RESENHA
Uma resenha de O Sistema-Mundo Moderno IV: liberalismo centrista triunfa, 1789-1914
A review of The Modern World-System IV: centrist liberalism triumphant, 1789-1914
WALLERSTEIN Immanuel. The Modern World-System IV: centrist liberalism triumphant, 1789-1914. 2011. Berkeley, Los Angeles, London. University of California Press |
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Os quatro volumes do The Modern World-System, de Immanuel Wallerstein, representam antes de tudo a proposição de uma nova unidade de análise para se compreender a realidade que cerca nossa existência social e individual. Esta obra específica de Wallerstein enquadra-se também dentro do debate sobre a transição do feudalismo para o capitalismo quando se lê atentamente as bases conceituais lançadas já no primeiro volume1. A proposição da nova unidade de análise, o Sistema Mundo, sustenta-se numa epistemologia baseada em três pilares: a longa duração, a não clivagem entre a análise idiográfica e nomotética; e a totalidade intradisciplinar2.
Wallerstein ressalta repetidamente em vários textos e análises, que o positivismo varreu o mundo intelectual com a crença em leis universais aplicadas à realidade social e alimentadas paralelamente pelo progresso técnico encarnado nas “certezas” das ciências físicas. Da mesma forma, a distinção entre idiográfico e nomotético tornou-se central ao emergir a ideologia de um mercado autossuficiente supostamente separado da política. Para ele, seria impossível qualquer descrição ou análise de acontecimentos sem usar conceitos que implicam teorização e generalização sobre fenômenos recorrentes, assim como nenhuma teorização ou generalização é a-histórica. Os conceitos e teoremas são historicamente enraizados e válidos dentro de certos parâmetros de tempo e espaço.
Por isso, o Sistema Mundo Moderno não é um conceito estático e comodamente congelado no tempo. Eis o quarto pilar da análise dos Sistemas-Mundos: “Eles têm vida. Eles passam a existir; eles perfazem seus itinerários históricos de acordo com o conjunto de regras que definem e governam o sistema; eles finalmente se afastam tanto do equilíbrio que o sistema entra em uma crise estrutural terminal” (WALLERSTEIN, 2012, p. 22-23). Transmutam-se no transcorrer do tempo conjuntural e das tendências seculares. Tem nascimento, consolidação e desenvolvimento, emanando forças e tendências intrínsecas oriundas de suas características próprias, que devem ser entendidas em termos estruturais. Coerentemente, portanto, cada volume d”O Sistema Mundo-Moderno corresponde ao recorte tempo-estrutural, idiográfico-nomotético e histórico-diacrônico da longa duração teorizada conforme analiticamente transcorre em sua longa duração:
Cada volume, e cada capítulo dentro de cada volume tem um tema e tenta, por isso, estabelecer um ponto. O livro todo é simultaneamente histórico/diacrônico e estrutural/analítico/teórico. Isto está de acordo com minha premissa epistemológica de que a tão alardeada distinção entre epistemologias idiográficas e nomotéticas é ultrapassada, falsa e deletéria para análises sólidas. A realidade social é sempre e necessariamente ambos, histórica (no sentido de que a realidade inevitavelmente muda a cada nanosegundo) e estrutural (no sentido de que a ação social é governada por constrangimentos derivados do sistema histórico social dentro do qual a atividade referente ocorre). Se, no entanto, tenta-se descrever a realidade de um espaço e tempo muito longos (digamos, o moderno sistema mundial como um todo desde seu começo no século XVI [1450-1640] até hoje e amanhã), encontra-se a dificuldade elementar de que não se pode fazer de uma vez só. Então, eu decidi tomar a história mais ou menos cronológica, introduzindo aspectos estruturais do moderno sistema mundial quando primeiro acorrem ou se tornam evidentes de forma significativa (WALLERSTEIN, 2011 [1974]: p. XI; em livre tradução).
