo”. Ok, mas os membros da Escola de Manchester estavam trabalhando nessas cidades onde havia minas (mining cities), onde tinha gente de tribos diferentes chegando em um contexto urbano; o que eles observavam não cabia mais no paradigma clássico do funcionalismo. Isso, porque alguns membros da tribo tomavam decisões e agiam de formas diferentes de sua função, classicamente falando. Então, esses pesquisadores se focavam nos parâmetros ou nas coordenadas da situação. Eles se baseavam no chamado “aqui e agora”. E a inspiração dessa abordagem situacional, que depois virou o approach do case study, que depois iria ainda resultar nos estudos de conflitos urbanos, veio de psicólogos sociais que descobriram que nossas reações instintivas eram condicionadas pelo ambiente. Se o funcionailismo produzia um entendimento holístico, agora a ideia era que nós precisávamos levar os fatores circunstanciais em consideração. Mas, para fazer isso, você não poderia conceber as coisas de uma maneira atemporal, porque era a dinâmica das práticas contínuas, particularmente o contraste entre entendimentos normativos diferentes, que definiam o objeto do estudo.

Foi assim que emergiu o case-study approach, o método do estudo de caso. O que me irrita bastante são as pessoas que acham que esse método é sinônimo de pesquisa de campo etnográfica, ou seja, que bastaria apenas entrar em campo e realizar estudos de caso. Mas, na verdade, o estudo de casos é uma metodologia específica designada para lidar com essas tensões temporais e esses contrastes normativos que podem ou não ser encontrados em campo. Há uma sensibilidade analítica direcionada às negociações constantes desses elementos. Em minha experiência, a partir do momento em que percebi que esse método se alinhava com os fatos que ocorriam em Moçambique, na época, com os aspetos de transformações sociais, situação que parecia estar sendo “lançada à convivência” (throwntogether), ativada no futuro, me pareceu que a lógica da Escola de Manchester fazia muito sentido.

Então, para mim, a cidade constitui exatamente conflitos contínuos de topografias temporais. A cidade é a intensificação desses conflitos normativos. Ela é o resultado de uma desestabilização de orientações temporais.

Revista PluralSe a cidade pode ser entendida como encontro de lógicas variadas, os detalhes do contexto têm que ser destacados na análise. Estou certo? Se sim, então me parece que essa descrição está próxima de uma definição de globalização, de processos globais ou globalidade (globability). Sua definição de cidade ajuda a entender o momento atual da globalização?

Morten Nielsen Sim, definitivamente. Me deixe falar duas coisas sobre isso. O que estou falando é uma configuração espaço-temporal. Nós precisamos pensar assim: a cidade é o contexto que de uma maneira mais produtiva permite que essas configurações espaço-temporais operem no ponto de quase falência. Isso, porque elas estão sendo influenciadas, afetadas, afrontadas pelas dinâmicas que a elas se opõem. Isso pode ocorrer em termos de uso de terra ou nas próprias normas sociais, ou pode ser as orientações gerais do indivíduo na cidade. Há uma intensificação contínua de orientações socio-espaciais na cidade; mas o que é singular na cidade é que ela sobrevive justamente desses contrastes. Veja bem, há muitos antropólogos e sociólogos hippies, e eu sou um deles, que gostam de falar das potencialidades e produtividades, ou melhor, das virtualidades da cidade. Mas, temos que apreciar e entender como a cidade opera por meio de seus contrastes, das oposições, das distinções, dos destacamentos, dos vãos, das frestas, das ausências, das desconexões. A maioria dessas forças constituem a maquinação da cidade em si. Há vários outros espaços, nodos, lugares no mundo onde isso não seria verdade.

