ENTREVISTA
Desigualdades e laços sociais: por uma renovação da teoria do vínculo. Entrevista com Serge Paugam
Desigualdades e laços sociais: por uma renovação da teoria do vínculo. Entrevista com Serge Paugam
Plural - Revista de Ciências Sociais, vol. 26, núm. 1, pp. 208-232, 2019
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
Serge Paugam é pesquisador e professor titular [directeur d’étude] de Sociologia na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris, diretor de pesquisa no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e diretor da Équipe de Recherches sur les Inégalités Sociales (ERIS) do Centre Maurice Halbwachs (CMH). É autor de diversos livros sobre temas como pobreza, desigualdades sociais e exclusão.
Em 2016 assumiu, a convite do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo, a disciplina “Trabalho e Vínculos Sociais no Capitalismo do Século XXI” na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, na qual apresentou aspectos teóricos e empíricos de seus trabalhos e salientou a perspectiva comparativa em nível internacional de suas pesquisas sobre as formas contemporâneas do vínculo social. Atualmente, o sociólogo francês está à frente de um grupo de pesquisadores de diferentes regiões do mundo que se reuniu em um seminário de pesquisas intitulado “Desigualdades, solidariedades e vínculos. A sociedade brasileira em perspectiva comparativa”, co-dirigido pela socióloga Nadya Guimarães Araújo, professora titular da USP e pesquisadora pelo CNPq e CEBRAP. O objetivo deste encontro, ocorrido em agosto de 2018 na FFLCH (USP), foi analisar a solidariedade e suas formas variáveis no mundo contemporâneo a partir do caso brasileiro.
Esta entrevista é o resultado de uma série de encontros e correspondências por e-mail com o sociólogo, que gentilmente aceitou nos falar de seus trabalhos de pesquisa, notadamente de sua teoria social do vínculo, e partilhar conosco reflexões sobre o legado de Émile Durkheim e os desafios metodológicos da pesquisa em ciências sociais.
Revista PluralNas suas pesquisas e no seminário “Desigualdades, solidariedades e vínculos. A sociedade brasileira em perspectiva comparativa”, você parte da noção de solidariedade, que você tenta retrabalhar especialmente a partir da teoria do vínculo social. Você poderia nos dar precisões sobre a perspectiva analítica a partir da qual você desenvolve esses trabalhos?
Serge Paugam Nas sociedades modernas, a noção de solidariedade é frequentemente associada à de Estado de Bem-Estar Social e às políticas sociais. Assim, ela designa o conjunto de organizações cuja vocação é de assegurar, em função dos debates que alimentam e renovam a questão social, a proteção aos indivíduos e a coesão social atuando pelo Direito e pela redistribuição de recursos nos domínios econômico, doméstico e político. Ela tornou-se um verdadeiro tema de pesquisa ao qual se dedicam especialistas destas questões no cruzamento da economia, das ciências políticas, da história e da sociologia, e que se reconhecem muitas vezes sob o vocábulo de “Economia Social”.
No entanto, em sua tese de doutorado intitulada Sobre a Divisão do Trabalho Social, Durkheim havia dado à noção de solidariedade um sentido mais amplo. Essa tese pertence ao patrimônio conceitual das ciência sociais e é ensinada, portanto, nas faculdades de sociologia de todo o mundo. Durkheim aborda, através das metamorfoses da solidariedade, a questão do laço social1. Ele oferece um enquadramento analítico para analisar tanto o processo de diferenciação dos indivíduos quanto a coesão das sociedades modernas. As pesquisas em ciências sociais não cessaram, há mais de um século, de referirem-se à solidariedade mecânica e à solidariedade orgânica, tal é a importância fundamental desses dois conceitos para a nossa compreensão do mundo social. Mas, bastante curiosamente, ainda que esses dois conceitos estejam no centro de sua demonstração e até hoje sejam objeto de estimulantes discussões e interpretações, o próprio Durkheim não mais se referirá a eles nos trabalhos que sucederam a publicação de sua tese.
Na verdade, ele abandonou os dois conceitos-chave de solidariedade em benefício de uma análise mais completa dos laços que vinculam os indivíduos entre si e à sociedade. Assim, ele passou de uma teoria da evolução da solidariedade a uma teoria do vínculo social. Porém, isso não significa que Durkheim tenha renunciado ao programa ambicioso ao qual ele havia se proposto já a partir de seus primeiros anos em Bordeaux. Se depois de sua tese ele não se refere mais ao conceito de solidariedade, tampouco abandona o enquadramento analítico que construiu. Ao contrário, ele buscará ampliá-lo ao lançar-se em seu estudo sociológico sobre o suicídio. Aliás, é logo após a publicação de O Suicídio, em 1897 - ou seja, quatro anos após a publicação de sua tese -, que ele utiliza o conceito de vínculo aos grupos em referência à pluralidade de laços sociais e das morais que lhes são associadas. Se olharmos bem, essa perspectiva teórica já estava presente em Sobre a Divisão do Trabalho Social, mas ela aparecia um pouco eclipsada sob o alicerce conceitual sobrecarregado das duas formas opostas de solidariedade. O fato de estas terem passado à posteridade não significa que elas tenham satisfeito plenamente a Durkheim, tanto mais quanto, na época, contribuíam para confiná-lo em controversos debates teóricos em torno do organicismo e de problemáticas ideológicas que pareciam distantes da visão que ele tinha da sociologia.
Isso quer dizer que o conceito de vínculo social está de acordo com a definição sociológica de solidariedade tal qual Durkheim a havia considerado antes que ela fosse desviada deste sentido por fins políticos e ideológicos? O que é certo é que, seguindo o enquadramento analítico definido por Durkheim, pode-se muito bem definir a solidariedade a partir do conjunto dos laços que vinculam os indivíduos entre si, desde as sociedades primitivas até as sociedades contemporâneas, e nisso ver um dos fundamentos antropológicos da vida social. É nessa perspectiva analítica que eu me insiro hoje.
No passado como no presente, o indivíduo não pode viver sem vínculos e passa sua vida a vincular-se - ou a voltar a vincular-se após uma ruptura - à sua família antes de tudo; mas também a seus próximos, que ele escolheu por amor ou amizade; à sua comunidade étnica ou religiosa; a seus colegas de trabalho ou a seus pares; às pessoas que compartilham as mesmas origens geográficas, sociais ou culturais; e certamente também às instituições de seu país de origem. Em outras palavras, o indivíduo é antropologicamente solidário pois não pode viver sem esses múltiplos vínculos que lhe asseguram, a um só tempo, a proteção frente aos riscos do cotidiano e o reconhecimento de sua existência e de sua identidade enquanto ser humano. Mas o que significa realmente o vínculo em uma sociedade de indivíduos autônomos ou que se pensam como tais? Como, e em que medida, pode-se e deve-se ser ao mesmo tempo solidário à sua família, solidário aos diversos grupos de pertencimento por afinidade, solidário à sua empresa ou a seu grupo profissional, e solidário à sua nação? Uma constatação se impõe de imediato: ainda que essa questão seja colocada a todo ser humano e, por isso, corresponda a uma indagação de natureza universal, a resposta difere conforme os meios sociais, mas também e principalmente conforme as sociedades. Portanto a questão central é a de compreender os fundamentos antropológicos da solidariedade humana, analisando sociologicamente suas formas variáveis no mundo contemporâneo.
