Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


MOVIMENTOS SOCIAIS, PARTIDOS POLÍTICOS E ANÁLISE DE REDES: uma entrevista com Ann Mische
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 22, núm. 1, pp. 131-141, 2015
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Ann Mische possui bacharelado em Filosofia pela Universidade de Yale, com Mestrado e Doutorado em Sociologia pela New School for Social Research. Suas áreas de interesse se concentram na Sociologia da Cultura e dos Movimentos Sociais. Seus trabalhos são referência para quem pesquisa a partir da Sociologia Relacional e da análise de redes. Atualmente, é professora de Sociologia e de estudos de conflito e paz no Kroc Institute for International Peace Studies e no Departamento de Sociologia da Universidade de Notre Dame, em South Bend, Indiana, nos Estados Unidos.

A socióloga norte-americana desenvolveu sua tese doutoral que analisou a participação de movimentos sociais e redes de jovens na luta pelo impeachment, em 1992, com orientação do professor Charles Tilly. Depois, elaborou a tese em um livro mais extenso e detalhado sobre redes de movimentos juvenis no período da redemocratição, intitulado Partisan publics: communication and contention across Brazilian youth activist networks. Nessa obra, Mische trata da relação entre associações cívicas e partidárias entre jovens brasileiros, durante os anos de transição e reconstrução democrática, examinando, para tanto, as afiliações múltiplas de ativistas. Isso ajudou a entender os diversos tipos de lideranças políticas, sobretudo por meio da análise de redes, interpretativa e histórica. O livro foi publicado em 2008, pela Princeton University Press, e obteve menção honrosa de melhor obra em Sociologia Política da Associação Americana de Sociologia, em 2009.

A professora Ann Mische esteve no Brasil a convite do Laboratório de Pesquisa Social (LAPS) do Departamento de Sociologia da USP e ministrou a conferência “‘Vem pra rua, mas sem partido’: ambivalência partidária e a reconfiguração do ativismo no Brasil”. A entrevista a seguir foi realizada no dia 04 de agosto de 2014 e se atém à sua trajetória acadêmica, sua pesquisa no Brasil e à atualidade dos movimentos sociais no país.

Revista PluralComo você começou a se interessar pelo Brasil como objeto de estudo? E como foi sua experiência de pesquisa nos períodos em que esteve aqui?

Ann Mische Eu sou de uma família com experiência de trabalho na América Latina, meu pai foi um dos fundadores de uma organização de famílias católicas laicas que ajudaram a construir cooperativas em comunidades pobres, em vários países da América Latina, nos anos 1950 e 1960, muito influenciado pela Ação Católica e pela Teologia de Libertação. Eu realizei minha graduação em Yale e trabalhei com jovens em New Haven. Depois de terminar minha graduação, eu queria fazer algo diferente na Pós-Graduação. Então, ganhei uma bolsa de estudo do Institute of Current World Affairs, que financia jovens para se engajar na vida e cultura de determinado país por dois anos, escrevendo sobre as experiências de modo jornalístico. Eu queria estudar a juventude e a educação. Até então, tinha lido Paulo Freire e possuía alguns questionamentos sobre a aplicação de suas teorias para a juventude. Fiquei quase três anos no Brasil, estudando jovens, educação e movimentos sociais. Comecei a fazer alguns cursos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e descobri o movimento de educação na zona leste. A partir desse momento, comecei a visitar escolas na zona leste e me engajei com o pessoal do movimento pró-grêmio (secundaristas) - isso foi em 1987/88. Na época, estava tudo junto: os movimentos populares, sindicato, partido (sobretudo o PT) e igreja. Com toda essa mobilização nos bairros, eu me engajei e mudei para a Vila Prudente. Também fiz um trabalho com a Pastoral da Juventude no Ermelino Matarazzo. No período, escrevi algumas reflexões sobre o que estava sendo realizado nas escolas pelo movimento de educação, sobre o movimento secundarista e sobre a Pastoral da Juventude. Esses três anos se constituíram como período superinteressante no Brasil, pois eu estava em São Paulo durante a Constituinte e a campanha da Luiza Erundina. Ninguém pensava que ela iria ganhar, mas de repente ganha, e o PT assume a liderança de uma das maiores cidades do mundo. Nesse momento, estava frequentando as aulas de Paulo Freire, nas quais ele fazia uma releitura da obra Pedagogia do oprimido. Logo no início da gestão, Paulo Freire foi chamado para ser secretário municipal de educação, e então nossa aula acabou no meio do semestre. A partir dessas experiências, fiquei interessada pela questão das redes densas e entrelaçadas1 entre movimento popular, partido, sindicato e igreja que interagiram na zona leste de São Paulo, naquela época. Eu achava que havia várias tensões e problemas, mas também um dinamismo político muito forte.

