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A QUESTÃO UNIVERSITÁRIA EM MAX WEBER: entre escritos metodológicos e Sociologia política
Mariana Toledo Ferreira
Mariana Toledo Ferreira
A QUESTÃO UNIVERSITÁRIA EM MAX WEBER: entre escritos metodológicos e Sociologia política
THE UNIVERSITY QUESTION IN MAX WEBER: BETWEEN METHODOLOGICAL WRITINGS AND POLITICAL SOCIOLOGY
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 22, núm. 1, pp. 182-208, 2015
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
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Resumo: O presente artigo busca tratar da concepção de educação em Max Weber e, mais especificamente, em como ele aborda a questão universitária, em uma série de seus escritos. Além de textos mais conhecidos, tal qual Ciência como vocação, o estudo incorpora conferências e artigos de intervenção escritos por Weber e alguns de seus trabalhos identificados com sua Sociologia Política. Assim, se o processo de desencantamento do mundo é vital para que se consiga interpretar os diagnósticos elaborados à época, também ocupam lugar central o papel do docente e o conceito de probidade intelectual. Analogamente, o avanço da burocracia - em alguns casos, de maneira a cercear o trabalho intelectual e acadêmico - é tematizado pelo autor, notadamente pela análise crítica do “caso Bernhard” e do “sistema Althoff”. Este artigo busca, então, retraçar essas discussões de Weber, inserindo-as em um quadro analítico mais amplo, ao relacionar sua discussão sobre a educação a conceitos elaborados tanto no âmbito de sua Sociologia da religião quanto de sua Sociologia política. Por fim, delineia-se brevemente o modo como Weber reflete sobre o sentido da liberdade, sobretudo aquela de cunho acadêmico, para destacar a relevância que assumiriam formas de organização dos professores que pudessem atuar em defesa da autonomia exigida pelo trabalho científico-intelectual sério.

Palavras-chave:Max WeberMax Weber,questão universitáriaquestão universitária,probidade intelectualprobidade intelectual,universidadeuniversidade,burocraciaburocracia.

Abstract: The present article aims to assess the concept of education in the work of Max Weber and, more specifically, his approach to the question of the university in a series of writings. Besides his best-known texts, such as Science as a vocation, the article incorporates conferences and intervention articles written by Weber, alongside works identified with his political Sociology. Therefore if the process known as “disenchantement of the world” is vital to allow us to interpret the diagnoses he brings forward at the time, the professor’s role and the concept of intellectual probity also occupy a central place in his thoughts. Analogously the advances of bureaucracy - in some cases, in a manner as to limit intellectual and academic work - is thematized by Weber, notably through the critical analysis of the “Bernhard case” and the “Althoff system”. Hence this article intents to retrace these Weberian discussions, inserting them into a wider analytical frame by relating his discussion on education to concepts elaborated amidst his Sociology of religion as well as in his political Sociology. Last but not least it briefly delineates the mode through which Weber reflects on the meaning of liberty, foremost in an academic sense, to point out the relevance that would be undertaken by forms of organizing professors that could embrace the defense of autonomy required by rigorous scientific intellectual work.

Keywords: Max Weber, question of the university, intellectual probity, university, bureaucracy.

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ARTIGO

A QUESTÃO UNIVERSITÁRIA EM MAX WEBER: entre escritos metodológicos e Sociologia política

THE UNIVERSITY QUESTION IN MAX WEBER: BETWEEN METHODOLOGICAL WRITINGS AND POLITICAL SOCIOLOGY

Mariana Toledo Ferreira
Universidade de São Paulo, Brasil
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 22, núm. 1, pp. 182-208, 2015
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é discutir a questão universitária, tal como aparece nos escritos weberianos, ou, em termos mais gerais, trabalhar a concepção weberiana de educação. Para tanto, serão propostos dois caminhos diferentes de apreciação da mesma questão, que, embora complementares, vêm sendo tratados de forma separada.

A maneira mais frequente de olhar para a questão da educação, em Max Weber, parte de sua conferência Ciência como vocação (1982a) e de alguns de seus textos metodológicos (WEBER, 1979; 2006a). Trata-se, quase sempre, de buscar delimitar uma “concepção pedagógica” weberiana, relacionando-a com os processos de racionalização, desencantamento do mundo e autonomização das esferas. Nessa abordagem, geralmente, a relação entre ciência e sentido permeia toda a discussão.

Outro caminho possível, e ainda pouco explorado, é o de vincular sua discussão de educação à sua Sociologia política, utilizando como base textos de intervenção pouco conhecidos do autor sobre a questão universitária na Alemanha (WEBER, 1989) e alguns textos de análise política produzidos no mesmo contexto. A partir dessa perspectiva, é possível situar sua concepção de educação no plano político mais amplo e, assim, vinculá-la a um conjunto de preocupações sobre o domínio burocrático, a formação de lideranças políticas e a possibilidade da liberdade - política e acadêmica - no contexto em questão.

Nesse sentido, as reflexões de Weber sobre a educação podem ser compreendidas tanto no âmbito de sua Sociologia política - a partir da descrição dos tipos de dominação que possuem correspondência com os tipos de educação e da ligação entre processo de racionalização e desenvolvimento da burocracia - quanto no âmbito de sua Sociologia da religião - sobretudo, por meio de seu enfoque dos diferentes processos de racionalização que interferiram na condução da vida prática dos indivíduos. Este artigo busca, assim, estabelecer relações possíveis entre essas duas abordagens, como forma de tentar conferir sentido às intervenções do sociólogo alemão sobre a universidade, a fim de inseri-las dentro de um quadro analítico mais amplo.

Ressalta-se, contudo, que Weber não dedicou nenhum artigo ou capítulo de livro à educação propriamente dita, embora tenha feito referências esparsas ao tema no decurso de sua produção acadêmica. Este trabalho pretende retomar essas referências, mesmo aquelas que possuem mais um caráter de denúncia do que de um trabalho propriamente acadêmico.

A CIÊNCIA E A EDUCAÇÃO EM UM MUNDO DESENCANTADO

É conhecida, no âmbito das Ciências Sociais, a distinção entre vocação científica e vocação política, isto é, a diferença entre os julgamentos de fato e os julgamentos de valor. Em Weber, essa dimensão é notavelmente marcante e remete à questão primordial da relação entre a esfera do conhecimento e a dos juízos de valor e, por conseguinte, à discussão pedagógica que se desdobra a partir dessa relação (CARVALHO, 1998).

Para iniciar a discussão sobre qual o papel vislumbrado pelo autor alemão para o professor na universidade moderna, parte-se da seguinte questão, enunciada por Weber, em seu ensaio O sentido da “neutralidade axiológica” nas ciências sociológicas e econômicas (1979): é preciso saber se, no decurso de uma exposição universitária, deve-se ou não “professar as avaliações práticas fundamentadas numa concepção ética, em ideias culturais ou numa concepção ideológica” (WEBER, 1979, p. 114). Ou, em outras palavras, teria o professor - ou o cientista - o poder de impor, do alto de sua cátedra, suas “avaliações práticas”, isto é, seus pontos de vista pessoais e partidários, suas convicções, como regras para a vida cotidiana?

Nos debates de sua época, existiriam duas respostas extremas à questão. A primeira é que, apesar de existir uma clara distinção entre fatos que podem ser demonstrados de modo puramente lógico ou estabelecidos de forma puramente empírica e as avaliações práticas, as duas categorias de problemas devem ser alvo de discussão nas cátedras universitárias. A segunda resposta, por sua vez, parte da concepção de que, mesmo não existindo uma distinção clara entre os dois tipos de problemas, é recomendável evitar todos os problemas práticos de valor do decorrer da exposição universitária. Weber discorda em parte dos dois pontos de vista. No segundo, seu desacordo está relacionado ao fato de que seria preciso evitar todos os problemas de valor na sala de aula, e, com isso, afirma que se deve evitar:

[...] deformar o espírito dos ouvintes mediante uma confusão entre esferas diferentes, tal como há de necessariamente suceder quando a comprovação de factos empíricos e o convite a uma tomada de posição prática perante os grandes problemas da vida são submersos na mesma fria ausência de temperamento (WEBER, 1979, p. 115-6).