No primeiro volume, são trabalhados os seguintes conceitos: Divisão axial do Trabalho entre centro e periferia, Sistema Interestatal, Sistema Mundo, Economia-Mundo e Império-Mundo. O segundo volume aborda a consolidação da economia-mundo européia decorrente dos efeitos diferenciais do longo ciclo de declínio econômico a partir do século XVII3 nas diferentes zonas da economia-mundo capitalista européia. O terceiro volume se dedica ao período de expansão econômica e geográfica da economia-mundo capitalista européia, The second era of great expansion of the capitalist world-economy (1730-1840). Nos volumes dois e três, o esforço analítico é o de mostrar a importância dos ciclos econômicos estruturais de longa duração, assim como algumas tendências seculares. Já o quarto volume analisa o período de formação e consolidação de sua característica estrutural no âmbito da geocultura, perfazendo uma narrativa analítica que engloba o período entre 1789 e 1873/1914. Justificando sua interpretação não convencional deste período, que é conhecido na literatura como o período das múltiplas revoluções (industrial, científico-tecnológica e populares, notadamente a Revolução Francesa), e normalmente tratado em termos do advento da modernidade, Wallerstein ampara-se na sua própria unidade de análise (Sistema Mundo) para explicar que a economia-mundo europeia já existia desde o século XVI, assim como essa “modernidade”, conforme proposto nos volumes anteriores. Igualmente, como já havia feito a interpretação da expansão econômica no terceiro volume, interpreta tanto a Revolução Industrial quanto a Revolução Francesa pela perspectiva do Sistema-Mundo, da nova unidade de análise que propõe:
É visto como o século das múltiplas revoluções - a revolução industrial, a revolução científica-tecnológica (e notadamente a Revolução Francesa). A visão usual é que a combinação de todas essas revoluções é o que criou, ou que foi taxado, de modernidade. Começando no longo século XIX, a modernidade continuaria no século XX. A visão deste trabalho, como expressado ao longo dos quarto volumes escritos até agora é diferente. Pegue primeiro o conceito da Revolução Industrial. Para a maioria dos estudiosos, ocorreu primeiro na Inglaterra e depois na Grã-Bretanha - as datas mais comuns são como entre 1760 e 1840 - e depois foi copiada ou emulada num número de outros países na Europa continental e América do Norte. Explicamos largamente no volume 3 porque pensamos que isto é incorreto. Nós consideramos que o que ocorreu na Inglaterra nesse período foi um ciclo expansivo da mecanização da produção industrial, um que já havia ocorrido inúmeras vezes antes e que ocorreria novamente inúmeras vezes. Consideramos também que foi um processo da economia-mundo como um todo, um que resultou da vantagem especial da Grã-Bretanha por causa da derrota da França para se tornar a potência hegemônica do sistema-mundo. Durante muito tempo, a visão dominante sobre a Revolução Francesa era a conhecida “interpretação social”, que argumentava que a revolução representava a destruição das forças feudais pela burguesia, tornando possível que a França se tornasse um país “capitalista”. Nos últimos quarenta anos, essa interpretação vem sendo desafiada por uma em que a Revolução Francesa é vista como uma tentativa de perseguir um caminho liberal, um que deu errado. Mais uma vez, discordamos de ambas as interpretações. No volume 3, explicamos porque a Revolução Francesa não poderia ser pensada como uma revolução burguesa que instaurou o “capitalismo”, desde que consideremos que a França há muito se tornara parte e parcela da economia-mundo capitalista. Ao invés, vemos a Revolução Francesa como em parte uma última tentativa de derrotar a Inglaterra na luta para se tornar potência hegemônica, e em parte uma revolução “antisistêmica” (isto é, anticapitalista) na história do moderno sistema-mundo, uma que essencialmente falhou (WALLERSTEIN, 2011 [1974]: p. 275-276; em tradução livre).
Incorporando como causa da Revolução Francesa a luta interestatal entre Inglaterra e França, e enfatizando o significado revolucionário do período napoleônico, Wallerstein conecta sua hipótese de que a realidade social somente pode ser entendida pela perspectiva da unidade de análise do Sistema Mundo, com a consolidação estrutural das idéias, valores e normas que se tornaram as pedras angulares do Sistema Mundo Moderno. Como uma geocultura específica que ele chama de centrist liberalism, ou liberalismo centrista.
