ARTIGO

O TERROR DO POSITIVO: O alienista e o positivismo comteano

THE TERROR OF THE POSITIVE: O ALIENISTA AND COMTE’S POSITIVISM

Elton Corbanezi
Unicamp, Brasil

O TERROR DO POSITIVO: O alienista e o positivismo comteano

Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 22, núm. 1, pp. 209-232, 2015

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Resumo: O objetivo deste artigo é interpretar O alienista, de Machado de Assis, em relação a determinados postulados teóricos da Sociologia positivista de Auguste Comte. Examinando alguns temas caros ao positivismo, que receberam, no Brasil, a designação de política higienista, pretende-se mostrar como a ironia machadiana pode enunciar o “terror” do positivismo e denunciar logicamente a fragilidade científica do alienismo da época. Por fim, procura-se evidenciar a potência e a atualidade críticas dessa criação literária em relação à pretensa positividade científica da psiquiatria contemporânea.

Palavras-chave: O alienista, positivismo, ciência, poder, psiquiatria.

Abstract: The objective of the article is to interpret O Alienista, by Machado de Assis, in relation to certain theoretical postulates of the positivist Sociology by Auguste Comte. Examining some important subjects for the positivism, which had received, in Brazil, the designation of hygienist policy, it’s intended to show how Machadian narrator’s irony enunciates the “terror” of the positivism and denounces logically the scientific fragility of psychiatry of the time. Finally, we intend to highlight the critical potency and present of this literary creation regarding the presumed scientific positivity of the contemporary psychiatry.

Keywords: O alienista, positivism, science, power, psychiatry.

APRESENTAÇÃO

O objetivo do ensaio consiste em interpretar o conto O alienista [1882], de Machado de Assis, em relação a determinados princípios e postulados teóricos da Sociologia positivista de Auguste Comte. Para tanto, chama-se a atenção, inicialmente, para a relevância do positivismo no contexto nacional, indicando a recepção crítica dessa doutrina pelo narrador machadiano de O alienista. Em um segundo momento, ao examinar o método positivista e a fundamentação da desigualdade natural entre os homens, que a Física Social comteana elabora com base em preceitos biológicos da época, pretende-se mostrar como pode se constituir a submissão natural ao poder médico e científico próprio do homem superior, que supostamente presta um serviço à humanidade. Segundo o positivismo comteano, é mediante a submissão às regras elaboradas por indivíduos seletos - como representa a personagem do Dr. Bacamarte - que o progresso social se torna realizável. Em seguida, analisa-se de que forma a ironia machadiana pode se realizar em relação a pressupostos positivistas da medicina higienista brasileira, tais como a incorporação da desigualdade natural entre os homens e os sexos e a prescrição do amor higiênico e pragmático. De modo conclusivo, procura-se ressaltar a atualidade crítica dessa criação literária em relação à pretensa positividade científica da psiquiatria contemporânea.

“POSITIVAMENTE O TERROR”: O ALIENISTA E A RELEVÂNCIA DO POSITIVISMO NO CONTEXTO NACIONAL

Em certo momento da narrativa d’O alienista, de Machado de Assis, o protagonista Simão Bacamarte faz internar todos os indivíduos considerados “desequilibrados”. O “critério científico” do alienista para diagnosticar e qualificar desse modo os habitantes do pequeno vilarejo de Itaguaí se restringe ao “fato” de que eles portam os vícios mais triviais da natureza humana. Diante disso, o narrador machadiano exprime, de maneira sentenciosa, o terror positivo que das internações se sucede.

Mas como explicar que, logo em seguida, fossem recolhidos José Borges do Couto Leme, pessoa estimável, o Chico das Cambraias, folgazão emérito, o escrivão Fabrício, e ainda outros? O terror acentuou-se. Não se sabia já quem estava são, nem quem estava doudo. As mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dous capangas. Positivamente o terror [grifos colocados] (ASSIS, 2006, p. 268)1.

Nesse fragmento em que o advérbio “positivamente” confere precisão ao substantivo “terror”, pode-se extrair a manifestação de um terror positivo. Ao se atentar a essa expressão, o leitor se depara, no entanto, com um adjetivo que qualifica positivamente um substantivo, que é, por definição, temeroso. Estar-se-ia, então, em face de uma mera e inconsequente contradictio in adjecto? A riqueza da peça literária que se tem diante dos olhos induz o leitor a recusar tal leviandade e a levar a sério a sentença, interpretando-a como uma referência precisa do narrador machadiano ao positivismo de Auguste Comte2. Um fato histórico autoriza essa hipótese: no ano de publicação d’O alienista em folhetim3, fundou-se, no Brasil, mais precisamente no Rio de Janeiro, o Apostolado Positivista (1881), o qual consolidou a recepção e a difusão do positivismo comteano, que adquiriu ainda maior visibilidade no país com a Proclamação da República, em 1889.

Ungido como iniciado ao sacerdócio da humanidade por Pierre Laffitte - sucessor oficial de Auguste Comte, na França -, Miguel Lemos regressa de Paris no início de 1881 e assume a direção da Sociedade Positivista, que se tornaria, em maio do mesmo ano, a Igreja Positivista do Brasil, ativa até a morte de seu discípulo Raimundo Teixeira Mendes, em 1927. Quem relata é Alfredo Bosi (2005, p. 161-164), que, após pesquisar o alcance e a duração da ideologia positivista no Brasil, por meio das publicações do Apostolado Positivista pertencentes ao acervo de João Cruz Costa, afirma que os principais autores de tais publicações, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, teriam sido nossos verdadeiros e notáveis “comtistas”.

Com seu lema - “O Amor por princípio e a Ordem por base, o Progresso por fim” -, gravado no frontispício do Apostolado Positivista localizado na então capital do país, a doutrina comteana parece ter encontrado sua pátria nas diversas províncias do Brasil Imperial4. A partir do que professava Paul Arbousse-Bastide, “um eminente estudioso de Comte”, Paulo Arantes (1988, p. 186) mostra como o Brasil se tornou, ironicamente, a verdadeira pátria do positivismo: “Os positivistas brasileiros, costumava dizer o mestre francês aos seus alunos da Universidade de São Paulo, foram os únicos a compreender as verdadeiras intenções de Auguste Comte”.

Com efeito, como consequência da influência positivista nos meios intelectuais, culturais e políticos dos oitocentos, foram gravados no dístico de nossa bandeira nacional - por sugestão de Benjamin Constant, célebre positivista, considerado o “fundador da República” - os princípios norteadores da filosofia comteana: “Ordem e Progresso”. Nas palavras de Alfredo Bosi (2005, p. 174), a divisa da nova bandeira nacional “representou talvez a vitória simbólica mais ostensiva da linguagem de Comte na construção do imaginário republicano”.

Ainda conforme Bosi (2012), segundo o qual o estudo do positivismo é uma arqueologia do Estado brasileiro, a aplicação dos princípios básicos da ortodoxia positivista francesa no Brasil apresentou alguns benefícios.

Pertencem ao saldo positivo: o pensamento antropológico anti-racista; a precoce adesão à campanha abolicionista mais radical; a luta pelo estado republicano leigo com a conseqüente instituição do casamento civil, do registro civil obrigatório e da laicização dos cemitérios; a exigência sempre reiterada da austeridade financeira no trato da coisa pública; enfim, o interesse pela humanização das condições de trabalho operário, que resultou, tanto na França da Terceira República quanto no Brasil, em propostas de leis trabalhistas, afinal implementadas quando políticos gaúchos de formação positivista ascenderam ao poder central em 1930 (BOSI, 2005, p. 161).

