Resumo: O trabalho visa explicitar como feiras voltadas às cervejas funcionam não apenas enquanto locais de circulação e troca de mercadorias, mas enquanto focos de formação e circulação de discursos e representações e como espaço de articulação de pessoas, sendo locus privilegiado para a análise das dinâmicas próprias de formação de mercado. Para etnografias de feiras do mercado de cerveja, com destaque para os discursos proferidos em palestras. Como argumento central, temos que esses espaços possuem importância simbólica e política para aquelas cervejarias que buscam ser identificadas dentro do espectro “artesanal” pois, por um lado, são locais de construção do discurso da qualidade e identidade de seu produto enquanto uma categoria à parte; e por outro lado são locais de articulação da ação coletiva voltada a proteger e desenvolver seu espaço. Assim, podemos captar nesses eventos, e considerá-los também parte do processo de construção de um mercado “artesanal” e de seus agentes.
Palavras-chave: Sociologia EconômicaSociologia Econômica,MercadosMercados,FeirasFeiras,ArtesanalArtesanal,CervejaCerveja.
Abstract: This article’s main goal is showing how craft beer fairs and festivals play a role not only as Market places where goods circulate and are exchanged; but are also key sites of market emergence and formation. There, discourses and representations of craft circulate among producers and consumers, and those can openly articulate their actions for commercial and political goals. These spaces are permeated with symbolical and political meaning for those breweries which aim at being considered as craft. It is there that the values of quality and identity are built, making craft beer its own product category; and it is also there that producers can seek collective action in order to protect and develop their own market space. Thus, we may consider festivals and fairs as part of the process of constituting both the market and their agents.
Keywords: Economic Sociology, Markets, Festivals, Craft, Beer.
ARTIGO
Feiras de cerveja - vias de construção do “artesanal”
Beer Festivals - elaborating “Craft”
Este artigo tem como questão central as possibilidades de estabelecimento de um mercado nascente frente a seus concorrentes já estabelecidos. Neste sentido, acaba tendo como foco demonstrar o quanto a formação de aparato simbólico e discursivo próprio importa para a configuração deste novo espaço - e o papel das Feiras de mercado na dinamização destes processos. Para assegurar um espaço de atuação à parte, são mobilizados elementos estéticos, discursivos e políticos, que visam estabelecer uma identidade, definindo quais são os participantes legítimos deste ambiente e quais são os excluídos. As Feiras, neste caso, são entendidas enquanto locais em que esta construção tanto se forja quanto se torna aparente. O artigo resulta de observações etnográficas de eventos do calendário cervejeiro de São Paulo e do Brasil nos últimos anos, analisadas a fim de construir um entendimento da centralidade destes eventos para a organização do mercado bem como para a emergência da especificidade do “artesanal” no mundo da cerveja.
Feiras, enquanto locais de mercado, oferecem um valioso instrumento de observação acerca das dinâmicas que regem o comércio de bens, possuindo diversas peculiaridades que indicam, através do modo de organização, como se estrutura a própria circulação comercial na qual se inserem - constituindo um espaço de disputas hierarquizado, que reflete a estrutura de consumo (PALMEIRA, [1971], 2014). Neste sentido, podem ser utilizadas como plataforma para buscarmos entender mercados como um todo, sua formação e estabilização. As Feiras são espaço privilegiado de observação por fornecer informações sobre produtos posicionados lado a lado com as alternativas oferecidas ao consumidor, esclarecendo-o e oferecendo uma oportunidade de captação de clientes e formação de público (GARCIA-PARPET, 2009).
Porém não é apenas este tipo de informação que está em curso. Muitas vezes, tais eventos constituem cenários próprios das disputas para conformação das definições válidas das mercadorias em si e de sua qualidade; elementos que extrapolam a experiência vivenciada na Feira. Estudos brasileiros destacam o papel das feiras como elementos impulsionadores e mesmo modernizantes de práticas estabelecidas - casos, por exemplo, das “Festas do Bode”, no Nordeste brasileiro, que buscam impulsionar a profissionalização da caprinocultura (GONÇALVES JR., 2010); ou de estudos que exploram as feiras como espaços de mobilização e disputa, concretizada através de dispositivos materiais específicos, do quais as formas apropriadas de atuação no mercado (VERETA-NAHOUM, 2016).
Pensando na questão proposta, este artigo busca explorar estas disputas utilizando-se da etnografia de uma série de eventos voltados ao mercado de cerveja. Nestes, foram realizadas observações da dinâmica dos eventos, tomando contato com visitantes e expositores a fim de apreender as relações entre eles. Foram frequentadas igualmente as palestras oferecidas pelos organizadores que, via de regra, buscavam discutir as especificidades do mercado e produtos expostos nas feiras1. As falas utilizadas para exemplificar as disputas em curso no mercado foram colhidas nestes debates e palestras. Utilizou-se desta metodologia por acreditar-se que as feiras constituem um momento específico em que se pode ter acesso concomitante à forma de apresentação do mercado, dos produtores individuais e do público, e por ser esse um contexto em que diversos atores, geograficamente dispersos e ligados a distintos pontos da cadeia de valor, encontram-se reunidos. Ocorre nas palestras e debates a transmissão de uma série de discursos que buscam definir o espaço das microcervejarias e do “artesanal” dentro do mercado da cerveja, em que produtores estabelecidos são constantemente referidos como o “outro”, o “mainstream”, o “grande”; bem como uma série de encontros e articulações políticas que buscam influenciar não só o formato dos eventos, mas planejar ações a serem tomadas e executadas em outros âmbitos. Neste sentido, entendemos que a feira passa a ser um local de construção de discursos e da legitimidade dos ditos produtores “artesanais”, e de delimitação e difusão dos critérios para que se encaixem neste meio.
Os eventos visitados - Cerveja Artesanal São Paulo 2015 e 2016, Slow Brew Brasil, 2015, Degusta Beer & Food 2015, Festival Brasileiro da Cerveja 2016 e Mondial de la Bière 2016 - são festivais voltados especialmente ao público cervejeiro, com divulgação na imprensa e acesso mediante compra de ingressos. Os três últimos eventos mencionados encontram-se entre os maiores do calendário nacional - tanto em público quanto em número de edições, sendo reconhecidos como “tradicionais” do mercado; e os primeiros eventos listados possuem relevância regional, destacando-se a expansão de público nas últimas edições.