Segundo sua interpretação, as duas ideias e valores básicos que irão passar a ditar o desenvolvimento do sistema, ao lado da ala dura da geopolítica é a de que o poder emana do povo e a de que a mudança política é tida como normal, a aceitação da política como assunto público. Não obstante, até 1850-1870, quando a ideologia liberal definitivamente ganha predominância (em especial após a Revolução Mundial de 1848), a ideologia conservadora esteve ativa e exerceu um papel importante como “contra-força” estimulante ao processo de construção ideológica do próprio liberalismo. Inclusive, e por isso, antes da radicalização mais clara entre liberalismo e socialismo, esses últimos eram mesclados contra o conservadorismo ainda atuante do antigo regime. Somente com a separação teórica e real mais evidente entre o conceito do burguês e do proletário é que liberalismo, socialismo e conservadorismo se separam de vez, cujo duelo passa a definir os rumos do mundo em termos de “metaestratégia” política. Na busca de “metaestratégia política”, o Estado se figurou como requisito argumentativo e prático de caráter paradoxal no âmbito do discurso vis-à-vis a realidade material da sobrevivência social.
Sem dúvida a justificativa de que cada ideologia evocou para explicar o seu quase embaraçoso estatismo era diferente. Para o socialismo, o Estado estava implementando a vontade geral. Para os conservadores, o Estado estava protegendo direitos tradicionais contra a vontade geral. Para os liberais, o Estado estava criando as condições que permitiriam que os direitos individuais florescessem. Mas em cada caso, o saldo geral era que o Estado estava sendo fortalecido em relação à sociedade, enquanto a retórica clamava por fazer exatamente o oposto (WALLERSTEIN, 2011 [1974]: p. 16; em tradução livre).
O resultado último desse paradoxo prático-discursivo foi então a própria construção do Estado liberal4 entre 1815-1830, e mesmo adiante. De um lado, os acontecimentos da ideologia, da trajetória do nano segundo histórico, de outro, a importância do jogo diplomático entre Inglaterra e França para a consolidação do Estado Liberal. Vê-se que se de um lado a luta no sistema mundo entre Inglaterra e França produziu as condições sócio-materiais para a erupção da Revolução Francesa, de outro, a partir da revogação das Corn Laws na Inglaterra, os interesses mútuos de Inglaterra e França se interconectavam, quando então puderam erigir um modelo de relacionamento político-institucional e filosófico entre as classes e entre as nações que é a característica genética da geocultura da economia-mundo capitalista. Mas isso reflete que “a construção do Estado moderno, localizada dentro e constrangida por um sistema internacional, tem sido um elemento constituinte do moderno sistema-mundo desde seu começo no longo século XVI” (WALLERSTEIN, 2011[1974]: p. 22; em tradução livre). E é exatamente oriundo desse constrangimento, principalmente no núcleo duro do sistema, onde a lógica capitalista pequeno burguesa estava mais avançada, que de um lado estoura a transformação política democrática e, de outro, a manutenção do protecionismo como forma de contenção das pressões políticas internas e externas. O liberalismo político nasce primeiro que o liberalismo econômico.
A liberdade como conceito fulcral da geocultura da atual organização social nasce no discurso histórico a partir da revolução francesa. Na verdade, essa revolução representou o teor discursivo das revoluções modernas porque foi expressão da solidificação do novo modo de produção, o capitalismo. No exórdio, contestou a ordem feudal e a lógica da nobreza e da monarquia. Era-lhe inerente em sua base existencial a necessidade de garantia da propriedade privada, pois tratava-se de defender o direito de ser dono do fruto do seu trabalho e dos meios para exercê-lo, já que no momento em questão o capitalismo confundia-se ainda, em certo sentido, com o pequeno capitalista ou pequeno produtor. O discurso, obviamente, somente teve força suficiente para ser internalizado como norma na sociedade depois que os núcleos de poder passaram a se tornar cada vez mais dependentes dessa lógica organizacional de produção. Assim, liberdade e capitalismo são, neste sentido específico, lados da mesma moeda5, na medida em que a expansão e aprofundamento do capitalismo é beneficiada pela capacidade de variabilidade das mercadorias, da divisão técnica e social do trabalho em meio a um número cada vez maior de potenciais consumidores/trabalhadores com autonomia relativa para realizar essas mercadorias, num processo mútuo de inclusão/exclusão na medida em que, paralelamente, suas contradições são afloradas6.
