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Recepción: 26 Junio 2020
Aprobación: 28 Septiembre 2020
Resumo: O presente artigo propõe uma reflexão acerca dos obs- táculos representados pela lei 13429/2017, que amplia a possibilidade de contratação de mão de obra terceiriza- da, às políticas públicas de combate ao trabalho escravo contemporâneo pelo Estado Brasileiro. A referida lei é analisada no contexto de retrocesso das atividades de enfrentamento à referida violação ocorrido a partir de 2014. Parte-se da construção do conceito de trabalho es- cravo contemporâneo, dos debates que se construíram em torno do tema durante esse período que se inicia na década de 1980 e que se materializou no artigo 149 do Código Penal Brasileiro. Além do mais, as especifici- dades do conceito de trabalho escravo contemporáneo previstas na legislação brasileira são justapostas aos con- ceitos utilizados por organizações internacionais a fim de que se delineiem de forma mais precisa os elementos que constituem o trabalho escravo no Brasil. A partir daí, o presente artigo traça um histórico do enfrentamento à prática do trabalho escravo realizado pelo Estado Bra- sileiro a partir do momento em que ele reconheceu a existência de tal violação em seu território. O presente artigo identificou períodos de avanços e de retrocessos no histórico do combate ao trabalho escravo no Brasil. Entre os retrocessos que se identificaram, a terceirização se apresenta como elemento de especial importância. Primeiro porque antes mesmo da alteração legislativa que ampliou a possibilidade de terceirização, ela já re- presentava mecanismo utilizado pelas empresas a fim de submeterem trabalhadores a condições de escravidão contemporânea. Segundo, porque a possibilidade de ter- ceirização da atividade-fim, criada pela promulgação da referida lei, altera substancialmente a forma de responsa- bilização das empresas por violações ocorridas em suas cadeias de produção. Portanto, inserida nesse contexto de retrocessos quanto à atuação do Estado Brasileiro no sentido de promover o trabalho decente e a eliminação do trabalho escravo em seu território, esse artigo analisa os principais efeitos da ampliação da terceirização nas políticas públicas de combate ao trabalho escravo con- temporâneo no Brasil.
Palavras-chave: trabalho escravo contemporâneo, terceirização trabalhista, violação a direitos humanos, políticas de promoção do trabalho decente, direitos sociais.
Abstract: This article proposes a reflection on the obstacles represen- ted by Brazilian Act n. 13429/2017, which expands the pos- sibility of contracting outsourced labor, to public policies to combat contemporary slave labor by the Brazilian State. The referred law is analyzed in the context of the retrogres- sion of the activities to confront the referred violation that occurred from 2014. It starts from the construction of the concept of contemporary slave labor, from the debates that were built around the theme during this period that begins in the 1980s and which were materialized in the article 149 of the Brazilian Penal Code. Furthermore, the specifics of the concept of contemporary slave labor provided for in Brazilian legislation are juxtaposed to the concepts used by international organizations in order to more precisely delineate the elements that constitute slave labor in Brazil. Thereafter, this article traces a history of confronting the practice of slave labor carried out by the Brazilian State from the moment that it recognized the existence of such a viola- tion in its territory. The present article identified periods of advances and setbacks in the history of combating slave la- bor in Brazil. Among the setbacks that have been identified, outsourcing presents itself as an element of special impor- tance. First, even before the legislative change that expan- ded the possibility of outsourcing, it already represented a mechanism used by companies in order to subject workers to conditions of contemporary slavery. Second, because the possibility of outsourcing the core activity, created by the enactment of the aforementioned law, substantially alters the way companies are held accountable for violations in their production chains. Therefore, inserted in this context of setbacks regarding the Brazilian State’s action to promo- te decent work and the elimination of slave labor in its terri- tory, this article analyzes the main effects of the expansion of outsourcing in public policies to combat contemporary slave labor in Brazil.
Keywords: contemporary slavery labor, labor outsourcing, violation of human rights, policies to promote decent work, social rights.
SUMÁRIO
Introdução; 2.1. A legislação a respeito do tema: trabalho escravo contemporâneo em acordos internacionais e no direito interno; 2.2. Histórico da construção do concei- to de trabalho escravo contemporâneo no Brasil; 2.3. A utilização do trabalho escra- vo durante a colonização brasileira, seus efeitos e a distinção entre o trabalho escravo contemporâneo e o trabalho escravo colonial; 2.4. Afinal, como se define “trabalho escravo contemporâneo”? 3. Combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil; 3.1. Reconhecimento, por parte do estado brasileiro, da existência de trabalho escravo contemporâneo em seu território; 3.2. Políticas Públicas de Combate ao Trabalho Es- cravo Contemporâneo no Brasil; 3.3. Retrocessos e dificuldades do combate ao traba- lho escravo no Brasil; 3.4. A terceirização e o trabalho escravo no Brasil; 4. Conclusão; 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
De acordo com o relatório ”Índice Global de Escravidão”, publicado pela fundação Walk Free em 2018 e apresentado à Organização das Nações Unidas em julho daquele mesmo ano, no Brasil existem cerca de 370 mil pessoas submetidas a condições de escravidão contemporânea.1 Nas duas últimas décadas, mais de 50 mil trabalhadores foram resgatados de condições de escravidão contemporânea a partir da atuação do Estado Brasileiro.2A eliminação dessa prática violadora de direitos humanos é objetivo de diversas organizações internacionais das quais o Brasil faz parte, entre elas a Orga- nização dos Estados Americanos, a Organização Internacional do Trabalho e a Organi- zação das Nações Unidas.