Por outro lado, menos convencido acerca de tais conquistas, Paulo Arantes (1988, p. 192) se volta, de maneira crítica e às vezes irônica, contra os efeitos ideológicos do positivismo no Brasil, a fim de evidenciar, na esteira de Roberto Schwarz, os “transplantes descalibrados” da doutrina francesa para um país liberal-escravista de origem colonial. Para dar um único exemplo, veja-se o paradoxo colocado pelo filósofo brasileiro acerca da política abolicionista defendida também pelos positivistas: “A Civilização e a agricultura científica exigiam a abolição do trabalho servil, porém a mais científica das filosofias da história condenava pela raiz o sentimento retórico dos abolicionistas, mal estribados na ficção metafísica do direito natural” (ARANTES, 1988, p. 189). Nesse sentido, demonstrando como a doutrina comteana adquiriu sua verdadeira pátria no Brasil - afinal, “como o atraso fosse horroroso [...] as idéias modernas eram sempre bem-vindas” (ARANTES, 1988, p. 188) -, o autor evidencia uma questão inegavelmente falível do positivismo: a epistemologia. Se o positivismo comteano pareceu vingar em um terreno tão árido como o nosso, diz Paulo Arantes (1988, p. 185), “foi porque a própria secura do ambiente ia se encarregando de enxugar as ambições epistemológicas em proveito das promessas de redenção social que encerrava”.

Ora, é contra essa nova epistemologia - sem deixar de considerar que na epistemologia está implicada a política - que o conto machadiano pode incidir de forma irônica e crítica. Portanto, em vez da adesão ao contemporâneo enaltecimento dos princípios positivistas, como nossa história dá a ver, a sentença “positivamente o terror” pode manifestar outra recepção do positivismo, encarnado na figura do alienista Simão Bacamarte. Em vez do aspecto positivo de uma filosofia considerada útil e concreta no século XIX, depreende-se da fórmula machadiana a depreciação do positivismo como sistema filosófico e científico.

Por meio da ironia e da dissidência em relação ao fascínio de seus contemporâneos pela ciência, Machado de Assis pode realizar, em O alienista, uma crítica social que questiona os limites entre a loucura e a normalidade, os quais emergem do discurso científico positivista do século XIX. Uma das maneiras pela qual o autor realiza tal questionamento ocorre com a criação, em pleno século cientificista, de uma personagem que pode enunciar uma palavra a um só tempo todo-poderosa e precária. Segundo o estudo de Augusto Meyer (1935, p. 12-13), que relaciona o escritor brasileiro com o autor de Memórias do subsolo, Fiódor Dostoiévski, além de imprimir vida ao texto, tal orquestração operada pelo narrador não é senão um procedimento próprio da perspectiva do homem do subterrâneo, cujo objetivo é a supressão do mundo em seus valores vigentes. Daí o humorismo d’O alienista ser, segundo o crítico, uma viagem direta aos domínios do absurdo - “e nunca o riso de Machado de Assis foi mais feroz, mais consciente, mais voluptuoso” (MEYER, 1935, p. 67-74).

De fato, o movimento dos enunciados do Dr. Simão Bacamarte permite perceber o significativo ceticismo do escritor brasileiro diante de um mundo que se despede e outro que chega enraizado no primado iluminista da razão: basta notar que, em O alienista, se descreve um país colonial em seus hábitos, no qual se introduz, todavia, a novidade do mundo moderno da ciência, cuja função, depreendida do papel do protagonista, seria a modernização e a civilização dos hábitos sociais. Com um pé no passado e o olhar no futuro, Machado de Assis percebe, de maneira perspicaz, que os valores de um mundo não são os do outro. Sobre o modo machadiano de apreender tal transição, afirma Raymundo Faoro (1974, p. 3-4):

Os valores de um [mundo] não são os valores do outro, as regras de conduta se partem, vazias para quem olha para trás, indefinidas, incertas, vagas para quem sente a hora que soa, sem compreendê-la plenamente, incapaz de amá-la, toldado pela melancolia. [...] Perdido na mudança, no fogo cruzado de concepções divergentes do mundo, sem conseguir armar a teia da sociedade e identificar-lhe os fios, o autor [Machado de Assis] estiliza os fatos e os homens, na armadura de um esquema da própria transição. O prestígio das personagens antigas já não convence o espectador, enquanto os recém-vindos ainda sofrem a mácula do desdém. Na estrutura dualista, a ponte - a artificial estilização - não solda as categorias que, apesar de acomodadas, resistem aos símbolos comuns da integração.

Com uma orientação teórica distinta de Raymundo Faoro, Roberto Schwarz também incide, mediante a literatura machadiana, sua crítica nessa transição que ocorre em um contexto adverso no Brasil. Por outro caminho, Schwarz (2000a) defende a tese de que as ideias difundidas pela cultura europeia estariam deslocadas e não ajustadas a uma sociedade periférica. Por meio da noção de “ideias fora do lugar” - a qual, como visto, é também perseguida por Paulo Arantes (1988) -, o crítico sustenta a existência da impropriedade de ideologias de origem europeia (o positivismo, o naturalismo e o liberalismo) em relação a uma estrutura econômica ainda escravocrata. Assim, as “ideias ilustres” de homens iluminados se configuram no Brasil como uma “comédia ideológica” de segundo grau (SCHWARZ, 2000a, p. 12-19). Ao longo de sua reprodução social, “incansavelmente o Brasil põe e repõe idéias européias, sempre em sentido impróprio” - e é precisamente esse caráter de impropriedade das ideias europeias no contexto nacional que Machado de Assis elegeu para sua ficção, assegura Schwarz (2000a, p. 29). Dessa perspectiva, questionando ceticamente a permanência dessas ideias que se instalavam no Brasil em nome de uma suposta cientificidade, o mapeamento do descompasso constitui o esquema crítico da literatura machadiana5.

A SUBMISSÃO NATURAL AO PODER MÉDICO-CIENTÍFICO DO HOMEM SUPERIOR

Realizada essa contextualização sintética, veja-se como O alienista pode dialogar diretamente com alguns postulados da doutrina comteana. Dado que a exposição do sistema positivo, em sua totalidade, foge ao propósito deste artigo, deter-se-á nos princípios que podem ser relacionados ao conto; comece-se pelo método positivista.

Com o abandono de explicações próprias aos estágios teológico e metafísico, a extração de regularidades e de leis objetivas dos fenômenos no positivismo consiste nos procedimentos de observação, experimentação, comparação e classificação. Em O alienista, o médico Simão Bacamarte, caricaturado pelo conflito teológico com Padre Lopes, fundamenta sua ciência de observação racional como uma experiência que poderia transformar a face da terra, se embasada em uma investigação constante, que lhe permitisse classificar e comparar os casos. Movido pela exigência de estabelecer em Itaguaí o “reinado da razão” (ASSIS, 2006, p. 286), a qual aparece como uma pérola em meio à vasta concha que compõe o espírito humano6 - uma raridade, portanto, em meio à espécie humana -, o protagonista do conto aspira a uma experiência passível de realização apenas por meio da investigação constante. Leia-se, então, como Bacamarte define seu objeto:

Simão Bacamarte estudava por todos os lados uma certa idéia arrojada e nova, própria a alargar as bases da psicologia. Todo o tempo que lhe sobrava dos cuidados da Casa Verde, era pouco para andar na rua, ou de casa em casa, conversando as gentes, sobre trinta mil assuntos, e virgulando as falas de um olhar que metia medo aos mais heróicos.

Um dia de manhã, - eram passadas três semanas [da partida da comitiva ao Rio de Janeiro], - estando Crispim Soares ocupado em temperar um medicamento, vieram dizer-lhe que o alienista o mandava chamar.

- Trata-se de negócio importante, segundo ele me disse, acrescentou o portador. [...] Simão Bacamarte recebeu-o com a alegria própria de um sábio, uma alegria abotoada de circunspecção até o pescoço.

- Estou muito contente, disse ele.

- Notícias do nosso povo [referindo-se à comitiva]? Perguntou o boticário com a voz trêmula.

O alienista fez um gesto magnífico, e respondeu:

- Trata-se de cousa mais alta, trata-se de uma experiência científica. Digo experiência, porque não me atrevo a assegurar desde já a minha idéia; nem a ciência é outra cousa, Sr. Soares, senão uma investigação constante. Trata-se, pois, de uma experiência, mas uma experiência que vai mudar a face da terra. A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente [grifos colocados] (ASSIS, 2006, p. 260).