Priorizou-se eventos em que se abrem espaços de debate acerca do mercado cervejeiro, para poder captar discursos em circulação no meio, observar os efeitos da feira e o processo de estabelecimento de uma identidade de mercado. As feiras permitem ainda apreender os valores simbólicos em curso e, através do contato direto com os atores, conhecer de seu vocabulário, referências, modos de transitar e agir.
Considera-se que as dinâmicas dos eventos do mercado de cervejas - considerado como um espaço provido de regras específicas - refletem mecanismos que permitem a emergência e estabilização de um espaço à parte, e busca explorar como os estes dois movimentos realizem. Tal reflexão é relevante pois permite compreender fenômenos de diversificação de mercados e consumo enquanto movimentos complexos e estratégicos de atores interessados em estabelecer-se e proteger-se enquanto um segmento à parte, distintos e concorrentes em relação a outro modo de produção (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012).
A hipótese central sustenta que há uma ação que define o nicho enquanto espaço separado do mercado de cervejas resultante, em especial, de um esforço de definição de seu produto em oposição àquele dos grandes produtores e que se utiliza de estratégias discursivas, comerciais e políticas para assegurar a expulsão deste “outro” de seu circuito. Este trabalho de auto-definição e diferenciação é realizado através de diversas frentes, sendo as feiras e festivais de cerveja momentos centrais, enquanto eventos comerciais abertos ao público consumidor, razão pela qual foram escolhidos como eixo condutor deste artigo.
O mercado de cervejas possui uma série de características que o tornam relevante para a percepção dos processos de diferenciação e formação de nichos de mercados. Sua característica, no Brasil, é a de se um mercado que passa por um processo histórico de concentração, com a existência de poucas empresas com controle quase absoluto das vendas2. Nos últimos dados disponíveis, têm-se que a Ambev controla 67% do mercado, seguida por Schincariol (14,1%), Heineken (9%) e Brasil Kirin (8,4%).3
No primeiro relatório do setor de cervejas realizado pelo BNDES, em 1996, eram considerados 42 estabelecimentos especializados na produção de cervejas, com projeção de crescimento para 52 até o início dos anos 2000, de modo a atender a demanda. Neste relatório, já se apontava a tendência à concentração de mercados - que de fato ocorreu com a criação da AmBev em 1999 e a recente aquisição da Brasil Kirin pela Heineken.
Entretanto, este viés de concentração não resultou na estagnação no número de empresas envolvidas no setor. Consta do último levantamento do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), um número de 397 cervejarias em funcionamento no país4. Dados levantados pelo Instituto Brasileiro da Cerveja5 apontam a existência de 46 cervejarias artesanais no Brasil já em 2005, com crescimento expressivo ano a ano chegando a 130 em 2010 e 372 em 2015.6 Estes dados levam em conta apenas fábricas existentes, sendo que o número de marcas é expressivamente maior, devido ao fenômeno da existência de marcas “ciganas”, que terceirizam a sua produção utilizando a capacidade de plantas já existentes. A estimativa de volume total produzido para o ano de 2015 foi de 91 milhões de litros, o que corresponderia a 0,7% do mercado total de cervejas no Brasil. Segundo os dados fornecidos pela Abracerva - Associação Brasileira de Cerveja Artesanal - este montante movimentaria, atualmente, entre dois e três bilhões de reais por ano.7
Não há um consenso sobre qual seria a primeira microcervejaria surgida no Brasil com foco para cervejas “artesanais” ou especiais. Os relatos de participantes do mercado citam frequentemente as cervejarias Borck, de Timbó (SC); Colorado, de Ribeirão Preto (SP) e Dado Bier, de Porto Alegre (RS). Todas estas iniciaram suas atividades entre 1995 e 1996. Este mercado diminuto, com poucos produtores isolados, se expande lenta porém consistentemente a partir dos anos 2000, acompanhado de fato por um aumento em vendas em parte específica do setor de cervejas, das consideradas “Premium”, que abarcam em 2013 cerca de 7% do mercado nacional, considerando tanto rótulos internacionais quanto pertencentes às grandes cervejarias8. Este segmento se caracteriza pelo consumo de produtos de maior valor, a partir de uma percepção de diferença qualitativa. Esses produtos podem se dividir entre um segmento “Premium” - de valor até R$ 7 em mercados, e “super Premium” - acima de R$ 9 (valores de 2013). 9 Nesta estatística, entram marcas pertencentes a grandes companhias; produtos de qualidade superior produzidos nacionalmente por pequenas empresas e produtos importados pertencentes ou não ao portfólio de grandes companhias - que aumentam sua penetração no mercado em 10 vezes entre 2005 e 2011 (CERVERI JR. et al , 2014, p.103).
No entanto, é pouco claro o que exatamente pode ser entendido como “artesanal” neste tipo de indústria. Não há no Brasil um marco legal que defina distintos tipos de cerveja, ainda que existam projetos de lei que ora a qualificam através de sua composição, ora por meio da capacidade produtiva dos fabricantes - neste sentido, por exemplo, o sistema de tributação Simples Nacional aceita microcervejarias com receitas brutas de até 4,8 milhões ao ano. Diferentes categorias e valores são apresentados por agentes interessados tanto na proposição das leis, quanto em suas auto definições.
Seguindo a trilha do microprodutor, o “artesanal” pode ser simplesmente aquele que não possui um parque industrial extenso, limitando o seu volume e assim, a sua rentabilidade, a um teto independente da forma de organização empresarial. Em outros casos, como ocorre nos EUA (considerado como centro de difusão do movimento de novas cervejarias), além da limitação em volume, prega-se um limite à porcentagem da empresa produtora que pode ser controlada por grandes grupos financeiro-industriais para que esta se considere “artesanal”, além da adesão a métodos “tradicionais”.10 Nesta mesma chave, há a sugestão de utilização limitada a determinados ingredientes, de forma a afastar aqueles associados à baixa qualidade ou a corte de custos industriais. Por fim, no discurso de alguns cervejeiros, conta o modo de fazer, no qual termos como criatividade, paixão, cuidado com o produto e mesmo negação do lucro como objetivo final são apontados enquanto noções centrais, como veremos mais adiante.
