Artigo
Recepção: 13 Dezembro 2020
Aprovação: 11 Abril 2021
DOI: https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2021.179875
Resumo: O presente artigo tem como objeto de pesquisa a relação entre o fundamentalismo religioso no Brasil e o Programa Escola sem Partido (ESP). Procurou-se investigar o peso histórico do catolicismo sobre a cultura e as instituições políticas brasileiras, a força que os evangélicos adquiriram nas últimas décadas no país, bem como se o ESP é uma expressão do fundamentalismo religioso na atual conjuntura política do Brasil. O caminho percorrido para chegar aos resultados se baseou em investigação bibliográfica, além de análise de discurso crítica a partir do exame de documentos oficiais produzidos por defensores do Programa e do conteúdo coletado mediante entrevistas de professores que atuam na rede pública de educação no estado do Ceará. A pesquisa conclui que o ESP pode, em parte, ser explicado como uma estratégia política de fundamentalistas religiosos (movimento carismático católico e os evangélicos ligados à teologia da prosperidade) que têm buscado exercer poder sobre o campo da educação procurando estabelecer visões de mundo e padrões de comportamento que tensionam a democracia.
Palavras-chaves: Fundamentalismo, Escola sem Partido, Política.
Abstract: This article aims to investigate the relationship between religious fundamentalism in Brazil and the Non-partisan School (NPS) program. We sought to investigate the historical weight of Catholicism on Brazilian culture and political institutions, the strength that evangelicals have acquired in recent decades in the country, as well as whether NPS is an expression of religious fundamentalism in the current political situation in Brazil. The path taken to reach the results was based on bibliographic research, in addition to critical discourse analysis based on the examination of official documents produced by proponents of the Program and the content collected through interviews with teachers who work in the public health network education in the state of Ceará. The research concludes that NPS can, in part, be explained as a political strategy by religious fundamentalists (catholic charismatic movement and evangelicals linked to prosperity theology) who have sought to exercise power over the field of education, seeking to establish worldviews and patterns of behavior that strain democracy.
Keywords: Fundamentalism, School without Party, Politics.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo procura entender até que ponto o Programa Escola sem Partido (ESP) pode ser entendido como algo produzido pelo fundamentalismo religioso brasileiro e a seu serviço. Além de pesquisar sobre a relação entre esses dois elementos, esta investigação também reflete a histórica influência do catolicismo não só na política como também na educação no Brasil e a formação de uma atual identidade dos evangélicos neste território que tem feito com que este grupo cada vez mais intensamente tenha se interessado por política e tentado influenciar esse campo em nosso país.
Para alcançar este escopo, além de investigação bibliográfica, lançamos mão da análise de discurso crítica (ADC) (FAIRCLOUGH, 2001; 2003), que é uma abordagem teórico-metodológica. Esta compreende que discursos são elementos fundamentais nas disputas de sentido para o estabelecimento ou manutenção de poder de grupos sociais. Para Fairclough, os discursos não só representam significados, mas os criam, na medida em que podem ser usados para construir “sistemas de conhecimento e de crença” (2001, p. 71-72). Propensa à interdisciplinaridade para alcançar seus objetivos, a análise de discurso crítica coloca ao pesquisador a tarefa de examinar elementos da linguagem considerando referencial teórico produzido pelas ciências sociais. Assim, de acordo com Oliveira e Oliveira, é possível afirmar que a ADC “dialoga bem e de forma promissora com a atualidade das pesquisas que abordam questões que envolvem relações sociais, disputas por poder e construções discursivas no conturbado contexto nacional” (2020, p. 74).
Esta pesquisa utilizou como corpus entrevistas, além de documentos produzidos por defensores do Programa Escola sem Partido e investigação bibliográfica. Vale ressaltar que 2014 foi o ano em que pela primeira vez procurou-se instituir o Escola sem Partido em âmbito federal através de um projeto de lei e 2018 foi o ano no qual, até o presente momento, mais avançaram no Congresso discussões que visavam estabelecer o Programa. Isso foi levado em consideração na escolha dos escritos de autoria de defensores do ESP usados como fonte para esta investigação. A saber: o PL 7180/2014, de autoria do deputado Erivelton Santana, filiado ao Partido Social Cristão; o arquivo de 2018 assinado pelo deputado Flavinho, também filiado ao Partido Social Cristão, no qual se encontram o parecer e o substitutivo ao PL 7180/2014; o parecer sobre a constitucionalidade do Programa Escola sem Partido, produzido, também no ano de 2018, pelo fundador do ESP, Miguel Nagib. As entrevistas foram do tipo aberta e foram realizadas entre os anos de 2018 e 2019 em escolas do ensino médio da rede de educação pública do estado do Ceará. São utilizados, neste artigo, trechos de dois professores do ensino médio de escolas públicas estaduais do Ceará, ambos da área de ciências humanas. Os entrevistados possuíam perspectivas diferentes sobre o assunto: Paulo é a favor do ESP e, além de docente, é pastor de igreja evangélica e Alcebíades é contra o ESP e, além de professor, é membro de um grupo de religião espírita. Estes nomes são fictícios. Esta é, portanto, uma pesquisa de caráter qualitativo e envolve textos que procuram instituir uma política pública regulatória para a educação a nível nacional.