Já o primeiro ponto de vista parece aceitável para Weber somente na medida em que, ao tratar os dois tipos de problema, o professor seja instado a “tomar clara consciência daquilo que no seu enunciado resulta de um raciocínio puramente lógico, ou de uma constatação puramente empírica, e daquilo que provém de uma avaliação prática” (WEBER, 1979, p. 116).

As duas respostas teriam relação com duas concepções distintas de universidade: a primeira se relaciona com a ideia de que a universidade tem o papel universal de moldar homens e de propagar doutrinas políticas, éticas ou culturais vigentes na sociedade da época; a segunda é de que nas aulas universitárias se pode exercer uma influência real e valiosa apenas por intermédio de uma formação especializada, levada a cabo por professores qualificados, e que, portanto, a probidade intelectual será a única virtude específica que se deve inculcar nos estudantes.

O autor é mais partidário da segunda opção, pois considera que a tarefa primordial do professor é inculcar em seus estudantes os conhecimentos de que necessitam para sua carreira, despertar interesse e adestrar seus dons perceptivos e mentais, de forma a alargar seus conhecimentos. Não está incluída entre suas funções, no entanto, a difusão de uma chamada concepção do mundo pessoal do professor ou de qualquer outro. Não que para Weber a universidade precise fazer de todos os homens especialistas, no sentido profundo do termo, mas “porque se pretende evitar a identificação das decisões eminentemente pessoais que um homem deve tomar por si próprio, com o ensino especializado” (WEBER, 1979, p. 117).

Ele não está afirmando, todavia, que os professores não podem nunca falar dos ideais que os animam, mas, ao fazê-lo, devem obedecer a duas obrigações: a primeira seria deixar claro quais são os padrões de valor que estão guiando a reflexão e a consequente tomada de posição, de modo a não misturar de maneira imprecisa considerações empíricas e avaliações práticas; a segunda, e talvez a mais importante para o teórico, seria não apresentar a posição prática/avaliativa como se fosse “científica”, já que uma tomada de posição não pode, nunca, ser feita em nome da ciência. Evidentemente, dessa segunda obrigação não deriva que o homem da ciência não possa ou não deva tomar uma posição; muito pelo contrário, significa que, ao fazê-lo, não pode afirmar que ela é científica, sendo preciso alertar o ouvinte, quando cessa de falar o pesquisador e começa a falar o homem de vontade (WEBER, 2006a).

Essa segunda obrigação evidencia uma crítica que o autor elabora a alguns de seus colegas de profissão, em diversos de seus escritos (1979; 1982a; 1989; 2006a), bem como a crítica aos profetas que “pregam” na universidade, em nome da ciência, àqueles que, aproveitando-se de que sua plateia deve permanecer em silêncio, proferem vereditos decisivos sobre determinada concepção de mundo, sempre em nome da ciência. Isso ocorre, pois o professor nada mais é, para Weber, do que um especialista, e “não existe qualquer qualificação de especialista para o desempenho da profecia pessoal” (WEBER, 1979, p. 119).

A partir dessas considerações mais gerais, Max Weber descreve o que seriam as quatro capacidades fundamentais de um professor: (1) desempenhar com simplicidade uma tarefa dada; (2) capacidade de admitir, acima de tudo, os fatos empíricos, inclusive e precisamente aqueles que são incômodos para sua concepção de mundo1; (3) separar a comprovação dos fatos de uma tomada de posição avaliativa; e (4) reprimir a exposição de seus gostos e sentimentos pessoais na sala de aula. Da exigência para que o professor separe, com clareza, as duas esferas heterogêneas de problemas - avaliações práticas e conhecimento científico - não decorre a afirmação de que tal distinção não seja problemática e difícil de ser delimitada na realidade, mas sim de que esse fato não justifica, automaticamente, que o cientista abandone de uma vez a tentativa de realizá-la.

O autor nota, entretanto, que muitos jovens buscam nas aulas mais do que simples análises e formulações próprias à cátedra universitária; buscam, no professor, “algo diferente daquilo que está à sua frente. Anseiam por um líder, e não um professor” (WEBER, 1982a, p. 176). Para esses alunos, Weber faz um apelo quase dramático:

Amigos estudantes! Vinde às nossas aulas e exigi de nós as qualidades de liderança, sem compreender que de cem professores pelo menos 99 não pretendem ser treinadores de futebol nos problemas vitais da vida, ou mesmo ser líderes em questões de conduta (WEBER, 1982a, p. 177).

Esse apelo é importante, aqui, porque as qualidades que fazem de um homem um excelente professor acadêmico não são as mesmas que fazem o profeta ou o líder. Nenhum treinamento científico faria aflorar as características importantes para um líder político, e a maior parte dos professores não tem, ou não gostaria de ter, essas qualidades. Por outro lado, faz também um apelo aos seus colegas professores, qual seja: de não recorrer a avaliações práticas como forma de obter mais alunos ou maior reconhecimento.

Qualquer professor poderá observar que o rosto do estudante se ilumina e as suas feições ficam tensas quando começa a “defender” a sua doutrina pessoal. E também se dará conta de que o número de estudantes nas suas aulas crescerá vantajosamente pela esperança de que assim suceda (WEBER, 1979, p. 127).

Com as duas citações, é possível sustentar que Weber tenta estabelecer um diálogo, tanto com seus colegas de profissão - professores e pesquisadores - quanto com os alunos da geração mais nova, de modo a tentar defender suas ideias, que são, também, como ele mesmo ressalta, avaliações práticas: “É certo que estas considerações não passam de avaliações práticas ou visões de mundo, e por isso não conduzem a qualquer solução definitiva” (WEBER, 1979, p. 122). Evidencia-se, então, que as considerações sobre o que seria o papel do professor são, elas também, juízos de valor, tomadas de posição que, assim como a tomada de posição de seus colegas, não podem ser validadas empiricamente. Jamais será tarefa de uma ciência empírica produzir normas e ideias obrigatórias, para delas extrair receitas para a prática (WEBER, 2006a).

Até aqui, foi realizada uma tentativa de delinear brevemente o que seria uma concepção pedagógica weberiana, a partir dos escritos que trataram do papel do professor e do pesquisador, do aluno e da instituição universitária. No centro dessa concepção está a importância máxima conferida à separação entre ciência e valor, assim como a tarefa máxima de preservar essa separação no âmbito científico. Contudo, é preciso indagar sobre os motivos da ênfase nessa separação ou, nos termos de Weber, por que o verdadeiro professor deve se comportar menos como um líder e mais como um verdureiro? (WEBER, 1982a).

A resposta a essa pergunta se relaciona com um conceito weberiano fundamental, o de desencantamento do mundo, o qual apregoa que, no mundo, não se encontraria mais um princípio universal que pudesse justificar e significar as escolhas valorativas. Associado à ciência moderna, o conceito de desencantamento se refere, inescapavelmente, à ideia de “perda de sentido” do mundo (PIERUCCI, 2003)2. Estaria disponível, no mundo desencantado, uma diversidade de opiniões, visões de mundo pessoais, de modo a se tornar impossível uni-las em um todo absoluto. A capacidade integradora anteriormente existente teria sido posta em questão, restando apenas a cada um dos indivíduos, segundo seu ponto de vista último, sem o sacrifício do intelecto, decidir qual é o deus ou o demônio que se deve ou se quer seguir (CARVALHO, 2010).