Agora, essa realidade cheia de contradições pode ajudar a entender a global city? Eu imagino que você se refere indiretamente à formulação de Saskia Sassen.5 Bom, se eu entendi bem, ela fala basicamente que as cidades são nodos específicos e especialmente intensos de produtividade. E por serem tão intensos, podemos extrapolar nossas análises e captar alguns dos mecanismos do sistema global. As cidades são, portanto, uma intensificação de um network mais amplo. Eu entendo o trabalho dela dessa forma. Isso representa um aspeto crucial e relevante em nosso entendimento, mas não é muito útil no objetivo de entender as dinâmicas particulares sobre o que realmente acontece na cidade. Para tanto, eu acho que a gente precisa utilizar o termo “vernáculo urbano”. Isso significa que a cidade gera suas próprias categorias analíticas, sua própria teorização. Minha sugestão não se limita a pensar a cidade de uma maneira bottom up, de baixo para cima. O que quero dizer é que a cidade é capaz de gerar suas próprias formas analíticas, sua teoria. Eu publiquei sobre isso com AbdouMaliq Simone6, em um capítulo no qual tratamos de descrever isso usando a frase “universalismo limitado”. Isso se aplica, por exemplo, à estética da moradia. Se voltarmos ao primeiro exemplo que dei em Moçambique, o bairro modelo, é possível dizer que os moradores estavam articulando uma hipótese de cidade. Eles falavam que o que estavam a fazer era exatamente cidade. Estavam a construí-la. Essa inverse governmentality é uma espécie de ordenação e planejamento do urbano. Porém, não é suficientemente forte para dominar o urbano em si, porque existem os conflitos. Para entender isso, o conceito de “cidade global” me parece limitado. Atualmente, na África Subsaariana, há uma presença forte de agentes internacionais. Os turcos, chineses, brasileiros, indianos… estão todos por lá. Para entender isso, podemos incorporar a ideia de cidade global à de “vernáculos urbanos”, porque temos que ser inseridos em uma heurística analítica, claro, mas sempre atentos aos detalhes, às nuances.

Revista PluralAcho interessante a ligação entre sua trajetória profissional e seu desenvolvimento teórico sobre a cidade. E faz mais sentido porque você sublinha tanto a ideia de tensões quanto de auto-organização em suas análises.

Morten Nielsen Sim, de fato. Me deixe só acrescentar que isso pode ser atribuído a uma leitura criativa que eu fiz da Escola Manchester. O jargão daquela época não permitia que eles articulassem isso nesses termos. Se você for ler “The Seven Year Plan”, de Max Gluckman,7 você ira encontrar muitas ideias em comum com o grupo atual que escreve sobre reflexibilidade urbana.

Revista PluralSua explicação, acho eu, é interessante para os leitores verem alguém que escreve sobre cidades contemporâneas e desenvolve teorias vanguardistas, que abertamente dialoga com uma vertente “clássica” da antropologia e da sociologia urbana. Leituras novas, inovadoras de textos mais velhos. Isso também provoca uma reflexão sobre a ideia de urban orders, que a organização da cidade seja algo sempre tensa, que sempre necessita de conflitos para ser realizada. Ordem e desordem são inseparáveis, aqui. Eu acredito que essa entrevista possa ajudar os leitores a entenderem, por exemplo, projetos como a rede de pesquisa URO (uro.au.dk) que você coordena na Aarhus University, na Dinamarca.

Morten Nielsen E você sabe que “uro”, em dinamarquês, significa exatamente “desordem” ou “agitação”.

Revista PluralSim. Por isso acho que pegar esse link e conversar mais diretamente sobre o tema principal desse dossiê, “Direito à Cidade”, slogan famoso de Henri Lefebvre, que nos últimos anos têm se tornado uma expressão popular e chamado a atenção de intelectuais como David Harvey8e Michel Agier - além de vários políticos em contextos diferentes no mundo. Então, qual é a sua perspetiva sobre esse jargão? Qual utilidade ele teria nos dias de hoje? Quais são as limitações dele como uma orientação teórica ou metodológica? Finalmente, essa frase tem alguma resonância em um lugar como a Dinamarca, onde as cidades, pelo menos superficialmente, foram planejadas de uma forma mais igualitária?

Morten Nielsen Primeiramente, a noção de “direito à cidade” é um conceito central nas ciências sociais. É crucial, a nível do conceito de “classe”, em Marx, ou de “hegemonia”, em Gramsci. É uma dessas ideias que, na época, embora criada a partir de um neologismo, depois ganha vida e substância próprias, sendo inclusive incorporada em um léxico mais geral da população. Além disso, algumas vezes, esses termos acumulam uma força de intervenção na realidade muito evidente. Na minha opinião, este é o caso do “direito à cidade”. Pierre Bourdieu disse que o conceito de “classe”, depois de ter sido formulado como ferramenta teórica, foi utilizado por segmentos da população. Ou seja, o termo atua tanto na dimensão da análise quanto na do ativismo. Um conceito parecido com o “direito à cidade” seria “99 per cent”, de David Graeber. Todos esses conceitos têm em comum a qualidade de serem ferramentas para transformação reflexiva política.

Revista PluralE você acha que essas qualidades fazem com que um conceito como “direito à cidade” seja parte de discursos tão variados como academia, política e sociabilidades?