Não nos interessa, neste caso, trabalhar empiricamente com um sentido definido a priori, mas sim perceber como, em meio às disputas do mercado e através da circulação dos bens e de sua definição, estes também se transformam e assumem diversas características - num processo de qualificação que lhes confere um valor à parte (CALLON; MEADEL; RABEHARISOA, 2012). Assim, trata-se não tanto de captar uma definição estanque, mas compreender os significados atribuídos ao produto enquanto um fenômeno à parte, que forja uma identidade aglutinadora para determinados agentes.
Primeiramente, será feita uma reflexão, com base nos elementos captados nas feiras, acerca das estratégias comerciais relacionadas à formação de espaços separados de comercialização e exposição dos produtos nestes espaços. Em um segundo momento, exploraremos as disputas simbólicas e discursivas em jogo nestes espaços e sua relevância para a formação de nichos de mercados. Por fim, será exposto como, subjacente a estes elementos mais explícitos na tentativa de segregação do nicho de mercado, ocorre também um esforço político para assegurar a proteção aos pequenos produtores. Na conclusão, veremos como estes três momentos, condensados em eventos comerciais, se articulam e colaboram para que seja atingido o objetivo dos produtores “artesanais”, qual seja o estabelecimento de um espaço diferenciado e protegido da concorrência comercial de grandes produtores.
Feiras comerciais têm como principal atividade a promoção de marcas e venda de seus produtos para o publico conhecedor ou curioso, que frequenta o espaço em busca de novidades. Neste sentido, encontramos aí um lugar que faz parte da estrutura logística de distribuição e circulação dos produtos - seu processo de commoditização (APPADURAI, 1986). Neste sentido, as feiras de cerveja não diferem das demais, possuindo uma dinâmica e organização bastante regular: estandes de exposição, usualmente do mesmo tamanho e por vezes divididos entre mais de uma cervejaria, distribuídos por um ou mais galpões. Os visitantes circulam pelos corredores, escolhendo quais as cervejarias querem conhecer, com maior ou menor critério a depender da existência de sistema open-bar ou necessidade de pagar pelas provas.
Por detrás deste contexto aparentemente padronizado, encontram-se elementos que permitem explorar mais amplamente as disputas de mercado. Parte-se do pressuposto que, na feira, o interesse dos atores em exibir seus produtos e estabelecer contatos com especialistas e curiosos se dá de maneira explícita - uma vez que estas se apresentam como local de networking, plataforma de lançamento de produtos e cenário para tomada de posição (GARCIA-PARPET, 2003; 2009). Isso se percebe na própria organização do espaço: enquanto há um padrão de estandes com tamanhos similares na maioria dos eventos, acordada por contrato de modo a garantir isonomia entre os participantes, existe a tendência de se quebrar este padrão quando há a presença de grandes grupos industriais, como ocorre no Degusta Beer&Food11 e Mondial de la Bière.12 Em ambos, o ambiente é organizado de modo que, ao entrar, o visitante passe primeiramente pelos estandes pertencentes a grandes grupos cervejeiros do país, de maior tamanho e melhor acabamento; e que buscam focar em seus rótulos de apelo especial ou em marcas de microcervejarias recém-adquiridas. Atrás desta primeira seção de cervejarias, encontram-se os demais estandes cervejeiros, aí sim obedecendo à regra de disposição mais regulares e tamanhos relativamente homogêneos. Deste modo, reafirma-se como o espaço físico e organização encontraram-se permeados por representações sociais e culturais, signos que atuam nas relações sociais e permitem análise dos fatores em jogo neste contexto (GEERTZ, 1978), através de uma exibição de poder econômico e tentativa de bloqueio visual dos demais participantes, refletindo clivagens hierárquicas do circuito comercial (PALMEIRA, 2014).
Um segundo marcador físico de diferenciação encontra-se na disposição estética adotada em cada estande. O apelo à tradição (alemã, belga, inglesa) convive com a adoção de temáticas próprias de cada marca - há a profusão por temas arrojados e provocativos que, via de regra, buscam ligar-se a ideias como “cerveja de verdade” ou “revolução cervejeira”, apresentando o genuíno ou o novo. Importa, neste caso, apresentar uma identidade facilmente reconhecível e alinhada com os rótulos que propõe, de modo que o conjunto encaixe-se num grupo imagético diferenciado da cerveja comum, do dia-a-dia. Toda a busca, neste caso, é para marcar a excepcionalidade. Esta percepção reforça um papel atribuído às feiras como locus da requalificação do produto - enquanto algo à parte da cerveja cotidiana, pertencente a uma nova categoria de consumo, logo, disputa das concepções em jogo no espaço (GARCIA-PARPET, 2003) e de reclassificação dos bens (BECKERT; MUSSELIN, 2013). Assim, se aproveita o fato de este ser um ponto de encontro não só entre consumidores e produtores, mas entre estes entre si e com jornalistas, empresários, institutos educacionais e outros intermediários que ajudam a difundir as representações do mercado.
Por fim, há a orientação das marcas na busca por premiações e variedade de estilos, indicando uma preocupação com a demonstração de qualidade e inventividade neste meio enquanto marcadores de valor, de modo a estabelecer a qualidade das marcas e seus produtos. No caso do Festival Brasileiro da Cerveja13 e Mondial de la Bière esta relação é evidente, com o afixamento das medalhas obtidas no topo de cada estande enquanto chamariz comercial, a alta procura dos visitantes por experimentar as cervejarias e fabricantes premiadas. Vê-se clara concentração de filas frente a balcões de empresas que possuem histórico de premiações, apresentam estilos novos e logo recebem maior exposição em veículos de imprensa.
O oferecimento de cervejas exclusivas ou experimentais, por vezes em colaboração entre cervejarias (nacionais ou estrangeiras), também é recurso comercial que atrai clientes e reforça as marcas que possuem maior atividade neste sentido enquanto inovadoras. Casos de cervejarias que apresentam poucas variedades de cerveja, concentrando-se no “trio” cerveja clara, cerveja escura e cerveja de trigo são amplamente ignorados. Estandes que apresentem rótulos pouco atraentes ou que remetam às cervejarias de baixo custo também não são frequentados com assiduidade. É possível, desta maneira, perceber que a adequação estética e da prática também preconiza uma exclusão - pela baixa ou menor frequência aos seus estandes - de cervejarias com fama de má qualidade, que não participam de concursos, e das que não se encaixam na estética, sem diferenciais de estilo ou estandes de grandes grupos industriais.