Este artigo em um primeiro momento apresenta o Programa Escola sem Partido e procura relacioná-lo de modo introdutório com o fundamentalismo religioso. Na segunda seção, buscou-se fazer uma reflexão sobre a histórica influência do catolicismo sobre a sociedade brasileira, inclusive com exemplos da história recente do país, e procurou-se ainda entender a formação de identidade de um tipo de evangélico que tem se desenvolvido no Brasil, o qual cada vez mais não só se interessa por política, mas procura marcar presença para definir os rumos dela. No último tópico, buscou-se de forma mais aprofundada encontrar a relação entre o Programa Escola sem Partido e o fundamentalismo religioso no Brasil, analisando em que medida o programa educacional pode ser percebido como uma estratégia a serviço de grupos religiosos que querem impor por meio da política uma visão de mundo e um padrão de comportamento que podem funcionar como ameaça à democracia.
O Escola sem Partido não pode ser definido exclusivamente como um produto do interesse de grupos religiosos ou de grupos econômicos, pois ele corresponde a uma multiplicidade de discursos e interesses que vêm ganhando força no Brasil. Contudo, esta pesquisa parte da hipótese de que uma das faces do ESP é o fundamentalismo religioso, e este programa educacional também pode ser entendido como uma estratégia política de grupos fundamentalistas religiosos que desejam imprimir seus valores na sociedade brasileira, o que pode ocorrer causando riscos à democracia no que diz respeito a uma concepção plural de sociedade.
2. ESCOLA SEM PARTIDO: FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO E POLÍTICA
O Programa Escola sem Partido (ESP) teve sua origem em meados de 2004, atuando mediante denúncias em redes sociais. Contudo, ganhou mais força e se tornou mais visível a partir do ano de 2014, quando começaram a surgir projetos de lei pelo país que procuravam implementá-lo (PENNA, 2016, p. 44-45). De forma contraditória em relação à carga política e ideológica que este Programa possui, apoiadores do mesmo defendem que é possível instituir na prática um formato de escola que em seu cotidiano se baseie em neutralidade política e ideológica (CAPAVERDE; LESSA; LOPES, 2019, p. 214-215). Destaca-se entre os objetivos do ESP a ideia de combater dois elementos que são entendidos como ameaça às famílias brasileiras: uma suposta doutrinação marxista e discussões relacionadas a gênero e sexualidade que estariam ocorrendo com frequência em escolas do território nacional (RATIER, 2016, p. 30).
Quando questionado, em entrevista, sobre o que entende por ESP, o pastor e professor Paulo, por exemplo, não mencionou qualquer termo associado à religião. Ele salientou que se tratava de uma iniciativa de pais a favor de “uma escola que não esteja a serviço de uma ideologia política de direita ou de esquerda”. Contudo, é importante pensar como um discurso pode significar bem mais do que o conteúdo de um texto e a forma como ele é proferido pode funcionar como uma estratégia para tentar naturalizar assimetrias na sociedade (FAIRCLOUGH, 2003). O professor e espírita Alcebíades respondeu ao mesmo questionamento associando o ESP a “diversos setores conservadores”, entre eles “grupos religiosos” que tentam fazer “imposição de forma de pensamento”. Portanto, para além de diferentes perspectivas religiosas, percebe-se que a situação aponta para um choque de interesses, onde reivindicações de um grupo são entendidas como ameaça, configurando-se assim um “confronto político” (MCADAM;TARROW;TILLY, 2009:11).
Embora defensores do ESP não afirmem que ele possui um caráter religioso, o seu crescimento nos últimos anos está ligado não só à militância de políticos ligados a instituições religiosas, mas também ao crescimento de uma perspectiva religiosa fundamentalista no Brasil (SOUZA, 2019, p. 12). Com uma proposta moralizante para a educação brasileira, em nome de uma concepção cristã de família, este Programa possui uma agenda que tende a entrar em choque com perspectivas políticas que não se baseiam em princípios conservadores ligados a uma doutrina de cunho sagrado (MENDONÇA; MOURA, 2019, p. 202).
Em um momento em que o fenômeno religioso tem sido tão influente no âmbito da política, é preciso entender que, para pessoas envolvidas com um projeto espiritual, o sagrado é entendido como aquilo que protege o ser social de uma anomia capaz de levar o ser humano ao aterrorizante caos. Assim, a “religião é compreendida como a ousada tentativa de conceber o universo como humanamente significativo” (BERGER, 1985, p. 40, 41).
Interessante levarmos em conta que a busca por sentidos e significados, resultante de relações tensas entre grupos, possui uma forte dimensão cultural. Em tempos de crescimento dos processos de comunicação, isso ajuda a lançar no mundo uma multiplicidade de discursos que podem entrar em choque ou convergir em determinada direção. Estes discursos envolvem identidades culturais e neles podem se abrigar representações de atores sociais e visões sobre temas que dizem respeito a relações de poder que podem repercutir no campo da política (FAIRCLOUGH, 2001).