Em 1990, eu voltei a Nova Iorque para fazer Pós-Graduação na New School for Social Research e comecei a trabalhar com Charles Tilly. De 1994 até 1996, voltei para o Brasil para fazer a pesquisa de doutorado, que focalizava as mudanças nas políticas da juventude e no movimento estudantil, com uma abordagem de redes, enfatizando a diversificação das redes das políticas da juventude. Durante esse período, passei muito tempo com um pessoal da UNE e com a Pastoral da Juventude do Meio Popular da zona leste. Era um trabalho empírico e participativo, indo a muitas reuniões de diversos grupos de jovens e estudantes. Eu apliquei um survey sobre as trajetórias dos militantes, inserindo a perspectiva histórica.

Minha dissertação foi sobre a questão do impeachment. Eu não estava aqui em 1992, eu voltei em 1994, mas, como o impeachment era bem recente, as lideranças eram as mesmas. O livro Partisan public é sobre o período mais longo da reconstrução democrática, desde o final dos anos 1970 até os anos 1990. Depois do impeachment havia um fluxo de jovens revitalizando o movimento estudantil, e isso tornou a política tradicional mais complexa. Na primeira vez que eu estive no Brasil foi mais jornalístico, na segunda vez foi mais pesquisa formal. Na segunda vez, como eu já tinha as redes, as ideias e conhecia bastante gente, então, a pesquisa ficou mais fácil, porque eu já tinha os vários contatos com pessoas que já confiavam em mim, interessavam-se pela pesquisa e sabiam que eu não era da CIA (que era importante para transitar no ambiente militante).

Revista PluralVocê estudou na New School of Social Research. Na época, a New School era profundamente marcada pela presença intelectual de Andrew Arato, Charles Tilly e outros estudiosos notáveis. Qual era, precisamente, o ambiente intelectual e o que ele representou para sua pesquisa?

Ann Mische A New School foi um lugar fantástico. Inicialmente, eu não sabia que iria trabalhar com Charles Tilly; eu nem sabia quem ele era. Eu fui estudar na New School porque eu percebia que era bem filosófico e teórico. No final dos anos 1980, Ira Karznelson (da ciência política) era o diretor da Graduate Faculty da New School. Ele trouxe Charles Tilly, Ari Zolberg, Talal Asad, Agnes Heller, Andrew Arato e José Casanova. Então, era um clima muito rico, com altos debates teóricos. Uma das principais tensões era entre a ala normativa - os teóricos habermasianos, como Andrew Arato, José Casanova e Seyla Benhabib - e a outra ala, dita mais histórico-empiricista - com base no Center for Historical Studies (CHS). Na New School eu fiz disciplinas clássicas, mas também gostava de vários movimentos emergentes na Sociologia da cultura - eu li bastante o Bourdieu. Existia uma discussão muito interessante entre Gramsci e Bourdieu. Eu lia Bourdieu do ponto de vista dos movimentos sociais, do poder simbólico e da contestação. Nós discutíamos sobre o ponto de interação entre Bourdieu e Gramsci, tentando renovar a praxis e a hegemonia. Tilly e Arato não estavam discutindo isso, eram os estudantes, e principalmente os estudantes de América Latina. Existia um grupo muito forte oriundo da América Latina, alguns de meus colegas eram Leonardo Avritzer, Javier Auyero, Aldo Panfichi e Alberto de Oliveira. Existiam altas discussões entre a questão de abordagem política de Gramsci e Bourdieu contra Habermas - havia debates fortes entre Auyero e Avritzer, entre outros. Eu aprendi muito com essa discussão de teoria social, porém, quando fui fazer a pesquisa, eu queria fazer uma pesquisa empírica mesmo. E achei que o Tilly foi a melhor pessoa para fazer essa orientação. Minha abordagem utilizava um pouco mais de Sociologia da Cultura e de Teoria Social do que o Tilly. Eu e mais alguns outros alunos, a exemplo de Javier Auyero, ajudamos a trazer essa discussão para o Tilly. Nós ficávamos nos questionando sobre o estruturalismo do Tilly, e ele acabou indo para a cultura pelo caminho do relational realism2. Essa discussão com o Tilly foi super interessante.