Vale lembrar que, nesses eventos, ainda que os produtos ofertados possam apresentar valores diferentes, a concorrência entre os ofertantes não aparece como centrada no preço. Os valores são fixados por cada expositor a priori, e não há negociação. A concorrência se dá primordialmente em torno da qualidade do produto, sendo que os marcadores de atração dos clientes se dispõem de forma a ressaltá-la. Por este motivo, entende-se que há, neste contexto, tanto um esforço para pôr em marcha processos de qualificação do produto - a partir de mecanismos de consagração, com os concursos concomitantes às feiras comerciais - como uma adesão compartilhada entre produtores e público a quais os marcadores principais de valor: a presença de novidades, medalhas e diferenciação de rótulos, colaborando para o fortalecimento de uma identidade de produtores enquanto “artesanais” (CALLON; MEADEL; RABEHARISOA, 2002; BECKERT; MUSSELIN, 2013).
No entanto, apenas estes fatores não explicam o motivo de marcas bem divulgadas em meios de imprensa, com rótulos variados e consagrados em edições de festivais e que possuem identificação estética arrojada e clara encontrarem-se vazios no início dos festivais, como é o caso das cervejarias Bohemia, Eisenbahn, Wäls e Colorado, observado em todos os festivais em que se fizeram presentes (as cervejarias não participaram do Cerveja Artesanal São Paulo, outro sinal de exclusão, pois o evento seria voltado apenas às “artesanais”).
Em especial, algo faz com que as três últimas cervejarias, participantes do setor até serem adquiridas por grandes grupos empresariais, passem a sofrer consequências que independem de sua qualidade e adequação estética. Esta exclusão pode ser entendida na chave de uma inadequação ao discurso e prática das “cervejarias artesanais”, que implicaria uma penalidade imposta aos elementos que passam a desviar destes padrões. Para entender este elemento, implica-se que exista outra forma de definição da categoria “artesanal” que não pode ser limitado aos elementos materiais, atendidos por estas marcas e produtores. Temos por argumento que esta requalificação se dá no nível do discurso, em que se coloca como uma diferença entre formas de produção.
Nos eventos visitados, há a prática de se realizarem palestras, debates, e mesas redondas.14 A questão da definição do produto “artesanal” é constante nestas, e de partida gera polêmica - tanto sobre a necessidade de se haver uma definição legal, passível de gerar limitações futuras, quanto à adequação de se utilizar referências quantitativas, conforme os marcos discutidos nos projetos de lei preconizam:
Talvez seja melhor a gente só fazer a limitação pelo tamanho de produção, porque não existe cerveja grande que tenha “pegada” de artesanal (informação verbal)15. Melhor seja não ter uma definição legal mesmo (...) que depois vão dizer que cerveja artesanal só pode ter malte de cevada e a gente sabe que não é (informação verbal)16.
Uma questão importante é até que ponto uma cervejaria pode ser considerada uma craft, micro. Muita gente fala em volume (...) acho que tem um ponto muito maior que é a questão da ideologia da cervejaria nessa questão (...) é manter uma linha de produtos, de raciocínio. Ter reinvestimento, crescer o mercado, educar o consumo (informação verbal)17.
Há um esforço na busca de uma definição do “artesanal” e de suas qualidades intrínsecas, permitindo analisar este segundo elemento - discursos de qualificação - enquanto atuante nas estratégias de diferenciação e formação de identidade (CALLON; MEADEL; RABEHARISOA, 2002). Aqui, podemos pensar que esta articulação entre os produtores de cerveja lança mão de uma série de mecanismos para proteger as chances de reprodução do seu negócio - de forma deliberada ou não (FLIGSTEIN, 2001). A alternativa, neste caso, seria a busca da diferenciação em uma categoria à parte (BECKERT; MUSSELIN, 2013) para conformar-se enquanto um nicho de mercado, ocupando um novo local e evitando um confronto direto através da sua exclusão enquanto concorrentes da cerveja como um todo (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012, p. 98-99). Este seria o mecanismo identificado ao longo dos discursos proferidos nas feiras.
Tais espaços, em geral palestras, podem ter acesso gratuito ou pago (com preços módicos), passando por temas que vão das dicas de produção e insumos - mesmo os “malditos”, como o milho18 - a degustações e harmonização gastronômica. Há tanto a intenção de atingir o público profissional ou em vias de se profissionalizar, como é o caso das palestras promovidas pela Escola Superior de Cerveja e Malte no Festival Brasileiro de Cerveja, como palestras voltadas ao público geral - além de inúmeros debates sobre os rumos do mercado, que atraem ambos os públicos19. Nesses meios, propaga-se a principal crítica à definição do “artesanal” enquanto limitada aos volumes de produção, através do estabelecimento de uma percepção diferenciada na qual não é o volume que os define enquanto “artesanais”:
Outras cervejarias que fazem a produção grande, de baixo custo - Belco e tal - não são artesanais, evidentemente não tem a preocupação com o produto que a gente tem... mas não existe uma definição legal disso (Informação verbal)20.
Trabalhamos uma questão cultural do “beba menos, beba melhor”. A grande indústria faz o oposto... Estou comprando sabor, aroma, e não volume (Informação verbal)21.
Artesanal está ligado a conceito, e não a volume (Informação verbal)22.
Eu tenho medo de qualquer definição, que isso vai limitar a criatividade do cervejeiro (Informação verbal)23.
Assim, o que definiria o “artesanal” seria uma preocupação com o produto - à qual se atribui uma consequente qualidade. Há, por um lado, a visão de que o volume não define a qualidade - empresas que não são dominantes no setor podem combinar volumes menores com baixa qualidade e preço, sem aparentar o cuidado com receitas e matérias primas que garante a qualidade da bebida. Por outro, convive-se com a perspectiva de alguns participantes em aumentar a própria produção, motivo pelo qual a imposição de um limite seria contra produtiva. Também se rejeita a limitação a uma série de ingredientes, que beneficiaria apenas cervejarias de determinadas tradições e iria contra um dos principais atrativos percebidos do mercado, da busca por inovações. No entanto há, além da questão qualitativa, uma ideia de “práxis artesanal” específica aliada a um caráter da empresa e do modo de fazer o produto, e não do bem em si, que entram em jogo:
A nossa associação tem uma definição que não se pode pertencer a um grande grupo econômico (Informação verbal)24.