No Brasil, conflitos que envolvem a criação de uma lei ou de uma política podem estar relacionados a fatores de identidade cultural, haja vista sua constituição ser híbrida desde a colonização (BRANDENBURG; SANTANA; FIALHO, 2014, p. 190). Neste sentido, Oliveira (2016, p. 58) afirma que
Por um lado, a cultura como prática de significação está inscrita e sempre funciona num jogo de poder, por outro, todos os processos de significação envolvem lutas políticas. É nesses termos que significo a articulação entre política e cultura. Partindo da compreensão de que o significado nunca é definitivamente significado, pode-se pensar a política como disputa pela significação, que será sempre adiada, tendo em conta a contingência dos processos de significação.
Também deve-se levar em conta que há nesse país uma “dificuldade de se pensar cultura e religião em separado” (SANTIAGO FILHO, 2013, p. 104). Considerando a conjuntura do Brasil na atualidade, em que pastores, no nível micro, controlam grande parte do comportamento das pessoas que vão às igrejas (inclusive influenciam seus posicionamentos políticos), e, em nível macro, tendem a reforçar a disciplina dos fiéis através de programas de rádio e de televisão, Miguel (2018, p. 21) ressalta que o fundamentalismo precisa também ser entendido como uma forma de oportunismo de líderes religiosos. Isso não significa necessariamente que o termo seja sinônimo de fanatismo, mas os desdobramentos desse controle, de modo inquestionável, dariam a estes líderes um potencial de serem compreendidos hoje como uma espécie de “novos coronéis da política brasileira”. O fundamentalismo, portanto,
[...] se define pela percepção de que há uma verdade revelada que anula qualquer possibilidade de debate. Ativos na oposição ao direito ao aborto, a compreensões inclusivas da entidade familiar e a políticas de combate à homofobia, entre outros temas, os parlamentares fundamentalistas se aliam a diferentes forças conservadoras no Congresso, numa ação conjunta que fortalece a todos. Fora do Congresso, pastores com atuação política e forte presença nas redes sociais, como Silas Malafaia, dão voz à sua pauta (MIGUEL, 2018, p. 21).
Interessante destacar que, assim como outros dispositivos sociais que consolidam discursos, a religião serve, em grande medida, como instrumento de legitimação de uma ideia de verdade que não é feita para ser entendida como historicamente construída. Quanto mais um discurso religioso for entendido como natural e atemporal, tanto menos sua autenticidade será questionada e maior poder de orientar comportamentos ele terá (BERGER, 1985, p. 38). Assim, para o homem religioso que busca espaço no campo da política, pode-se afirmar que
a melhor maneira de resolver o problema seria aplicar a seguinte receita: interprete-se a ordem institucional de modo a ocultar o mais possível o seu caráter de coisa construída. Que aquilo que foi formado exnihilo surja como a manifestação de alguma coisa que existiu desde o começo dos tempos, ou ao menos desde o começo deste grupo. Que as pessoas esqueçam que esta ordem foi estabelecida por homens e continua dependendo do seu consentimento. Que acreditem que, executando os programas institucionais que lhes foram impostos, limitam-se a realizar as mais profundas aspirações do seu ser e a se porem em harmonia com a ordem fundamental do universo. Em suma: estabeleçam-se legitimações religiosas (BERGER, 1985, p. 46).
Sobre o tema, Miguel (2018, p. 21) afirma que a força política do fundamentalismo religioso, neste país, começou a se evidenciar na década de 1990. Para ele, a denominação “bancada evangélica” precisa ser problematizada. Isso porque ela coloca no mesmo parâmetro os evangélicos de todo o país. Dessa forma, o termo desconsidera a existência de grupos progressistas menores deste segmento religioso que, além de não se sentirem representados por políticos que se colocam como defensores do cristianismo, não possuem compromissos eleitoreiros com eles. Outro problema do termo “bancada evangélica”, de acordo com Miguel (2018:21), é relativo ao fato desta nomenclatura ocultar o peso do apoio do “setor mais conservador da Igreja católica no Congresso, não por meio de sacerdotes, mas de leigos engajados”.
Projeto político voltado para a educação, o Escola sem Partido teve seu caráter religioso fundamentalista enfatizado pelo professor espírita Alcebíades em entrevista. Ele o chamou de “discurso falacioso”, porque, segundo ele, seus propositores “querem se referir à questão dos partidos de esquerda” e alegam que “a escola deveria ter uma neutralidade, digamos partidária”.Mas, na verdade, para este docente, haveria algo “contraditório porque não é uma escola sem partido, é uma escola com partido” e, “de um modo geral”, com “os partidos mais ultraconservadores”.Percebe-se, portanto, que a realidade social exige uma investigação para se poder alcançar a percepção do fundamentalismo religioso enquanto fenômeno que nos últimos anos tem adquirido força no Brasil. Assim, o cristianismo tem se apresentado, em algumas vertentes católicas e evangélicas, com tendências fundamentalistas, buscando influir sobre a política, apesar de legalmente nos constituirmos como um Estado laico. Este será o foco dos nossos tópicos seguintes.
3. LIMITES OPACOS ENTRE POLÍTICA E RELIGIÃO NO BRASIL: O PODER DO CATOLICISMO COMO UMA CONSTANTE E OS IMPACTOS DE TRANSFORMAÇÕES DO SEGMENTO EVANGÉLICO
Mesmo tendo em vista que a Constituição brasileira de 1891 estabeleceu a separação entre Igreja e Estado (VASCONCELOS JÚNIOR; PEREIRA, 2014, 128), é inegável que marcas culturais fortes foram deixadas pela igreja católica, posto que, durante séculos, ela foi a religião oficial do país, contribuindo para o processo de formação da sociedade brasileira. Resta evidente ainda que, em decorrência dessa imiscuição, educação e religião católica no Brasil andaram de mãos dadas desde a época dos jesuítas.