Meu livro é reflexo dessa discussão, o que é visível no quadro analítico que montei utilizando Habermas, Gramsci, Dewey e Maquiavel. Eu utilizei esses autores não apenas como modelos teóricos, mas como modelos de práticas políticas. Eu cheguei nesse quadro durante a pesquisa. Quando eu conversava com as lideranças estudantis de todas as forças políticas, analisando os debates, percebia que eles não tinham tanta diferença de projeto político, o que eles tinham eram diferenças de estilo. Então, eu começava a conversar com os jovens sobre os “três chapéus” do movimento estudantil: o habermasiano, o gramisciano e o maquiaveliano (o Dewey só entrou depois). E os jovens sabiam exatamente o que eu estava querendo dizer com isso. Eles sabiam, entre as lideranças, quem era habermasiano, gramisciano e maquiaveliano. Uma vez, eu fiz essa mesma pergunta para uma das lideranças da UNE, do PCdoB, que eu entrevistei, e ele ficou um pouco irritado porque achava que eu estava denegrindo o Maquiavel, que estava colocando Maquiavel pelo fundo. Ele insistiu que tudo estava ali no Maquiavel. Realmente o Maquiavel é brilhante. O entrevistado insistiu que não existe uma divisão absoluta entre projeto político ideológico e a luta pelo controle do aparelho do poder e as alianças que tinham de fazer. No meio da pesquisa, fiquei refletindo sobre o quadro analítico e cheguei à conclusão de que precisava incluir o Dewey junto como os outros três, para reconhecer certo pragmatismo refletivo e comunitário que vi em alguns setores, como a Pastoral da Juventude e as executivas de curso.

Esse quadro realmente saiu do ambiente intelectual da New School, porque havia o Richard Bernstein, que era um filósofo do pragmatismo do Dewey, Talal Asad, que era gramisciano, os habermasianos, como o Arato, e a visão mais estratégica do Tilly. Para mim, esse quadro era um tipo de síntese, mas com expressão clara na política de juventude no Brasil. Nas brigas do movimento estudantil, eu estava vendo que o PCdoB era acusado de ser maquiaveliano; a esquerda do PT criticava a direita do PT por falta de coerência ideológica (quer dizer, por ser insuficientemente gramsciana); e a direita do PT criticava a esquerda do PT por rigidez ideológica (faltando diálogo habermasiano). Então, eu percebi que essas disputas eram sobre como eles entendiam a prática política e não era apenas um modelo abstrato do processo político que eles avaliavam como certo ou errado. Era como se eles se dissessem: “Agora eu vou fazer política partidária, então eu vou fazer manobra tática, ser Maquiavel”; “Agora vou fazer política estudantil de curso, então vou fazer a decisão por consensus, ser mais Habermas ou Dewey”. Alguns jovens possuíam mais habilidade com certas práticas, vindo da trajetória: se o jovem vem da igreja, possui capacidades e habilidades diferentes dos que entram pelo partido político. Assim, meu livro reflete muito os debates da New School, bem como o que eu via na prática em reuniões, congressos e assembleias de que eu participei na época.

Revista PluralSabemos que seu livro foi muito premiado. Gostaríamos que você falasse um pouco da pertinência da obra atualmente e como você vê a crítica da Sociologia norte-americana em relação à sua pesquisa. Lembrando que no debate da época você queria trazer o debate da cultura para o estruturalismo de Tilly.