Com sua cientificidade explicitamente importada da Europa, a personagem, que também pode ser considerada um tipo, crê no pressuposto positivista de “viver para outrem”, pois acredita poder prestar com sua ciência um “bom serviço à humanidade” (ASSIS, 2006, p. 256). Contudo, é também por essa cientificidade que o alienista pode fundamentar e justificar sua superioridade diante de todos os cidadãos itaguaienses. É o que se compreende, se considerada a proposição positivista da necessidade do progresso e da ordem a partir da submissão da maior parte da espécie humana à razão-inteligência (a pérola, na expressão de Bacamarte) e da qual o único portador em Itaguaí parece ser o alienista. Entenda-se essa formulação no interior do sistema positivo de Comte7.

Do mesmo modo que a psiquiatria se constituiu como uma ciência da ordem social, desejando legitimar e justificar seu caráter positivo e médico pela explicação e causalidade fisiológicas, Lelita Oliveira Benoit (1999) demonstra como as reflexões sociais de Auguste Comte, a partir de 1822, procuraram suas justificativas positivas em ideias e contribuições advindas da Biologia e da Fisiologia do século XIX. É que a Sociologia proposta por Comte deveria se fundamentar não em categorias teológicas e metafísicas, mas em categorias modernas e científicas, as quais poderiam ser fornecidas pela biologia e pela “ciência da vida”. Sob o paradigma da biologia, era necessário fundamentar as regularidades e leis da história social do homem, pois os comportamentos humanos estariam embasados em determinações fisiológicas.

Em Curso de filosofia positiva [1830-1842], pode-se encontrar o entrecruzamento teórico da sugerida ciência do social de Auguste Comte com a nascente biologia do século XIX. Contudo, conforme observa Benoit (1999, p. 276-277), isso já estava expresso no texto Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade, escrito pelo jovem Comte, em 1822, e reunido em Opúsculos de Filosofia Social [1819-1828]. Nesse texto, encontra-se explicitada a ideia de que, enquanto a fisiologia deveria se ocupar dos fenômenos individuais, do homem concebido isoladamente, a Física Social deveria se circunscrever às tarefas relativas ao conhecimento dos fenômenos coletivos, isto é, da totalidade da espécie humana. Tratar-se-ia, portanto, de duas fisiologias: uma de aspecto social, a da espécie, que é a Sociologia, designada ainda como física social, e a outra, do indivíduo, a fisiologia propriamente dita8. Segundo Comte (1972a, p. 129-130), “era natural que se procurasse fazer a física social entrar inteiramente no domínio da fisiologia, quando não se via outro meio de lhe imprimir caráter positivo”. Comte elabora sua teoria social calcado, portanto, na teoria biológica do século XIX, para a qual os órgãos são instrumentos9 cujo trabalho ou cujas funções combinadas têm como resultado e finalidade a manutenção da vida. Assim, a Sociologia comteana

[...] afirmará que a existência social é composta por um conjunto de funções (do poder espiritual, do poder temporal, do proletariado, dos artistas, das mulheres) que concorrem para o funcionamento do organismo social. Funções estas que serão, além disso, consideradas “naturais” tanto quanto não deve caber a nenhuma teoria social tentar explicar sua razão de ser ou gênese (BENOIT, 1999, p. 302).

Desse modo, com base na fisiologia, a explicação da psique humana também deveria ser atribuída positivamente a esse saber, e não à especulação da Psicologia Filosófica. Junto ao fisiologista Broussais, Comte (1972b) despreza qualquer possibilidade de explicação filosófica da psique humana. O texto De l’irritation et de la folie, do reconhecido fisiologista francês, foi reforçado por Comte (1972b)10 no combate contra as especulações sobre a psique humana, as quais se desenvolviam, na época, sob o espectro de uma Psicologia Filosófica, denominada por ambos os autores como quimera de mocidade. Ratificando Broussais, Comte (1972b) afirma que as sensações internas dos indivíduos - que provocam alegria e tristeza, esperança e desespero, ação e repouso, assim como os sentimentos mais obscuros que podem existir - são produtos da vida orgânica-cerebral. Por essa razão, o estudo dessas sensações não deve se atrelar às vagas especulações filosóficas sobre a consciência, mas se voltar tão somente ao domínio da fisiologia11. Ao tomar partido em favor dessa concepção, Comte pretende demolir a Psicologia Metafísica e sustentar, mediante rigorosas regularidades e leis vitais, que a inteligência humana tem uma base fisiológica, mais precisamente uma fisiologia cerebral12. É por meio dessa fisiologia cerebral que a física social comteana apresenta positivamente as bases naturais da desigualdade entre os homens. Em outras palavras, fazendo uso da biologia como fundamentação positiva da física social, a Sociologia comteana pôde sustentar a noção de progresso social como progresso da submissão às regras. Para tanto, Comte recorreu a um domínio específico da fisiologia do século XIX: a Frenologia.

Apropriando-se da Frenologia de Broussais, como tendência teórica a fundamentar a Sociologia, Comte seguiu as verdades fundamentais descobertas pelos frenólogos13. Para seu sistema positivo, “o grande mérito da Frenologia teria sido seu projeto de encontrar a base orgânica das faculdades através da análise anatômica do cérebro” (BENOIT, 1999, p. 341). A descoberta da Frenologia consistia em dois princípios fundamentais: o inatismo das faculdades mentais e a demonstração da pluralidade dessas faculdades, distintas e independentes umas das outras. Segundo essa perspectiva, o cérebro humano não seria um órgão, mas um aparelho constituído por diversos e simétricos órgãos, os quais, em sinergia, teriam por função a inteligência humana, representada pelo aparelho cerebral. E é a explicação da inteligência humana pela Frenologia que interessa a Comte, pois, a partir dela, tornar-se-ia possível atribuir o caráter positivo à natural desigualdade entre os homens, bem como suas disposições naturais à obediência.

As considerações frenológicas adquirem importância no sistema comteano porque permitem demonstrar a fraqueza predominante da inteligência humana. Segundo os pressupostos frenológicos, corroborados pelo positivismo comteano, essa fraqueza biológica da inteligência humana consiste no seguinte: a porção mais volumosa e animal do cérebro humano está localizada na parte média e posterior do crânio, no prolongamento da coluna vertebral, que é o centro primitivo do sistema nervoso. Por outro lado, a parte do córtex cerebral mais humana - e que fundamenta a inteligência - é mais afastada de sua origem primitiva, sendo pouco volumosa e menos enérgica. A primeira parte, que caracteriza a fraqueza da inteligência humana, compartilhada pelo homem com toda a animalidade, é de onde provêm as faculdades afetivas. Já a parte frontal da diminuta massa encefálica − a menor porção do córtex cerebral − seria a sede das faculdades intelectuais ou perceptivas, que caracterizam, por seu desenvolvimento restrito na espécie humana, uma elite da humanidade.

Com base na Frenologia de seu tempo, Auguste Comte considera, portanto, que o aperfeiçoamento das predisposições naturais da parte frontal do cérebro humano é privilégio de uma elite da humanidade, razão pela qual a maioria dos seres humanos ficará sempre mais restrita às funções afetivas, provenientes da porção mais animal do cérebro humano. A ausência de desenvolvimento da parte frontal do cérebro e o estado de semianimalidade que desqualifica intelectualmente o homem não são, da perspectiva positivista, males a serem combatidos, mas devem ser instrumentalizados para a harmonia social. Do ponto de vista social,

[...] a existência dessa massa humana, que permanece abaixo da restrita elite intelectual, é necessária à “harmonia social”. Altamente modificável, o cérebro da maioria da humanidade seria, na verdade, o fundamento biológico ou a condição de possibilidade de uma educação que visasse a harmonia ou “ordem social”. Seres como esses podem ser educados na direção que se quiser e moldados a bel-prazer. [...] A teoria dos três estados, sobretudo, ganha em significação e “cientificidade”: que história pode ser a do progresso positivista senão aquela da elite intelectual da humanidade, possuidora única e exclusiva dos mais elevados dotes frenológicos? [grifos colocados] (BENOIT, 1999, p. 322-323).