(...) envolve primeiro um comprometimento do produto... desenvolver produto com sabor, e não um comprometimento com o lucro... No geral são empresas familiares, independentes economicamente (Informação verbal)25.
O que eu acho mais patético nisso não é uma grande comprar uma artesanal, mas uma grande tentar fazer uma artesanal... você vai tomar e é uma coisa horrível, botar um produto mainstream do mercado dizendo que é uma artesanal (...).
Canibalismo mercadológico existe. (Informação verbal)26.
Percebe-se uma oposição velada ao tipo de produção e forma de organização relacionada primordialmente com as grandes cervejarias - o seu produto seria realizado com outros fins, mesmo que o processo fabril seja essencialmente o mesmo; alinhada à definição do produto “artesanal” enquanto algo conceitual e qualitativamente distinto. O microprodutor ainda se vê como majoritariamente familiar, e desconfiado da ideia de produzir apenas com vistas a ganhos monetários. Estes seriam consequência.
Esta oposição demonstra uma visão alternativa do campo de atuação e da posição dos produtores “artesanais” no mesmo, em desafio à lógica do mercado de cerveja, em que são minoritários. A diferenciação do produto e criação de uma nova categoria os colocaria à parte, concorrendo entre si apenas (BECKERT; MUSSELIN, 2013). Assim, mesmo sob ataque, estes podem invocar a identidade de grupo e manter um compromisso coletivo, identidade muitas vezes “enraizada em oposição e controle sobre o “seu” nicho” (BECKERT; MUSSELIN, 2013, p.111).
Eu não vejo preocupação com o produto (pelas grandes cervejarias). Minha única preocupação... pode ter certeza que a distribuição e a venda, vão jogar pesado pra ter preço abaixo, dominar mercado, não deixar a outra cerveja entrar... Precisamos pensar numa maneira de se defender em relação a isso. (Informação verbal)27.
Jogaram um tubarão dentro do lago. (Informação verbal)28.
Falar que não vai frear [o mercado] é muito ingênuo frente à política comercial da empresa que vocês trabalham tem hoje... aqui é diferente de uma politica comercial americana na qual você não pode pagar pelo ponto de venda. (Informação verbal)29.
Vê-se nas falas uma preocupação com a concorrência externa num mercado que se pretende protegido ou mesmo à parte do das grandes cervejarias, aplicando a este espaço suas formas de distribuição e gestão do negócio, fonte de um modo de concorrência considerado inadequado ou injusto. Quando se discute a relação de compra de micro cervejarias pelos grandes produtores, surge por um lado o destaque para o impulso em divulgação e em padronização do produto final. Por outro, há a critica a adoção de formas de competição desleais e um forte discurso pró-pequeno produtor contra monopólios de mercado, pelo qual volta à tona a noção da necessidade de proteção. Este último argumento frequentemente se combina com a valorização do produto “artesanal” enquanto diferenciado em si:
O problema não é as artesanais estarem no mercado e suas dificuldades, o problema são as pseudo artesanais, cervejas artesanais que hoje fazem parte de grandes grupos com muito poder e grana (Informação verbal)30.
Ambev não é ruim - consumidor pode chegar por um caminho que a gente não chegava. (Quanto) mais massa critica melhor (Informação verbal)31.
É inegável que as grandes empresas vão querer entrar. Assusta, mas mostra que estamos no caminho certo. São duas formas diferentes de fazer negócios, dai surge um embate (Informação verbal)32.
Não mais revolução, mas evolução (Informação verbal)33.
A crítica colocada tanto às tentativas de entrada no mercado por grandes grupos quanto em relação à venda das companhias pode também ser entendida como um sinalizador das barreiras de pertencimento ou não ao grupo, e a exclusão de marcas antes consideradas “artesanais”, nesse caso, como um efeito de punição pela ultrapassagem dos constrangimentos impostos no interior do mercado quanto à definição ideal do produtor e o comportamento esperado pelos participantes do meio (ZELIZER, 2006).
A formulação dos discursos de distinção do produto reflete a tentativa de distanciamento do mainstream, superando uma definição de si centrada apenas na estética de marca e formas de comercialização. Estas falas trazem à luz o engajamento e militância por uma “causa” da cerveja que está interligada a restrições que advém da pertença ao próprio mercado ou categoria - ainda que não haja uma formulação precisa, entende-se que a adesão a certos padrões de produção que exaltem o pequeno produtor, familiar, e que reforcem o vínculo entre o dono da empresa ou cervejeiro mestre e o produto final, aproximando-o do consumidor, são necessários para que a empresa se enquadre neste grupo a partir de uma disputa discursiva pela definição de seu produto enquanto na categoria “artesanal”.
No exemplo contrário, quando há a afirmação do “fim da revolução cervejeira” no Brasil por parte de um dono de marca adquirida por uma grande companhia; alegando ser o momento da “evolução cervejeira”, a reação adversa do público consumidor é imediata - mesmo se tratando de um debate promovido pela companhia em questão, patrocinadora do festival Degusta Beer & Food 2015.
O embate pelo estabelecimento de identidades e logo, nichos de mercado, parece centrar-se então na disputa da qualificação do produto, levando a uma legitimação e reprodução do mesmo a partir da aquisição de características distintivas que o classifiquem enquanto desejável, ao mesmo tempo em que, ao delimitar e ordenar o mercado, classifiquem todos os que não se encontrem no seu mesmo patamar enquanto alheios ou indesejáveis. A criação de uma categoria “artesanal” para se referir ao bem de consumo possui uma marcada característica de funcionar como elemento de ordenamento de mercados, aproveitando os modos de distinção da produção enquanto mecanismo de legitimação e elevação a um patamar separado, ainda que o significado seja aberto a inúmeras disputas em seu interior. A diferenciação também oferece uma forma de controle sobre a competição, pois permite escolher qual a fatia do Mercado na qual se compete ou não, ao desqualificar o outro como seu adversário. Esta seria a vantagem do especialista, que ganha visibilidade exatamente por estar onde uma firma generalista não se encontra (FLIGSTEIN; DAUTER, 2007; CARROL; SWAMINATHAN, 2000).