Ann Mische Na verdade, o grupo com o qual eu mais me identifico é o que está trabalhando a cultura em relação com a teoria da ação e de performance. Tanto Charles Tilly quanto Jeffrey Alexander estavam trabalhando com performance, embora de modos bastante diferentes. Assim, comecei a trabalhar a ideia de performance, levando o conceito de repertório (de Tilly) para uma análise dos estilos de comunicação. Pego mais uma linha que é do Goffman e também de outros, como Nina Eliasoph, Paul Lichterman e Francesca Polleta, que têm novas tentativas de teorizar o processo cultural-interativo nos espaços cívicos. Eu acredito que há estrutura, mas a estrutura vem na história e se incorpora na prática política. Estrutura para mim vem nas competências e nos discursos que são levados pelas pessoas (que são participantes), mas as estruturas são ativadas ou não dentro desses ambientes (setting). Inclusive, eu vejo o Goffman nesse sentido, o que não é o mesmo que os collective action frames, que são analisados nos estudos de movimentos sociais. Goffman aponta como é que sinaliza dentro de um ambiente (setting), qual é o assunto desse ambiente, dentro dessa caixa de ferramentas (toolbox), o que é que a gente escolhe dentro dessa interação. Mas isso não vem do nada, vem da história, é estrutural, vem do discurso, das experiências, dos hábitos que vão sendo ativados em uma perspectiva de futuro. Eu acho que o livro entra nesse diálogo, não de negar o estruturalismo, mas de chamar as estruturas, que também são estruturas discursivas, para a ação.

Também há outra intervenção agora, sobre a questão da relação entre movimentos e partidos políticos. A teoria do movimento social está apenas começando a pegar a questão dos partidos. Há um volume recente de Jack Goldstone que toca na questão de partidos, Estado e movimentos3. Existe esse recente ciclo mundial de protestos, em que a relação com o Estado e o repúdio forte ao partidarismo e às instituições políticas é muito tematizado. Eu tentei pegar essa dinâmica desde os anos 1980, e agora é uma temática que está surgindo nos movimentos recentes. Nesse histórico, pegando as tensões entre partidos e movimentos, o livro pode ajudar a entender esse ciclo atual.

Revista PluralQuais são as diferenças entre essas duas retóricas: apartidaristas ou antipartidaristas. Por que essa tradição antipartidarista e como ela se relaciona com os protestos que você presenciou aqui, em 2013?

Ann Mische Eu estou tentando refletir sobre isso desde junho de 2013. Na introdução de meu livro, há uma história de um protesto pró-grêmio na zona leste de São Paulo. O que eu analisei nesse protesto foram três tipos de antipartidarismo. Era o antipartidarismo da juventude despolitizada indo pela primeira vez para um ato do movimento pró-grêmio. Eles não gostavam de partidos, de modo geral. Segundo, o pessoal do PT que estava organizando esse ato também usava um discurso anti-partidário, porque não queria que o pessoal do PcdoB fizesse discurso no evento. Por que eles não queriam? Acredito que não era simplesmente uma questão de competição, porque esse grupo do PT era o pessoal do movimento popular de base e queriam um movimento autêntico de base, de conscientização. E não queriam que “esses vanguardistas” [do PCdoB] viessem instrumentalizar sua organização de base [do PT]. Eu vejo isso como paralelo ao autonomismo dos processos recentes, que está repudiando uma política que eles interpretam como manipulação dos grupos organizados de maneira vertical e centralizada. Terceiro, havia outro grupo no ato, gritando contra partidarismo, que era o pessoal do PMDB que queria acabar com o ato. Havia, então, o oportunismo da direita, o PT que estava tentando fazer um processo mais de base, e também havia a massa despolitizada que achava que a política partidária era coisa suja.