Diante de tal realidade, o professor só poderia fornecer os meios para se agir politicamente, sem jamais estabelecer qualquer fim - situação que não era encontrada entre os “antigos”. Segundo Weber, os gregos, principalmente Platão, consideravam que o conhecimento e o ensino do Belo, do Bem, da Coragem deveriam abrir o caminho para se agir acertadamente na vida e, acima de tudo, para formar cidadãos do Estado. Para os renascentistas, a ciência significava o caminho para a arte verdadeira e para a verdadeira natureza. Alguns viram na ciência o caminho para se encontrar a prova da Providência divina, um caminho para Deus; outros viram, ainda, a possibilidade de a ciência se constituir como caminho para a felicidade.

Weber, no entanto, questiona uma a uma essas concepções, afirmando que a ciência especializada, dividida em disciplinas, mostrou-se não ser nem um caminho para a natureza, para a política, para o belo, para o “verdadeiro Deus”, tampouco um meio para a “verdadeira felicidade”. Então, cabe questionar: qual o sentido da ciência? Ela traz sentido à vida? Weber sustenta que não, pois a ciência não permite responder às indagações mais relevantes, isto é, o que devemos fazer? Como devemos viver? Com o progresso da ciência, não teriam os homens um conhecimento mais acurado de suas condições de vida, se comparado com os homens do passado: “a crescente intelectualização e racionalização não indicam um conhecimento maior e geral das condições sob as quais vivemos” (WEBER, 1982a, p. 165).

Em outras palavras, “a observação empírica do mundo e, mais ainda, a de orientação matemática, recusa por princípio todo o modo de que se interrogue sequer quanto a um ‘sentido’ do acontecer no mundo” (WEBER, 2006a, p. 348). Nessas citações aparece a concepção reiterada de que a ciência não desvenda - e não pode desvendar - o sentido do mundo. O sentido para a vida só seria concebido no campo da moral, da ética, da religião, da arte e da política, nunca no campo da ciência - pois dotação de sentido depende de valoração, o que a ciência não pode fazer. Essa impossibilidade deriva, segundo Weber, de razões muito mais profundas: “a defesa científica é destituída de sentido em princípio porque as várias esferas de valor do mundo estão em conflito inconciliável entre si” (WEBER, 1982a, p. 174). No mundo desencantado, portanto, haveria uma infinidade de perspectivas e pontos de vista, sem que nenhum deles pudesse ser considerado como definitivo e sem que a vida adquirisse um sentido universal a partir dele.

Outro escrito importante do autor para esta discussão é sua Consideração intermediária (2006b). É nesse texto que Weber desenvolve sua tipologia das esferas de valor, a partir de sua teoria da diversidade dos processos de racionalização e de sua concepção de cultura como conflito dos valores (PIERUCCI, 2003). Weber apresenta um processo de autonomização das esferas de valor crescentemente racionalizadas e institucionalizadas, mostrando como as diferentes ordens da vida se autonomizaram da religião, engendrando o que ele chama de politeísmo de valores. Cada esfera de valor, ao se racionalizar, justifica-se por si mesma, ou seja, encontra em si uma lógica interna própria, uma legalidade própria “que a leva a se institucionalizar autonomamente e a se consolidar e se reproduzir socialmente pela formação de seus próprios quadros profissionais, encarregados de garantir precisamente sua autonomia” (PIERUCCI, 2003, p. 138). Para Weber, a ética, a arte, a esfera doméstica, o erotismo, a política e a ciência constituem esferas distintas, e cada uma delas tem seus próprios valores, independentes, muitas vezes incompatíveis entre si. Contudo, mais do que a existência do politeísmo de valores, tem-se o que Weber chama de guerra entre valores, na medida em que não são unicamente deuses que dividem um mesmo espaço, são deuses que competem por adeptos; isto é, “no fim das contas e no que se refere à oposição entre valores, não só se trata sempre e em todas as circunstâncias de alternativas, mas também de uma luta mortal e insuperável, comparável à que opõe Deus e o diabo” (WEBER, 1979, p. 141) ou, ainda, “falando figuradamente, servimos a este deus e ofendemos ao outro deus quando resolvemos adotar uma ou outra posição” (WEBER, 1982a, p. 179). Portanto, em quase todas as tomadas de posições, homens reais cruzam e entrelaçam esferas, encadeando valores “mortalmente hostis entre si” (WEBER, 1979, p. 142). Como Weber enfatiza, uma coisa pode ser verdade sem ser bela, ou sagrada, ou boa, por isso, não é possível definir “cientificamente” o valor de uma cultura, de uma ação, de uma tomada de posição. Mais do que isso, a ciência não consegue arbitrar tomadas de posições diferentes e muitas vezes conflitantes, pois não tem predomínio sobre os deuses, valores, pontos de vista, pressuposições e suas lutas3.

Intimamente relacionada está a concepção do autor de cultura, considerada não como campo de consensos normativos, de diretrizes de avaliação às quais todos adeririam, mas a “um campo de disputas, de luta entre os homens para definir quais são as qualidades das coisas, das condutas e das ocorrências que têm caráter exemplar e podem servir como orientação perante o mundo” (COHN, 2006, p. 10). Cultura não seria, então, uma dimensão da realidade social que confere sentido ao que os homens fazem, ao contrário, é aquela arena significativa em que os próprios homens atribuem valor ao que fazem e disputam entre si.

Em resumo, o monoteísmo teria cedido lugar a um politeísmo com novo sentido, com os velhos deuses que agora aparecem de forma desencantada, como poderes impessoais, que exigem reconhecimento. Esses novos velhos deuses forçam escolhas, entrando em conflito um com outro e tendo que, ao escolher, negar os outros (SCHLUCHTER, 2000). O que está em questão, para Weber, é que essas escolhas têm de ser feitas de maneira consciente e que os valores que guiarão a conduta precisam ser determinados de maneira autorreflexiva. Os indivíduos não são mais escolhidos pelos valores, e o destino não é mais objetivamente fixado com antecedência, seja pela religião, pela ética, pela política, seja pela ciência. Não existiria nenhuma instância preexistente que pudesse servir como fundamento único para essas escolhas, tampouco a ciência seria capaz de dotar o mundo de sentido:

É destino de uma época cultural que provou do fruto da árvore do conhecimento ter que saber que não pode discernir o sentido do andamento do mundo nem mesmo da mais completa investigação, mas que nos cabe criá-lo nós próprios, que “concepções de mundo” jamais podem ser produto do avanço de um saber empírico, e que portanto os ideais mais elevados, que mais intensamente nos comovem, agora e sempre só se efetivam no combate com outros ideais tão sagrados para outros quanto os nossos são para nós (WEBER, 2006a, p. 21).

Estar à altura desse desafio não é tarefa simples. Segundo o autor, é por isso que muitos saem em busca de novos profetas: “o que é difícil para o homem moderno, e especialmente para a geração mais nova, é estar à altura da existência do trabalho cotidiano” (WEBER, 1982a, p. 176). É nesse contexto que a ideia de ciência como vocação atinge seu significado pleno: não existe nenhum sentido único, nenhuma das esperas de valor pode dar esse sentido universal, porque existe um embate entre as esferas que obriga a fazer escolhas que entram em conflito com outras. Diante disso - que Weber chama de destino de sua época -, a ciência obriga ao trabalho especializado4, sereno e sistemático, que não dará respostas plenas de significado e que exige constante autolimitação.

Se assim for, pergunta Weber, que contribuição real e positiva traria a ciência para a vida prática e pessoal? E, de forma correlata: teria o professor alguma contribuição a dar para o conhecimento que, de certa forma, ajudasse a conduta das pessoas? Primeiro, a ciência contribui para o controle da vida, calculando e controlando os objetos externos, bem como as atividades do homem. Segundo, a ciência contribui com métodos de pensamento, instrumentos e treinamento para o pensamento. Um terceiro objetivo ressaltado por Weber é a clareza: “há um lado ético do pensamento de Max Weber que sustenta a tese segundo a qual o interesse último da ciência social para um ser humano reside em sua contribuição para a luta do indivíduo comum em busca de clareza” (PIERUCCI, 2003, p. 37). Clareza, inclusive, para se compreender o que está em jogo na guerra dos valores, para compreender os fins, os meios adequados e as consequências possíveis e indesejadas de cada ação. Assim, a ciência não pode dizer quais são os fins últimos, mas pode oferecer clareza para compreendê-los, saber como surgiram, com quais valores se relacionam e o que eles implicam.