Este ponto está muito bem apresentado por Wallerstein quando discorre sobre a Revolução Mundial de 1848 e das respectivas lições dela derivadas para as três ideologias básicas do sistema mundo moderno, que nasceram com a Revolução Francesa e com a era Revolucionária Napoleônica: o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo (radicalismo). Por outro lado, e aspecto importante da explicação empírica, essas lições tiveram como referência ou parâmetro comparativo o fato de que na Inglaterra não havia eclodido a convulsão social de 1848:
Os liberais extraíram duas lições. Uma era a de que eles estavam muito mais próximos aos conservadores do que pensavam e de que as alianças com elementos radicais frequentemente provaram ser perigosas aos seus interesses. Mas segundo, eles determinaram que deveriam elaborar melhor justificações teóricas para as distinções que queriam fazer entre a cidadania, entre cidadãos ativos e passivos à la Siévèy, se desejassem sustentar tal distinção. Os conservadores extraíram uma lição diferente. A estratégia de Metternich (de Maestri, Bonald, etc.) não funcionaria. Eles estavam impressionados que apenas a Grã-Bretanha não teve revolta popular, ainda que fosse o país em que as forças radicais haviam sidos as mais fortes. Eles perceberam que a Grã-Bretanha foi o único país em que os conservadores seguiram um caminho mais centrista, prontos a fazer concessões a fim de absorver e cooptar pelo menos as forças da classe média à arena de decisão política. E notaram que essa política foi bem sucedida, como sugeriu na época um edital do The Times. Os conservadores estariam a partir deste momento prontos para perseguir alguma versão do liberalismo centrista, no entanto, de uma versão mais conservadora - o que os historiadores chamam de “conservadorismo esclarecido”. Os radicais (antigos democratas) extraíram uma conclusão diferente. A de que a espontaneidade não era suficiente. Se se almeja ter um grande impacto político, a organização sistemática e de longo prazo era um pré-requisito. Isso guiaria os “movimentos”, um conceito efêmero, rumo ao caminho da organização burocrática com membros e escritórios, com finanças e jornais, com programas e, eventualmente, com participação parlamentar (WALLERSTEIN, 2011[1974]: p. 160; em livre tradução).
O centrist liberalism é exatamente a arte de incorporar os ideais da soberania popular, da cidadania e da igualdade para conter os riscos antisistêmicos de transformação da posição econômica e política da classe capitalista. O fato é que essa possibilidade somente se sustenta porque há um dinamismo próprio entre centro e periferia, que engloba a transferência de excedente ou valor, portanto, sustentando o centrist liberalism no centro ao mesmo tempo em que se gera um tipo particular dele na periferia. Assim, o liberalismo centrista, como geocultura do sistema mundo moderno, é também reflexo dos dilemas práticos e conceituais entre a noção de indivíduo/coletivo; a propriedade privada como conceito burguês e propriedade privada como conceito que representa o direito de ser dono do fruto do seu próprio trabalho.
Nas palavras de Wallerstein, o centrist liberalism significa erigir barreiras institucionais contra as consequências corrosivas da competição ilimitada nas ideias e valores morais numa sociedade de massa interdependente. Ao passo em que avançavam e se incorporavam institucionalmente as noções da democracia e da igualdade, de outro se aprofundavam dentro da lei a exclusão racial, étnica e de gênero como obviamente mostra a série de lutas ao longo de todo o século XIX e XX:
No começo do século XIX, as mulheres estavam bem ativas nos movimentos abolicionistas, especialmente na Grã-Bretanha e Estados Unidos. Era um período em que os direitos das mulheres estavam se deteriorando em todos os lugares - dramaticamente no caso dos Estados Unidos (Berg, 1978,11). Deve ser lembrado que a primeira exclusão formal das mulheres ao voto foi na British Reform Bill, de 1832, em que se intentava franquear quem ainda não havia sido franqueado antes. Mas ao se fazer isso, a declaração especificava “pessoas homens”, expressão que não havia sido encontrada na legislação inglesa. Essa frase “provocou foco de ataque e fonte de ressentimento (ROVER, 1967, 3), a partir do qual o movimento feminista britânico cresceria (WALLERSTEIN, 2011 [1974]: p. 204; em tradução livre).