Revista PluralComo você associa o interesse pelo estudo dos laços sociais a seus primeiros trabalhos sobre a pobreza e, especialmente, à sua tese sobre a desqualificação social2?
Serge Paugam O conceito de desqualificação tal qual eu o elaborei a partir de minhas primeiras pesquisas sobre a pobreza remete, de fato, ao processo de enfraquecimento ou de ruptura de laços do indivíduo com a sociedade, no sentido de perda de proteção e do reconhecimento social. O ser humano socialmente desqualificado é simultaneamente vulnerável diante do futuro e oprimido pelo peso do olhar negativo dirigido a ele por outrem. O objeto de estudo tal qual eu o havia definido seguindo os trabalhos de Simmel, não era a pobreza nem os pobres enquanto tais, mas a relação de assistência entre eles e a sociedade na qual eles vivem.
Minha pesquisa de 1991 havia permitido verificar cinco hipóteses que se pode assim resumir: 1) o próprio fato de receber assistência aloca os “pobres” em uma carreira específica, altera suas identidades prévias e torna-se um estigma que marca o conjunto de suas relações com outrem; 2) se os pobres, pelo fato de receberem assistência, podem ter somente um status social desvalorizado que os desqualifica, eles permanecem, apesar de tudo, plenamente membros da sociedade da qual eles constituem, por assim dizer, o último estrato; 3) ainda que os pobres sejam estigmatizados, eles conservam meios de resistência ao descrédito que os oprime; 4) o processo de desqualificação social abrange várias fases: fragilidade, dependência e ruptura dos laços sociais; 5) as três condições sociohistóricas da ampliação desse processo são: um nível elevado de desenvolvimento econômico associado a uma intensa degradação do mercado de trabalho; uma maior fragilidade da sociabilidade familiar e das redes de ajuda [aide] privada; uma política social de luta contra a pobreza que se fundamenta cada vez mais em medidas categoriais próximas da assistência [assistance].
A desqualificação social não significa ausência de relações sociais. Os pobres estão, por exemplo, em relação com os serviços sociais, mas sua situação se caracteriza por uma crescente pobreza relacional que soma-se à sua pobreza econômica e reforça seu sentimento de inutilidade social. É também a estigmatização dos pobres - o fato de, aos olhos da sociedade, serem pobres e nada mais do que pobres - que frequentemente os conduz a interiorizar uma imagem negativa de si e a experimentar um sentimento de inutilidade social.
Desde a minha tese, a questão dos laços sociais está, então, no centro de meus trabalhos. Pode-se ver uma continuidade entre minhas primeiras pesquisas sobre a pobreza e as que eu realizo hoje, em uma perspectiva durkheimiana, sobre o que vincula os indivíduos entre si e à sociedade através de pesquisas comparativas em nível internacional.
Revista PluralVocê se refere muito a Durkheim. Ele é a sua principal fonte de inspiração?
Serge Paugam Quando eu comecei minhas pesquisas sobre a pobreza nos anos 1980, o contexto econômico estava marcado por uma degradação profunda do mercado de trabalho. Esse clima de crise da sociedade salarial causava perturbações sociais que, em vários aspectos, eram bastante comparáveis àquelas que Durkheim estudava havia um século. O fim do século XIX foi, de fato, um período caracterizado pelos riscos inerentes ao desenvolvimento industrial, pelo deslocamento de populações suscetíveis de perderem seus vínculos locais e familiares, e pela busca de soluções para favorecer a coesão social e nacional. Ora, a partir dos anos 1980, a França - como outros países europeus - redescobriu problemas similares. Desde o início dos anos 1990 não foi raro ouvir falar em uma “crise do laço social” e da necessidade de tecer novamente ou de reestabelecer o laço social. Como sintoma dessa crise, a pobreza tornou-se objeto de novas pesquisas. Enquanto ela era tradicionalmente ancorada no estudo das desigualdades de renda e das condições de vida, eu a apreendi sob um ângulo diferente, a fim de levar em conta os efeitos da degradação da condição salarial, do aumento das populações que recebem assistência e para pôr em questão a integração social. Assim, a pobreza foi analisada sob o ângulo das relações de interdependência entre a categoria designada como “pobre” e o resto da sociedade. O conceito de desqualificação social permite, assim, repensar a questão social em um prolongamento do estudo durkheimiano sobre a divisão do trabalho e suas “formas anormais”.
Mas eu também me insiro em uma abordagem que pretende fazer o elo entre a sociologia e a política social. Também deste ponto de vista eu me sinto em perfeita conformidade com a postura intelectual de Durkheim. Sua ambição tinha como origem o sentido do engajamento a serviço da sociedade. Durkheim fundou a sociologia no contexto político da Terceira República e permaneceu marcado por ele durante toda sua vida. Ele não buscou dissimular esse engajamento. Sua sociologia pretendia, direta ou indiretamente, concorrer na busca de soluções, como ele deixa transparecer claramente em sua célebre declaração: “Nossas pesquisas não mereceriam sequer uma hora de esforço se elas devessem ter um interesse somente especulativo”3. Ele também dizia que “somos feitos para ajudar nossos contemporâneos a se reconhecerem nas suas ideias e nos seus sentimentos mais do que para governá-los”4. Essa postura do intelectual [savant] engajado que pretende contribuir para a mudança da sociedade fundando-se, antes de tudo, sobre os resultados de suas pesquisas, corresponde a uma ética da responsabilidade dentro da qual eu me reconheço, bem como muitos outros pesquisadores contemporâneos em ciências sociais. Logo, Durkheim não contentou-se em elaborar conceitos sociológicos. Ele participou de numerosos debates de seu tempo e até propôs mudanças políticas. O projeto de reforma das corporações [corporations], que em 1901 ele formulava no prefácio à segunda edição de sua tese, por exemplo, pode ser considerado como um dos fundamentos da sociedade salarial que constituiu-se ao longo de todo o século XX. De fato, ele ofereceu um conjunto de respostas para garantir a todos os trabalhadores um reconhecimento de seu status, de suas especificidades profissionais e de sua integração orgânica ao sistema social. Com a doutrina do solidarismo, que sabe-se ter sido formulada por Léon Bourgeois5 três anos após a publicação da tese de Durkheim, é a arquitetura de nosso Estado social que foi colocada teoricamente na passagem para o século XX, e que permitiu, pouco a pouco, a implementação de um sistema de proteção social generalizado. Ora, é o desmantelamento dessa sociedade salarial que nas duas últimas décadas conduziu-nos a voltarmos aos escritos de Durkheim. É como se o retorno às fontes conceituais e teóricas de seu pensamento constituísse, para os sociólogos, um meio de melhor interpretar, por comparação e pondo em perspectiva, os problemas sociais deste começo de século e de refletir sobre as novas formas do laço social e sobre os projetos de reforma.
Durkheim foi para mim, e é até hoje, uma fonte permanente de inspiração, porque os objetos de estudo sobre os quais eu trabalhei remetiam diretamente às questões fundamentais da integração ou da desintegração das sociedades, o que ele já havia formulado de um ponto de vista sociológico. Não se tratava simplesmente de uma passagem obrigatória: ler e reler os grandes textos de Durkheim em momentos diferentes de minha carreira foi sempre muito estimulante e intelectualmente profícuo. Mas eu devo reconhecer que, na prática, os métodos que utilizei assinalam mais uma sociologia compreensiva que tem sua origem em Max Weber. Minha primeira pesquisa era acima de tudo qualitativa e tratava das experiências vividas da pobreza. Em segundo lugar, nas comparações eu sempre adotei um procedimento de análise fundamentado na construção de tipos ideais. Meu livro “As Formas Elementares da Pobreza” me parece ser um bom exemplo do uso que eu pude fazer dessa metodologia. Por fim, eu devo à minha leitura de Simmel a definição sociológica da pobreza que eu retomei e adaptei em minha tese sobre A Desqualificação Social. Em outras palavras, se a influência de Durkheim é muito forte em meus trabalhos, ela não é a única. A sociologia alemã também tem neles um lugar importante.