A ciência pode mostrar que toda ação - ou ausência desta - tem consequências, pode também ajudar no conhecimento do significado daquilo que almeja, a coerência interior de uma posição em relação a essa ou aquela concepção de mundo e pode verificar com que concepções de mundo determinadas posições práticas estão relacionadas e contra quais se opõem. E, assim, a ciência chega também ao seu limite (WEBER, 2006a).

A ciência pode apenas compreender os valores que regem cada esfera: “podemos, apenas, compreender o que a divindade representa para uma ordem ou para a outra, ou melhor, o que ela é numa e noutra ordem” (WEBER, 1979, p. 175). E é aí que se encerra o que pode ser discutido em uma sala de aula por um professor; o passo seguinte, isto é, a escolha do deus e dos valores que regem nossa conduta, já não tem espaço durante a lição. Em resumo, “uma ciência empírica não tem como ensinar a ninguém sobre o que deve, somente sobre o que pode e - eventualmente - sobre o que quer” (WEBER, 2006a, p. 17).

A ciência pode ajudar o indivíduo a prestar a si mesmo contas do significado último de sua própria conduta, o que para Weber não parece pouco. Quando um professor faz isso, “ele cumpre o dever de provocar o auto-esclarecimento e um senso de responsabilidade” (WEBER, 1979, p. 179). Para Weber, ele tem mais chances de conseguir isso à medida que evita, conscienciosamente, o desejo de impor ou sugerir à sua audiência a posição que tomou.

O interessante, aqui, é perceber a concepção mais ou menos elaborada de Max Weber sobre o papel que o professor, o pesquisador e a instituição universitária devem desempenhar. A partir disso, foi possível definir o que poderia ser considerado uma concepção pedagógica weberiana. Importante frisar, no entanto, que Weber nunca se preocupou em ser um teórico da educação, e que sua reflexão nesse sentido está estreitamente vinculada à discussão mais ampla sobre a ciência e os processos de racionalização e desencantamento do mundo. Da possível concepção pedagógica weberiana, emerge e exige-se uma nova conduta para o professor, isso se ele quiser ficar nos limites de um mundo que foi desencantado. Como não é mais possível construir valores metafísicos que orientam as ações humanas, ao professor resta criar condições para que os cidadãos permaneçam livres para escolher o deus ou demônio que querem seguir.

A EDUCAÇÃO EM TEMPOS DE DOMÍNIO BUROCRÁTICO

É preciso se perguntar, para aprofundar o argumento, o porquê de tanta ênfase de Weber na discussão sobre o papel do professor e também questionar em que medida essa questão está relacionada com sua Sociologia Política. Nessa medida, nesta segunda parte do artigo, será desenvolvido um caminho alternativo para o tratamento da questão universitária, enfatizando a relação entre sua Sociologia Política e seus textos de intervenção sobre a universidade. Esses textos foram publicados, em sua maioria, no jornal Frankfurter Zeitung, entre 1908 e 1911, e tratam de questões e acontecimentos específicos de sua época e seu país, embora aportem reflexões mais gerais que ajudam a estabelecer, ainda que em um contexto peculiar e de forma controvertida, certos princípios fundamentais de uma concepção liberal de autonomia universitária e de liberdade acadêmica.

Os principais temas tratados nesses artigos de intervenção são o “caso Bernhard”, o “Sistema Althoff” e a discussão sobre no que consistiria a liberdade acadêmica e estão repletos de episódios da luta entre o saber acadêmico e o ethos burocrático dominante no Ministério da Educação, na Prússia, o que os torna uma ferramenta interessante para considerar a questão educacional em relação à discussão sobre a burocracia. A análise e descrição muito meticulosa dos fatos e seu tom de indignação moral podem parecer, atualmente, como fora de proporção, sobretudo agora que os fatos discutidos estão distantes no tempo e em relevância, no entanto, ajudam a compreender o ponto de vista do autor sobre a questão universitária.

O “caso Bernhard” consiste na nomeação desse pesquisador para uma cátedra de economia na Universidade de Berlim, em 1908, por iniciativa de Friedrich Althoff, diretor do departamento de assuntos universitários do Ministério de Educação da Prússia. Essa nomeação teria sido feita sem qualquer consulta à congregação da universidade, fato que revoltou Weber:

Ao tempo em que o autor destas linhas era tão jovem quanto é hoje o sr. Bernhard, um dos requisitos mais elementares da decência acadêmica era que, quem quer que fosse convidado por um ministro a assumir uma posição de professor, se assegurasse, acima de qualquer outra coisa e antes de decidir-se, de que gozava da confiança intelectual da congregação - ou, pelo menos, dos mais eminentes colegas em sua área, de cuja cooperação iria necessitar (WEBER, 1989, p. 38).

Ao longo do século XIX, a praxe era a nomeação de professores ser realizada a partir de uma lista de indicações apresentadas ao ministro, detentor do poder oficial de nomeação - embora ele não fosse obrigado a se limitar à lista fornecida, era habitual fazê-lo. A partir dessa nomeação, Weber vai criticar mais detidamente a intervenção do governo prussiano nas universidades. A revolta de Weber não se relaciona apenas à suposta gravidade dos fatos narrados, mas em virtude de ele considerá-los sintomas do que denominou “Sistema Althoff”. Apesar de Althoff ter feito muito para melhorar a qualidade das universidades alemãs, com o aumento de recursos e a expansão do sistema, o tratamento que este concedia ao professorado era, na visão de Weber, humilhante e corruptor, pois assumia que todos os professores eram meros caçadores de cargos. Como resultado, os professores teriam passado a adotar uma atitude cínica e de subserviência quanto aos compromissos e às promoções na universidade. A situação, com os sucessores de Althoff no Ministério, teria piorado, pois esses teriam herdado seu cinismo, não sua habilidade de julgamento intelectual e sua energia e devoção à excelência acadêmica (WEBER, 1989).

Segundo Weber, o sistema Althoff funcionava mediante garantias: garantias dadas pelos professores acerca de todas as coisas possíveis e impossíveis, como a de não aceitação de “convites” por parte de outras universidades; e garantias dadas pela administração educacional relativas a assuntos tais como: “as perspectivas no caso da morte de catedráticos em Berlim e alhures, obrigação de silêncio, intervenção geradora de conflitos nas relações entre colegas, a subvenção e o cancelamento de anúncios de aulas conforme o gosto” (WEBER, 1989, p. 92-3). O sistema de garantias, para ele, era inconcebível:

Quero observar, ainda, que não vejo nada, no modo oficial de avaliar e tratar um professor, que deva ou devesse impor-lhe um dever de gratidão, uma vez que nomeações e promoções devem orientar-se, não por considerações de amizade pessoal, mas sim por considerações científicas, acadêmicas e educacionais sérias e realistas (WEBER, 1989, p. 91).

Esse sistema teria uma influência corruptora na universidade, a qual ele associa à influência corruptora de Bismarck no parlamento, que provocou a ascensão de mediocridades e a dependência política. É interessante notar que Weber encarava Bismarck - a quem também admirava pelo talento político e pelas realizações - como fonte de incapacidade política da Alemanha. Para o autor, Bismarck teria impedido a consolidação de partidos políticos e a formação de novas lideranças, a partir do controle do orçamento militar, do enfraquecimento dos sindicatos e da implementação de uma legislação antissocialista, deixando atrás de si, com a política de favores e controle, um parlamento impotente, com membros de pouco nível intelectual, fruto da eliminação de todo o talento político:

[...] desde 1878 a nação está desacostumada a participar, através de seus representantes eleitos, da resolução de seus assuntos políticos. Tal participação, afinal de contas, é a precondição para desenvolver o discernimento político. […] Ele deixou atrás de si uma nação sem qualquer sofisticação política. [...] Principalmente, Bismarck deixou atrás de si uma nação sem qualquer vontade política própria, acostumada que estava à ideia de que o grande estadista ao leme tomaria as decisões políticas necessárias (WEBER, 1974, p. 20).