A luta pelo sufrágio universal, a luta pela liberdade e igualdade de gênero e raça se traduzia também numa luta ideológica-científica, com estruturas do conhecimento positivistas e que de fato serviram como barreira à competição no âmbito das idéias e à noção de normalidade da mudança na vida social. O liberalismo como ciência social foi uma das principais barreiras utilizadas. O fato é que enquanto se consolidavam as idéias da Revolução no interior da Inglaterra e da França, no âmbito das relações internacionais, raciais e de gênero, a trajetória dessa consolidação seguiu um tempo paralelo, tanto no que tange ao sistema colonial quanto no que se refere às políticas econômicas. A revogação das Corn Laws na Inglaterra, em 1846, segundo defende Wallerstein, foi o ponto de inflexão da geocultura do sistema mundo moderno, isto é, o momento preciso a partir do qual se pode dizer que tal geocultura passou a existir e a evoluir como tal. Influenciada pelo pensamento de David Ricardo, a revogação das Corn Laws, estabelecidas em 1815, marcou a divisão do trabalho entre centro-periferia de caráter moderno, já que a abertura comercial no setor agrícola alavancou a competitividade das nações periféricas nesse setor, ao mesmo tempo em que gerou a especialização mais intensa e irreversível da produção dos produtos industriais na Inglaterra:
O que a revogação da Corn Laws na verdade alcançou? Duas coisas, realmente. De um lado, garantiu a reorganização da divisão axial do trabalho na economia-mundo, de modo que a produção de trigo mais uma vez se tornou atividade periférica. Os anos seguintes veriam a ascensão dos Estados Unidos da América e do Canadá, Rússia e Romênia na Europa Oriental como grandes exportadores de trigo para a Europa Ocidental, permitindo a concentração da atividade industrial na zona da Europa Ocidental (WALLERSTEIN, 2011[1974]: p. 98; em livre tradução).
Ocorre então nesse momento a passagem do intervencionismo comercial para o intervencionismo na indústria, de modo que o laissez-faire nunca foi a característica definidora da geocultura em formação, tendo mais mito que realidade nessa crença (WALLERSTEIN, 2011 [1974]: p. 100).
Também não devemos esquecer que, na medida em que se pode argumentar que o livre comércio prevaleceu na economia-mundo capitalista durante o século XIX, ou pelo menos entre as potências europeias, foi uma história circunscrita a fase A de Kondratieff, 1850-1873. “O século XIX começou e acabou na Europa... com restrições ao comércio internacional (BAIROCH, 1976a, 11). Restrições bem severas - o Bloqueio Continental no fim e a multiplicidade de tarifas protecionistas na outra ponta. [...] O livre comércio para os Britânicos era uma doutrina para prevenir outros governos de fazer qualquer coisa que pudesse prejudicar a empresa inglesa. Nesse sentido, pode-se considerar que o movimento antiescravista (e anti-comércio de escravos) foi o primeiro grande sucesso do liberalismo intervencionista. Discutimos anteriormente o modo como o movimento abolicionista Inglês era previsto em considerações econômicas (WALLERSTEIN, 1989,143-146). [...] O livre comércio era o Livre Comércio Imperialista… (WALLERSTEIN, 1989: p. 143-146; em livre tradução).
No entanto, a partir de 1850-1860, a economia-mundo estava entrando numa nova fase A de Kondratiev, e essa expansão foi então facilmente associada com a revogação das Corn Laws, ou seja, com o liberalismo econômico. No discurso, portanto, foram então incorporadas duas noções básicas inerentes ao liberalismo: desenvolvimento econômico e melhoria social, a primazia do econômico sobre o político. Entretanto, essas duas características eram incompreensíveis sem o intervencionismo e os contextos geopolíticos. A inflexão marcou então também a consolidação concomitante de três pilares definidores da economia-mundo capitalista: Mercado forte (strongmarket), Estado forte (strongstate) e Sistema Interestatal forte (stronginterstate system). Esta construção geocultural e econômica foi amparada pela cientifização do liberalismo (teoria do valor utilidade em oposição a teoria do valor trabalho), pela noção de cidadania e pela burocratização-jurídica do Estado, incorporando as recentes noções da revolução. Uma das utilidades do Estado Forte ou do Estado Liberal é exatamente sua capacidade de abafar as reinvindicações da classe trabalhadora, sem deixar em desvantagem a classe capitalista, com as “reformas inteligentes”. Ao mesmo tempo, certos pré-requisitos eram necessários para mesclar desenvolvimento econômico e combate ideológico na forma do liberalismo centrista, requisitos estes circunscritos apenas aos Estados centrais, sustentados por um Sistema Interestatal forte:
Em 1875, podia ser dito que o Estado Liberal-Imperialista estava seguramente instaurado na Grã-Bretanha e na França e havia mostrado sua habilidade para conter as classes perigosas. Se transformou então num modelo para os demais Estados. O que era mais constante no modelo era certamente a não fidelidade com o livre mercado (uma fidelidade que variava conforme as trocas das posições econômicas de certos países na economia mundial e dos impactos dos seus ritmos cíclicos). O Estado Liberal-Imperialista também era marcado pela fidelidade à maximização dos direitos do indivíduo (uma fidelidade que variava na medida em que os indivíduos usavam seus direitos para desafiar a ordem social básica). O que distinguia o Estado Liberal-Imperial era seu comprometimento com reformas inteligentes por parte do Estado, que poderiam simultaneamente avançar o crescimento econômico (ou melhor a acumulação de capital) e domesticar as classes perigosas (ao incorporá-las na cidadania e oferecer-lhes parte, embora pequena, da torta econômica imperial). Para esse objetivo, o Estado Liberal-Imperial tinha que revolver em torno do centro político e evitar regimes que agitassem, seja por reação ou por revolução. Certamente, para ser capaz de fazer isso o Estado não poderia ter nenhuma questão nacionalista não resolvida frente aos estrangeiros, nem minorias internas fortemente infelizes. Tinha também que ser forte suficiente na economia-mundo para que as perspectivas de prosperidade coletiva não fossem irreais. E teria que ter poder militar suficiente ou aliados suficientemente fortes para que se vesse livre da interferência externa excessiva. Quando todas essas condições prevaleciam, o Estado Liberal-Imperial estava livre para refletir o conservadorismo coletivo da maioria que agora tinham algo a conservar. Por isso, em primeiro lugar, o Estado Liberal-Imperial tinha que ser forte. Para ser mais claro, no começo a extensão da força do Estado era para conter as classes perigosas. E segundo, o Estado Liberal- Imperial trouxe comprometimento à extensão do sufrágio. Mas como vimos, essa extensão era manejada prudentemente (WALLERSTEIN, 2011[1974]: p. 137; em livre tradução).
O dilema passa facilmente do âmbito nacional para o internacional, do desenvolvimento em si para o desenvolvimento do Poder Estatal e da autodeterminação dos povos para um povo específico. Destarte, categorias binárias, mudança política, democracia e pêndulo político na longa duração do duplo movimento narrado por Polanyi em A Grande Transformação. Como diz Wallerstein, enquanto a desigualdade era a norma, não havia a necessidade de entendê-la ou justificá-la, quando passa a ser questionada, a ideologia pura do liberalismo nascida na Revolução entra em choque com a realidade prática do conceito de classe, gerando assim a própria possibilidade do centrist liberalism, tal como o autor descreve. Daí advém a problemática do estabelecimento ótimo-econômico da classe média europeia no XIX e o discurso para mantê-los em sua posição.
As classes médias, nacionalmente, e os Europeus, globalmente, buscavam manter suas vantagens apropriando-se do manto da natureza e da virtude para justificar os privilégios. Eles chamavam isso de civilização, e esse conceito era ingrediente chave dos seus esforços. No mundo ocidental, foi traduzido em educação, e a educação se tornou um meio para controlar as massas. Na cena global, começando por Napoleão (mas adotado subsequentemente por todas as outras potências europeias), “o conceito de civilização como ideologia... tornou-se desavergonhadamente uma forma de imperialismo cultural” (WOOLF, 1989, 119) (WALLERSTEIN, 2011[1974]: p. 156; em livre tradução).
De modo que:
O período 1815-1845 foi um em que todos e todo tipo de gente pareciam se mover incertamente rumo a esta transformação do terreno político. Os reacionários tentaram girar o relógio ao contrário, desfazer o terremoto cultural que foi a Revolução Francesa. Eles descobriram, como vimos, que isso não era realmente possível. A camada dominante (e repreendida), por sua parte, estavam à procura de modos apropriados e efetivos de organização. E o centro liberal estava incerto sobre como deveria e poderia construir uma base política para controlar a agitação social. Eles se concentraram, como já vimos, em construir Estados Liberais - em primeiro lugar e que era mais importante, nos países mais poderosos: Grã-Bretanha e França (WALLERSTEIN, 2011[1974]: p. 156; em livre tradução).