Há, de todo modo, a necessidade de conformar-se com um modo de produzir e se posicionar que ultrapassa a simples consecução de um empreendimento comercial com fins lucrativos, ainda que este esteja presente. Ainda que existam disputas dentro deste nicho, parece ser consensual uma identificação entre si e união contra o que é visto como uma ameaça maior, a saber, as grandes cervejarias. A produção de cerveja “artesanal” é ligada ao pertencimento a um perfil definido, entendido a partir dos discursos que envolvem a busca da requalificação da cerveja através dos valores ligados à qualidade; variedade de estilos oferecidos; identidade visual e posicionamento dentro do campo - em oposição ao grande produtor (CALLON; MEADEL; RABEHARISOA, 2002). Há um duplo movimento: de rejeição do “industrial” e adequação entre os “artesanais” numa dinâmica de oposição que cria limites e relações específicas entre os envolvidos (ZELIZER; TILLY, 2007).
Ao adjetivar-se um produto, cria-se ao mesmo tempo uma classificação do mesmo e uma desclassificação de seus concorrentes, que não se encaixam naquele universo de sentidos e por isso não concorrem com os mesmos, por mais contraditórias ou incompletos que sejam definições em constante disputa. Rao (2009) destaca em sua análise do mercado de cervejas nos EUA que “apesar dos ataques teóricos à ‘Big Beer’ (os quatro maiores produtores), microcervejarias e brewpubs perseguiam um segmento de mercado distinto” (RAO, 2009, p. 56 [tradução própria]). Este tipo de ação é interpretado como um trabalho que visa legitimar a criação de um mercado de cervejas “artesanal” à parte, através da conformação de uma sequência de “causas quentes”. Estas são encampadas por uma série de atores que veem uma possibilidade de enquadramento da realidade, formação de identidades e mobilização de indivíduos (RAO, 2009) - que podemos entender enquanto engajados num processo que tem a qualificação, e logo diferenciação do bem, pelo que vimos das palestras, enquanto “causa” (BECKERT; MUSSELIN, 2013; CALLON; MEADEL; RABEHARISOA, 2002). Na mesma linha, a ideia de que há uma “revolução” ou “movimento” articulado em curso remete à noção de mercados enquanto política, ao possibilitar a organização dos produtores enquanto um coletivo que se apresenta com interesses comuns (FLIGSTEIN, 1996).
Assim sendo, podemos entender que é por meio dessas palestras, entre outros fóruns, que se difunde a noção de um posicionamento “artesanal” enquanto algo diferenciado, realizando-se a formulação de um discurso identitário que permite a legitimação e mobilização dos atores nessa disputa tanto pela nomeação do produto quanto pela proteção ao seu espaço dentro do mercado (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012). O processo de construção de valor deve ser entendido enquanto algo gradual e discutido, permeado por dissensos - especialmente nos casos em que há o uma quebra das relações esperadas, a exemplo do que ocorre com a compra de cervejarias. A busca de uma coerência dentro do agir e fazer aparece como um dos norteadores dos produtores neste grupo, orientando o discurso e, supostamente, uma prática do produto “artesanal”. Sendo as palestras abertas ao público, há um papel de difusão e criação de entendimentos comuns mínimos entre os que circulam por estes espaços.
Ao falar do público que circula em eventos, destacamos que é percebido nas e palestras a existência de um determinado grupo de agentes mobilizado e engajado em disseminar os discursos e difundir a identidade “artesanal”, reforçando a ideia de uma “comunidade cervejeira” que se forja a partir da troca de experiências e debate de ideias comuns. Nesta tomam parte elementos de distintas posições na cadeia de valor e circuito comercial da cerveja que se cruzam, se reconhecem, trocam impressões sobre o mercado e evento ao longo do período de exposição. Mesmo em casos em que não há a participação direta nos debates, “cervejeiros” encontram-se na plateia e participam com testemunhos ou questões, reforçando uma identidade que abarca o grupo de produtores e inclui consumidores, intermediários diversos, postulantes a entrada no meio e aficionados. Esta ideia de “comunidade” funciona de modo a fortalecer interesses ligados a este mercado e os valores que orientam a ação no mesmo.
Ademais, por detrás do debate dos parâmetros de encaixe no âmbito “artesanal” e quais os seus limites, há também um esforço coletivo, este sim deliberado, de grande parte dos presentes para a institucionalização e articulação do mercado em si, em busca de consolidação econômica que torne sua atividade sustentável (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012). Assim sendo, para além da circulação de informação e transmissão dos discursos de qualificação dos produtos, há um terceiro processo subjacente ao chão da feira. É durante os eventos de cerveja, nos horários vagos, que parte da articulação política do nicho se dá. Neste caso, podemos pensar os eventos como um local de convivialidade, no qual a situação imposta de isonomia e horizontalidade dos espaços facilita a troca de informações e logo, a formação e multiplicação de laços que permitem aos agentes articularem-se coletivamente.
A identificação de um elemento político passa, por um lado, pela adoção e enaltecimento do associativismo enquanto modo de se garantir o crescimento do mercado, fato abertamente reconhecido em falas de palestras durante o Cerveja Artesanal São Paulo e o Festival Brasileiro da Cerveja:
Há dois anos o movimento era sempre meio esvaziado, nunca teve uma união entre as cervejarias, e agora com a chance de a gente entrar no Simples, a mobilização nacional está sendo muito grande, a gente está com projeto de arrecadação de dinheiro pra Abracerva, todos as cervejarias participando, ponto de venda participando, acho que isso é um pouco de culpa da água na bunda, agora os pequenos precisam se unir pra pelo menos fazer uma sombra, esse é o lado bom (Informação verbal)34.
Qual a importância das associações? - Bom, primeiramente não tem como a gente buscar políticas públicas se não nos formos discutir nos gestores públicos... o papel é tirar as cervejarias do anonimato, colocar em evidencia para conseguir cobrar algo. Além disso, trazer dados (Informação verbal)35.
