RESENHA
ŽiŽek Slavoj. Acontecimento: uma viagem filosófica através de um conceito. 2017. Rio de Janeiro. Zahar. 191ppp. |
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DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2017.142999
Existem fenômenos que nos escapam, que parecem grandes demais. Antes deles ocorrerem era impossível prevê-los e depois nossas percepções se transformam radicalmente. Acontecimento: uma viagem filosófica através de um conceito é uma importante contribuição de Slavoj Žižek para a compreensão desses fenômenos. O aumento da popularidade do conceito de acontecimento faz com que esse livro seja muito bem vindo por problematizar algumas de suas questões centrais. Porém é importante frisar que não estamos diante de uma introdução ou de uma sistematização sobre o tema. Žižek puxa os muitos fios soltos, mas dá poucos nós, pois parece mais interessado em aumentar as dúvidas.
Žižek é um filósofo e psicanalista esloveno bastante conhecido do público brasileiro. Além de suas contribuições para a teoria social já serem bastante relevantes, o seu caráter midiático o tornou uma referência constante nos debates contemporâneos - mesmo que para ser negada. O projeto editorial da Zahar para “Acontecimento” contribui e revela esse uso publicitário do personagem Žižek: o nome do autor é maior do que o do livro, a capa tem uma foto dele assustado/ impressionado, e a contracapa tem uma série de elogios dos principais jornais do centro global. Porém, antes de julgarmos um livro pela capa, devemos reforçar que há pelo menos um lado positivo desse caráter midiático que é a popularização do importante debate sobre o conceito de acontecimento. Nesse livro, continuamos a ver o Žižek que se tornou conhecido, aquele cujas referências principais estão na filosofia hegeliana e na psicanálise lacaniana. Esses dois eixos constituem o centro de suas argumentações, porém as referências teóricas mobilizadas são as mais diversas - um passeio que pode causar tontura em alguns momentos, pois, apesar de algumas notas ajudarem, não é uma preocupação do autor explicar detalhadamente todas as referências. Uma das características mais interessantes do livro é a capacidade do autor em mobilizar essas teorias para explicar o cotidiano. Žižek utiliza exemplos prosaicos e artísticos para esclarecer suas discussões, porém uma crítica a ser feita é que em alguns momentos as digressões são tão grandes que pode decepcionar os interessados em uma discussão mais centrada no acontecimento. Em suma, a leitura de Žižek continua agradável, pois a aridez filosófica é quebrada por um humor ácido - que em alguns momentos beira o desnecessário - e um tom enfático que não faz muitas concessões diplomáticas.
Comecemos então a análise do livro, a viagem proposta no título. Na introdução, Žižek se preocupa em colocar “Todos a bordo”. Sabendo do caráter “anfíbio” do conceito de acontecimento o autor fornece uma definição inicial: “algo chocante, fora do normal, que parece acontecer subitamente e que interrompe o fluxo natural das coisas; algo que surge aparentemente a partir do nada, sem causas discerníveis, uma manifestação destituída de algo sólido como alicerce” (p. 8). Porém, essa definição é apenas uma aproximação porque, pela própria característica do acontecimento como uma ruptura, a definição tem que ser acontecimental, ou seja, deve ela própria ser passível de rupturas. Durante todo o livro, passamos de uma definição a outra para dar conta dessas mudanças. Entretanto quando falamos de acontecimento não estamos lidando com qualquer mudança: o conceito tensiona com a questão, central na filosofia, da causalidade. Esses fenômenos acontecimentais - que geralmente estão em quatro dimensões do social: a religião, o amor, a política e a arte - se mostram, em uma primeira abordagem, como efeitos que superam as causas.
Aqui faremos uma pequena pausa na viagem do livro para ressaltar um aspecto não trabalhado por Žižek. Em termos mais próximos da teoria social, poderíamos pensar que a estrutura circular do acontecimento, ou seja, a sua capacidade em definir retroativamente causas e razões, impõe uma abordagem não linear da teoria da história. Parece-nos que essa é uma das principais contribuições dessa discussão para a reformulação da abordagem de certos fenômenos sociais. Nesse sentido, se definimos os protestos de junho de 2013 no Brasil como acontecimento, devemos pensá-lo tendo noção de que a reformulação do campo político feita por esse acontecimento nos revela somente a posteriori suas causas. O que, em certo sentido, faz com que ele crie as próprias causas ao mudar a forma como percebemos a política nacional. Um argumento a favor dessa perspectiva é que as projeções, feitas antes do acontecimento, dos principais sociólogos brasileiros não apontavam nada próximo ao que passamos a viver após junho de 2013.