Há, portanto, historicamente, uma tensão em torno da laicidade do Estado. Isso se evidencia quando reconhecemos que, durante a elaboração da Constituição atual, grupos católicos pressionaram pela obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas de nível fundamental (embora de matrícula facultativa) e quando menos de um ano depois da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a mesma Igreja, teve força para influenciar o presidente Fernando Henrique Cardoso para retirar do texto a norma que dizia que o ensino religioso aconteceria “sem ônus para os cofres públicos” (MARIANO, 2014, 14-15).Vale lembrar também que, no ano de 2010, de acordo com Moura, Luís Inácio Lula da Silva, que na ocasião era o presidente da república, promulgou, depois de ter sido homologado pelo Congresso Nacional, um acordo assinado “pelo ministro brasileiro das relações exteriores e pelo secretário de Estado do Vaticano” (2016, p. 75-76), cujo conteúdo estabelece que, embora permaneça sendo de matrícula facultativa, o ensino religioso deve estar dentro dos horários normais de funcionamento da grade curricular.
Some-se a essa conjuntura os efeitos da adaptação católica do movimento pentecostal evangélico no Brasil (MARIANO, 2014). Oriundo do movimento conhecido por Renovação Carismática Católica que surgiu anos 1960, nos Estados Unidos, e que enfatiza o “dom da profecia”, segundo Moura (2016, p. 85, 86), o cenário católico do Brasil conheceu esse segmento religioso a partir da chegada de padres missionários que se estabeleceram em Campinas, ainda no final da década de 1960 e “fundaram em 1981 a Associação do Senhor Jesus”. Católicos carismáticos utilizam práticas como “emocionalismo”, venda de materiais que lembram a fé, ênfase na “demonização” de práticas de outras religiões, incentivo ao apoio financeiro dos fiéis à causa religiosa etc., segundo Grigoletto (2003, p. 30). Este segmento vem se popularizando e, mesmo com desentendimentos doutrinários com a Conferência Nacional de Bispos do Brasil, cada vez mais procura “falar não mais só em nome de seu movimento, mas sim da Igreja Católica como um todo” (SOUZA, 2002, p. 91). Este grupo historicamente rivaliza com o neopentecostalismo evangélico, embora, ultimamente, tenha, na esfera política, se aproximado deste, na defesa de causas conservadoras, inclusive no campo da educação.
Até alguns anos atrás seria difícil encontrar um político evangélico que estivesse disposto a pautar, de forma clara, suas propostas a partir de uma visão de mundo baseada em seus princípios religiosos. Mas, isso tem mudado no Brasil contemporâneo. Essa mudança é, em grande medida, responsável pela tentativa de estabelecer uma agenda da chamada “bancada evangélica”, incluindo, como conteúdo fundamental, o Programa Escola sem Partido. Contudo, muitas vezes os defensores de uma ideia podem, por meio de estratégias discursivas, tentar ocultar elementos que estão presentes na mesma (FAIRCLOUGH, 2003). Como no caso do professor e pastor Paulo que afirmou, em entrevista, que o termo “partido” no título do ESP “está mais voltado pra (sic) uma questão política mesmo”, sugerindo que isso só poderia ser um problema em casos em que, por exemplo, “a maioria dos componentes” de uma escola fossem “filiados a um partido” e já tivessem “uma ideologia partidária”.
A partir de sua origem europeia, que se estabelece em oposição ao catolicismo, a Reforma Protestante acabou dando origem a um modelo de fé com poder descentralizado e multidenominacional, apresentando, por consequência, tendência a uma grande pluralidade quanto às formas de constituir-se como igreja (DREHER, 1996). No caso do Brasil, este modelo de fé constituiu-se com características particulares. Na segunda metade do século XIX, houve a chegada de muitos missionários das chamadas igrejas históricas (antigas congregações tradicionais oriundas dos primórdios da Reforma na Europa, como a Anglicana, a Luterana, a Batista e a Presbiteriana), causando, desde então, o que Cerveira chama de “transplante denominacional” (2008, p. 41). Isso contribuiu para a pluralidade religiosa do cenário que temos hoje.
As igrejas evangélicas, a essa época, evitavam tomar posição de protesto referente aos assuntos seculares de organização da sociedade por causa do poder político que o catolicismo ainda detinha no Estado brasileiro (CAIRNS, 2008, p. 388-390). Não por acaso que o termo “evangélico” se tornou popular ao passo que o termo “protestante” é pouco utilizado.
O movimento pentecostal que aporta no Brasil no início do século XX se diferencia por possuir crenças de caráter mais místico e menos dependente de uma interpretação teológica e ortodoxa das escrituras (CAIRNS, 2008, 421-422). Além dele ajudar no crescimento do número de evangélicos no país, teve importante papel no surgimento de novas congregações que surgiam de discórdias doutrinárias entre membros de igrejas, o que contribuiu também para a pluralidade do cenário.