Revista PluralVocê mobiliza a teoria do vínculo6que, no entanto, é sobretudo mobilizada pela psicologia, principalmente nos trabalhos de Bowlby. Como você passa dessa abordagem mais teórica a uma abordagem mais geral em uma perspectiva sociológica?
Serge Paugam O conceito de vínculo [attachement] é, de fato, conhecido principalmente no domínio da psiquiatria. Ele remete a uma teoria elaborada pelo psiquiatra John Bowlby na segunda metade do século XX para qualificar a marca [empreinte] durável da ligação original da criança com o adulto encarregado de lhe garantir segurança desde os primeiros meses de sua vida7. Essa teoria continua a inspirar numerosos trabalhos de pesquisa nesse domínio. No entanto, a noção de vínculo, como nós vimos, havia sido definida por Durkheim em uma perspectiva analítica diferente. O fundador da sociologia francesa via, de fato, no vínculo com os grupos uma das fontes da moral e portanto uma das condições da integração social. Então, esse conceito apresenta o interesse de ter conhecido um desenvolvimento tanto na psicologia quanto na sociologia e remete, simultaneamente, à constituição da personalidade individual, à formação dos grupos sociais e ao funcionamento normativo da sociedade global. Ele se refere a uma questão constitutiva da vida humana e contribui para enunciar tanto princípios gerais quanto explicações às variações observáveis no seio de cada sociedade e entre diferentes sociedades. Hoje me parece que se pode associar desenvolvimentos que foram realizados em disciplinas pouco habituadas ao diálogo entre si de acordo com problemáticas diferentes e considerar o vínculo não somente como um fato psicológico, mas sobretudo como um fato social total. Na verdade, sob este angulo é possível fazer do vínculo o fundamento de uma teoria em ciências sociais.
Os sociólogos sabem que a vida em sociedade coloca todo ser humano, desde seu nascimento, em uma relação de interdependência com os outros, e que a solidariedade constitui, em todos os estados da socialização, a base do que se poderia chamar de homo sociologicus, o homem vinculado aos outros e à sociedade não somente para assegurar sua proteção diante dos riscos da vida, mas também para satisfazer sua necessidade vital de reconhecimento, fonte de sua identidade e de sua existência enquanto homem. No entanto, nas sociedades modernas há uma proporção importante de pessoas cujos laços que os vinculam aos outros e à sociedade são fracos, talvez mesmo inexistentes, em certos casos. Nos dias de hoje, o isolamento e a decomposição dos laços sociais constituem um fator essencial de desigualdade. Alguns estão protegidos disso, enquanto outros estão particularmente expostos. Mas quais são esses laços?
Na esteira de Durkheim, eu proponho a distinção entre quatro deles: o laço de filiação, no sentido de relações de parentesco; o laço de participação eletiva, no sentido de relações entre próximos escolhidos; o laço de participação orgânica, no sentido da solidariedade orgânica e da integração profissional; e o laço de cidadania, no sentido das relações de igualdade entre os membros de uma mesma comunidade política8. Cada um deles pode ser definido a partir de duas dimensões: proteção e reconhecimento. A proteção remete ao conjunto dos suportes que o indivíduo pode mobilizar diante dos riscos da vida - recursos familiais, comunitários, profissionais, sociais... -, e o reconhecimento remete à interação social que estimula o indivíduo ao lhe dar prova de sua existência e de sua valorização pelo olhar do outro ou dos outros. A expressão “contar com” [compter sur] resume muito bem o que o indivíduo pode esperar de sua relação com os outros e com as instituições em termos de proteção, enquanto a expressão “importar para” [compter pour] exprime a também tão vital expectativa de reconhecimento. O interesse que o conceito de reconhecimento suscita hoje, desde os trabalhos de Axel Honneth9, não deve eclipsar o conceito de proteção que foi fundamental para compreender as transformações do laço social ao longo de todo o século XX. Considerar os dois conceitos como complementares é tanto mais heurístico quanto mais eles permitem, um e outro, dar conta da fragilidade potencial dos laços sociais contemporâneos, a qual remete pelo menos tanto ao déficit de proteção quanto à recusa de reconhecimento.
Mas retornemos ao conceito de vínculo e à sua surpresa sobre o uso que eu faço dele, ampliando-o a partir de sua ancoragem atual no domínio da psicologia. Não há razão para opor a teoria psicológica à teoria sociológica do vínculo. A linguagem específica que elas utilizam não é em si um obstáculo, pois é possível traduzi-la e assim torná-la inteligível e significante para além das fronteiras disciplinares. Os psiquiatras e os psicólogos que fizeram do vínculo sua especialidade ou seu objeto de estudo reconhecem que o que se estabelece entre a criança e sua mãe desde o nascimento é muito fortemente dependente do ambiente social e cultural, isto é das condições de existência e dos eventos que marcam a primeira socialização. Quando eles insistem sobre a marca durável desse primeiro lugar e seu efeito sobre os outros, eles admitem também que esta marca pode enfraquecer-se com o tempo em função da trajetória específica do indivíduo e de seu vínculo a outros grupos sociais na idade adulta. Os sociólogos, por sua vez, fazem análises comparáveis. A noção de marca que os psicólogos reservam ao primeiro laço é estendida pelos sociólogos a outros laços, sabendo que todo indivíduo, no curso de sua socialização, interioriza as normas sociais - a moral que a elas se refere - próprias aos diferentes grupos que ele frequenta duravelmente, o que o conceito de habitus, sob acepções diversas mas convergentes, traduz de maneira genérica. Desde as pesquisas de Pierre Bourdieu sobre o habitus, os sociólogos insistem sobre a pluralidade da herança transmitida. A transmissão não é somente econômica, mas também cultural, no sentido dos saberes e dos hábitos cotidianos, e constitui as predisposições mais ou menos duráveis que atuarão ao longo de toda a vida. Trata-se portanto de uma combinação das marcas, aquela deixada pelo laço de filiação estando, de alguma maneira, prolongada por aquelas que deixam inevitavelmente os outros laços em função da especificidade da trajetória de cada indivíduo. Sobre esse ponto, o conceito de marca, dos psicólogos, e o de habitus, dos sociólogos, incluem semelhanças e constituem planos paralelos de construção facilmente traduzíveis e integráveis em um conjunto teórico mais amplo - trabalho que ainda está por fazer.
Revista PluralVocê fala em regimes de vínculo. Você pode nos dizer o que entende por isso?