A necessidade do outro em estado de semianimalidade, que caracterizou o louco em seus acessos e excessos, oriundos, no mais das vezes, das paixões - portanto, da parte posterior do cérebro, mais volumosa e animal, segundo a proposição frenológica e positivista -, está implicada na forma exemplar de internação da loucura na época clássica e na modernidade. Como demonstra Michel Foucault (2003), antes da cura médica, a finalidade do internamento no espaço asilar era a necessidade da determinação de uma boa educação, da disciplina dos costumes e da modulação de um corpo dócil e produtivo para o convívio com a ordem e a harmonia social indispensáveis. O fundamento biológico da desigual inteligência humana, que sustenta teses centrais da Sociologia comteana, implica a formulação pragmática de uma política positiva concebida como antídoto contra a desordem social, uma vez que, por meio da Frenologia, entendida como fundamento de submissão, tornar-se-ia possível o progresso natural dentro da estrita ordem determinada por uma elite intelectual. Pois bem, se é como modelo da ordem que o asilo cumpre sua função social sobre o ser por excelência da desordem - o louco -, o psiquiatra do século XIX conceber-se-á capacitado e legitimado cientificamente para exercer a função pragmática da política positiva em nome do progresso.

Como possível representante desse saber que compartilha uma política positiva, Simão Bacamarte seria aquele que justificadamente pertenceria à elite da humanidade, em sua capacidade de modulação e domesticação dos hábitos dos outros a seu bel-prazer. Ou seja, por existir nos homens uma disposição natural à obediência, a partir da submissão da faculdade frenológica predominante - a afetiva -, a qual Bacamarte explicitamente não compartilha com a humanidade, o alienista é, se considerados os pressupostos positivistas e frenológicos, o único portador, em Itaguaí, da pérola que compõe a vasta concha do espírito humano (ASSIS, 2006, p. 261): a razão, que fundamenta seu poder médico. Por meio dessa faculdade rara, pertencente a alguns indivíduos seletos, justificar-se-ia a submissão da maior parte da espécie humana, a qual, na ausência dessa faculdade, satisfar-se-ia com a felicidade positivista de ter guias. Contudo, ao contrário da “felicidade” positivista, profetizada por Bacamarte por meio do belo serviço filantrópico que prestaria à humanidade14, em sua função de medicalização e civilização dos hábitos coloniais no pequeno vilarejo, o narrador machadiano se refere à intromissão do alienista na vila de forma irônica, pois traduz a “felicidade” em seu avesso: o terror positivo.

DR. SIMÃO BACAMARTE E D. EVARISTA: A DESIGUALDADE NATURAL ENTRE OS SEXOS E A PRESCRIÇÃO DO AMOR PRAGMÁTICO

Próxima à Frenologia, a medicina social e higienista brasileira do século XIX difundiu, como mostra Jurandir Freire Costa (2004), uma educação intelectual correspondente à educação positiva, em uma espécie de hierarquização social da inteligência e fundamentação natural da desigualdade entre os sexos, com o objetivo de refinar e cultivar cientificamente os hábitos da primitiva sociedade colonial. Assim afirma o autor:

Os higienistas colaboraram no processo de hierarquização social da inteligência, criando a idéia de que o indivíduo “culto” era superior ao “inculto”. Difundiram, simultaneamente, o preconceito de que o cérebro do homem capacitava-o para as profissões intelectuais, enquanto o da mulher só lhe permitia exercer atividades domésticas (COSTA, 2004, p. 14).

Em O alienista, são evidentes as diferenciações da superioridade de Bacamarte em relação à simples população de Itaguaí: com formação na Europa, o protagonista é descrito, repetidas vezes, como ilustre médico. São manifestas também as referências à subserviência de D. Evarista ao marido cientista15. Ao caricaturar D. Evarista como esposa servil, em seus hábitos domésticos subjugados pela tarefa superior do homem de ciência, o narrador machadiano pode, mais uma vez, corresponder - ironicamente - ao postulado positivista, que justifica cientificamente, por meio de categorias frenológicas, a natural inferioridade intelectual da mulher para a abstração científica, ao mesmo tempo em que a concebe em uma superioridade afetiva16. No momento de chegada da comitiva do Rio de Janeiro, por exemplo, nota-se a descrição da fria agressividade do homem de ciência contraposta ao exaltado sentimentalismo e amor afetuoso da mulher.

Nisto chegou do Rio de Janeiro a esposa do alienista, a tia, a mulher do Crispim Soares, e toda a comitiva [...]. O alienista foi recebê-la, com o boticário, o Padre Lopes, os vereadores e vários outros magistrados. O momento em que D. Evarista pôs os olhos na pessoa do marido é considerado pelos cronistas do tempo como um dos mais sublimes da história moral dos homens, e isto pelo contraste das duas naturezas, ambas extremas, ambas egrégias. D. Evarista soltou um grito, balbuciou uma palavra, e atirou-se ao consorte, de um gesto que não se pode melhor definir do que comparando-o a mistura de onça e rola. Não assim o ilustre Bacamarte; frio como um diagnóstico, sem desengonçar por um instante a rigidez científica, estendeu os braços à dona, que caiu neles, e desmaiou (ASSIS, 2006, p. 265-266).

A naturalização das diferenças dos papéis sociais conferidos ao homem e à mulher serviu de base também para a fundamentação do casamento higiênico. Ao apresentar as suposições típicas de cada sexo como “imperativos da natureza”, a medicina higiênica brasileira traçou os moldes da conduta social masculina e feminina, edificando catálogos de especificação sócio-sexual, sempre com os mesmos pressupostos de diferenciação: da maior fragilidade física da mulher em relação ao homem, inferia-se a debilidade de sua constituição moral, bem como sua delicadeza. A natureza masculina era, por sua vez, descrita de maneira inversa: “a ‘força’ e o ‘vigor’ migravam do físico ao moral, marcando os traços sócio-sentimentais da personalidade do homem”, como mostra Jurandir Freire Costa (2004, p. 234-235). Sectária dos pressupostos frenológicos e positivistas, a medicina higiênica brasileira considerava que a inferioridade da mulher se manifestava por meio das faculdades afetivas, o que fazia dela mais sentimental que intelectual17. Por isso, a vida da mulher deveria se resumir ao sentimento afetivo do amor: amar e ser amada. No entanto, mesmo amando em seu segundo matrimônio, constituído com Simão Bacamarte, D. Evarista não foi desejada plenamente pelo médico, achando-se “a mais desgraçada das mulheres” e “tão viúva como dantes” (ASSIS, 2006, p. 258), chegando até mesmo a ser internada pelo marido sob “justificativa científica”. Contudo, a recusa do afeto de Bacamarte pela esposa pode se justificar, ainda, no interior dos preceitos médicos da época, pois algo fundamental para o amor higiênico fracassou: a procriação.

Se a mulher era submissa e passiva, e o homem, autoritário e racional, a solução dada pela medicina higiênica a essa “diferença de natureza” foi o amor fértil, de modo a converter o homem e a mulher à função de pai e mãe. Para a higiene, “era enquanto pai e mãe que o homem e a mulher poderiam entrar em comum acordo e aparar as arestas resultantes de suas diferenças sentimentais. Amor feminino e masculino só entravam em sintonia na vida conjugal fértil” (COSTA, 2004, p. 238). Somente esse modo de amar poderia conciliar o inconciliável: “os médicos provavam aos indivíduos que só lhes restava uma maneira de amar em paz: converterem-se incondicionalmente à função de pai e mãe” (COSTA, 2004, p. 238). Destinada, sobretudo, a famílias elitistas, essa política visava à constituição da família burguesa aliada ao Estado, pois o amor aos filhos, à família e ao Estado traduzia-se, de modo científico, em progresso para a nação. Jurandir Freire Costa (2004, p. 14) faz ver como, no interior de tal política médica, a educação sexual pretendia transformar homens e mulheres em reprodutores de raças puras18.