Carente de um sentido de autoestima civil e de responsabilidade por seus atos, o povo alemão não se mostraria capaz de manter a independência perante líderes políticos de índole carismática e uma poderosa burocracia (SHILLS, 1973). Ao refletir sobre as universidades de seu tempo, Weber se deparou com fenômeno semelhante. Considerou que os membros da classe acadêmica na Alemanha estavam perdendo o sentido de dignidade de seu papel acadêmico; assim como na esfera da política, estavam sendo manipulados por uma figura poderosa.

A intrusão do governo nos assuntos acadêmicos foi caracterizada por Weber em várias dimensões. Primeiro, as universidades na Alemanha teriam sido usadas pelo governo para treinar os futuros burocratas para a função pública, uma condição que ele viu sendo colocada também para as universidades americanas, como consequência das reformas administrativas em curso no início de 1900 e que, eventualmente, acabariam por minar sua independência (WEBER, 1989). Sobre Althoff, Weber afirma: “Ele não desejava acabar com a autonomia das universidades em benefício da autoridade do soberano, mas queria que a alta administração participasse da tomada de decisões em todos os assuntos mais importantes da administração das universidades” (WEBER, 1989, p. 80). Funcionários do Ministério são representados como os que veem a universidade como meio de credenciamento para a carreira burocrática, como meio para servir a fins profissionais, mais que acadêmicos.

Em segundo lugar, compromissos acadêmicos eram usados pelo governo para fazer avançar sua política de interesses. Weber se refere a acadêmicos nomeados por influência do governo, ou para satisfazer desejos do governo, como “operadores” ou oportunistas que servem a fins extraescolares - políticos ou eclesiásticos - e que garantem que determinadas pesquisas sejam realizadas na universidade, em detrimento de outras. Esses operadores são os beneficiários do clientelismo, que, na visão de Weber, contribuiriam para o crescente número de “mediocridades complacentes”, criando, assim, um “mercado” favorável para a ascensão de mais “operadores”, os quais não seriam apenas aqueles cujos compromissos são diretamente influenciados pelo governo, mas também aqueles cuja mentalidade é tomada por valores econômicos e burocráticos e que se ajustam aos mecanismos de dominação burocrática sem “qualquer reflexão mais profunda” (WEBER, 1989, p. 93).

Quanto mais a universidade é constituída por operadores, mais o governo poderia influenciar todas as pequenas questões. A existência de operadores enfraqueceria, então, a congregação, e a consequência mais importante disso é que, “naqueles assuntos importantes em que a palavra do estudioso especializado como tal, e a autoridade da congregação, como tal, deveriam ser decisivas, nem uma nem outra significará, de fato, coisa alguma” (WEBER, 1989, p. 44).

Continuando o raciocínio, Weber afirma que “todo aquele que se acostume a atuar como padrinho, utilizando suas relações pessoais em favor de seus protegidos, renuncia ao peso moral que deveria ser atribuído à sua opinião como perito e como alguém que exerce oficialmente o poder” (WEBER, 1989, p. 44). O argumento central é que, em última instância, toda a influência de fatores extracientíficos, seja a intervenção direta da esfera da política, seja a intervenção indireta da influência das relações pessoais, enfraqueceria a legitimidade acadêmica e a independência das universidades (BEN-DAVID, 1975).

É conhecida, no âmbito da Sociologia weberiana, a caracterização, enquanto tipo ideal puro, da organização burocrática, elaborada no capítulo “Sociologia da dominação”, em Economia e sociedade (2009). Nesse trabalho, Weber trata da dominação como caso especial do poder (que não tem a ver com interesses puramente econômicos e que, portanto, não se vincula diretamente com os interesses de classe, como na teoria marxista), que tem três tipos de legitimidade distintos: tradição, carisma e regras racionais-legais. Esse último seria a dominação burocrática, que Weber considera o tipo mais racional e bem acabado de dominação. O autor vai, então, discuti-lo em detalhes, passando por temas como o poder delimitado por regras racionais, o desenvolvimento do aparato jurídico, a separação entre esfera pública e privada, a necessidade crescente de qualificação e a pressão correlata nas instituições superiores de ensino, a necessidade de tempo integral, a importância da concentração dos meios de serviço nas mãos da figura hierárquica, entre outros.

Nesses termos, a discussão sobre as formas de burocracia constitui parte central de sua análise sobre a modernização, que envolve o contraste explícito com os sistemas tradicionais de administração: de sistemas patriarcais e patrimoniais à burocracia; da dominação tradicional à dominação racional-legal. Aqui, entram em evidência algumas das múltiplas formas que Weber conferiu à discussão da ideia de racionalização, para além daquela que a associa à ideia de desencantamento do mundo - como tratado na seção anterior. No caso, Weber considera a burocracia como especificamente “racional”, na medida em que envolve o controle sobre o conhecimento, também por conta de suas esferas de competência claramente definidas, porque opera de acordo com regras analisáveis, porque inclui a calculabilidade em sua operação e, finalmente, porque tecnicamente ela é capaz de alto nível de sucesso (BEETHAM, 1992). Seriam, em resumo, essas as características racionais que garantiriam a superioridade técnica da burocracia.

A acepção de burocracia, discutida em termos típico-ideais, considera-a como meio técnico superior para a administração pública e privada, guardando, portanto, valoração bastante positiva. Em contrapartida, os escritos políticos do autor vão tratar a burocracia a partir de uma acepção negativa, enfatizando sua tendência de se tornar uma força social e política independente, com valores próprios, bem como a capacidade de afetar os fins e a cultura da sociedade. Tanto em suas análises dos EUA (WEBER, 2002) quanto da Rússia, Weber (2005) observa a expansão da burocracia, algo que considera como irresistível e irreversível. Nesse sentido, busca mostrar que os desvios do tipo ideal são sistemáticos - não meros acidentes: enquanto grupo de poder, a burocracia passa a ter a capacidade de influenciar os objetivos do sistema político e, enquanto grupo de status, influencia os valores culturais da sociedade (BEETHAM, 1992).

Ao mesmo tempo, Weber ressalta, principalmente em sua discussão sobre a burocracia como instrumento da permanência do domínio junker na Alemanha (WEBER, 1994), que esta não é independente de outras forças sociais, notadamente da estrutura de classes. Os funcionários não seriam os portadores por excelência de interesses universais, como queriam alguns de seus contemporâneos, mas, ao contrário, trariam consigo os valores de sua classe de origem. Ademais, teriam como interesses específicos a manutenção e extensão das posições administrativas e do poder, lembrando que o rápido desenvolvimento da burocracia não se explica apenas por sua superioridade técnica, mas pela pressão que oficiais são capazes de fazer enquanto grupo de interesse.

É preciso compreender essas críticas ao domínio burocrático em relação com o debate mais amplo que o autor travava com seus colegas da Verein fur Sozial-politik5. Para alguns deles, a burocracia era considerada uma força social neutra, acima dos interesses de classe e dos partidos políticos, representando interesses universais da sociedade, com sabedoria política. A burocracia seria assim concebida como força política independente, desinteressada, com capacidade superior para dirigir os assuntos da sociedade. Esses setores se oporiam, inclusive, à democracia liberal, em razão do medo de que o governo da monarquia e da burocracia pudesse ser substituído por um governo com base em interesses particulares de uma classe ou partido.