Serge Paugam Você tem razão. Uma elucidação sobre o que eu entendo por regime de vínculo se impõe. A tipologia dos laços sociais permite analisar como estes últimos são entrecruzados de maneira normativa em cada sociedade e como, a partir deste entrecruzamento específico, se elabora a regulação na vida social. Esta distinção corresponde, ao menos parcialmente, à distinção entre os dois conceitos de integração e de regulação. O primeiro remete à integração dos indivíduos à sociedade; o segundo, à integração da sociedade. Poderíamos prosseguir dizendo que a integração à sociedade é assegurada pelos laços sociais que os indivíduos esforçam-se em construir no curso de sua socialização, conformando-se às normas sociais em vigor, e que a regulação procede do entrecruzamento normativo desses laços sociais que permite a integração da sociedade como um todo. É no sentido dessa regulação social global que eu falo em regimes de vínculo. Um regime de vínculo tem como função produzir uma coerência normativa global a fim de permitir aos indivíduos e aos grupos fazerem sociedade, para além de suas diferenciações e rivalidades. Para fazer sociedade, segundo Durkheim, não é necessário que as representações coletivas estejam presentes em cada consciência individual, sendo a pluralidade considerada como uma das características fundamentais da sociedade moderna. Mas é importante que algumas delas sejam compartilhadas pela maioria, senão por todos. Estas últimas podem muito bem ser limitadas, uma única delas poderia mesmo bastar, mas elas devem então exercer uma autoridade sobre os indivíduos, se impor a eles, lhes inspirar uma forma espontânea de respeito e de vínculo afetivo. É também nesse sentido que se pode falar em uma economia moral dos laços sociais. Essa noção remete à regulação que se opera no nível da sociedade em seu conjunto quando se trata de entrar em acordo, não sobre tudo, evidentemente - os conflitos são inevitáveis -, mas ao menos sobre um segmento da moral coletiva, de modo a assegurar a coerência da ordem normativa e assim permitir aos indivíduos tecerem laços sem precisarem opor-se uns aos outros e promoverem não somente sua integração social, mas também a da sociedade na qual eles vivem.
O desafio consiste em passar de uma tipologia dos laços sociais (no sentido do vínculo dos indivíduos a grupos) a uma tipologia dos regimes de vínculo (no sentido da regulação normativa dos laços sociais na sociedade moderna). Em cada regime de vínculo, os quatro tipos de laços podem ter uma função de integração e/ ou uma função de regulação. Um laço integrador é um laço que vincula o indivíduo aos grupos, ao passo que um laço regulador tem uma função suplementar de tessitura, que consiste em produzir um conjunto de regras e de normas suscetíveis de traduzirem-se, por uma extensão de sua influência, aos outros laços, até inflectir em sua concepção normativa inicial. Ela gera valores e princípios de educação moral suscetíveis de se difundirem no conjunto da sociedade. Em outras palavras, um laço regulador é, de certa maneira, um laço preeminente.
A partir dessa definição preliminar, quatro tipos de regimes de vínculo podem ser definidos: o regime de tipo familialista, o regime de tipo voluntarista, o regime de tipo organicista e o regime de tipo universalista.
O regime de tipo familialista tem como principal característica o fato de ser regulado pelo laço de filiação - os outros laços de participação eletiva, de participação orgânica e de cidadania, assegurando uma função de integração. Ele se funda prioritariamente sobre a moral doméstica. O regime de tipo voluntarista é regulado pelo laço de participação eletiva - os outros laços de filiação, de participação orgânica e de cidadania são essencialmente integradores. Ele repousa sobre a moral associativa. O regime de tipo organicista repousa sobre a regulação do laço de participação orgânica, o qual se entrecruza com os laços integradores de filiação, de participação eletiva e de cidadania. Ele se nutre da moral profissional. Por fim, o regime de tipo universalista se regula a partir do laço de cidadania e abrange, por sua influência, os laços integradores de filiação, de participação eletiva e de participação orgânica. Ele extrai toda sua força da moral cívica.
De qual regime de vínculo se aproxima tal ou qual sociedade? Para responder a isso, é necessário investigar, nas diferentes etapas de sua história e nas raízes antropológicas de seu desenvolvimento, o que constituiu sua tessitura específica. Isso implica em um trabalho aprofundado que trate essencialmente da constituição das normas e do estudo de suas evoluções.
Revista PluralAlguns poderiam lhe dirigir críticas apontando para uma leitura um pouco evolucionista, ou ainda determinista. Isso está presente em Durkheim? Quais são os desafios metodológicos dessa abordagem?
Serge Paugam A análise desses diferentes regimes de vínculo, que um estudo comparatista das sociedades modernas conduz a aprofundar sempre mais, permite salientar simultaneamente a fecundidade e o necessário prolongamento da abordagem analítica de Durkheim. Essa tipologia revela uma construção ideal-típica no sentido weberiano: ela não tem como função classificar de maneira estática todas as sociedades mas, ao contrário, determinar de maneira dinâmica os fatores que as conduzem a estarem próximas em um dado momento de sua história de tal ou qual tipo. É nesse sentido que esse raciocínio ideal-típico pode ajudar a compreender melhor as dinâmicas de mudança. Um país próximo de um tipo pode conhecer transformações que o conduzem a se destacar dele progressivamente e a se aproximar de um outro. Além disso, se o âmbito nacional se impõe para que se efetue esse tipo de comparação, de forma alguma ele impede que se leve em conta as variações regionais ou locais observáveis no interior de um país, sobretudo quando elas parecem particularmente significativas. Este raciocínio teórico aumenta, enfim, a possibilidade de interpretar as tensões e os conflitos que trabalham todas as sociedades e as obrigam a lançar um olhar sobre si próprias e sobre os laços que vinculam entre si os indivíduos que dela fazem parte. De forma alguma se trata de uma abordagem evolucionista e determinista. A realidade é complexa e demanda instrumentos precisos para apreendê-la de maneira aprofundada, justamente para evitar toda abordagem globalizante e simplista.
Revista PluralQue tipo de conclusões podem ser tiradas das pesquisas realizadas? Os dados empíricos permitem estabelecer correlações entre regimes de vínculos e indicadores socioeconômicos, por exemplo?
Serge Paugam O trabalho consistiu na construção de indicadores estatísticos para medir esses regimes e comparar diferentes países, tentando verificar se eles estão mais próximos de um regime ou de outro. Devemos enfatizar o propósito desta abordagem. É perfeitamente possível que alguns países não possam ser facilmente identificados a um regime específico. Neste caso, o trabalho não é desconsiderar este país, mas investigar por que sua configuração em termos de vínculos é mais complexa que outras, e por que merece atenção especial. Este é o exercício que propus empreender construindo relações com colegas estrangeiros, tanto na Europa quanto na América do Norte e do Sul e na Ásia.
Notemos também que os indicadores construídos são inevitavelmente instrumentos grosseiros, mobilizados sobretudo por falta de fontes mais adequadas. A ideia é chegar o mais perto possível do rigor de uma definição conceitual, sem perder de vista que uma medida é quase sempre uma aproximação e, consequentemente, um compromisso com a realidade que se aceita dadas as necessidades da verificação empírica.
Para definir o laço de filiação, escolhemos quatro indicadores: 1) a proporção de jovens adultos de 25 a 34 anos que moram com um ou outro dos pais (pai ou mãe); 2) a proporção de pessoas desempregadas da mesma idade que também moram com um ou outro dos pais; 3) a proporção de pessoas com 75 anos ou mais vivendo com pelo menos um dos filhos; 4) a proporção de pessoas com 75 anos ou mais vivendo em um lar de mais de duas pessoas. Esses quatro indicadores baseiam-se, portanto, na solidariedade que se exerce dentro do lar na forma de coabitação intergeracional.