Nesse período de proliferação da religião protestante no Brasil, consolidou-se o conversionismo, forma de “adesão religiosa” que conduz a um “rompimento com a própria ‘biografia da pessoa’, quebrando laços sociais tradicionais” (CERVEIRA, 2008, p. 49). O conversionismo, ao mesmo tempo em que levava as pessoas a colocar em segundo plano as referências de valores que possuíam antes de conhecer a doutrina e as orientações de sua igreja, contribuiu, nesse momento inicial, para o distanciamento do evangélico de questões públicas e políticas. O conversionismo ajudou a fortalecer a “mentalidade de gueto” (CAIRNS, 2008, p. 425) do cristão evangélico, sobretudo na primeira metade do século XX. O evangélico buscava então se isolar ao máximo de pessoas não evangélicas, valorizando as coisas de Deus em detrimento das coisas do mundo, como a corruptível política dos homens. O neopentecostalismo surge nos Estados Unidos, no período da Guerra Fria, e valoriza a teologia da prosperidade, atrelando o nível de fé do indivíduo ao seu sucesso financeiro, o que deve ser demonstrado, inclusive, dentro do templo religioso. Ele possui uma prática que lança mão de sincretismos, propaganda de TV, promessas de êxito material e inserção no mundo dos negócios e da política. Na mentalidade dos neopentecostais, todos os espaços devem ser ocupados pelos filhos do Senhor (QUEIROZ, 2013, p. 31). Sobre isso Cerveira (2008, p. 48) afirma que
no final dos anos oitenta, o mundo evangélico, em sua face pentecostal e neopentecostal, aparecerá de maneira forte na mídia, tanto por seu crescimento propriamente dito, inclusive deixando seu público tradicional, os mais pobres, para alcançar setores da classe média, como por sua entrada na peculiar política institucional. Peculiar por abandonar, de forma aparentemente abrupta, seu apoliticismo, como também pela maneira nova de entrar no cenário político a partir da figura dos candidatos oficiais. Os evangélicos históricos, já proporcionalmente superados pelos pentecostais e mais tímidos em sua inserção, repensam suas próprias formas de atuação.
Uma nova postura política dos evangélicos à vista disso se fortalece e começa a se evidenciar a partir de alterações de suas identidades, o que ocorre com o crescente impacto da chegada do movimento neopentecostal no Brasil no final dos anos 1970. O neopentecostalismo é, portanto, um ponto crucial para a compreensão do crescimento de grupos sociais e políticos interessados hoje no Programa Escola sem Partido.
4. O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO COMO UMA DAS FACES DO ESCOLA SEM PARTIDO: TENDÊNCIAS ANTIDEMOCRÁTICAS DE UM PROGRAMA EDUCACIONAL UTILIZADO COMO ESTRATÉGIA DE DOMINAÇÃO POLÍTICA DE UM SEGMENTO RELIGIOSO
A doutrina neopentecostal chegou dos Estados Unidos encontrando grande receptividade no cenário evangélico devido também às notícias que chegavam sobre perseguição aos cristãos na União Soviética. Isso acabou contribuindo para fortalecer essa admiração dos evangélicos brasileiros com relação a ideias produzidas pelos yankees, o que se relaciona com o anticomunismo que é tão presente em igrejas evangélicas brasileiras e também no discurso do Escola sem Partido (CERVEIRA, 2008). Aqui, vale destacar a reflexão feita por Salles e Silva (2018, p. 170)
Propomos que “escola sem partido”, muito mais do que um simples chavão, seja tratado como um ponto nodal, uma fixação de sentidos dentro de uma formação mais ampla de discursos conservadores sem limites claros. Dessa forma, num movimento de articulação com outros discursos de mesmo matiz, como o fundamentalismo religioso, o anticomunismo e o neoliberalismo, o EsP se tornou um ponto de encontro e uma bandeira para a defesa de um projeto de educação e sociedade pautado na subordinação de todas e todos aos ditos “valores tradicionais”; na imposição da moral judaico-cristã como a única mediadora possível das relações familiares e afetivas; e na naturalização da desigualdade socioeconômica a partir do mote do livre mercado e esvaziamento político do Estado e da sociedade.
Importante levar em conta que, a título de tentativa de compreensão dessa “formação mais ampla de discursos conservadores sem limites claros”, como foi citado acima, a onda triunfalista neopentecostal se relaciona com o crescimento de seguidores da religião evangélica no país, algo que não começou a ser noticiado tão recentemente. Entre 1980 e 2010, segundo dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, o número de evangélicos subiu de 6,6% da população para 22% (G1, 2012).
Corroborando com o que temos aqui exposto, vale destacar mais um trecho da entrevista feita ao professor e pastor Paulo. Este falou que os jovens evangélicos atualmente são bem diferentes dos de outrora. Isso porque eles se interessam por questões públicas e tentam se destacar em outros espaços além da igreja. Isso seria pouco compreendido hoje por muita gente que tem ainda a imagem de evangélicos como pessoas isoladas e que só se envolvem com assuntos da igreja. O professor Paulo falou o seguinte:
[...] na questão científica, a escolha de uma profissão, né? Ah! Quando eu me identifico com isso ou com aquilo..é..o respeito ao próximo, direitos humanos, então ele...ele precisa de tudo isso pra crescer. E isso é possível com educação. Como é que isso se rela...relaciona com a religião, né? Eu penso que a religião, nos últimos momentos, né...nos últimos anos ela despertou para a necessidade de ter uma população com uma mente aberta para o conhecimento, né? Nós ainda guardamos muito a imagem daquela igreja ou daquela religião.