Nesse contexto, que circunscreve a escrita d’O alienista, “a seleção do parceiro conjugal tornou-se questão capital para a higiene. A saúde do filho não dependia apenas do trato que lhe fosse dado após o nascimento. Ela estava condicionada à saúde dos pais” (COSTA, 2004, p. 219). No casamento sonhado pela higiene, o casal não deveria mais perscrutar o passado, mas o futuro: seu compromisso era com a saúde dos filhos, antes renegados, no patriarcalismo. Nesse sentido, a união conjugal não se referia ao interesse econômico e social, que constituía os “casamentos de razões”, mas à pureza da alma e ao vigor do corpo, pois aquele que herdasse a riqueza, mas possuísse um corpo lânguido, estaria fadado à falência, ao passo que o indivíduo de corpo robusto, mesmo sem riqueza poderia alcançá-la facilmente. Foi o momento em que a hereditariedade substituiu a herança19. Condenando qualquer manifestação de amor romântico, o amor preconizado pela higiene era pragmático: tratava-se de uma política de conservação biológica e moral da espécie.

O ponto culminante da união conjugal era o amor. Mas, ao contrário do amor romântico, o amor higiênico era pragmático. Reclamava seus vínculos com a sexualidade e a procriação. A cumplicidade com o romantismo sentimental tinha limites. Sem sexo, o amor era “delírio”. Só através do sexo ele se adaptava à realidade, inserindo-se maduramente na política de conservação biológica e moral da espécie [grifos colocados] (COSTA, 2004, p. 231)20.

Nesse ponto, a figura ironizada do anti-herói mais uma vez se presta ao deboche crítico do narrador machadiano, pois é mediante o cálculo científico que Bacamarte seleciona D. Evarista. Calculando, o alienista escolhe uma esposa dotada de uma fisiologia pretensamente superior, portadora, porém, de uma feição que dispensa qualquer romantismo. Tal escolha tem em vista a necessidade exclusiva da procriação e a conseguinte continuidade da “dinastia dos Bacamartes”, afinal o bem-estar de filhos robustos estaria condicionado à saúde do casal. Ironicamente, contudo, o amor pragmático do cientista fracassa. É o que o fragmento d’O alienista evidencia a seguir, dialogando precisamente com pressupostos positivos e higiênicos da época, cujo objetivo consistia em secularizar as mentalidades e europeizar os costumes:

Aos quarenta anos [Bacamarte] casou [-se] com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de vinte e cinco anos, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou-lhe que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso e excelente vista; estava assim apta para dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas, - únicas dignas da preocupação de um sábio, D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte. D. Evarista mentiu às esperanças do Dr. Bacamarte, não lhe deu filhos robustos nem mofinos. A índole natural da ciência é a longanimidade; o nosso médico esperou três anos, depois quatro, depois cinco. Ao cabo desse tempo fez um estudo profundo da matéria, releu todos os escritos árabes e outros, que trouxera para Itaguaí, enviou consultas às universidades alemãs e italianas, e acabou por aconselhar um regímen alimentício especial. A ilustre dama, nutrida exclusivamente com a bela carne de porco de Itaguaí, não atendeu às admoestações do esposo; e à sua resistência, - explicável, mas inqualificável, - devemos a total extinção da dinastia dos Bacamartes (ASSIS, 2006, p. 253-254).

“DE POSITIVO NADA HÁ”: A ATUALIDADE PERTURBADORA DE O ALIENISTA

Por fim, esse cenário demanda um passo adiante, a fim de extrair ainda uma última e séria implicação. Decerto, poder-se-ia escolher outros caminhos para perceber a proximidade do protagonista do conto O alienista com relação aos predicados positivistas; ou poder-se-ia até mesmo identificar as paranoias de Auguste Comte21 com as de Simão Bacamarte, que, como se sabe, aprisionado em seu próprio sistema, constitui-se a si próprio como o único louco de Itaguaí, razoavelmente alienado. Privilegiam-se, no entanto, as correlações que derivam de pressupostos biológicos, a fim de mostrar a maneira como tais pressupostos embasam o exercício do poder científico - isto é, o exercício do poder da inteligência, que fundamenta a natural submissão e domesticação dos homens no interior do sistema positivo - praticado pela medicina higiênica e pelo alienismo contemporâneos de Machado de Assis. Obra de um espírito aguçado, a criação a contrapelo do escritor brasileiro pode caracterizar não apenas sua extemporaneidade em um momento de grande aceitação e enaltecimento do positivismo22 - do qual se acredita, hoje, estar livre23 -, mas também uma atualidade perturbadora, após mais de um século transcorrido da publicação de O alienista.

Como visto, o “terror”, substantivo que intitula de forma significativa o capítulo mais extenso do conto, é caracterizado “positivamente”24. No entanto, quando se instaura o terror positivo - momento em que são internados todos os “desequilibrados”, portadores dos vícios mais comuns e inofensivos, que constituem a expressiva cifra de 4/5 da população de Itaguaí -, o narrador sentencia algo que se pode ler como indicativo da fragilidade científica da psiquiatria, esta que reivindicava e reivindica, ainda hoje, sua positividade no interior da sociedade, da ciência e da própria medicina. Em uma intromissão sutil aos fatos narrados, o narrador sentenciosamente devassa, com o propósito de esvaziar os pressupostos médicos e científicos do alienista: “de positivo nada há”25.

Como se sabe, diferentemente da anatomia patológica, que a partir da abertura dos cadáveres pode encontrar a estrutura patológica subjacente26, a psiquiatria não localiza o corpo patológico que definiria tecnicamente seu objeto e a tornaria, então, uma ciência verdadeiramente médica, isenta do adjetivo “especial”. Ou seja, se com a anatomia patológica de Morgagni a Bichat a noção de sede substitui a de classe (cf. FOUCAULT, 2008, p. 136-162), o mesmo não acontece com a psiquiatria desde seu nascimento, consagrado historicamente a Pinel, até os dias atuais27. Diferentes pesquisas sobre a constituição e o desenvolvimento da psiquiatria no século XIX mostraram que, apesar das muitas autópsias realizadas a fim de identificar lesões nos cérebros de alienados, as figuras de localização da doença careceram de prova, não podendo, assim, substituir o caráter fenomenológico e descritivo das patologias distribuídas segundo uma ordem classificatória28 - para o que, inclusive, a repartição no espaço interno do asilo foi fundamental (cf. FOUCAULT, 2006, p. 319 e 340-341; CASTEL, 1978, p. 107-108; BIRMAN, 1978, p. 51-59). Percebe-se, dessa forma, como a psiquiatria já se encontrava desde o início em absoluta discordância com o axioma da medicina moderna:

Se existe um axioma em medicina, é a proposição de que não há doença sem sede. Caso se admita a opinião contrária, seria preciso admitir, também, que existem funções sem órgãos, o que é um evidente absurdo. A determinação da sede das doenças, ou sua localização, é uma das mais belas conquistas da medicina moderna (BOUILLAUD apudFOUCAULT, 2008, p. 154-155).

Da ausência predominante do corpo anatomoclínico decorreria, como afirma Birman (1978, p. 346), a “mania classificatória” da psiquiatria do século XIX, mania essa que Bacamarte representa virtuosamente e da qual ainda não nos desvencilhamos29. É preciso observar, nesse sentido, que o paradigma fundador da psiquiatria permanece essencialmente inalterado nos dias atuais, uma vez que a racionalidade classificatória da psiquiatria contemporânea - tal como expressa sobretudo a partir da terceira versão do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM-III), publicado em 1980 - pretende ser fundamentalmente “a-teórica”, “descritiva” e isenta de discussões etiológicas. Um acontecimento notável acerca da continuidade do paradigma com base na descrição de sintomas pode ser a polêmica provocada pelo National Institute of Mental Health (NIMH) em torno da publicação recente do DSM-V, ocorrida em maio de 2013. Incitada pelo então diretor do NIMH, Thomas Insel (2013), a polêmica reside fundamentalmente no fato de a American Psychiatric Association (APA), situada também nos EUA e responsável pela elaboração dos DSMs, ter mantido a descrição sintomatológica como critério diagnóstico, em vez de ter incorporado em seu manual dados neurobiológicos que pretendem mostrar o funcionamento biológico de transtornos mentais, o que poderia corresponder ao esforço empreendido ainda hoje para tornar a psiquiatria mais científica e objetiva. Nessa polêmica, tudo se passa como se a psiquiatria tivesse mantido a noção de classe a contragosto da neurociência e da neurobiologia, que mobilizam suas técnicas à procura da sede biológica dos transtornos mentais. Desse modo, a publicação mais recente do manual que padroniza de forma científica a classificação psiquiátrica, orientando significativamente a pesquisa e a prática mundiais desse domínio médico, evidencia com clareza a ausência persistente de dados biológicos, científicos e positivos suficientemente comprobatórios a propósito dos transtornos mentais.