Para definir o laço de participação eletiva, escolhemos dois indicadores: 1) a proporção de membros ativos de uma associação humanitária; 2) a proporção de pessoas que fizeram uma doação para uma instituição de caridade no último mês. Ambos expressam solidariedade ativa com pessoas em dificuldade por meio do voluntariado e da filantropia. Este tipo de solidariedade não se opõe, em princípio, à solidariedade que ocorre através do sistema de proteção social, mas pode ser motivado por uma atitude voluntarista enraizada em uma concepção desconfiada do intervencionismo estatal na área da proteção social.
Para definir o laço de participação orgânica, privilegiamos um indicador: a proporção de empregos abrangidos por um acordo coletivo. Este indicador expressa a solidariedade definida de acordo com a proteção oferecida pelo status do emprego e, portanto, das garantias de que dispõem os trabalhadores assalariados em relação a seu futuro. Esse tipo de garantia é a base do que geralmente é chamado de sociedade salarial. Para refinar este indicador, levamos em conta a proporção de empregos informais em cada um dos países considerados, já que os acordos coletivos se aplicam apenas aos empregos formais.
O laço de cidadania poderia ser apreendido por indicadores relacionados aos direitos e deveres: o sentimento, por parte do indivíduo, de que seus direitos são respeitados, o fato de se interessar pelos assuntos de seu país. Infelizmente, em vários países esses indicadores raramente estão disponíveis de maneira sistemática. Além disso, é difícil levar em conta, numa perspectiva comparativa, indicadores objetivos como a participação dos eleitores, porque o sistema eleitoral é diferente de um país para outro - em alguns países, como o Brasil, o voto é obrigatório - e porque essa participação varia fortemente em cada país de uma eleição para outra, de um ano para o outro, de acordo com parâmetros múltiplos dificilmente controláveis. Para definir o laço de cidadania, escolhemos dois indicadores: 1) a proporção de pessoas que dizem confiar nas pessoas; 2) a proporção de pessoas que afirmam ter confiança no sistema judicial do seu país. Esses dois indicadores expressam uma alta concepção de cidadania na qual todos os membros da sociedade compartilhariam valores comuns, respeitariam as instituições que os representam, especialmente aqueles que estão sujeitos à justiça, e aceitariam o princípio da igualdade em relação aos direitos, mas também nas relações sociais. Nós construímos a hipótese de que se as pessoas confiam umas nas outras, é porque elas não sentem seus direitos ameaçados. E se confiam no sistema judicial, é também porque sabem que podem contar com as instituições de seu país e que, portanto, são tratadas como cidadãs, com direitos iguais perante a justiça.
Este trabalho apresentava vários desafios: verificar a existência de fontes estatísticas apropriadas, selecionar indicadores para cada um dos tipos de laços sociais, calcular índices e agrupá-los em índices sintéticos, comparar estes índices entre si e analisar as principais variações nacionais, mas também regionais em alguns países, como a Suíça, o Brasil ou os Estados Unidos. Estes desafios foram superados, pois conseguimos identificar os diferentes tipos de regimes de vínculos dos quais os países mais se aproximam. Ao fazê-lo, pudemos contribuir para redefinir sociologicamente as formas de solidariedade em vários países de diferentes continentes.
Este trabalho deve, no entanto, ser considerado como uma etapa de um programa maior que ainda está por fazer. Estou bem ciente de que os indicadores desenvolvidos permanecem grosseiros e dependem dos bancos de dados disponíveis. A análise pode ser prolongada pelo cruzamento de outras fontes, inclusive em escalas locais ou regionais mais refinadas. Uma vez estabelecido o enquadramento, tanto do ponto de vista teórico quanto empírico, resta interpretar os determinantes econômicos, sociais e políticos desses diferentes regimes de vínculos. Alguns estão relacionados à história e à antropologia e requerem um trabalho qualitativo de compilação de várias fontes. Mas esses determinantes também podem ser estudados do ponto de vista estatístico, comparando os índices que definimos com outros indicadores e desenvolvendo modelos estatísticos para explicar mais detalhadamente suas lógicas próprias.
Na etapa em que nos encontramos, entre outros resultados importantes, é preciso salientar a confirmação da hipótese de que os laços sociais são mobilizados e regulados de maneira contrastante nas sociedades. Os países se distinguem uns dos outros pela importância que dão a cada tipo de laço. Nenhum deles se destaca em todos os tipos de laços sociais ao mesmo tempo. Em outras palavras, a força de alguns desses laços leva à fraqueza de outros. Este é particularmente o caso do laço de filiação. A importância que este assume em uma determinada sociedade implica a fragilidade de outros, particularmente o laço de cidadania (existe uma correlação negativa entre estes dois tipos de ligações independentemente do país considerado, o que significa que o regime familialista é oposto ao regime universalista). Em uma sociedade em que o laço de filiação é forte, os indivíduos têm tanto mais expectativas e atenção para seus parentes na esfera familiar que têm uma maior desconfiança em relação às instituições de seus países e às pessoas que não conhecem. Isso significa que eles preferem, nas palavras de Durkheim, uma solidariedade mecânica, baseada no conhecimento face a face [interconnaissance] e na semelhança, a uma solidariedade mais ampla, seja ela eletiva, orgânica ou universal. Contrariamente, nas sociedades que se singularizam pela força do laço de cidadania ou pelo laço de participação orgânica, os indivíduos sentem-se menos engajados na esfera familiar por obrigações de solidariedade direta com seus próximos. Isso não significa que eles tenham relações menos profundas ou menos afetivas com os membros da família, mas que eles se referem a uma economia moral do vínculo em que a autonomia de cada pessoa é elevada à categoria de norma social.
A confirmação empírica dos regimes de vínculos no nível nacional não deve conduzir ao segundo plano a verificação da possibilidade de variações regionais dentro de um país. O caso da Suíça é um bom exemplo. A região do Ticino (onde o italiano é a língua usual) parece corresponder a um regime de vínculos distinto de outras regiões suíças. Claramente mais familialista do que as outras, o que se deve, sem dúvida, à manutenção de uma marca duradoura de um habitus influenciado pelos modos de socialização em vigor nos países do Mediterrâneo, particularmente na Itália. Isto torna possível verificar ao mesmo tempo a proposta de Durkheim de que é a interação regular de pessoas reunidas no mesmo grupo que está na origem da moral e que orienta o modo legítimo de conviver, e não o oposto.
Revista PluralComo isso se aplicaria à sociedade brasileira? Aliás, tratando-se de regimes de vínculos, podemos falar de uma sociedade brasileira?
Serge Paugam Com Nadya Araujo Guimarães, tive o prazer de organizar no mês de agosto de 2018, um seminário na USP intitulado “Desigualdade, solidariedade e vínculos. A sociedade brasileira em perspectiva comparativa”. Convidamos alguns de nossos doutorandos e pesquisadores interessados no tema. Foi uma experiência muito boa em que pudemos ver diferentes perspectivas sobre a sociedade brasileira tanto globalmente (em comparação a outros países) quanto em sua diversidade regional.