Morten Nielsen Sim, estamos todos envolvidos no jogo. Para mim, a mensagem de Lefebvre era que o “direto à cidade” aponta para uma aglomeração de forças, que ativa essa configuração entre o indivíduo e a cidade como um veículo potente de transformação. Não é somente uma expressão de cidadania, mas também agrega o contexto que deve estar presente para essa transformação ocorrer. Ou seja, que a transformação deve acontecer a nível individual e da cidade simultaneamente é um insight que nos ajuda a entender a cidadania urbana, os acessos, privilégios, por conta da simultaneidade.

Meu problema com o “direito à cidade” começa quando ele é utilizado como uma teoria, quando um ativismo acadêmcio usa esse conceito como forma de dimensionamento entre universal e particular. O “direito à cidade” nos provoca, nos apresenta uma pergunta sobre o acesso de recursos aos mais marginalizados, mas ele não nos oferece as ferramentas necessárias para entender as particularidades de cada problema. Para fazer isso, precisamos nos focar nos vernáculos. Um exemplo: em Maputo, temos um contexto pós-socialista e absolutamente neoliberal, onde o partido no poder é o mesmo de quando o país adotava uma postura organizativa socialista. O socialismo como um sistema colapsou, mas ele existe como discurso, sobretudo quando pessoas precisam de acesso a recursos básicos. Essa expressão vernacular não poderia ser entendida se você dependesse só do mote do “direto à cidade”.

Revista PluralTalvez seja nesse espaço empírico que a sociologia e a antropologia possam contribuir para a geografia e a ciência política. O que acha? Identificar os vernáculos, os mecanismos específicos e locais?

Morten Nielsen Sim, a contribuição das disciplinas que entram em campo se dá nesse espaço. Vivemos uma época interessante. No passado, a antropologia urbana estava mais distante, menos engajada com a questão urbana. Vejo uma reaproximação em relação aos informantes; vejo uma aproximação em termos de linguagem, de discurso, das expressões locais sobre moradia, tempo, espaço, etc. Por exemplo, em Moçambique eu tenho feito muitas anotações de como meus interlocutors gerenciam o tempo, especificamente o futuro. Quando eu pergunto: “qual é a previsão do seu projeto de construir uma casa?”, e o cara me responde, com certeza absoluta, que vai terminá-la dentro de cinco anos. Certeza. Mas ele utiliza uma maneira, um mecanismo, que existe em algumas línguas bantus, que indica que provavelmente isso nunca vai acontecer. Não se trata de um tempo verbal subjuntivo ou algo assim. É uma sutileza, que compõe um vernáculo próprio daquela cultura. O ponto não se limita à linguística. E se eu uso essa ideia local do futuro como uma ferramenta de análise, um conceito filosófico? A etnografia gera teoria. Há vários autores que estão fazendo isso (AbdouMaliq Simone, Filip de Boeck, entre outros). É esse tipo de abertura que se necessita, uma flexibilidade de deixar a cidade e seus agentes criarem sua própria teoria, que é uma possível consequência da noção de “direito à cidade”.

Revista PluralEu gostaria de ressaltar uma parte da pergunta. Usando todas as suas reflexões empíricas e teóricas baseadas na sua experiência de campo em Moçambique, você poderia aplicar a mesma reflexão à Dinamarca e a cidades como Aarhus e/ou Copenhague?

Morten Nielsen Um dos motivos principais que me inspirou em fundar o Urban Orders Research Center foi um resultado de minhas pesquisas em Moçambique: a ideia de que a cidade é uma entidade auto-organizadora. Quais são as formas organizadoras existentes em Aarhus, por exemplo? Sabemos que hoje há várias conversas e planejamentos sobre a área Gellerup, que na Dinamarca é definido como um “gueto”. Gellerup é um grande projeto habitacional na periferia de Aarhus. A questão é que Gellerup precisa ser atualizado; ou melhor, sua infraestrutura precisa. Na Dinamarca os grupos cívicos da comunidade são mais fortes que os donos. Então, afirmar isso não é “direito à cidade”; isso é o ponto de partida, a base. A negociação começa aqui. Direitos e vozes já estão em jogo. O que é difícil é decifrar as diferenças de interesses. Diferente do que acontece em Maputo, em Aarhus as linhas de oposição são embaçadas. Porém, na Dinamarca tem a frente empresarial, as megaempresas imobiliárias que podem entrar em cena, apagar tudo e construir algo sem considerar os grupos de interesse já estabelecidos.