É em resposta a tal concepção que está a insistência de Weber de que a burocracia é apenas um tipo de administração que prevalece nas esferas da vida moderna, mas que não pode exceder suas funções enquanto instrumento técnico, sob o risco de subsumir a esfera da política (BEETHAM, 1992); isso porque a concepção weberiana aponta para uma burocracia tecnicamente capaz, mas politicamente inerte, cuja ação é racional quando limitada à sua esfera, mas que se torna irracional quando atinge outras (TRAGTENBERG, 1985).

Os paralelos possíveis entre a burocratização da vida política e a burocratização da vida acadêmica se tornam mais complexos, sobretudo ao observar mais detidamente a discussão que o autor realiza da burocracia como um grupo de status ou como uma nova aristocracia. Weber notou, por exemplo, o ressentimento e a atitude de preservação da burocracia frente ao desenvolvimento do capitalismo moderno, chegando a afirmar, inclusive, que não seria por acaso que ele teria se desenvolvido primeiramente na Inglaterra, onde o domínio dos oficiais era minimizado (WEBER, 2009). O desenvolvimento da burocracia teria ocorrido de forma paradoxal no que tange às suas relações com a democracia. De um lado, a democracia promoveria um sistema que selecionaria pessoas qualificadas entre todos os estratos sociais, a partir de exames; de outro, no entanto, exames e credenciais educacionais passariam a criar uma nova aristocracia privilegiada, que se oporia a esse sistema (TITUNIK, 1997).

Nesse contexto, a educação estava emergindo como novo critério para a distinção de um grupo de status, com o desenvolvimento de um senso de honra quase antitético ao ethos capitalista, que potencialmente sufocaria o dinamismo econômico. Além disso, o autor também aponta para o fato de a burocratização da vida social pressionar, inclusive, as universidades: pressão por vagas e diplomas entre aqueles que se encontram em busca de benefícios, salário e prestígio social (WEBER, 1974)6.

É notadamente o estrato educacional, tanto na Alemanha quanto nos Estados Unidos, que promovia e se beneficiava do processo de burocratização; e parte significativa desse setor estava imbuída de sentimentos antiliberais (RINGER, 2000). Na Alemanha, foram precisamente os acadêmicos os que mais se opuseram ao liberalismo e à democracia e quem, esperando transcender o conflito dos interesses econômicos nas sociedades modernas, promoveu a ascensão burocrática. É nesse sentido que se pode afirmar que muitas das afirmações de Weber contra o domínio burocrático eram direcionadas contra esses acadêmicos, que não só formavam um grupo de status que se contrapunha, em grande medida, aos valores liberais, como defendiam uma concepção de política que condenava partidos e a política de interesses em nome de uma política “neutra” promovida por oficiais7.

Tendo em vista tal contexto, a discussão do papel do professor e das instituições universitárias retraçada na seção anterior pode ser situada em uma preocupação mais ampla com os rumos da sociedade alemã, especialmente no que concerne à submissão da política à burocracia. Ao considerar que os acadêmicos estavam entre aqueles que mais defendiam o domínio burocrático e proferiam valores antiliberais, a argumentação de que o professor não pode ser um profeta - para além de sua defesa da neutralidade axiológica - relaciona-se com a tentativa de abrir espaço para a esfera da política, ao buscar a separação entre as duas esferas.

Não é por acaso que, ao discutir a intervenção do Ministério da Educação prussiano nas universidades, enfatiza-se a participação ativa dos acadêmicos nesse processo. Ele admite que a culpa de banir das universidades aqueles acusados de serem “perigosos para o Estado” pertence também às faculdades, cujas congregações agiam voluntariamente em nome da “polícia política”, deixando de fora dela judeus, ateus e socialistas (WEBER, 1989, p. 68). As universidades alemãs teriam, então, grande responsabilidade na perda de sua independência frente ao Estado.

Em sua biografia sobre o sociólogo, Marianne Weber (2003) afirma que muitos colegas de cátedra de seu marido rejeitavam suas posições sobre a universidade e a ciência. Seus críticos argumentavam que a função primeira da universidade alemã era formar jovens cidadãos dóceis, prontos para atuarem em favor do Estado e da Igreja. Consideravam que, como todos os outros funcionários da burocracia estatal, os professores deveriam ser selecionados para servir ao governo. Desse comportamento acadêmico pode-se deduzir que o professor, muito mais que ser qualificado para a função de professor e pesquisador, deveria ter como pressuposto a subserviência às autoridades estatais e eclesiásticas (JÚNIOR, 2010).

Weber, como se sabe, contrapõe-se a esse argumento comum entre seus colegas, de que o Estado não pode permitir que a universidade dissemine doutrinas que são a ele hostis, para fazer, assim, uma reflexão mais aprofundada sobre o tema:

As universidades não têm, como tarefa sua, transmitir qualquer ponto de vista ou opinião que seja quer “hostil ao Estado”, quer “favorável ao Estado”. Elas nas são instituições destinadas à inculcação de valores morais absolutos ou fundamentais. Elas examinam os fatos, suas condições, leis e inter-relações; examinam os conceitos, seus pressupostos lógicos e seu verdadeiro significado (WEBER, 1989, p. 69-70).

Para Weber, não cabe às universidades se pronunciarem a favor ou contra o Estado, pois não são escolas de inculcação de valores absolutos, nem produtoras de doutrinas de salvação, portanto, dedica espaço em diversos de seus escritos à questão universitária, para criticar a lógica das contratações da universidade, citando os casos de Sombart, Simmel e Michels, distintos pesquisadores que tiveram dificuldades em achar espaço na vida acadêmica alemã por motivos de personalidade, religião e posição política, respectivamente8. O autor ressalta, também, a importância das nomeações serem feitas, exclusivamente, a partir de critérios científicos:

Toda concessão feita pelas congregações a motivos não-intelectuais e, de maneira especial, todo desvio do princípio fundamental de nomear tantas pessoas intelectualmente notáveis quanto possível, acabam por revidar com a debilitação, em última instância, da autoridade moral das congregações (WEBER, 1989, p. 41).

Ao mesmo tempo, o autor destaca que não são, predominantemente, os professores “radicais”, mas sim os ostensivamente conciliadores “diplomáticos” aqueles que deixam de respeitar os deveres de probidade intelectual e “tomam para si o privilégio de educar seus estudantes dentro de determinadas crenças políticas” (WEBER, 1989, p. 71-2). O que permite afirmar que, subjacente à discussão sobre o papel do professor e das questões universitárias da época, está uma preocupação em olhar para a própria função da universidade.

A preocupação central de Weber nos escritos sobre a universidade se assemelha, em muitos pontos, à sua preocupação com o espaço da política, sendo possível não só fazer um paralelo entre a dominação burocrática na política e a dominação burocrática na universidade, mas também uma relação entre as “soluções” weberianas propostas para os dois domínios. Ao discutir a questão da burocracia na política, enfatiza muitos de seus limites, que se referem tanto a diferenças de responsabilidade quanto de mentalidade. Se o funcionário deve realizar um trabalho diligente, a partir de regulamentos e instruções, o político deve tomar decisões políticas relevantes; enquanto o burocrata deve sacrificar suas convicções pessoais à obediência hierárquica, o líder político se caracteriza por assumir publicamente a responsabilidade de seus atos:

[...] um funcionário que recebe uma diretriz a qual ele considera errônea pode e deve objetar a ela. Se seu superior insistir na execução de tal diretriz, é dever do funcionário e até seu motivo de orgulho executá-la como se isso correspondesse à sua convicção mais íntima, demonstrando assim que sua consciência do dever coloca-se acima de suas preferências pessoais [...]. Um líder político que agisse desta maneira mereceria desprezo (WEBER, 1974, p. 73).