Paralelamente, e no âmbito da preparação deste seminário, Nadya e eu, com a colaboração de Ian Prates, pudemos verificar a possibilidade de criar para o Brasil os mesmos indicadores usados em outros países, na Europa e na América do Norte. Mas também conseguimos analisar, a partir desses indicadores, as variações temporais e regionais no Brasil, o que permite análises mais detalhadas tanto da dinâmica da mudança quanto das especificidades das principais regiões. A nível nacional, não há dúvida de que o Brasil está próximo de um regime familialista - como também é o caso do Chile. O Brasil apresenta traços característicos dos países mediterrâneos, mas ainda há variações importantes de uma região para outra e evoluções relacionadas à situação econômica e política. Todo este trabalho deve nos permitir entender melhor o que faz tanto a unidade quanto a diversidade da sociedade brasileira a partir dos laços sociais que até agora não haviam sido estudados a partir desta perspectiva analítica.
Revista PluralSeus temas de pesquisa tratam das distintas formas de vinculação do indivíduo à sociedade sem, no entanto, salientar a dinâmica propriamente conflituosa do mundo social. Ao falar de laços sociais, estão excluídas da análise as desigualdades e a luta de classes?
Serge Paugam Ao contrário, torna-se possível analisar os laços sociais como um fator essencial de desigualdade e que é, muitas vezes, subestimado. Na realidade, o que vincula os indivíduos uns aos outros e à sociedade é profundamente desigual. Um livro elaborado sob minha direção dentro da Équipe de Recherches sur les Inégalités Sociales (ERIS) do Centre Maurice Halbwachs (CMH) faz parte dessa perspectiva. Ao intitular este livro de A Integração Desigual, seus autores pretendem explorar a relação entre os fracassos contemporâneos do sistema de integração e a produção de desigualdades10. Mantendo-se na tradição durkheimiana, eles pretendem explorar, mais do que provavelmente pretendia o próprio Durkheim, fundações desiguais da integração e os limites dos modos de regulação dessas desigualdades específicas. Eles pretendem também contribuir para a renovação do olhar sobre a estratificação social partindo da hipótese de que não somente os capitais econômico e cultural são distribuídos de forma injusta, mas que os laços que vinculam os indivíduos a grupos e à sociedade são de força e de intensidade muito desiguais.
Este livro pretende também enfatizar que as políticas contra os efeitos deletérios da desintegração às vezes tendem, paradoxalmente, a aumentar a visibilidade de categorias consideradas “desintegradas” ou susceptíveis de o serem e por isso consagram o processo da desqualificação social destas categorias. Enfim, longe de se concentrar exclusivamente nas classes pobres, ele considera o sistema social como um todo, levando em conta a forma como as classes média e alta tentam se proteger da proximidade dos pobres e dos “excluídos” e da ameaça que estas categorias exercem sobre o seu bem-estar.
As desigualdades são apreendidas a partir de uma leitura tanto da fragilidade intrínseca desses quatro tipos de laços sociais (apresentados acima) quanto da fragilização acrescida devido ao entrecruzamento entre eles. Em outras palavras, as desigualdades são apreendidas tanto na luta empreendida pelos grupos sociais pela “distribuição dos benefícios” quanto nas falhas do próprio processo de integração social. Nós estudamos os fatores sociais que contribuem para hierarquizar a população ao longo de um continuum entre dois polos extremos: o da força cumulativa de quatro tipos de laços sociais que predispõe a uma integração social estabilizada e o da fraqueza cumulativa desses laços, ou mesmo a ruptura de alguns deles, o que resulta em falta de proteção e recusa de reconhecimento. Neste polo de fraqueza cumulativa de laços, existem formas de resistência à desqualificação social. Diante do esgotamento do laço de participação orgânica e do laço de cidadania, a compensação é frequentemente buscada nos recursos potenciais do laço de participação eletiva, aquele que ainda pode ser mobilizado nas relações comunitárias, muitas vezes organizadas a partir do bairro de residência. A conflitualidade se desenvolve em um contexto de rompimento dos coletivos tradicionais e funda-se sobre formas de expressão mais espontâneas e mais violentas.
Embora seja baseado em laços sociais, a abordagem analítica que adotamos neste livro afasta-se bastante dos trabalhos clássicos conduzidos na sociologia das redes sobre a força dos laços fracos. Para Granovetter, “a força de um laço é uma combinação (provavelmente linear) da quantidade de tempo, a intensidade emocional, a intimidade (confiança mútua) e os serviços recíprocos que caracterizam esse laço”11. Para nós, a força de um laço deve ser avaliada diferentemente de acordo com cada tipo de laço, pois cada um deles se refere a um sistema normativo específico. A força é medida não apenas em um relacionamento interpessoal, mas no vínculo ao sistema social que possibilita ou não um conjunto de relações interpessoais em distintas esferas normativas. O laço, como o entendemos, é um laço no sentido durkheimiano de vínculo à sociedade, o que implica levar em conta o sistema normativo em que ele se funda, fazendo a hipótese de que os indivíduos estão mais ou menos constrangidos a se conformarem a este último para serem integrados. No laço de filiação, por exemplo, estuda-se, é verdade, a relação entre pais e filhos, mas em relação às normas que enquadram esse laço em uma determinada sociedade, sabendo que a filiação pode assumir diferentes formas de uma sociedade para outra. No laço de participação orgânica, estuda-se a relação entre os agentes que participam da vida profissional, sabendo que essa relação é avaliada diferentemente conforme trate-se de uma sociedade salarial efetiva ou de uma sociedade salarial incompleta, de uma sociedade salarial em crise ou de uma sociedade salarial em expansão. Granovetter não faz esse tipo de pergunta. Ele estuda as relações interpessoais de uma maneira geral, sem distinguir as esferas normativas em que esses laços ocorrem, sem distinguir os diferentes tipos de laços. A teoria das redes distingue-se da teoria do vínculo e dos laços sociais à qual nos referimos.
Um laço é forte quando permite ao indivíduo proteger-se contra os riscos da vida e satisfazer sua necessidade vital de reconhecimento, fonte de sua identidade e de sua existência enquanto humano. No entanto, é em referência às normas sociais em vigor que o indivíduo pode, através do laço, assegurar sua proteção e reconhecimento. No mundo do trabalho, por exemplo, um conjunto de relações interpessoais entre colegas, fraco no sentido de Granovetter, pode, no entanto, resultar em um forte laço de participação orgânica. O indivíduo pode ter relações perfeitamente instrumentais e não emocionais com seus colegas e, ainda assim, sentir-se particularmente integrado ao grupo de trabalho, à empresa e aos padrões da sociedade salarial. O laço de participação orgânica não implica que os indivíduos que trabalham se amem. Um mínimo de confiança é necessário, mas a intimidade não é uma condição da integração profissional.
A abordagem consiste em buscar a força da integração no entrecruzamento dos quatro tipos de laços, os quais, como vimos, referem-se a diferentes sistemas normativos que os indivíduos devem esforçar-se para respeitar, mesmo que, em determinadas circunstâncias históricas, as condições não estejam plenamente reunidas para que eles possam fazê-lo plenamente e facilmente. Nem todos os indivíduos herdam os mesmos benefícios de laço de filiação e não conseguem manter esse laço durante todo o ciclo de vida. Nem todos os indivíduos têm os mesmos trunfos para desenvolver laços eletivos regulares e diversificados. Tampouco a norma do emprego assalariado estável é acessível a todos, e os indivíduos não são todos tratados de maneira perfeitamente igual pelas instituições que mantêm o laço de cidadania. Em outras palavras, partindo desses quatro tipos de laços sociais, é possível evidenciar as desigualdades de integração às quais eles remetem de maneira quase inevitável.