Voltando à viagem e para finalizar a sistematização do primeiro capítulo, lembramos que Žižek introduz uma importante questão: seria o acontecimento uma mudança na própria realidade ou na nossa apreensão da realidade? Segundo o autor, a filosofia oscilou, desde sua origem, entre uma abordagem transcendental e outra ontológica. A primeira tem como representante elencado Heidegger e está preocupada em como a realidade se apresenta para nós. Para ela, seria mais importante pensar as mudanças na apreensão da realidade. Já a segunda se preocupa com a própria realidade e hoje tem como principal representante não os filósofos, mas a ciência natural. Nela, os acontecimentos são uma propriedade do real. Mais do que escolher entre uma e outra, a questão é importante para demonstrar dois níveis diferentes do acontecimento e de colocar em foco a relação entre eles.
Seguimos viagem e, na “Primeira parada: estruturar, reestruturar e enquadrar”, o autor lida com o acontecimento como mudança no enquadramento da realidade. Para entender essa perspectiva heideggeriana, daquilo que foi chamado de filosofia transcendental, Žižek utiliza a análise de filmes a partir de um enfoque lacaniano. A noção de inconsciente é mobilizada, pois, mais do que um espaço pré-lógico, para Lacan, ela é “um conhecimento simbolicamente articulado ignorado pelo sujeito” (p. 15). Portanto, a relação do sujeito com o real é mediada e a reestruturação do enquadramento - o acontecimento - tem limites. Esse limite se dá no fim do enquadramento, quando o real se apresenta em sua forma mais viva, o que seria em termos psicanalíticos a travessia da fantasia, significando a aceitação da fantasia no lidar com o real. Esse capítulo termina com um retorno a Heidegger para demonstrar que sua ideia de superação da técnica é útil para a discussão sobre acontecimento. Por técnica, Heidegger entende uma atitude em relação à realidade e sua superação significa “a emergência de um novo ‘mundo’ (um horizonte de significado no interior do qual todas as entidades aparecem)” (p. 34).
Na parada seguinte, Žižek começa o capítulo problematizando a distância entre a estrutura racional e a realidade material contingente. Esses dois níveis não coincidem necessariamente e a ideia de recipiente negativo busca dar conta dessa distância, representando “dentro da estrutura de classificação, como um de seus elementos, aquilo que escapa a essa estrutura” (p. 38). Essa é apenas uma das possibilidades da distância, porém é significativa porque é o ponto em que o acontecimento, como contingência histórica, intervém na estrutura formal. Depois é trabalhada a questão central do capítulo - intitulado de “felix culpa” (queda feliz) - que lida com o acontecimento como queda, como perda de uma unidade harmônica que nunca existiu. Esse é um tema religioso comum no cristianismo, porém também está presente em teorias científicas como a do Big Bang e da simetria quebrada. Esse tipo de acontecimento é o que está ligado à quebra do curso normal das coisas. Em todos os exemplos analisados, “coisas surgem quando o equilíbrio é destruído, quando algo dá errado” (p. 55).
O terceiro capítulo - “O budismo naturalizado” - lida com o acontecimento como iluminação. Nele Žižek critica o budismo e a neurobiologia por suas tentativas de superar o self que é definido aqui como uma subjetividade com agência responsável livre. O autor caracteriza o budismo como um complemento ideológico para o capitalismo, já que defende uma não ação que reforça o status quo. Tanto a iluminação budista quanto a redução da vida aos impulsos neuronais prometem o fim da responsabilidade do sujeito, mas ela teima em voltar na vida prática. Não seríamos capazes de abandonar completamente a ideia de destino, porém também não seríamos de nos livrar da responsabilidade. Žižek defende a necessidade da subjetividade - mesmo que seja ilusória como aponta Habermas - para a vida prática cotidiana: “o verdadeiro acontecimento é o da própria subjetividade” (p. 74).