A natureza mesma do funcionalismo moderno seria desfavorável ao desenvolvimento da autonomia política, pois a essência da esfera política é o conflito e o recrutamento de aliados e de adeptos voluntários9. A luta pelo poder e a responsabilidade seriam características fundamentais do “homem de vocação”, político ou empresário, e, além disso, como já dito, a burocracia não seria uma maneira de transcender os interesses de classe, como queriam alguns. Em resumo, Weber rejeitava a visão de que para tratar dos grupos de interesse econômico era necessário ou subordiná-los à direção burocrática ou integrá-los a um estado corporativo. Essas duas alternativas impediriam o desenvolvimento “normal” do capitalismo, que consiste na livre associação formal de interesses econômicos (BEETHAM, 1992).

Se o avanço burocrático deveria ser refreado, Weber buscou elencar algumas possibilidades para tal: (1) fortalecimento do parlamento e do voto popular, a fim de produzir líderes políticos; (2) fortalecimento dos partidos políticos, também para a seleção desses líderes10; (3) fortalecimento das associações11 (ou da sociedade civil, em linguagem contemporânea); e (4) incentivo aos empreendedores capitalistas e à competição.

Uma das formas discutidas para frear a burocracia seria, então, o avanço do capitalismo empreendedor. Contudo, ao analisar a situação da Alemanha, Weber se depara com uma burguesia conservadora, interessada em transformar suas conquistas em distinções aristocráticas, a partir da compra de terras e títulos. Situação semelhante ele encontra ao analisar a questão universitária, deparando-se com estudantes mais interessados em “participar de um duelo” ou transformar-se em “oficial de reserva” do que na formação especializada que a universidade poderia fornecer. Ao analisar, por exemplo, a criação de escolas superiores de comércio na Alemanha, Weber critica a existência,

[...] no seio da nova geração de empresários, tanto no comércio como na indústria, de um anseio por aquele tipo feudal de prestígio conferido pelo uso das cores de uma sociedade estudantil, pelos golpes de sabre, e, acima de tudo, por estar qualificado a dar “reparação” em um duelo e, com isso, tornar-se um oficial de reserva, coisas que se adquirem pela forma tradicional de vida estudantil que se leva em detrimento do estudo intensivo [...], nem a posse de uma faixa colorida [das sociedades estudantis], nem a posse de um cargo de oficial, é, por si só, prova de que seus portadores podem realizar o trabalho duro e sério sem o qual a burguesia comercial e industrial mão manterá a posição da Alemanha no mundo (WEBER, 1989, p. 102-4).

O fato de as universidades formarem a burocracia estatal na Alemanha e serem veículo de ascensão à “nobreza”, e não ao conhecimento especializado, auxiliaria em sua burocratização. Além disso, é importante destacar que a principal razão para o capitalismo empreendedor se constituir como uma alternativa a ser considerada reside na ideia de competição, também presente na discussão sobre a questão universitária. Weber acreditava que, se o sistema universitário conseguisse permanecer descentralizado e com verdadeiro caráter competitivo, não seria um ministro que o poderia afetar significativamente. Esse é um dos motivos de seu interesse pelo sistema norte-americano, em que cada uma das instituições possuía alguém fazendo o papel de Althoff - no caso específico, os presidentes das diversas universidades (WEBER, 1989). A competição entre as universidades seria, portanto, o melhor mecanismo para assegurar a qualidade acadêmica, a contratação dos melhores profissionais - independentemente do credo religioso ou da convicção política - e a produção de conhecimento fora dos limites impostos pelo Estado.

A última “solução” weberiana para o problema da burocracia, que se relaciona diretamente aos seus escritos sobre a universidade, é a importância do desenvolvimento de lideranças políticas com vocação e senso de responsabilidade - seja por meio da educação política, de um parlamento forte, do fortalecimento dos partidos políticos, da criação de associações da sociedade civil, seja ainda por meio do capitalismo competitivo. O líder plebiscitário seria fundamental para contrabalancear tanto o domínio burocrático quanto o domínio, na política, de interesses de classe e fatores econômicos, pois, se a política não deveria ser reduzida ao poder enquanto fim em si, tampouco deveria ser reduzida a uma mera extensão da vida econômica.

Segundo Beetham (1992), Weber, mormente em seus últimos escritos políticos, vai distanciando até divorciar quase completamente o líder político do parlamento, defendendo um poder independente e dado diretamente pelo voto de massa, para transcender os conflitos e compromissos dos interesses econômicos no interior do parlamento. Para ele, os ideais que mereciam ser perseguidos pela política eram aqueles que transcendiam os interesses materiais, ou seja, aqueles de tipo liberal, nacional e cultural. Dessa forma, o líder seria importante não apenas para fazer contraste com a burocracia, mas também com a economia.

Discussão similar é realizada no âmbito da questão universitária: o domínio burocrático e o desvio das finalidades acadêmicas estariam impedindo a formação de lideranças no interior da comunidade acadêmica, deixando-a ainda mais suscetível à perda de sua autoridade enquanto espaço de formação e de produção de conhecimento:

[...] se o Estado concebe a influência de que goza - em consequência da situação econômica das universidades - como um meio de conseguir determinada obediência política no seio dos estudantes universitários, em vez de encará-la como um pressuposto de responsabilidade cultural, então os interesses da ciência e da erudição dentro de tal tipo de “Estado” não estão melhor servidos e, de fato, sob muitos aspectos, estão pior servidos do que em sua anterior situação de dependência da Igreja (WEBER, 1989, p. 69).

A solução estaria, precisamente, na criação de uma organização de professores universitários para discutir as preocupações comuns a todos:

[...] uma organização de professores universitários, com uma liderança inteligente, poderia reacender o sentimento de orgulho corporativo da próxima geração acadêmica para contrabalançar o “ponto de vista prático” e, com isso, contribuir para o restabelecimento gradativo do peso moral das universidades, atualmente em queda (WEBER, 1989, p. 44).

A consequência inevitável de não existir uma organização desse tipo, com lideranças fortes e que permita a expressão organizada da “opinião pública” da classe acadêmica, seria que cada professor, em seu isolamento, precisaria recorrer ao uso da imprensa a fim de se manifestar.

Em suma, Weber acreditava que a solução seria um retorno ao orgulho profissional do professorado, o fortalecimento de lideranças universitárias e a resistência às políticas centralizadas praticadas pelo Ministério de Educação da Prússia. O sucesso de tal mobilização dependeria, também, da boa vontade do governo prussiano no trato com o professorado e no respeito à autonomia da profissão e às instituições acadêmicas.

É importante lembrar, mais uma vez, que a política era tida como esfera da perseguição de valores não materiais, como o da liberdade. Em um mundo dominado pela burocracia, onde tudo é calculado, tanto a produção quanto o trabalho estatal - onde o ritmo não é ditado pelo indivíduo, mas por algo externo a ele, a que não possui interferência -, não há liberdade, não há espaço para o novo. A tendência é uma vida em que tudo se repete, em que não há criatividade, em que os indivíduos são meramente reprodutores de práticas que não pertencem a eles. Weber aponta para um declínio da liberdade humana face ao aumento da racionalização da vida, da burocratização das estruturas econômicas e políticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível afirmar que no centro dos valores liberais que Weber proferia estava o da liberdade, tanto no âmbito político quanto no âmbito acadêmico e em todas as esferas da vida. O tema da liberdade estava mais presente em seus escritos sobre a revolução de 1905-1906, na Rússia (WEBER, 2005), em que ele se perguntava quais seriam as chances da liberdade na Rússia ou, em particular, quais as forças sociais que poderiam agir como suporte a um programa de tipo liberal.

Beetham (1992) destaca que existem três conceitos diferentes e entrelaçados de liberdade em Weber. Primeiramente, tem-se a liberdade associada ao individualismo econômico, que o autor via ameaçada por conta da concentração de propriedade no capitalismo e da eliminação dos pequenos empreendedores. Em segundo lugar, tem-se as liberdades civis e políticas, que precisariam ser consolidadas a partir de instituições parlamentares fortes e da competição pelo poder. Por fim, vê-se a concepção de liberdade vinculada ao ideal de autonomia pessoal, ou de responsabilidade, acepção essa que comporta o problema mais universal da liberdade em uma sociedade racionalizada.