Revista PluralVocê também publicou em francês um livro, O Que os Ricos Pensam dos Pobres, que inclui entrevistas com pessoas ricas que vivem em bairros privilegiados em Paris, Dehli e São Paulo. Você poderia nos falar um pouco sobre esse trabalho?
Serge Paugam Este trabalho, em colaboração com Bruno Cousin, Camila Giorgetti e Jules Naudet é fruto de uma grande pesquisa recente sobre a percepção da pobreza e da desigualdade no bairros ricos de três grandes cidades: Paris, São Paulo e Delhi12. A partir dos principais resultados, o livro tenta analisar, a partir de entrevistas aprofundadas13, como os habitantes dos bairros ricos mais segregados vêm a justificar suas práticas de autossegregação no tecido urbano e suas estratégias de evitamento de categorias sociais inferiores.
Esta pesquisa nos levou a explorar as dimensões contemporâneas da discriminação contra os pobres. Perguntando às pessoas nesses guetos de opulência o que eles pensam da pobreza e, mais geralmente, da desigualdade, estamos bem conscientes de ter causado, de forma quase experimental, as mais fortes reações em relação à alteridade. Tratava-se, de certa forma, de fazer sobressair, como que por meio de uma lupa, o que o cotidiano nem sempre revela diretamente. Ao viverem voltados para si mesmos, os ricos não falam espontaneamente sobre os pobres e às vezes não os vêem. No entanto, suas práticas autossegregativas podem ser a expressão de uma disposição mais ou menos determinada de se desvencilhar da presença dos pobres em sua cercania.
Como a segregação espacial em muitas grandes cidades aumentou nos últimos anos, principalmente devido à concentração de riqueza em alguns bairros, fazia sentido partir destes últimos para entender a realidade da relação que os ricos têm com os pobres e assim questionar o que torna possível ou, ao contrário, o que entrava a solidariedade entre esses dois grupos situados nos dois extremos da escala social. Pudemos revelar sucessivamente o que motiva os ricos a produzirem uma fronteira moral entre eles e o mundo exterior, o que os leva a experimentar um sentimento de repulsa física no contato com os pobres, e que os permite justificar sua superioridade social e neutralizar a compaixão aos mais desfavorecidos. Essas três dimensões constituem o que chamamos de tríptico da discriminação. O fato de isto ser verificado de várias formas em cada metrópole já é um primeiro resultado importante. Estamos lidando aqui com um mecanismo sociológico que estrutura as relações sociais entre ricos e pobres e que pode levar a formas radicais de separatismo social. Trata-se, portanto, de uma estrutura analítica relevante para pensar o funcionamento e a dinâmica das sociedades modernas diante desse risco potencial.
Em muitos aspectos, o que estabelecemos pode figurar na continuidade de estudos históricos sobre esse tema. Os excertos de entrevistas que publicamos neste livro confirmam formas de distanciamento dos pobres que eram comuns no século XIX. Essa notável semelhança entre as representações do passado e do presente pode reforçar a ideia de que existe uma continuidade histórica nas formas de evitamento dos pobres pelos ricos. A realidade, no entanto, é mais complexa. Não há uma representação única da pobreza que possa impor-se de maneira homogênea. A questão da pobreza remete, na França, a uma tradição republicana de solidariedade, que não existe nessa forma e nessa retórica no Brasil e na Índia. O próprio termo solidariedade é, nestes países, usado com menos frequência e não tem o mesmo significado. As pessoas que entrevistamos em Paris estão, pelo menos em parte, imbuídas dessa ideologia republicana e internalizaram os limites do que podem revelar de sua visão dos pobres sem se expor a uma correção [appel à l’ordre] pelos atores que mantêm a consciência solidarista (igrejas, movimentos de caridade, sindicatos, partidos políticos, representantes de causas humanitárias, etc.). A percepção da pobreza pelos ricos, portanto, não é imutável historicamente nem invariável conforme os lugares. Se o risco de desprezo e de distanciamento dos pobres é verificado nas três metrópoles de nossa pesquisa, ele não o é nas mesmas proporções. As variações observadas e analisadas neste livro são pelo menos tão importantes em termos de resultados quanto as formas estruturais comuns.
Quando as três dimensões do processo de discriminação contra os pobres pelos ricos se reforçam mutuamente, as condições para o recalcamento da solidariedade são satisfeitas. É realmente difícil falar de complementaridade entre os indivíduos de uma sociedade e pensar em termos de coesão social quando a fronteira moral entre os ricos e os pobres se alimenta de uma vontade de cisão baseada no espectro da sujeira e da contaminação, e se baseia em uma retórica de justificação da pobreza e da desigualdade. Essas condições são muito mais comuns na metrópole de São Paulo e Nova Deli do que na metrópole parisiense.
Para interpretar essas variações, no último capítulo recorremos à teoria dos vínculos. O processo de naturalização da pobreza e a reprodução de uma ordem social desigual são mais frequentemente associados com o que chamamos de um regime familialista, isto é, um sistema em que o quadro normativo de solidariedade repousa, de forma preeminente, no vínculo de filiação e na moral doméstica. Este regime favorece a satisfação dos interesses pessoais em detrimento dos interesses coletivos e a desconfiança em relação às instituições públicas, incluindo aquelas destinadas a promover a coesão social ou reduzir a pobreza. As entrevistas realizadas em São Paulo e Déli se enquadram nesse tipo de configuração.
A articulação dos tons argumentativos da discriminação dos pobres não é tão sistemática nas entrevistas realizadas em Paris. O caráter indesejável dos pobres é, neste último caso, menos racionalizado e os modos de justificar a pobreza baseiam-se mais na noção de mérito dos ricos do que na preguiça ou na natureza indolente dos pobres. Acima de tudo, o discurso sobre a pobreza não se presta a um questionamento fundamental dos princípios solidaristas, os quais se articulam, inclusive com certa frequencia, com o elitismo republicano e com a busca da excelência, notadamente pelo investimento no sucesso escolar de seus filhos. Trata-se de uma vitimização controlada dos pobres que conseguimos aproximar do regime organicista, que se baseia na preeminência do laço de participação orgânica e da moral profissional sobre outros tipos de laços. Essa percepção, que integra a pobreza na sociedade ainda que atribuindo aos pobres um status inferior e desqualificado, não é acompanhada de um recalcamento da solidariedade; ela torna possível, em dez disso, uma solidariedade à distância. Nessa configuração, os pobres não estão imunes a formas recorrentes de desprezo ou vexação. O desemprego de que muitas vezes são objeto é geralmente estigmatizado e os desempregados de longa duração são frequentemente suspeitos de se aproveitarem do assistencialismo.
Estudar de maneira comparativa o que os ricos pensam dos pobres nos esclarece no que diz respeito às principais formas de discriminação contra os pobres em vigor nas sociedades modernas, mas também sobre os obstáculos à solidariedade entre esses dois grupos sociais opostos em termos de padrão de vida. Em sua primeira lição dada em 1888 em Bordeaux, em seu curso de ciências sociais, Émile Durkheim afirmou que a principal tarefa da sociologia era restaurar as ideias de solidariedade. Apesar do quadro limitado da investigação que conduzimos, podemos ter contribuído, pelo menos indiretamente, para este projeto do fundador da sociologia francesa, mostrando as diferenças persistentes entre essa realidade antropológica da solidariedade nas sociedades modernas e a consciência - limitada - que dela podem ter os mais ricos.