Ao fazer uma análise das manifestações de 2013, havia também um pouco de tudo: os que estavam com “saco cheio” de tudo, que não gostavam de partido, não gostavam de instituições políticas, não gostavam do Estado, mas queriam mais serviços públicos. Havia toda essa contradição. Então, havia os autonomistas de verdade que são esses grupos organizados, com articulações anarquistas, como o MPL e os outros que queriam certo tipo de horizontalismo radical, que também vem com um repúdio ao Estado, aos partidos e à política tradicional vertical hierarquizada. Há, então, uma presença da direita também, que vê nesse momento uma chance de avançar contra o PT e de incentivar as discussões antipartidárias, porque realmente achavam que iam tirar o PT do poder. Acho que nas manifestações do ano passado (2013) havia tudo isso misturado no discurso antipartidário. Essas são as semelhanças e as diferenças com as manifestações anteriores.

Revista PluralMas o que você entende por autonomismo radical?

Ann Mische O autonomismo vem do zapatismo, dos protestos do Seattle, dos Fóruns Sociais Mundiais e das experiências dos Black Bloc na Europa. Existe teorização recente de Michael Hardt e de Toni Negri4, os quais elaboram uma definição da “multidão”, que é uma celebração de autonomia desse movimento de massa, que é possível funcionar como uma fonte alternativa de poder, fora da lógica do Estado. Também há uma influência do modo habermasiano, em termos de certo tipo de romantismo do autonomismo da sociedade civil, a valorização dos processos de consenso, do diálogo e da deliberação na esfera pública.

Escuto a palavra “autonomia” e acho que é muito tensa e problemática. Por exemplo, o pessoal engajado no PT e nos movimentos populares da zona leste, nos anos 1980, sempre falava: “Temos que respeitar a autonomia dos movimentos!”. Observei que sempre que se disse isso era porque existia conflito entre a lógica partidária e a lógica de movimento.

Revista PluralComo os ativistas conectam tradições autonomistas relativamente antigas?

Ann Mische Acho que há uma revaloração do autonomismo. Talvez por causa do instrumentalismo do próprio governo com os ativistas. Muitos quadros do PT têm ido para os gabinetes, nas últimas décadas. Isso talvez reforce a ideia para algumas dessas pessoas de que não era isso o que eles queriam. Em reação a isso, por causa de tanta gente do partido estar indo para o Estado, existe uma revaloração do autonomismo. Até por causa de uma frustração com a instrumentalização, pela corrupção ou porque o pessoal do PT acha que a ala governista se esqueceu das raízes socialistas. Essas são dinâmicas que eu gostaria de entender melhor.

O pessoal autonomista radical não estava xingando os partidos, nas manifestações de junho 2013. Eles são aliados do pessoal dos partidos da esquerda, que teve presença nos primeiros atos contra o aumento das tarifas. Quem estava xingando os partidos era esse grupo mais despolitizado que entrou depois que os protestos começaram a ganhar caráter de massa.

Revista PluralSeria interessante discutir a questão metodológica. Como pensar a atualidade dos aspectos metodológicos, principalmente em relação aos protestos atuais e outros tipos de eventos? Gostaríamos que você também falasse um pouco acerca do Galois Lattice.

Ann Mische Na verdade, eu fui pensando minha metodologia assim, no caminho. Eu não possuía uma metodologia pronta. Eu aprendi a fazer Galois Lattices quando eu precisei, apesar de eu saber que iria estudar redes sociais. Eu estava tentando lidar com a complexidade das relações múltiplas entre os atores. Então, eu fui conversar sobre isso com uma amiga e uma colega do Harrison White, a Pip Pattison, que me falou: “Você poderia fazer Galois Lattices, que é uma técnica matemática de análise de relações e redes que pega a estrutura algébrica de intersecções de elementos associados”. E foi então que eu vi o quanto era interessante essa questão das intersecções entre as múltiplas afiliações dos militantes e dos setores políticos. De repente, dei-me conta de que eu tinha de trabalhar justamente nessas intersecções. Eu estava interessada na estrutura das interconexões no campo da política de juventude, não em uma análise de efeitos causais independentes sobre elas.