As palavras acima nos ajudam a compreender que há, na percepção de Paulo, uma mudança de postura dos religiosos que na sua representação discursiva pode ser interpretada e defendida como abertura para o conhecimento. Mas, de acordo com a crítica do pastor da “Igreja de Cristo”, estudioso do movimento protestante no Brasil e crítico das tendências neopentecostais, Carlos Queiroz (2013, p. 38), fenômenos relacionados ao crescimento da igreja evangélica, hoje, devem ser entendidos como parte de uma conjuntura na qual “a divindade é reduzida a objetos para utilização e satisfação dos interesses dos devotos”. Isso leva as pessoas a também serem coisificadas, pois “coisificação da vida e fanatismo religioso são manifestações gêmeas”.
Importante perceber como muitas discussões que dizem respeito ao fundamentalismo cristão acabam se relacionando com temáticas que subsidiam o Escola sem Partido. Vale ressaltar que, por exemplo, segundo Berger (1985, p. 47), em uma perspectiva religiosa, “a sexualidade humana reflete a criação divina”. Assim, “toda família humana” deve refletir “a estrutura do cosmos, não só no sentido de representá-la, mas também de encarná-la” e “a autoridade política” é legítima quando atua a serviço do divino. Ou seja, “a estrutura política simplesmente estende à esfera humana o poder do cosmos divino”.
Dentro desta lógica discursiva, família e sexualidade possuem uma relação muito próxima, ambas são legitimadas a partir da reprodução do que é entendido como modelos segundo a vontade de Deus. Desse modo, a política e os políticos passam a ter mais valor quanto mais estiverem envolvidos com a tentativa de estabelecer esses padrões que são sagrados e, portanto, não corruptíveis para a sociedade, pois, para o homem religioso, “ir contra a ordem da sociedade é sempre arriscar-se a mergulhar na anomia” (BERGER, 1985, p. 52).
É importante perceber detalhes nas construções discursivas que podem ajudar a entender como estão ocorrendo tentativas de legitimação de verdades de grupos sociais sobre outros (FAIRCLOUGH, 2001). Vale ressaltar como, em entrevista, o docente e pastor Paulo procurou explicar a necessidade de implementação do Escola sem Partido. Embora ele tenha tentado justificá-lo como algo necessário para combater a influência de um “professor doutrinador”, ele acabou deixando transparecer, no modo como terminou sua justificativa, que a motivação para potencialmente taxar um professor como agente de doutrinação passa pelo desejo de desenvolver meios que evitem que o docente tenha condições, no espaço da instituição escola, de desenvolver reflexões que possam ajudar um estudante a questionar algo de interesse da instituição igreja. Ele disse que “a fala de um professor tem um peso muito grande” e pode levar o aluno a um “condicionamento” que “muitas vezes vai bater de frente com aquilo que esse aluno aprende em casa, aprende no seu convívio com a igreja.” Nesse sentido, para Bourdieu (2017, p. 412), “indivíduos ou movimentos de origem cristã” quando se inserem no campo político podem ter como base fortes relações entre “a prática religiosa e a opinião política”, o que se torna preocupante na medida em que fica “difícil determinar” se eles estão politizando o doméstico ou se estão domesticando e despolitizando o político.
Primeiro projeto de lei em âmbito federal a propor uma mudança na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para tornar possível o estabelecimento do Programa Escola sem Partido, o PL 7180/2014 de autoria do então deputado federal e pastor evangélico Erivelton Santana, do Partido Social Cristão (PSC), procurava instituir, nas salas de aula de todas as escolas do país, desconsiderando qualquer discussão de cunho científico sobre aulas ministradas pelos professores, uma precedência dos valores de ordem familiar sobre a educação ensinada na escola no que dizia respeito a aspectos relativos à educação moral, sexual e religiosa. O documento estimulava a censura ao sugerir que se deveria coibir, no que se refere a esses temas, o uso, por parte dos professores, de técnicas em sala de aula que poderiam ser interpretadas como subliminares para tratá-los. Em 2018, o deputado Flavinho, missionário católico, membro da Canção Nova, foi além ao propor, em um parecer às emendas apresentadas ao PL 7180/2014 e no substitutivo a este projeto de lei, a proibição da utilização dos termos “gênero” e “orientação sexual” em sala de aula.
Percebe-se, na carga religiosa que está interiorizada no Escola sem Partido, que se trata de uma tentativa de estabelecer, através de norma jurídica, uma referência ontológica de família e sexualidade a partir de uma doutrina religiosa. Mas, dessa forma, desconsidera-se tanto a diversidade social (seja ela religiosa ou sexual) quanto o desafio de construção de uma agenda política com base em dados concretos e problemas reais, vividos por diferentes setores da sociedade. A escola passa a ser entendida como instituição a serviço dessa lógica, desconsiderando sua importância para a formação de uma sociedade plural em um Estado laico. Portanto, não se toma como referência para a escola uma materialidade que represente problemas sociais contextualizados, mas uma compreensão de realidade como algo pré-concebido, revelado e atemporal.