Revista PluralEm seus trabalhos, você mobilizou estudos quantitativos e qualitativos, bem como níveis macro, meso e micro, e realizou comparações em nível internacional14. O que finalmente caracteriza sua maneira de fazer sociologia é esse cruzamento de vários métodos e várias escalas? Aliás, você também coordenou um livro15que mostra um pouco das facetas dessa abordagem sociológica. Essa é uma postura que você aconselha aos sociólogos?
Serge Paugam Percebo que muitos sociólogos se especializam em um método e nunca fazem uso de outros. Há, por vezes, disputas entre os adeptos inabaláveis desta ou daquela abordagem, cada um deles convencido de que a sua escolha metodológica é melhor e mais interessante que as outras. Isto é frequentemente o que acontece entre “quantitativistas” e “qualitativistas”, os primeiros culpam os segundos pela sua falta de rigor, ou ainda sua abordagem literária do social, e, vice-versa, a segunda replica à primeira que os seus indicadores estatísticos são grosseiros e simplistas e que sua demonstração não leva suficientemente em conta a natureza frequentemente enviesada dos dados que usam. Essas visões são caricaturais. Na sociologia, não há metodologia infalível. Cada uma delas tem vantagens e limitações, e a escolha que devemos fazer depende principalmente do objeto de estudo. No meu trabalho, experimentei várias e muitas vezes articulei na mesma pesquisa uma abordagem quantitativa e qualitativa. E incentivo enfaticamente meus alunos a se qualificarem em vários métodos para que, assim que se fizer necessário, possam fazer a escolha mais apropriada. O livro A Pesquisa Sociológica, que coordenei, reflete essa ambição pedagógica de dar aos estudantes da sociologia as bases do trabalho sociológico, detalhando todos os seus passos sucessivos e descrevendo-o na pluralidade de suas formas. Ele foi preparado quando eu era responsável pela formação sociológica na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) e decidimos coletivamente dar aos alunos a formação metodológica mais completa possível. No meu trabalho, também atribuo grande importância à comparação internacional e à inclusão de diferentes escalas (nacionais, regionais e locais), o que às vezes implica novas experiências metodológicas de acordo com as questões que colocamos. No seminário semanal que ofereço na EHESS no âmbito da cátedra “Sociologia das Desigualdades e Rupturas Sociais”, tenho a sorte de orientar trabalhos de estudantes de vários países (Europa, Ásia, Américas do Norte e Sul) e que trabalham com diferentes áreas culturais, o que permite comparações muito estimulantes.
Revista PluralNos últimos anos, há uma renovação [renouveau] dos estudos sobre Durkheim. Você pode explicar quais são as razões disto? Essa renovação é visível também no Brasil?
Serge Paugam Há cerca de vinte anos, estamos testemunhando de fato uma renovação dos estudos sobre Durkheim. Esse movimento começou com a comemoração do centenário do surgimento da maioria de seus trabalhos com novos livros ou edições de periódicos. A pesquisa sobre Durkheim e suas obras também é perceptível também internacionalmente. Um centro de pesquisa, o British Center for Durkheimian Studies, inteiramente dedicado ao estudo de Émile Durkheim, foi fundado em Oxford em 1991. Desde 1995, este centro publica, anualmente, a revista Durkheimian Studies/Études durkheimiennes. Todos os livros de Durkheim são regularmente reeditados e enriquecidos com novos prefácios ou introduções. Também vale a pena mencionar a publicação da monumental biografia de Durkheim por Marcel Fournier, em 2007, e traduzida para o inglês em 2012. Émile Durkheim não é mais apenas o ponto de referência obrigatório para sociólogos e professores de sociologia. É um clássico renovado [réinvesti] e cada vez mais no centro dos debates contemporâneos sobre os fundamentos das sociedades modernas.
Como podemos entender essa retomada de interesse? A primeira explicação provavelmente está no que pode ser chamado um pouco paradoxalmente da similaridade dos contextos. No final do século XIX, Durkheim era sensível ao risco de desintegração e desregulamentação da sociedade de seu tempo. Ora, a última década do século XX foi também a da redescoberta de problemas semelhantes. A segunda explicação tem a ver com a postura intelectual do fundador da sociologia francesa. Sua ambição era ser útil à sociedade, o que correspondia perfeitamente ao espírito dos republicanos do final do século XIX. Tudo ocorre como se um retorno às fontes conceituais e teóricas de seu pensamento fosse, para os sociólogos e filósofos de hoje, uma maneira de melhor interpretar, por comparação e distanciamento [mise en perspective], os problemas sociais deste início do século e de refletir sobre novas formas do laço social e projetos de reforma. Por fim, podemos ver na releitura contemporânea de Durkheim o efeito do cruzamento cada vez mais frequente das disciplinas das ciências sociais. Essa renovação não concerne apenas aos sociólogos. É visível nas publicações de cientistas políticos e filósofos, que agora organizam regularmente seminários sobre o pensamento de Durkheim, que convidam sociólogos a se juntarem à sua reflexão. Embora Durkheim tenha travado uma luta feroz para fazer a Universidade reconhecer a sociologia como uma ciência positiva autônoma, é, pelo menos em parte e paradoxalmente, à abertura [décloisonnement] dessa disciplina que devemos a releitura cruzada de seus textos fundadores. A sociologia é agora reconhecida e sua durabilidade, assegurada; os próprios sociólogos, embora sensíveis à tradição de sua disciplina, não precisam mais, como Durkheim, conduzir uma luta de fronteira. Eles podem, ao contrário, dialogar com disciplinas vizinhas e se alimentar desse diálogo para renovar suas abordagens teóricas e empíricas. Filósofos e cientistas políticos também parecem se beneficiar dessa abertura, que sem dúvida contribui para o futuro das ciências sociais no século XXI. A publicação recente de uma edição inteiramente dedicada a ele na Revue Internationale de Philosophie é um exemplo notável.
Esse movimento é visível no Brasil? Márcio de Oliveira e Raquel Weiss, sociólogos brasileiros - respectivamente professor da Universidade Federal do Paraná e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - mostraram em um artigo recente como a carreira de Durkheim tem sido marcada por representações bastante negativas16. Considerado por muitos como um sociólogo conservador e positivista, os brasileiros muitas vezes o contrastaram de maneira caricatural e pouco favorável com Karl Marx e Max Weber. Qualificar Durkheim desta forma é um erro de julgamento feito por aqueles que não concederam o tempo necessário para uma leitura minuciosa e que não reconhecem o compromisso republicano de Durkheim, particularmente ao lado de Jaurès e dos progressistas de seu tempo. Dos grandes clássicos, Durkheim é o que menos inspirou pesquisas teóricas e empíricas no Brasil. Observa-se, no entanto, há vinte anos, um início de reversão desta imagem negativa, abundante retomada das pesquisas sobre Durkheim, um movimento do qual faz parte a criação, em 2012, do Centro Brasileiro de Estudos Durkheimianos na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e que abre novas perspectivas para as gerações futuras. Notemos também que a revista Sociologias publicou recentemente uma edição especial dedicada a Durkheim. Por fim, o congresso da Sociedade Brasileira de Sociologia, realizado em Brasília em 2017, organizou uma mesa redonda intitulada “Cem anos sem Durkheim”, que suscitou grande interesse, o que parece confirmar a tendência que nós observamos a nível internacional. Isso me alegra muito e espero contribuir para este movimento através do meu trabalho sobre desigualdades e laços sociais no Brasil e em outros países.
Notas