Se eu fosse fazer novamente, eu faria a análise de redes de uma maneira mais sistemática. Principalmente, eu trabalharia mais os questionários e também seria mais sistemática em relação aos grupos selecionados, quantos grupos, etc. Digo isso porque nessa pesquisa eu ganhei um entendimento profundo do contexto, mas a metodologia foi bastante improvisada, com várias histórias e aventuras no caminho. Por exemplo, eu fui para o Coneg (Conselho Nacional de Entidades Gerais) da UNE (União Nacional dos Estudantes), em Belo Horizonte, e pensei: “Eu vou pegar um monte de questionários e aí vou distribuir”. Ganhei o apoio da liderança da UNE, e Orlando da Silva, na época presidente da UNE, anunciou que eu iria aplicar um questionário. Então, as pessoas vinham me perguntar: “É verdade que o pessoal do PSTU está boicotando o questionário?”. Na verdade, eles estavam boicotando, sim, apesar do fato de eu já ter feito uma entrevista muito boa de duas horas com uma das lideranças do partido. Então, o pessoal do PCdoB tinha uma discussão interna acerca do questionário e deixava à consciência de cada um se iria responder ou não. O pessoal do PT preencheu sem problema [risos]. Os outros jovens achavam engraçado que o pessoal do PSTU não iria preencher o questionário. No finalzinho da pesquisa, fui agradecer ao pessoal da UNE, pois havia ido a muita reunião com a diretoria da UNE. Quase todos já tinham preenchido o questionário, menos o pessoal do PSTU. Então, um dos diretores levantou e disse: “Quero fazer uma moção: que nosso companheiro do PSTU preencha o questionário da Ann!” [risos]. Lembro como um momento engraçado. Contudo, não sei se eu teria feito tantos questionários. Se realmente se quer entender o contexto, é necessário ter um diálogo com os entrevistados. Esses jovens eram muito bons analistas da situação. Eles queriam saber das minhas análises, e eu também queria trazer e fazer muito essa troca de análises. Isso era valioso.

Revista PluralEssas delimitações metodológicas continuam em seus projetos atuais? Essa iniciativa de tentar combinar análise quantitativa e qualitativa continua presente?

Ann Mische O que estou fazendo agora é um novo projeto. É uma análise de textos, especificamente das contribuições dos textos dos movimentos sociais e grupos de sociedade civil nos debates do Rio + 20, em especial da Cúpula dos Povos, em junho de 2012. Alguns textos são claramente oposicionistas, outros mais programáticos. Minha equipe de pesquisa está tentando pensar o modo como eles estão caracterizando o futuro, como eles constroem o imaginário do futuro que querem e o futuro que não querem. A análise dos textos consiste em saber quais verbos, adjetivos e substantivos estão sendo usados para descrever o futuro. Por exemplo, nós pretendemos examinar se, para imaginar o futuro, os atores falam em termos de transição, ruptura ou convergência e como esses discursos sobre o futuro vão influindo nas alianças e nas relações entre os grupos. Então, vai ter uma combinação de interpretação com análise de conteúdo, utilizando natural language processing. Também vamos fazer análise de redes, não sei se vai ser lattice, mas alguma outra técnica que captura as intersecções relacionais. Queremos analisar se esses modos de caracterizar o futuro variam com posição no campo de relações e de ação política. Eu me interesso por essas metodologias que são quantitativas, mas são mais de “mapping”, ou seja, mapeamento das relações entre elementos discursivos, entre práticas e entre grupos, a fim de flagrar a estruturação relacional do campo.

Revista PluralJá que você está mencionando essa questão da análise de conteúdo, uma de nossas questões é que em seu trabalho você menciona que a mídia, na década de 1990, reportava-se de maneira romântica aos movimentos da década de 1960. Agora, nos protestos que aconteceram em 2013, a mídia brasileira também se reportou ao impeachment, aos caras pintadas, referindo-se àquela época passada. Como você enxerga esses processos que vêm ocorrendo? O que você vê de diferente ou de semelhante neles?