Ao contrário da crença positivista assentada na ideia frenológica de que as emoções e os comportamentos teriam uma base orgânico-cerebral, o que equivale à tentativa contemporânea de identificar comportamentos e estados mentais a partir de estados cerebrais30, talvez ainda se possa experimentar com amargura aquela constatação lapidar: “de positivo nada há”. Com tal afirmação, o narrador machadiano d’O alienista já indicava ceticamente o quanto as internações, os diagnósticos e as verdades da alienação mental podem ser - ainda em nossa atualidade - conjecturas carentes de positividade científica.

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Notas

1 As citações do conto se reportam ao segundo volume da seguinte edição: ASSIS, Machado de. Obra completa. Organização de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Ed. Nova Aguilar S.A, [1959] 2006. 3 v. Embora atualmente menos usual em nossa língua portuguesa, a grafia original do texto foi preservada nas citações.
2 Entretanto, é importante sublinhar que se trata de uma entre outras possíveis interpretações. Pode-se ler o conto, por exemplo, em três níveis temporais, a saber: como referência ao período do Brasil dos vice-reis, mais especificamente do reinado de D. José (1750-1777) e de sua sucessora D. Maria (1777-1816), período em que a Espanha se encontrava na vanguarda do tratamento médico da loucura (cf. FROSCH, 2007, p. 288); enquanto parábola política, radicada sobretudo na Revolução Francesa de 1789 (cf. FERNANDES, 2005); e também em sua qualidade alegórica em relação às discussões e práticas psiquiátricas do século XIX, como se observa, por exemplo, na análise realizada pelo psiquiatra José Leme Lopes (1981). Mais afeito à intencionalidade aqui defendida, esse último modo de considerar o conto se desdobra, por sua vez, em perspectivas que envolvem, de maneira mais abrangente, os saberes e valores emergentes no século XIX e, assim, as relações entre ciência e poder, como mostram, por exemplo, Lima (1976) e Gomes (1994). Nesse sentido, afirma Roberto Schwarz (2000b, p. 27) sobre a produção literária de Machado de Assis: “a comédia dos interesses implicados na atividade de classificar, esquematizar e abstrair será um dos aspectos originais de sua obra”. Na mesma direção, Antonio Candido (2004, p. 28) assinala que a transformação do homem em objeto do homem parece ser um dos temas mais atraentes da literatura machadiana. No caso específico d’O alienista, desdobram-se ainda outras interpretações, tais como aquelas que leem o conto a partir da atenção de Machado de Assis a questões médicas, políticas e administrativas da época (cf. MURICY, 1988), que o interpretam como parábola política do caráter ilusório das mudanças revolucionárias (cf. ALMEIDA, 1998) e que o aproximam tanto do Elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam (cf. ALMEIDA, 1998), quanto da História da loucura, de Michel Foucault (cf. CORBANEZI, 2009).
3 O alienista foi publicado no Rio de Janeiro, inicialmente, sob a forma de folhetim, em A Estação: Jornal Ilustrado para a Família, entre 15 de outubro de 1881 e 15 de março de 1882. Posteriormente, em outubro de 1882, o conto foi publicado na íntegra em Papéis avulsos (livro de contos).
4 Além da ênfase dada a Miguel Lemos e Teixeira Mendes, no Rio de Janeiro, Alfredo Bosi (2005) também realça a importância do positivismo no Rio Grande do Sul, destacando os políticos Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e Getúlio Vargas. Paulo Arantes (1988), por sua vez, evidencia o papel do positivismo difundido em São Paulo por meio do francês Paul Arbousse-Bastide, professor da Universidade de São Paulo, e do médico Pereira Barreto. Para um estudo documentado acerca do positivismo nas diversas províncias brasileiras, consultar: História do positivismo no Brasil, de Ivan Monteiro de Barros Lins (1967).
5 Por um lado, Raymundo Faoro (1974) desenvolve seu livro Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio, a partir da interpretação da literatura machadiana em relação à mentalidade das classes sociais e dos grupos de status do Brasil imperial. Por meio da literatura machadiana e sob influência da Sociologia weberiana, Faoro estabelece um diálogo entre a Sociologia e a hermenêutica, a explicação e a compreensão, o quadro e o olhar, o indivíduo e a sociedade. No caso d’O alienista, Faoro (1974, p. 5-6) sustenta que, mediante a personagem Bacamarte, torna-se possível compreender a sociedade estamental que compunha a realidade social retratada por Machado de Assis. Segundo o crítico, nesse conto, o dinheiro estaria ligado, antes, à estima, ao prestígio social e ao poder, e não necessariamente à posse de bens ou à renda, as quais não poderiam justificar a honra, o prestígio e a influência do médico alienista. Por outro lado, Roberto Schwarz dedica seus dois livros complementares, Ao vencedor as batatas (2000a) e Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis (2000b), a uma análise dialética e associativa, na esteira de Antonio Candido (1980), em que não radicaliza unilateralmente nem a crítica interna à obra nem sua profunda sociologização, mas recorre à dialética entre ambos os aspectos. Fazendo uso da conjunção desses dois pontos de vista, ou seja, ao realizar uma análise estética da obra como um importante revelador da sociedade da época, Schwarz enfatiza o negativo do processo civilizatório e do modernismo transposto da Europa para o Brasil - o que faz sob determinada influência da teoria crítica da Escola de Frankfurt. Dessa forma, Schwarz opera um reconhecimento das forças estruturais com a pretensão de historicizá-las. Assim, por meio de uma historicização do contexto internacional, o autor recontextualiza o Brasil, mostrando sua condição periférica, tal como a própria condição suburbana de Machado de Assis no Rio de Janeiro. A despeito das orientações teóricas distintas dos dois autores, o importante, aqui, é sublinhar a convergência de ambos quanto ao reconhecimento de um aspecto preciso da literatura machadiana, a saber, do olhar crítico e irônico que Machado de Assis constrói em sua obra, diante do cânone moderno das ideias científicas e europeias transportadas para um Brasil escravista e ainda colonial em seus hábitos.
6 Assim afirma Simão Bacamarte: “Supondo o espírito humano uma vasta concha, o meu fim, Sr. Soares, é ver se posso extrair a pérola, que é a razão [...]” (ASSIS, 2006, p. 261).
7 Para tanto, além de referências ao próprio Comte, reporta-se, de modo preciso, à excelente tese de Lelita Oliveira Benoit (1999): Sociologia comteana: gênese e devir. De modo mais específico, recorre-se à Parte III, intitulada “Sob o paradigma da Biologia”, em virtude da precisão com que a autora evidencia a importância da Biologia, da Fisiologia e da Frenologia no interior da Física Social comteana.
8 Afirma Comte (1972a, p. 126), no referido ensaio de 1822: “a física social, isto é, o estudo do desenvolvimento coletivo da espécie humana, é realmente um ramo da fisiologia, vale dizer, do estudo do homem, concebido em toda a sua extensão. Em outros termos, a história da civilização não é nada mais do que a continuação e o complemento indispensável da história natural do homem”.
9 É importante notar que a etimologia de órgão, órganon, designa instrumento.
10 Trata-se da resenha ensaística “Exame do tratado de Broussais sobre ‘a irritação’”, que Comte (1972b) elaborou no ano de publicação da obra De l’irritation et de la folie [1828], de Broussais.