Nesse ínterim, na mentalidade fundamentalista religiosa que procura se impor na política através do Escola sem Partido, discussões contextualizadas que trariam visibilidade a questões sociais sobre minorias sociais, como homossexuais, não só seriam consideradas desnecessárias, como incômodas. Isso porque elas ameaçam a “estrutura de plausibilidade” que Berger (1985, p. 58) entende como a “base social” que, em uma visão religiosa fundamentalista, deve refletir no “mundo” de forma “real” aquilo que “seres humanos reais” necessitam ver atuando para acreditar que estão envoltos materialmente em uma estrutura religiosa de vontade divina que tem o poder de livrá-los do “caos” e da “anomia”. Em outras palavras, pode-se afirmar que a realidade do mundo cristão depende da presença de estruturas sociais nas quais essa realidade apareça como óbvia e em que sucessivas gerações de indivíduos sejam socializadas de tal modo que esse mundo será real para eles. Quando essa estrutura de plausibilidade perde a sua integridade ou a sua continuidade, o mundo cristão começa a vacilar e sua realidade deixa de se impor como verdade evidente (Berger, 1985, p. 60).
Dessa forma, percebe-se que o Escola sem Partido é estratégico, como parte de um processo de estruturação da ordem social do mundo, a partir de modelos religiosos entendidos como vontade divina que estaria em andamento. Berger afirma que, de tempos em tempos, aqueles que desejam “manter a realidade de um determinado sistema religioso” se veem no desafio de “manter” ou se necessário “fabricar uma estrutura adequada de plausibilidade” (1985, p. 61). E isso demanda uma engenharia social cujos obstáculos podem variar dependendo do que cada contexto apresenta como ameaça. Nesse sentido, não só as escolas, mas as universidades, assembleias legislativas, as redes sociais, a mídia televisiva, enfim, os lugares de propagação de discursos, fabricação de consensos e normatização de leis devem ser ocupados e controlados pela ordem que livra o homem religioso do caos. Isto decorre do fato de que, “para o indivíduo, existir num determinado mundo religioso significa existir no contexto social particular no seio do qual aquele mundo pode manter a sua plausibilidade” (BERGER, 1985, p. 63). Neste sentido, urge trazer a construção argumentativa que está no parecer sobre a constitucionalidade do Programa Escola sem Partido de autoria de Miguel Nagib (2018), senão vejamos:
Aceitemos, todavia, para efeito de raciocínio, a ideia totalitária de que o Estado brasileiro tivesse o direito de conduzir a educação religiosa e moral das crianças e adolescentes obrigados a frequentar suas escolas. Se esse direito existisse, ele pertenceria ao Estado, não aos professores. Estes, enquanto servidores públicos sujeitos ao princípio da estrita legalidade, teriam de obedecer a “religião” e a “moral” que viessem a ser adotadas pelo legislador. Ou seja: ainda que não fosse dos pais, o direito à educação religiosa e moral dos alunos não seria dos professores (NAGIB, 2018, p. 23).
É possível compreender que Nagib está, como expressa ao longo de todo o seu parecer jurídico, tentando convencer sobre a necessidade de se criar um entrave para autonomia dos professores em sala de aula. Nota-se, portanto, que, para alcançar isso, ele utiliza um exemplo bastante controverso e propõe que o direito que se manifesta na escola é do Estado e não do professor, nem dos pais. Daí, dá-se a entender que não pode haver espaço para debates em sala de aula que apresentem uma visão plural de religião ou de moral, pois a autonomia do trabalho do docente e da reflexão em grupo em um espaço de aprendizagem deveriam se limitar a se identificar e reproduzir o que fosse produzido antes de chegar à escola pelo Estado.
Contudo, como o próprio autor acaba explicitando, tal perspectiva remete a um estado de coisas vivido em uma “ideia totalitária”. Dito de forma mais clara, o exemplo utilizado tem como referência situações que só podem ser vivenciadas na experiência de um Estado totalitário. Guilherme e Picoli, corroboram com essa asserção e ajudam a deixar claro que “a neutralidade ideológica proposta pelo ESP tem um viés totalitário, haja vista que na democracia só é possível neutralidade crítica, na qual a própria democracia é uma posição política e um valor que se sobrepõe aos demais” (2018, p. 19). Ou seja, uma sociedade que se pretende democrática não pode se perder por caminhos onde a liberdade pública venha a ser dissolvida pela tirania política. A democracia “se qualifica como espaço da deliberação conjunta, através da qual os homens, na medida em que capazes de ação e de opinião, tornam-se interessados e responsáveis pelas questões que dizem respeito a um destino comum” (TELLES, 1990, p. 37).