Ann Mische Você em parte respondeu a pergunta acerca do romantismo. Quanto à questão do impeachment, uma coisa que foi esquecida era como a coordenação e a organização eram partidárias mesmo. A memória do impeachment é a dos caras pintadas, dos secundaristas nas ruas, apartidários e unidos contra a corrupção. Na verdade, as manifestações eram suprapartidárias, mas a coordenação e as lideranças eram partidárias. Eu entrevistei muitas lideranças estudantis da época e penso que se esquecem do quanto esses movimentos lembrados e tematizados como suprapartidários ou apartidários também possuíam relações com os partidos, de tal modo que os partidos da oposição - como PT, PSDB e PCdoB - eram muito importantes na articulação institucional, em oposição ao Collor. As lideranças da UNE conseguiram - com a ajuda da grande mídia - ser porta-voz do movimento, além de fazer muita articulação e coordenação nos bastidores. Foi essencial o trabalho que essas jovens lideranças fizeram, tanto para a coordenação quanto para a articulação com as instituições. Talvez minha pesquisa contribua para resgatar essa história.

Revista PluralComo você encara os desafios postos à Sociologia, em virtude das manifestações que ocorreram na última década? Que desafios esses fenômenos põem para a Sociologia, não só para a teoria clássica de movimentos sociais, mas também para a Sociologia política e para a Sociologia da cultura de modo geral?

Ann Mische Acho que a questão principal é a da articulação dos movimentos sociais com o Estado, com a problemática do Estado. Lá na Universidade de Notre Dame, minha posição é de professora de International Peace Studies, então, trabalho com questões de conflito, guerra e paz. É um campo dominado pela Ciência Política. E é uma perspectiva da elite, focalizando os acordos de paz, mediação de conflito, negociações interestaduais, muito com base em international relations. Eles até apontam a importância da sociedade civil na democracia, mas eles entendem muito pouco sobre movimentos sociais. Do mesmo jeito, há vários pesquisadores no Instituto Kellogg - como Scott Mainwaring, Michael Coppedge e outros - fazendo trabalhos super importantes sobre a qualidade da democracia e de sistemas partidários, porém eles articulam muito pouco com uma vasta literatura sobre movimentos sociais que existe na Sociologia. Por outro lado, a gente que estuda movimentos sociais tem pensado muito pouco sobre a questão dos partidos em relação com o Estado. Temos focalizado na diferença entre as elites e os challengers extrainstitucionais, prestando pouca atenção, até recentemente, nos canais de acesso institucional ao Estado.

Isso também é um desafio para os movimentos, tentando resolver se se deve articular com o Estado ou se é viável dar continuidade a um autonomismo mais romantizado. Acho que há coisas importantes nessa autonomia, mas, caso se permaneça somente nisso, também não haverá articulação com os mecanismos de mudança institucional. Se se cobram serviços coletivos para todos, como o MPL, é preciso que haja pessoas dentro do governo que simpatizam com os movimentos. Tem de achar aliados dentro do governo. Se se repudia o governo de maneira absoluta, não haverá diálogo institucional para as reivindicações. Essas discussões acerca da relação com o Estado requerem um entendimento complexo da dinâmica interna do Estado, já que ele não é uma coisa monolítica. É necessária também uma análise mais diversificada dos movimentos que não seja romantizada. São vários estilos, várias táticas, orientações políticas, objetivos de diferentes membros da sociedade civil. E que não haja essa barreira tão forte entre as pessoas e disciplinas que estudam uma coisa e outra. Para a academia, seria importante quebrar esses muros. Essa é uma área sobre a qual precisamos teorizar e entender melhor.

Notas

1 Por “redes densas entrelaçadas”, Ann Mische se apropria do conceito de Georg Simmel de “interseção dos círculos sociais de pertença”. Cf. SIMMEL, G. Conflicts and the web of group affiliations. NY: Free Press, 1955.
2 Ann Mische se refere ao caminho da Sociologia relacional da ação social que foca no caráter contingente, interativo e fluido do processo social.
3 GOLDSTONE, J. State, parties and Social Movements. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
4 HARDT, M.; NEGRI, A. Multitude: war and democracy in the age of empire. New York: Penguin, 2004.


Buscar:
Ir a la Página
IR
Visualizador XML-JATS4R. Desarrollado por