11 Segundo Comte (1972b, p. 221), Broussais teria demonstrado a inutilidade da distinção, feita pelos ecléticos, “entre os fatos exteriores, domínio das ciências comuns, e os fatos interiores ou da consciência, próprios à psicologia”. Sendo as especulações da psicologia filosófica nada mais que “vagas fantasmagorias de uma suposta consciência”, as vagas “sensações que os ecléticos não sabem de onde se originam, que são motivos de seu espanto e os encaminham à sua pesquisa da consciência, tudo isto eles nem sequer ‘suspeitam que pode ser facilmente explicado pelos fisiologistas’”(BENOIT, 1999, p. 280-281).
12 É por esse caminho que Lelita Oliveira Benoit (1999, p. 285-294) demonstra como Comte abandona a psicologia como saber metafísico do eu e, para substituí-la, propõe uma fisiologia cerebral e uma filosofia das ciências, ambas como saberes positivos da inteligência humana: “Para o Curso de filosofia positiva, uma teoria do eu absolutamente positiva teria seu fundamento teórico nas categorias biológicas. Para além de toda metafísica cartesiana, a história da nova teoria seria paralela à da criação da moderna biologia [grifos originais]”. A pesquisadora indaga, então, se é possível, como quis Comte, fazer a redução epistemológica da Biologia à Sociologia: “Como se vê, da fundação da anatomia comparada [de Bichat] sobre o fundamento da teoria dos tecidos chegou-se à moderna Biologia do século XIX e à sua teoria das funções da irritabilidade e da sensibilidade, e desta finalmente à teoria biológico-positiva das funções intelectuais e morais. Mas seria realmente possível, como parece acreditar Comte na ‘Lição 44’, fazer a redução epistemológica das categorias biológicas às da sociologia?” (BENOIT, 1999, p. 310).
13 A frenologia de Broussais foi fundamental na teoria positiva de Comte, mas é importante observar que essa área da fisiologia foi fundada anteriormente pelo médico Franz Joseph Gall (1758-1828). De acordo com Canguilhem (2002, p. 27-43), Broussais foi o fundador de uma patologia positiva, uma teoria que liga as perturbações vitais às variações e lesões de órgãos ou tecidos. Para essa concepção positivista, as doenças seriam explicadas conforme as variações quantitativas, ou seja, em virtude de excesso ou falta da excitação dos tecidos orgânicos, da mesma forma que as variações de grau, acima ou abaixo, constituíriam o estado anormal e patológico. Nesse sentido, a loucura seria ilustrativa quanto ao excesso ou à falta de excitação dos órgãos cerebrais, o que constitui o tema do tratado De l’irritation et de la folie, de Broussais.
14 Ao interpretar o dito de S. Paulo aos Coríntios, o médico protagonista d’O alienista afirma não poder ser nada com seu saber, caso não tenha também a caridade. Assim, pela promessa caritativa de seu ofício, crê prestar “um bom serviço à humanidade” (ASSIS, 2006, p. 256). Como sustenta Benoit (1999, p. 338), a partir da explicação científica da natural sociabilidade, sob justificativas da frenologia, chega-se ao altruísmo necessário do positivismo, que consiste em viver para outrem. Derivado do francês autrui, altruísmo é, de fato, um termo cunhado justamente por Auguste Comte, por volta de 1830. Na contramão da suposta intencionalidade de Bacamarte, aliada ao positivismo comteano, Augusto Meyer (1935) sustenta que o alienista é tão somente a encarnação da paixão científica, e não da filantropia.
15 Os momentos em que a mulher é dignificada se devem apenas ao fato de “a musa da ciência” ser a esposa de um “ilustre varão”, do “alto espírito”, do “novo Hipócrates”, etc. (ASSIS, 2006, p. 256-267). Ao ser descrita pelo narrador como uma infeliz dama, D. Evarista é aquela que, “obediente e chorosa”, curva a cabeça ao cônjuge (ASSIS, 2006, p. 271) e que hesita em duvidar do procedimento do marido em relação ao ensandecimento de todos, considerando-o, superiormente, como um sábio que “não recolheria ninguém à Casa Verde sem prova evidente de loucura” (ASSIS, 2006, p. 266).
16 No pensamento positivo de Comte, as supostas categorias biológicas da Frenologia são aplicadas sempre na tentativa de naturalização do social, “multiplicando e recortando outras diferenças ‘naturais’, fundamento [as categorias da frenologia] de outras desigualdades sociais e de novas hierarquias de poder e de subordinação”, conforme afirma Benoit (1999, p. 344). Da mesma maneira, essas categorias da Frenologia são aplicadas para justificar cientificamente a diferença entre os sexos, assinalando a inferioridade da mulher para a abstração científica, mas, ao mesmo tempo, sua superioridade afetiva. “A estática, considerando o ‘organismo feminino’, pode demonstrar a inadequação fisiológica da mulher com relação ao homem no que diz respeito ao ‘trabalho mental’, ‘quer em virtude da menor força intrínseca de sua inteligência, quer em razão de uma suscetibilidade moral e física mais viva, bastante antipática a toda abstração e a toda contensão verdadeiramente científica’. Mas, por outro lado, a estática pode também demonstrar que essa inferioridade mental é compensada por uma superioridade afetiva: ‘as mulheres são, em geral, bastante superiores aos homens por uma grande atividade espontânea da simpatia e da sociabilidade tanto quanto lhes são inferiores pela inteligência e pela razão’ [grifo da autora]” (BENOIT, 1999, p. 342).
17 A tese higiênica Considerações gerais sobre a mulher e a sua diferença do homem, e sobre o regime que deve seguir no estado de prenhez, de José Joaquim Ferreira Monteiro de Barros, defendida em 1845, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, já elucida algo nesse sentido: “Sua inteligência [da mulher] aplicava-se com mais segurança aos ‘objetos de seus afetos’. Sua imaginação viva, fértil, mas fugaz, indispunha-se para os trabalhos do espírito e para toda atividade intelectual. A fraqueza, a sensibilidade, a doçura, a indulgência e a submissão eram ‘virtudes essenciais’ ao seu sexo”. Em contrapartida, o homem era o exato oposto da mulher, com um perfil emocional dominado pelo vigor físico e intelectual. Nessa tese, é possível observar como a dissonância sentimental entre homens e mulheres transparecia até mesmo em hábitos triviais, como no modo de andar: “O andar ou passo do homem é mais firme e mais altivo; a mulher com seu pequeno e delicado pé caminha mais sutil e elegantemente” (BARROS apud COSTA, 2004, p. 236-237).
18 Contraposto à ordem colonial, o dever de pai imposto pela higiene nasce com outra ética e outra profissão. Em vez de proprietário de bens, escravos, mulheres e filhos, aos quais impunha suas leis e seus direitos, tal como o pai-colonial, o pai-higiênico deveria se tornar um funcionário tanto da raça quanto do Estado. Daí libertinos, celibatários e homossexuais representarem o exemplo da antinorma a ser punida e, ao mesmo tempo, medicalizada. Como afirma Jurandir Freire Costa (2004, p. 240-249), essas figuras se mostravam como suicidas e homicidas, que assassinavam seu próprio corpo e também o bem-estar biológico-social, pois “do casamento e da paternidade dependiam a felicidade digestiva, a higidez neurológica e a sociabilidade do homem”. Desertores da obrigação paterna, a higiene os considerava anti-homens: “O libertino era mau pai, mas, pelo menos, não se recusava a sê-lo. O celibatário, conquanto pudesse ser bom pai, pois não era necessariamente um libertino, fugia às suas obrigações. Sua falta era, portanto, mais sacrílega. No código higiênico, nada superava a gravidade deste crime. Exceto, talvez, um outro, aquele em que o homem não apenas fosse mau pai, como o libertino, ou se recusasse a ser pai, como o celibatário, mas negasse a vocação ‘natural’ do homem para ser pai, como o homossexual [grifos colocados]” (COSTA, 2004, p. 246).