Revista PluralGostaria de fazer uma última pergunta, Morten. Vamos conversar um pouco sobre seu processo de escrever. Você já fez uma certa referência nesse sentido anterioramente, em outros textos. Alguns termos são criados e acumulam poder pelas formas em que são usados e pelas instituições que os utilizam. Nós, escritores, estamos sempre pensando em formas de expressar aquilo que observamos, para contribuir nos debates que achamos serem cruciais para a sociedade. Nesse sentido, dependemos em grande escala da língua, da palavra. Você é um escritor que abusa dos neologismos, inventando palavras ou gerando novos sentidos de termos banais ou marginalizados. Por exemplo, você e AbdouMaliq Simone recentemente publicaram um artigo utilizando as realidades de Jakarta e Maputo para discutir a “cidade genérica”. Além disso, você, particularmente, tem escrito muito sobre o “olhar patafísico”. Pois bem, o primeiro termo parece não possuir nenhum valor crítico (genérico), o outro, literalmente, refere-se ao absurdo. Gostaria de ouvir seus pensamentos sobre seu estilo de escrever e suas ligações com a argumentação.

Morten Nielsen Mais recentemente eu tenho desenvolvido parcerias como essa com AbdouMaliq. Estamos escrevendo um livro atualmente com o título Lurking is the Background. A prosa do AbdouMaliq sempre me chamou a atenção. Para mim, é fundamental desenvolver sua própria voz, na prosa e na teoria. E para fazer isso é importante sempre manter a ligação com o lugar, com Jakarta ou onde quer que seja. Manter o pulso do lugar. Eu chamo minha estratégia de escrita de “teorização lateral”, que é um distanciamento mínimo, a uma distância curta da realidade concreta. Na verdade, eu pego emprestado algumas ideias e conceitos de outros autores e reformulo-os em forma de teoria, que talvez possa servir em um outro lugar. Pelo menos esse processo permite que eu lance um olhar mais comparativo. Podemos usar o exemplo de “genérico” - da “cidade genérica”. Esse termo capta a ideia de que a cidade pode gerar sua própria teorização. Entretanto, queríamos manter a “bagunça” (messiness) que vem da realidade empírica dentro do conceito. A história com o “olhar patafísico”, por sua vez, vem de um autor do século XIX que queria desafiar a metafísica, não de fora, mas utilizando o próprio discurso dela. Ele escrevia com o vocabulário e a lógica metafísica de uma maneira tão exagerada que se tornou absurdo. Adotei esse espírito experimental em minha escrita. Na verdade, eu vejo isso em vários humoristas. Eles exploram a lógica de políticos, por exemplo, exploram até um ponto em que a legitimidade do discurso acaba e a gente dá gargalhadas. É uma hiperversão da categoria ou do próprio sistema.

Revista PluralPerfeito! Muito obrigado, Morten, pelas respostas e também por ter aceitado esse convite de conversar comigo sobre sua trajetória, seu trabalho institucional, suas colaborações e seu modo de pensar as várias questões estéticas e políticas que rondam o urbano.

Material suplementar
Notas
Notas
1 Cf., sobretudo: Foucault, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2009.
2 Para Michel Foucault e Michel De Certeau, “tática” é a expressão cotidiana que revela uma estratégia correspondente. Para Foucault, a tática reforça a estratégia; por outro lado, para De Certeau, a tática revela, mas não necessariamente a reforça. Sobre isso, cf., sobretudo: De Certeau, Michel. The Practice of Everyday Life. Berkeley: University of Califronia Press, 1984.
3 Cf. Foucault, Michel. “Governmentality”. In: Burchell, Graham; Gordon, Colin; Miller, Peter (Orgs.) The Foucault Effect: Studies in Governmentality. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1991, p. 87-104.
4 Morten se refere a um conceito que foi trabalhado no seguinte capítulo: Massey, Doreen. “Throwntogetherness: the politics of the event of place”. In: For Space. London: Sage, 2005, p. 149-162.
5 O autor se refere à obra: Sassen, Saskia. The Global City. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991.
6 Cf.: Nielsen, Morten & Simone, AbdouMaliq. “The generic city: Examples from Jakarta, Indonesia, and Maputo, Mozambique. In: Harvey, Penelope; Jensen, Casper Bruun; Morita, Atsuro (Orgs.) Infrastructures and Social Complexity: A Companion. London: Routledge, 2016, p.128-140.
7 Cf.: Gluckman, Max. Seven-Year Research Plan of the Rhodes-Livingstone Institute of Social Studies in British Central Africa. Rhodes-Livinsgtone Journal, n. 4, p. 1-32, 1945.
8 A referência, aqui, é aos seguintes textos: Harvey, David. Rebel Cities: From the Right to the City to the Urban Revolution, New York: Verso, 2013; e Agier, Michel. Do direito à cidade ao fazer-cidade: o antropólogo, a margem e o centro. Mana, Rio de Janeiro, n. 21(3), p. 483-498, 2015.
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por Redalyc