Enfim, em “Global Left vs. Global Right: from 1945 to Today”, artigo publicado em seu site oficial, Wallerstein propõe que o ápice do liberalismo centrista ocorreu entre 1945-1970. Não somente atingiu inéditos níveis de crescimento e desenvolvimento econômico, como também avançou na questão da universalidade dos direitos e expansão do número de Estados soberanos. Para compreender esse ápice é necessário compreender que o liberalismo centrista somente pode ser compreendido pela presença dos movimentos antisistêmicos ou radicais, configurando toda uma dinâmica dialética que deu pulsar às correntes de acumulação e poder do Sistema-Mundo Moderno. Ao mesmo tempo, é importante lembrar, o próprio modo de produção capitalista se beneficia da incorporação do ideal da igualdade dentro da lógica consumista, isto é, a incorporação de raças, gêneros e etnias também é a incorporação da potencialidade de consumo, de um mercado específico de preferências mercadológicas, estéticas, etc. Ademais,
“Dada a força dos poderes dominantes e, especialmente, dos Estados Unidos, pode parecer anomalia que os movimentos antisistêmicos emergiram nesse período. Na verdade, foi o oposto. Procurando resistir ao impacto revolucionário dos movimentos anti-coloniais e anti-imperiais, os Estados Unidos favoreceram concessões com a esperança e a expectativa de que trariam ao poder, nesses países, forças “moderadas” que estariam dispostas a operar dentro de normas aceitáveis de comportamento interestatal. Essa expectativa acabou sendo correta. (WALLERSTEIN, 2017; em livre tradução).
Entre 1970-1980, quando os mecanismos monetários e financeiros de Bretton Woods estavam entrando em colapso, junto com a então aparente capacidade dos EUA de operacionalizar um regime internacional, o centrist liberalism começa a sofrer um revés não somente de dentro para fora, como também de fora para dentro com a começo do declínio do projeto de desenvolvimento soviético. Assim, uma das maiores forças antisistêmicas que levou ao ápice da ordem do liberalismo centrista entra em colapso. Ao mesmo tempo, se suprime qualquer possibilidade de continuidade dos projetos desenvolvimentistas na América Latina. A reestruturação da hegemonia americana busca incorporar a China na sua acumulação de poder e fazer os demais Estados reféns da lógica privada de acumulação de capital mediante a utilização de seu poder estrutural para impor os pilares dogmáticos e práticos do Consenso de Washington e do que chamamos Neoliberalismo:
A estagnação da economia-mundo que começou nos anos 1970 (uma fase B de Kondratieff) se combinou com o debilitamento, como resultado da revolução mundial de 1968, da dominação do liberalismo centrista. A combinação permitiu às forças conservadoras promoverem uma tentativa mundial de reverter todas as mudanças políticas, econômicas e culturais ocorridas no período 1945-1970 (WALLERSTEIN, 2012: p. 26; em livre tradução).
A ausência de movimentos antisistêmicos expressivos, o recuo do radicalismo dos partidos de esquerda e as ameaças gerais radicais, não no sentido do TINA (There Is No Alternative) de Tatcher e Reagan, mas no sentido de fazer florescer a geocultura do liberalismo centrista, impõe uma realidade em que o viés nomotético da economia ganha força, mesmo que nesse mesmo período também tenham ocorrido avanços em questões sócio-culturais como o casamento gay e a legalização do aborto em alguns países do centro, sendo que assim poderíamos sugerir arriscadamente uma espécie de “centrist neoliberalism”.
No âmbito do jogo do poder, o neoliberalismo garante a permanência dos jogadores básicos e ascensão da plutocracia financeira internacional e elevação da desigualdade relativa da renda no mundo e dentro das nações, mas por causa mesmo deste fato, principalmente com a crise de 2008, e por causa mesmo da própria estratégia da hegemonia americana com a reorganização da DIT na “base do pacífico” da Ásia/China (no pós-1980) e, ainda, por causa mesmo de uma geocultura idiossincrática na gigante nação chinesa (que poderíamos até apelidar arriscadamente, de novo, de “socialismo centrista”), há ainda uma gama de possibilidades geopolíticas e socioeconômicas que poderiam forçar, de maneira generalizada, a “des”encubação do centrist liberalism, só não sabemos se com face Imperialista ou Bretton Woodiana. A vitória de Trump e os já recém passados cem dias de seu governo estão aí como pista para apostas.