19 “No casamento higiênico, a hereditariedade como que substituiu a herança. O dinheiro e o status social herdados só mereciam reverência quando aliados a uma boa saúde física e a uma boa constituição moral. [...] A sociedade e o Estado contavam mais que as famílias e ‘castas’”. Para ratificar essa transformação, Jurandir Freire Costa (2004, p. 222) se refere à tese higienista de José Cipriano Nunes Vieira, apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1882, com o título Higiene na primeira infância. Nela, o autor higienista adverte: “Quando as populações compreenderem a necessidade de atender aos preceitos higiênicos relativos ao casamento; quando elas e o Estado se compenetrarem de que esta instituição, garantidora da estabilidade e da moralidade social, não deve ser considerada uma operação mercantil capaz de pôr a salvo interesses pecuniários; quando finalmente se atender ao estado de saúde dos indivíduos que aspiram ao casamento, e a legislação proibir formalmente as uniões entre pessoas fisicamente impróprias para a procriação de uma prole robusta, então as tábuas de mortalidade não registrarão um tão avultado número de óbitos nem se verá em tão grande escala a propagação das distrofias constitucionais e das neuroses”. Em Os anormais, Foucault (2002, p. 400-401) - autor de notável influência na pesquisa de Jurandir Freire Costa (2004) - também evidenciara, a partir do problema da hereditariedade e da teoria da degeneração de Morel [1857], como a psiquiatria, em sua função política de higiene pública, voltou sua atenção à reprodução e a partir disso fundamentou uma tecnologia do casamento “são ou malsão, útil ou perigoso, proveitoso ou nocivo”. Dessa forma, de acordo com a escolha de seu parceiro, os indivíduos se tornaram responsáveis pela causalidade ou não das aberrações psíquicas e físicas.
20 Assim como Foucault, Jurandir Freire Costa (2004, p. 49-50) tem como ponto de partida de suas análises não o poder repressivo e coercitivo da lei, mas o poder moderno e produtivo da norma, próprio da ordem médica. No que se refere à funcionalidade política da procriação, é importante sublinhar que Foucault (2002) também já demonstrara que a nova família moderna havia sido “medicalizada” pelo princípio de normalização sexual, o qual, estabelecendo a necessidade da procriação, visava, sobretudo, à conservação da espécie e à produção de filhos economicamente úteis e politicamente dóceis. Segundo Foucault (2002, p. 325), assim diz o Estado: “Mantenham seus filhos bem vivos e bem fortes, corporalmente sadios, dóceis, aptos, para que possamos fazê-los passar por uma máquina que vocês não controlam, que será o sistema de educação, de instrução, de formação, do Estado”.
21 Referindo-se ao livro Aberrations - Le devenir-femme d’Auguste Comte, de Sarah Kofman, José Carlos Bruni (1989, p. 35-37) chama a atenção, embora de modo crítico, à maneira como a autora extrai um “caso clínico” da relação entre o sistema positivo e a vida pessoal de Auguste Comte, como se o propósito da enorme elaboração filosófica de Comte fosse esconder sua própria paranoia. O argumento central da autora, afirma Bruni (1989, p. 35), “poderia ser resumido na idéia de que a obsessão comteana pela ordem, pela coerência, pela sistematicidade, pela progressão sem lacunas de uma idéia que se segue necessariamente à outra, tudo isso não passaria de um enorme artifício para encobrir a loucura do próprio Comte”. De todo modo, independentemente do artifício utilizado ou da causa desencadeadora, é preciso registrar que o fundador do positivismo apresentou, de fato, um quadro de alienação mental (cf. BIRMAN, 1978, p. 216; CASTEL, 1978, p. 242).
22 A propósito da dissidência do escritor brasileiro em relação ao fascínio de seus contemporâneos pela ciência, consultar Miskolci (2006).
23 Desnudando a função ideológica do discurso de Comte, Bruni (1989) mostra, em sua tese, o caráter político da epistemologia positivista. No entanto, não é apenas sob o aspecto ideológico que o autor considera o sistema positivo, mas também a partir daquilo que o mantém, de modo desconcertante, ainda presente na cultura e na sociedade capitalista contemporânea: “por mais ideológico que saibamos que seja, seu discurso [de Comte] nos leva diretamente a algo mais importante que a ideologia: a violência real da sociedade burguesa [...]. É por isso que Comte é ‘atual’ - e o será sempre, enquanto a violência for um princípio constitutivo da nossa sociedade” (BRUNI, 1989, p. 42-43).
24 Ao lado de outros como “Uma teoria nova”, “A rebelião” e “A restauração”, o capítulo intitulado “O terror” sugere, somado a diferentes indícios, que O alienista se constitua também como parábola da Revolução Francesa (cf. nota 02, supra).
25 “Daí em diante foi uma coleta desenfreada. Um homem não podia dar nascença ou curso à mais simples mentira do mundo, ainda daquelas que aproveitam ao inventor ou divulgador, que não fosse logo metido na Casa Verde. Tudo era loucura. Os cultores de enigmas, os fabricantes de charadas, de anagramas, os maldizentes, os curiosos da vida alheia, os que põem todo seu cuidado na tafularia, um ou outro almotacé enfunado, ninguém escapava aos emissários do alienista. Ele respeitava as namoradas e não poupava as namoradeiras, dizendo que as primeiras cediam a um impulso natural, e as segundas a um vício. Se um homem era avaro ou pródigo ia do mesmo modo para a Casa Verde; daí a alegação de que não havia regra para a completa sanidade mental. [...] Quanto à razão determinativa da captura e aposentação na Casa Verde [...], é um dos pontos mais obscuros da história de Itaguaí; a opinião mais verossímil é que eles foram recolhidos por andarem a gesticular, à toa, nas ruas, em casa, na igreja. Ninguém ignora que os doudos gesticulam muito. Em todo caso é uma simples conjetura; de positivo nada há [grifos colocados]” (ASSIS, 2006, p. 279).
26 Sobre o nascimento da clínica a partir da anatomia patológica, consultar Foucault (2008).
27 Com efeito, o problema da não localização do corpo patológico foi colocado não apenas pelos críticos da psiquiatria, como reconhecido até mesmo pelo próprio Pinel, a quem se atribui o título de fundador dessa especialidade médica. Combatendo a hipótese da escola organicista da época, Pinel (1809, p. 154-155) afirma: “Um preconceito dos mais funestos à humanidade, e que é, talvez, a causa deplorável do estado de abandono no qual se deixa em quase todo lugar os alienados, é de considerar seu mal como incurável e de atribuir-lhe uma lesão orgânica no cérebro ou em qualquer outra parte da cabeça. Posso assegurar que nos numerosos casos que reuni sobre a mania delirante tornada incurável ou terminada com uma outra doença funesta, todos os resultados da abertura dos corpos, comparados aos sintomas que se manifestaram, provam que esta alienação tem em geral um caráter puramente nervoso e que não é o produto de nenhum vício orgânico da substância do cérebro [...] [em livre tradução]”.
28 Não sem polêmica, uma exceção sobre a localização do substrato orgânico da doença mental a partir da anatomia patológica é a paralisia geral, descoberta por Bayle, em 1822 (cf. FOUCAULT, 2006, p. 165, 175, 347, 375-376, 398).
29 Para tanto, basta observar a “descoberta” - para não dizer produção - de diversas categorias diagnósticas, nos sucessivos manuais da American Psychiatric Association, os quais se intitulam Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM). Enquanto a primeira edição do manual (DSM-I), de 1952, listava cento e seis categorias diagnósticas, a última edição (DSM-V), publicada em 2013, catalogou quatrocentos e cinquenta. Importa observar o aspecto gradativo dessa tendência, visto que o DSM-II [1968] contava com cento e oitenta e duas categorias diagnósticas, o DSM-III [1980] listava duzentas e sessenta e cinco e o DSM-IV [1994], duzentas e noventa e sete.
30 Sobre isso, consultar, por exemplo, Ehrenberg (2004) e Safatle (2013).
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