O presente artigo propõe uma análise do enfrentamento de tal violação pelo Esta- do Brasileiro, bem como dos impactos de alterações legislativas recentes nas políticas estatais de promoção do trabalho decente. Como ponto de partida, ele aborda a cons- trução do conceito de trabalho escravo contemporâneo no Brasil. Tal conceito não é homogêneo e sua definição precisa é relevante para que seja realizada análise rigorosa quanto ao tema proposto. Além disso, pretende-se investigar o combate ao trabalho escravo que o Estado Brasileiro tem realizado nas últimas décadas, os avanços e retro- cessos nas políticas públicas de enfrentamento a essa violação de direitos, traçando a relação entre as novas formas de subcontratação de mão de obra e a exploração do trabalho em condições aviltantes à dignidade da pessoa humana.
Os contornos desse conceito são delineados tanto a partir de acordos e convenções internacionais dos quais o Brasil faz parte, quanto a partir da legislação interna. Faz-se também um breve histórico do conceito de trabalho escravo na legislação brasileira, pois essa temática contribui com a abordagem do problema apresentado. Além disso, importa estabelecer o conceito de “trabalho escravo contemporâneo” por meio da dife- renciação existente entre esse e o “trabalho escravo colonial”. Vigente formalmente no Brasil por quase quatro séculos, essa distinção se faz importante por manterem ambos, o trabalho escravo contemporâneo e o trabalho escravo colonial, de certa forma, uma relação de causa e efeito e de continuidade histórica. Diante dessa discussão, apresen- ta-se finalmente, o conceito de trabalho escravo com o qual se molda a análise constru- ída durante o presente artigo.
Definido o conceito de trabalho escravo contemporâneo, passa-se à discussão das políticas de combate ao trabalho escravo que o Brasil tem levado a cabo a fim de cum- prir tratados e acordos internacionais. O reconhecimento por parte do Estado brasileiro quanto à existência de trabalho escravo em seu território levou ao estabelecimento de políticas públicas que possibilitaram o resgate de milhares de trabalhadores dessa situ- ação nas últimas duas décadas. A alteração do aparato legal também caminhou nesse sentido, por meio da adequação do Código Penal, especificamente seu artigo 149, à nova realidade social. Outras iniciativas como a criação da lista suja de empregadores e do Grupo Móvel de Combate ao Trabalho Escravo também são trazidas à tona para a compreensão do estado em que se encontra o combate ao trabalho escravo no país.
Quanto à política de combate ao trabalho escravo, além dos avanços a serem anali- sados, apresentam-se também diversas iniciativas que representam obstáculos para a erradicação dessa prática no Brasil. Uma delas foi a extinção do Ministério do Trabalho e Emprego, responsável direto pela elaboração e implementação de políticas de comba- te ao trabalho escravo contemporâneo no âmbito do poder executivo. A vinculação da Secretaria de Inspeção do Trabalho ao Ministério da Economia a partir de 2019 repre- senta, claramente, subordinação das referidas políticas aos interesses mercadológicos. A aprovação da lei 13429/2017, que amplia as possibilidades de terceirização de mão de obra, também é identificada como obstáculo às políticas de combate ao trabalho escravo na medida em que ela incentiva a pulverização da cadeia produtiva e dificulta a responsabilização de empresas por essa prática violadora.
Pretende-se analisar a relação existente entre a prática da terceirização e a submis- são de trabalhadores a condições de escravidão contemporânea. Dessa maneira, por- tanto, inserida nesse contexto de retrocessos quanto à atuação do Estado Brasileiro no sentido de promover o trabalho decente e a eliminar o trabalho escravo em seu terri- tório, esse artigo analisa os principais efeitos da ampliação da possibilidade de tercei- rização de mão de obra nas políticas de combate ao trabalho escravo contemporâneo no Brasil.