A busca por garantir espaços e mobilizar a ação coletiva perpassa os eventos, que reúnem agentes usualmente isolados em suas unidades de negócio, dispersos em múltiplas cidades e com poucas oportunidades de pensar ações estratégicas para garantir a sobrevivência não apenas do próprio negócio, mas prover condições para que o espaço em que atuam continue crescendo. A Abracerva e outras associações de nível estadual se reúnem em assembleia durante as feiras, que concentram parte dos associados. De fato, as últimas reuniões da entidade nacional deram-se durante o Degusta Beer & Food 2015 e o Festival Brasileiro da Cerveja 2016. Ou seja: não apenas realiza-se a formulação de discursos de identidade, como há nestes momentos um trabalho visando à efetivação das políticas de consolidação do mercado - uma construção efetiva.
A criação de uma dimensão valorativa e a capacidade de definir circuitos separados de comércio para determinados produtos - constituindo redes de diálogo, trocas e relações pessoais - são apontadas por Santoro (2013) como mecanismos para a elaboração de nichos de produção restritos dentro de sistemas comerciais de larga escala, compondo assim mundos separados porém conexos, participantes de um mesmo mercado36 (SANTORO, 2013). No caso da Abracerva, o foco centrou-se até agora no lobby para a aceitação das microcervejarias no Simples Nacional, projeto recém-aprovado que inclui pequenas empresas em sistema tributário diferenciado.
Neste contexto para além da ação direto junto a congressistas37 surgiu a campanha “Cerveja Artesanal é Simples”, que conclama consumidores, produtores, donos de bares, críticos e blogueiros - logo os participantes da “comunidade cervejeira” e de seus circuitos - a auxiliarem nas ações para levantar fundos necessários para a continuidade de atuação da Abracerva junto aos deputados - para isso, foram doados produtos aos pontos de venda, sendo a totalidade da arrecadação revertida para a campanha. Além da divulgação em blogs e pelos próprios cervejeiros e associação, o evento ganhou cobertura na imprensa gastronômica38. Por fim, instou-se aos interessados que pressionassem via e-mails os deputados da Comissão, com texto que abarcava boa parte dos pontos discursivos destacados nas palestras:
(...) Somos hoje cerca de 300 empresas familiares, que fomentam o trabalho e o turismo de sua região, e que hoje não representam 1% do mercado de bebidas frias do país. Além disso, sofremos uma grande pressão das 4 megacervejarias (de capital estrangeiro) que têm a clara intensão de acabar com este mercado antes que ele realmente aconteça.(...) O mercado brasileiro de microcervejarias tem se tornado uma referência mundial em termos de qualidade e diversidade. Nossas cervejarias são premiadas e admiradas mundo afora. Essa postura prega e fortalece conceitos de consumo consciente e responsável, como a filosofia do “Beba Menos, Beba Melhor”. Incluir as microcervejarias no Simples não se trata de um incentivo ao consumo desenfreado de álcool, e sim de um incentivo ao consumo saudável, como foco na qualidade do produto39.
Estas estratégias e os efeitos relacionados à continuidade da pressão política, com vistas à aprovação e efetivação da lei, são de fato discutidos nos espaços da feira, tida como oportunidade de reunião dos empresários do ramo interessados em compor um movimento coletivo. A lógica da ação organizada de proteção ao mercado toma assim corpo, e passa a pautar os espaços em que se constitui.
Temos durante o Festival Brasileiro de Cerveja um exemplo claro de extrapolação deste processo: O evento, realizado na cidade de origem da marca Eisenbahn (marca adquirida pela Brasil Kirin), ocorre em centro de convenções que possui um pavilhão particular da firma. Houve, na última edição, conflito entre expositores e organização devido à possibilidade de abertura deste espaço no último dia do evento, que recebe maior público, contando com atração musical de porte. Os pequenos expositores viram nesta proposta uma tentativa de captar visitantes em uma área segregada, onde seriam vendidos apenas produtos da Brasil Kirin, esvaziando o espaço coletivo do evento no qual todos os demais possuíam estandes de tamanho igual e estavam frente a frente. Ante esta perspectiva foi realizado protesto em frente ao local do Festival e emitida nota por parte da Abracerva colocando-se que:
(...) o festival, que se estabeleceu como uma vitrine das cervejarias artesanais e independentes do país está tendo sua finalidade primária - a divulgação do trabalho dos artesãos independentes da cerveja - distorcida em prol do marketing das grandes corporações.
A organização, sem aviso prévio dirigido aos expositores, alterou a programação contratualmente prevista, abrindo, no dia de maior movimento do evento, um espaço exclusivo para uma grande cervejaria, em contrariedade às regras de padrão de stands e espaços que foram impostos aos demais expositores, o que contraria a essência e a razão de ser do próprio festival.
As microcervejarias questionam se o festival deixou de ser a vitrine das micros, para ser mais um panfleto das grandes corporações (...) (Nota de Repúdio- Abracerva)40.
O tom e forma de mobilização, priorizando a ação coletiva em favor de uma isonomia de espaços e ressaltando a dicotomia entre os “artesanais”, “independentes” e “micros”, contra as “grandes corporações”, reforça a noção de identidade coletiva e contribui para o fechamento de um setor construído pela sua própria característica de oposição ao grande. Novamente, vemos um caso de mobilização que remete à organização de mercados enquanto movimentos coletivos (FLIGSTEIN, 1996).
Esta ação teve dois desdobramentos. Em primeiro momento, houve recuo da organização, vetou-se a abertura do pavilhão da Brasil Kirin e transferiu-se a atração musical ao local principal do evento, com a continuidade do mesmo no molde dos dias iniciais - priorizando, então, a padronização dos espaços ocupados em termos de tamanho. Em momento posterior, há a realização de acordo entre a Abracerva e a organização do evento que define a exclusividade de microcervejarias enquanto participantes do mesmo; a proibição de patrocínio por fabricantes de cerveja; interdição do pavilhão pertencente à Brasil Kirin e ocultação de suas marcas; controle do número de setores abertos; cessão de estande e repasse de 1% da receita do festival à Abracerva; bem como apoio à associação em negociação junto ao Governo do Estado de Santa Catarina para concessão de alívios tributários aos participantes do evento.