A liberdade, em Weber, está necessariamente acompanhada da discussão em torno da responsabilidade ética: a partir de meios previamente dados, o agente calcula as possibilidades e as consequências de sua ação. Assim, a ética da responsabilidade aparece como oposta à ética - irracional - da convicção, que despreza as consequências indesejadas das ações. A liberdade é aquela da autodeterminação individual, em um modo de agir que ganha sua orientação de valores e interpretações da vida, e que, no entanto, deve se desenvolver junto a uma visão imparcial da realidade e em virtude do conhecimento pessoal das relações, tendências e chances dadas de forma objetiva.

O único ambiente favorável para esse tipo de liberdade seria uma nação não controlada por burocratas, onde os líderes pudessem buscar soluções inovadoras para seu país. Somente a política poderia trazer liberdade à modernidade, pois nela existiria a tomada de decisões e a possibilidade de surgimento do novo. Contudo, até mesmo no sistema universitário, o local de pesquisas supostamente livres, onde o indivíduo possuiria total controle sobre aquilo que faria, a lógica racionalizante já havia penetrado. Segundo sua esposa, “a universidade como ele imaginava não deveria ser uma ‘igreja’ nem uma ‘seita’ nem uma instituição defensora do Estado, mas um foro de liberdade e luta intelectual” (WEBER, 2003, p. 354).

Weber dedicou, ainda, dois artigos curtos ao tema da liberdade acadêmica, examinando a intrusão de outros interesses em assuntos acadêmicos que se aplicam a consultas, pesquisas e ensino (ou seja, a liberdade acadêmica de ambos: professor e aluno). A discussão de liberdade acadêmica, em sua época, estava muito concentrada na limitação oferecida pelo clericalismo e, em menor medida, pela intervenção estatal. O autor busca destacar, então, que haveria outros obstáculos, de cunho intrauniversitário, como a adesão ativa dos acadêmicos às injunções externas, por isso afirma, em diversos momentos, que a liberdade acadêmica existiria apenas quando houvesse uma rigorosa aplicação de critérios científicos e acadêmicos na seleção e nas decisões tomadas na universidade: a liberdade da ciência “em uma universidade não existe quando se faz com que a nomeação para uma função docente seja dependente do fato de que se possua - ou que se simule - um certo ponto de vista que seja ‘aceitável nos círculos mais altos’ da Igreja e do Estado” (WEBER, 1989, p. 56). O sociólogo alemão defende, em resumo, que, em uma universidade, ninguém deve ser punido ou premiado por portar uma ideologia.

Sua defesa se relaciona com sua decepção de que os grandes problemas da Alemanha não podiam ser discutidos na universidade, especialmente em razão da conjuntura política. Assim, questões como a manutenção da monarquia e sua compatibilidade ou não com a emergência da Alemanha como grande potência eram temas proibidos, ainda que fundamentais. Destaca, também, a influência debilitadora, digamos assim, que a presteza de seus colegas em se curvar diante do prestígio e do poder da monarquia imperial e de seus agentes políticos e administrativos exercia sobre as tradições universitárias.

O fato de as universidades obedecerem ao Estado que as financia implica uma obediência política do estudante, em vez de encará-la como problema cultural e intelectual. Em outras palavras, limita a liberdade de reflexão, quando deveria incentivá-la, em um ambiente cujo clima propenso à crítica é quase inexistente. A universidade, que poderia ser o espaço da crítica e do exame racional de ideias de valor e da avaliação da relação entre meios e fins, é vista pelo autor como instrumento de manutenção do domínio burocrático, algo que ele não podia tolerar.

Material suplementar
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Notas
Notas
1 Toda tomada de posição tem que lidar, para Weber, com a existência de fatos “inconvenientes”, e é tarefa primordial do professor ensinar seus alunos a reconhecer e a se habituar à existência de fatos inconvenientes para suas opiniões pessoais.
2 O conceito de desencantamento do mundo tem em Weber um significado bastante complexo, comportando muitas variantes e nuances. Nesta exposição, será usado o termo de forma a relacioná-lo, principalmente, à ideia de desencantamento como “perda do sentido”, muito embora a dimensão do desencantamento como “desmagificação” seja fundamental para a plena compreensão do conceito (cf. PIERUCCI, 2003).
3 De forma alternativa e complementar, é possível seguir o trabalho de Carlos Eduardo Sell (2012), que busca retraçar o que seria uma Sociologia da ciência weberiana, ao sustentar que esta possuiria uma dupla dimensão: uma de caráter amplo e histórico-cultural, em que a ciência representaria o desenlace de um longo processo de racionalização teórica-dinâmica interna, motivada pelo desencantamento do mundo; outra de caráter específico e sociológico-estrutural, em que a ciência representaria uma esfera cultural de valor e uma ordem de vida delimitada da estrutura social moderna, regida por uma legalidade própria: a visão causal de mundo.
4 O fato de o conhecimento científico sempre incidir sobre aspectos limitados da realidade, em razão de existir um número infinito de ocorrências no espaço e no tempo, e de jamais poder captar o todo, é também parte da argumentação de Weber do porquê a ciência não confere sentido à ação humana (cf. WEBER, 2006a).
5 Associação para a política social, fundada em 1872, era um espaço de discussão e pesquisa que ocupou lugar de destaque nos debates políticos e intelectuais acerca da política social e econômica na Alemanha do Segundo Império (GRIGOROWITSCHS, 2012).
6 Além disso, a educação, pública ou privada, também é considerada como prestação de serviço destinada a um público específico, e, portanto, pelas concepções weberianas, as instituições educacionais também estariam sujeitas ao domínio da burocracia moderna (JÚNIOR, 2010).
7 Ringer (2000) destaca, nesse sentido, que o compromisso desses “mandarins” com o status quo foi aumentando progressivamente, à medida que as pressões das classes mais baixas ameaçavam seus privilégios de classe e que tomava corpo a identificação da democracia com a ideia de massificação e nivelamento. Nesse sentido, a comunidade acadêmica vai assumindo, assim, o papel de establishment vagamente conservador e claramente oficial.
8 Simmel jamais fora indicado a uma cátedra em Berlim, apesar de ser um sociólogo reconhecido; Robert Michels, judeu e socialista, precisou ir para a Universidade de Turim para conseguir uma vaga.
9 Por isso, inclusive, Weber considera que, para o político moderno, a escola de lutas apropriada é o parlamento e as disputas dos partidos perante o público, dedicando parte significativa de seus escritos políticos a convencer seus contemporâneos da importância de um parlamento forte e de partidos políticos, como o da social-democracia (WEBER, 1974; 1982b; MOMMSEN, 1992).
10 Os partidos são considerados pelo autor um dos principais componentes da sociedade civil, uma das principais formas de formação e seleção de líderes. Contudo, ao mesmo tempo, mostra-os como um dos espaços já burocratizados ou suscetíveis à burocratização da sociedade alemã (WEBER, 1982b). Esse dilema, entre a “salvação” da democracia e a burocratização, precisa ser ainda melhor trabalhado.
11 As associações estão fundamentadas no particularismo, barreira de entrada a novos membros, seleção pelas características éticas dos postulantes, na possibilidade (e no medo) de sanção e no voluntarismo. Essas características produziriam um mecanismo social rígido de disciplina moral e autocontrole em seus membros, além de qualidades éticas. Ademais, a existência do pluralismo, da heterogeneidade e da competição (e não da comunidade, da integração e do sentimento) faria com que fosse necessária a autoafirmação constante dos indivíduos, desenvolvendo a individualidade ética com potencial para a liderança (WEBER, 2002).
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