A quarta parada é tão densa que necessita de três conexões, é necessária uma leitura atenta para entender os propósitos do passeio pela história da filosofia. Aqui Žižek aborda “Os três acontecimentos da filosofia” relacionados aos três filósofos-chave na metafísica ocidental: Platão, Descartes e Hegel. Por acontecimento filosófico, o autor entende “uma intrusão traumática de algo novo que permanece inaceitável para a visão predominante” (p. 76). Os três filósofos seriam exemplos disso, o que indica o fato de toda a filosofia buscar negar ao menos algum deles com o objetivo de controlar suas loucuras. No caso de Platão, o amor e a política são analisados para pensar como o filósofo contribui, apesar de algumas limitações, para a discussão sobre a relação entre aparência e realidade. Propondo-se a fazer uma leitura de Platão que supere Platão, Žižek aponta o erro do autor como sendo a ontologização das ideias, ou seja, entendê-las como pertencendo a uma outra ordem da realidade verdadeira. Pelo contrário, o filósofo esloveno propõe que se conciliem as duas esferas entendendo o real que há nas aparências. Já sobre Descartes, Žižek parte do cogito que reduz o ser humano ao processo de pensar sem nenhum objeto externo. Essa teoria o permite pensar a loucura e o sujeito pós-traumático, ambos casos em que o sujeito se depara com um acontecimento mental importante: a existência de algo ao invés de nada em sua mente. A última conexão é dedicada à Hegel. A discussão sobre Hegel fornece o subsídio para a percepção da importância do momento de enunciação para o acontecimento. Na enunciação, o passado - que pode se constituir de erros - é ressignificado. Por isso, o acontecimento é capaz de legitimar um ato que acontece sempre cedo - não há ainda as condições necessárias - e tarde demais - a urgência do ato demonstra que ele sempre já deveria ter ocorrido.
A quinta parada também conta com três conexões, porém agora elas estão relacionadas com “Os três acontecimentos da psicanálise”. Žižek introduz os conceitos lacanianos de real, simbólico e imaginário para propor uma classificação dos acontecimentos baseada nessa tríade. O real “só pode ser discernido em seus vestígios, efeitos e consequências” (p. 112). O acontecimento como real só pode se dar através de um encontro traumático com a Coisa, ou seja, com aquilo que padece de significante. Para exemplificar esse encontro, o autor analisa o holocausto judeu, o papel do pai na relação com a Coisa, e a relação entre amor e sexo. A segunda conexão dá conta do simbólico, “o outro invisível que estrutura nossas experiências da realidade, a complexa rede de regras e significados que nos faz ver o que vemos da maneira como o vemos” (p. 112). O acontecimento simbólico ocorre quando muda completamente essa estrutura, tendo esse novo significante-mestre a capacidade de estabelecer sua própria realidade social. Quando muda o significante-mestre ele cria para si um passado, ou seja, algo que ocorre contingencialmente cria suas necessidades. Deleuze é uma referência importante com seu conceito de passado puro para explicar a mudança retroativa. Há nesse acontecimento a reversão de uma temporalidade do ainda-não aconteceu para o sempre-já aconteceu. A última conexão aborda o acontecimento imaginário quando ocorre a dessubstancialização acontecimental. As aparências se impõe e, no olhar de Žižek, isso é comum ao budismo, aos haikais e à facínoras.
Estamos chegando ao final da viagem e na penúltima parada Žižek discute “A anulação de um acontecimento”, enfocando o caráter emancipador da modernidade. Impressiona aqui um retrato bastante positivo dos feitos que tiveram como marco a Revolução Francesa. Esse estaria sendo anulado por práticas e discursos que reforçam a opressão. Quer concordemos ou não com essa visão da modernidade, é importante ressaltar dois fatores que se sobressaem com esse capítulo: a capacidade do autor de articular as discussões conceituais com uma crítica do contemporâneo e o debate acerca do fim dos acontecimentos. O que ocorre após um acontecimento? Qual sua capacidade de se manter um acontecimento? Em que ele se transforma? Essas são questões que circundam o debate sobre acontecimentos e a contribuição de Žižek é um tanto pessimista perguntando se a anulação seria o destino de todos os acontecimentos.
A conclusão, intitulada “Destino final: ‘Nota bene!’”, é um chamado para que prestemos atenção à possibilidade de acontecimentos atualmente. Aqui Žižek expõe sua herança da concepção de acontecimento de Badiou: “uma contingência (um encontro ou ocorrência contingente) que se converte em necessidade, ou seja, origina um princípio universal exigindo fidelidade e trabalho duro em favor da nova ordem” (p. 165). O triunfo do capitalismo na imposição da ideologia do empresário de si mesmo, na qual o controle é também autoimposto, seria um dos fatores que explicariam a dificuldade de um novo acontecimento. O autor argumenta que a falta de uma resposta consistente da esquerda aos processos políticos em curso seria um dos responsáveis para esses tempos pré-acontecimentais.
Terminamos esse diálogo com Žižek expondo uma discordância com suas palavras finais. Parece-nos que vivemos sim tempos acontecimentais, pois esse conceito se mostra valioso para a compreensão de vários fenômenos contemporâneos de transformação social. Pode ser que os rumos não sejam emancipatórios, porém fazer uma delimitação normativa do conceito nos parece redutor - e não é o que pretende o autor. Pode ser que ainda não tenhamos plena consciência de qual será o novo enquadramento da realidade, mas ele está mudando. Basta ver a confusão na interpretação e na própria realidade - sobretudo a brasileira.