Percebe-se, portanto, que o raciocínio proposto por Nagib, no trecho supracitado, conduz à imaginação de uma ordem estabelecida “pelo legislador” de um “Estado” inserido em uma ideia totalitária que obrigaria os “professores” como “servidores” deste Estado a obedecerem ‘a religião’ e ‘a moral’ (ambos os termos, vale salientar, colocados no singular) porque estariam “sujeitos ao princípio da estrita legalidade”. Ainda que o autor deixe claro que é “para efeito de raciocínio”, é difícil entender por que utilizar este exemplo para se chegar ao objetivo de fazer uma crítica à autonomia dos professores, pois Nagib, no parecer, busca mostrar que, inserido em uma base democrática, o Escola sem Partido poderia ser entendido como constitucionalmente viável. Haja vista que os discursos não só refletem perspectivas de mundo, mas ajudam a criá-las (FAIRCLOUGH, 2003, p. 124), não há como não considerar o direcionamento ideológico do autor.
Aqui vale pôr em destaque outro trecho da entrevista feita ao professor Alcebíades, adepto da religião espírita, no qual responde a uma pergunta sobre como ele via a relação entre educação e direitos humanos. Eis o trecho:
(...) a escola, ela nunca vai deixar de ser plural. A não ser, lógico, se “deuzulivre” a gente entrasse num sistema assim totalmente dos anos sessenta, setenta, aquela ditadura assim extremista mesmo, que venha literalmente a retirar propositadamente certos sujeitos da escola. Mas, já é por si só um espaço plural, ela precisa ser reconhecida e valorizada nessa pluralidade.
Ele afirma que a escola já é um espaço constituído por “pluralidade” e a única forma de fazer com que ela deixasse de ser plural seria se viessem “literalmente a retirar propositadamente certos sujeitos da escola”, o que só poderia ocorrer dentro de um regime político que ele chama de “ditadura, assim extremista mesmo” e, fazendo referência a um período inserido no contexto da Guerra Fria, em suas palavras, um “sistema assim totalmente dos anos sessenta, setenta”. Se a sociedade é plural, o ideal é que não só se busque uma forma de Estado e formas de fazer política que sejam capazes de representar isso, mas também um modelo de educação que busque formar cidadãos que respeitem diversas formas de manifestações culturais, tipos diferentes de religião e de grupos sociais.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, a história do catolicismo, religião oficial da coroa lusitana, confunde-se com a história da colonização portuguesa no Brasil. É preciso considerar não só o quanto a religião católica esteve presente na formação do povo brasileiro, mas também efeitos da própria presença de adeptos desta religião no campo político nacional. Na atualidade, utilizando critérios embasados na fé, como guia de suas propostas, essas forças apontam para uma ideia de continuidade com o passado colonial, no qual os limites entre a religião oficial do país e a política pareciam ser mais tênues. Isso tem se intensificado com o movimento católico carismático, esfera do catolicismo imbuída de forte misticismo e com claras pretensões a ocupar espaços relativos a poder.
Colaborando para o crescimento da força do fundamentalismo religioso no campo político brasileiro nos últimos anos, destaca-se o padrão evangélico que tem sido produzido junto à concepção neopentecostal de fé embasada na teologia da prosperidade. A partir do neopentecostalismo, como argumentamos neste artigo, criou-se um modelo novo de membro da igreja protestante. Este, ao invés de querer se separar das coisas do mundo para se aproximar das coisas que seriam de Deus (como anteriormente pensava o pentecostal), cada vez mais acredita que tudo pertence a Deus e a seus filhos, os quais devem prosperar e ocupar espaços de poder dentro da sociedade para moldá-la conforme os valores de sua fé, critérios considerados legítimos para guiar o povo.
Embora o fundamentalismo religioso de forma isolada não explique totalmente o que significa o Escola sem Partido, haja vista que este é formado por uma multiplicidade de discursos e de visões de mundo que vão para além da esfera religiosa, não se pode negar que os dois possuem uma estreita relação. Nossa investigação nos leva a concluir que o ESP pode ser entendido, em grande medida, como uma estratégia atual de afirmação de fundamentalistas religiosos que procuram dominar a política e a educação visando construir estruturas que tornem possível a constituição paulatina de um modelo de sociedade que seja o reflexo de suas crenças. É possível concluir ainda que tal perspectiva aponta para a compreensão, não só do fundamentalismo religioso, mas do próprio Programa Escola sem Partido, como elementos que ameaçam a democracia e uma concepção de sociedade plural em nosso país, sobretudo no que diz respeito à existência de grupos minoritários que não baseiam suas condutas em princípios de uma doutrina religiosa dominante.
Deste modo, é preciso que a sociedade brasileira esteja atenta para pensar que tipo de educação que ela deseja. A formação dos cidadãos em um território bem como o modo como se organizam as instituições de ensino podem refletir o caráter, autoritário ou democrático, do Estado. As tradições culturais no Brasil, sejam elas religiosas ou não, precisam ser respeitadas e pensadas dentro de uma concepção de pluralidade e de laicidade. Portanto, para se fortalecer uma concepção democrática de mundo, é fundamental se buscar reforçar um modelo de educação que seja capaz de dialogar com isso.
Esperamos que as conclusões às quais chegamos neste artigo possam inspirar outras investigações relacionadas ao tema. Pesquisas que levem a refletir, por exemplo, como discursos fundamentalistas (como os do Escola Sem Partido) propagam-se em redes sociais. Fazem-se necessárias mais investigações que ajudem a pensar como estes discursos podem reforçar formas de desigualdade já presentes na cultura brasileira, como racismo e sexismo, e em que medida é possível a convivência disto como Estado Democrático de Direito.
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