O êxito na ação empreendida vai, deste modo, da proteção momentânea do acordado em 2016 com a organização para a expulsão dos concorrentes vistos como “invasores” do mercado “artesanal” a partir da edição de 2017 do Festival. Estes eventos reforçam, entre seus participantes, uma visão dos benefícios de se empreender uma ação estratégica coletiva. O sucesso e propagação desta, por sua vez, fazem com que esta porção do mercado de cervejas defina-se cada vez mais enquanto um espaço separado de relações comerciais, em que se reforçam aqueles considerados “artesanais” tanto pela proteção frente à concorrência pela exclusão desta do espaço comercial; quanto na relação com o Estado, pela busca de vantagens tributárias que aumentem os ganhos dos produtores. Também se fortalece a instituição centralizadora, no caso, a Abracerva, que passa a contar com exposição na feira e fonte de recursos própria, através do repasse dos rendimentos do próprio festival.
Isto ocorre não pela ação e identidade das marcas isoladas, mas por conta da legitimidade do discurso que define o grupo de produtores “artesanais” enquanto elemento distinto e unificado no mercado de cervejas, permitindo desta forma a articulação dos seus membros e mobilização deste exato argumento junto à organização das feiras de maneira efetiva. Ser reconhecido como artesanal é um dos fatores centrais nesta dinâmica, e o reconhecimento passa pela adequação imagética e discursiva exercitados tanto no chão da feira quanto nos discursos difundidos nestes espaços, remetendo às relações de circuitos (ZELIZER, 2006; ZELIZER; TILLY, 2007; SANTORO, 2013)
Os casos acima ilustram como uma articulação que se desenvolve no interior das feiras, através dos encontros por elas propiciados, ultrapassa e influência as próprias feiras, por meio de processos de negociação coletiva. Assim, exemplificam como a construção da identidade do “artesanal”, em operação neste espaço, possibilita tomadas de posição que valorizam o associativismo e propiciam a institucionalização do setor para oferecer capacidade de negociação não apenas com o Estado, mas também em instâncias comerciais e organizacionais.
Podemos destacar dois movimentos: a convivência nas Feiras parece criar condições para uma distinção frente aos outros produtos e institucionalização que estrutura o mercado, reforçando confiança e colaboração no seu interior; por outro lado, esta maior coesão interna permite ao nicho promover ações frente a outros atores, em especial o Estado, que atendam ao seu interesse - remetendo à ideia de Fligstein de “mercados enquanto política” na medida que as ações de estabilização de mercados muitas vezes se dão através da relação com o Estado em si (1996, p. 661; FLIGSTEIN, 2001). Estes movimentos, no entanto, só se dão uma vez que se encontra um vetor de diferenciação e legitimidade discursiva que permite a sua delimitação e distinção dentro do espaço em que busca se firmar - o que nos permite voltar à idéia de Zelizer de formação de um circuito específico de relações (ZELIZER, 2006).
Ao analisar as feiras de cerveja enquanto reflexo das dinâmicas de emergência e estabilização do espaço da cerveja “artesanal”, buscou-se avaliar como mecanismos de valoração e a formação de circuitos de comércio podem ser encontrados nestes espaços, conformando-se às dinâmicas pertinentes à construção mesmo de um nicho de mercado (FLIGSTEIN; MCADAM, 2012). Neste espaço em especial, concentram-se atores que buscam a sua consolidação e proteção contra a concorrência por parte de grandes cervejarias. O nicho se estabilizaria apoiado no discurso favorável à cerveja “artesanal” desenvolvido nestes fóruns e se aproveitaria das formas de organização resultantes desse cenário para impulsionar seu crescimento.
Ao tomar como pressuposto que suas atividades econômicas se processam por meio da legitimação oferecida pelos significados compartilhados quanto aos produtos e ao seu caráter “artesanal”, esta definição de produto permite distinguir quais os membros e não membros neste espaço e possibilitar aos primeiros a realização de ações para firmar e proteger o mesmo. A existência de uma circulação ativa e situada de produtos e qualidades atribuídas ao “artesanal”, se pode definir a pertença ou não ao nicho e especificar quais os requisitos para entrada e permanência naquele universo, sinalizando quais as consequências e constrangimentos que resultariam do desvio no circuito. É também a partir do reconhecimento da necessidade de ação coletiva para proteção do mercado - bem como dos resultados práticos positivos que esta traz - que se atesta a capacidade que possuem as feiras de darem vida a instituições voltadas ao interesse dos agentes nesse espaço - e formatarem o mercado.
A integração dos três níveis de ação analisados na feira - que poderíamos distinguir para fins analíticos entre imagético-comercial, discursivo e político- ajuda a trazer à luz a configuração de um espaço em que o pertencimento a um grupo arroga uma identidade comum e ajuda a conformar e a qualificar o produto enquanto “artesanal”, criando uma nova categoria no mercado, uma região à parte ainda que pertencente ao mercado de cervejas como um todo. Esta perspectiva auxilia a explicar o processo de dinamização no interior de mercados estabelecidos, com emergência e estabilização de sub-campos ou nichos capazes de oferecer aos seus membros uma nova concepção do produto e identidade concorrente à encontrada ali tradicionalmente.
Esta visão dinâmica nos impede de assumir um movimento emergente ou uma mobilização como eventos “endógenos” do campo, beneficiando uma análise que entenda a agência e ação estratégica como elementos básicos para a criação de nichos de mercado - este passa a surgir de um esforço de ação situado e coletivo, negociado entre os agentes. Dentro deste contexto, a feira deve ser levada em consideração como locus privilegiado de observação por se apresentar como uma importante engrenagem do processo: possibilita a ativação dos laços, formação de instituições e azeita as definições de identidade, viabilizando, através das disputas ali travadas, a estruturação do mercado de modo coerente com os objetivos estratégicos de seus membros. Assim, ao mesmo tempo em que as dinâmicas destes eventos têm a tendência a se tornarem mais complexas e se alterar com a evolução deste espaço das cervejas “artesanais”, estas também parecem ser um dos principais meios que permitem que se realizem as ações para sua estabilização. A feira, neste caso, expande seu papel acrescentando à sua função primordial de local de mercado, a centralidade no processo de construção de mercados.