2. CONCEITO DE TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂ- NEO
A polissemia do conceito “Trabalho escravo contemporâneo” é evidente. Ele não é utilizado da mesma maneira pelos acordos e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário e nem tampouco pela legislação interna que trata do tema. Por isso, nesse item, será analisada a maneira como a legislação brasileira trata do assun- to e como o fazem as normas de organizações internacionais das quais o Brasil faz parte. Busca-se, ainda, percorrer o histórico de debates que, desde a década de 1980, contribuíram para o estabelecimento do conceito de trabalho escravo contemporâneo expresso no artigo 149 do Código Penal Brasileiro. Ademais, importa estabelecer uma diferenciação entre os conceitos de trabalho escravo colonial e trabalho escravo con- temporâneo, a fim de que os limites e contornos deste se apresentem de forma mais delineada.
2.1. A LEGISLAÇÃO A RESPEITO DO TEMA: TRABALHO ES-CRAVO CONTEMPORÂNEO EM ACORDOS INTERNACIO- NAIS E NO DIREITO INTERNO
O artigo 2º da Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), apro- vado em 1930 na 14ª Conferência Internacional do Trabalho, que entrou em vigor no dia 1º de maio de 1932, define “trabalho escravo contemporâneo” como sendo “todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob a ameaça de qualquer penalidade e para o qual ele não se ofereceu de espontânea vontade”.3 O artigo 1º, por sua vez, obriga todos os Estados signatários a suprimirem o trabalho forçado ou obrigatório de seu território o mais breve possível. Outra Convenção da OIT versa sobre o tema: a de nº 105, aprovada 27 anos depois da primeira.4 Ela também impõe aos Estados membros a obrigação de abolir o trabalho forçado em todas as suas formas possíveis.
O Brasil ratificou ambas as Convenções. Cita-se, também, o Pacto de São José da Costa Rica (a Convenção Americana sobre Direitos Humanos), de 1969, por meio do qual, em seu artigo 6º, os países signatários se comprometem com a eliminação da servidão e da escravidão em todas as suas formas. Ela foi ratificada pelo Brasil em 1992.
Na legislação brasileira, o trabalho escravo contemporâneo tem seu conceito es- tabelecido pelo artigo 149 do Código Penal, que elenca as seguintes hipóteses de ocorrência: “quer submetendo-o [empregado] a trabalhos forçados ou a jornada exaus- tiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”.5 Dessa forma, são quatro as hipóteses de configuração do trabalho escravo contemporâneo no Brasil: 1) trabalhos forçados; 2) Jornada exaustiva; 3) condições de- gradantes de trabalho e 4) restrição à liberdade de locomoção. O § 1º do mesmo artigo traz as hipóteses correlacionadas às condições análogas à de escravidão, quais sejam: cerceamento do uso de transporte do trabalhador, manutenção de vigilância ostensiva ou retenção da documentação do trabalhador, todas as três hipóteses relacionadas à finalidade de manter o empregado no local de trabalho. Importante observar que o conceito de trabalho escravo expresso na legislação brasileira é apoiado tanto pela OIT quanto pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, por meio de sua relatora para formas contemporâneas de escravidão.
Importa ressaltar que resoluções de organizações internacionais ou legislações in- ternas diversas têm utilizado nomenclaturas distintas para tratar do mesmo tema. A OIT, a ONU e diversos países da América Latina utilizam o termo “trabalho forçado” ou “trabalho obrigatório”. Já o Pacto de São José da Costa Rica fala em “servidão e escravi- dão” no mesmo sentido da OIT quando fala de “trabalho forçado ou obrigatório”. Esses conceitos, “trabalho forçado ou obrigatório” e “servidão ou escravidão” possuem signi- ficados equivalentes.
Já a legislação brasileira utiliza o termo “trabalho análogo ao de escravo” (art. 149, CP) e amplia o conceito de trabalho escravo, incluindo o “trabalho forçado” como uma de suas modalidades, conforme abordado acima. Já as resoluções administrativas do Ministério do Trabalho preferem a utilização do termo “trabalho escravo”.
Trabalho forçado, portanto, conceito trazido pela OIT e pela ONU, é uma das moda- lidades de trabalho escravo reconhecida pelo artigo 149 do Código Penal. Neste artigo, utiliza-se “trabalho forçado” quando em referência às normas da OIT (pois é a forma como ela mesma trata do tema). Já quando faz referência ao Código Penal, prefere-se a utilização da nomenclatura “condições análogas às de escravo”, que é um conceito mais amplo, previsto no artigo 149 desse diploma legal. Entretanto, ao analisar a atividade administrativa do Estado brasileiro, utiliza-se a expressão “trabalho escravo contempo- râneo”, porque é dessa maneira que tratam as resoluções e normas regulamentares do antigo Ministério do Trabalho e da atual Secretaria de Inspeção do Trabalho. Portan- to, apesar de uma pequena nuance semântica (já que o conceito de “trabalho escravo contemporâneo” do Código Penal Brasileiro é mais amplo do que os conceitos “traba- lho forçado”, “trabalho obrigatório”, “servidão e escravidão”, previstos em resoluções de organizações internacionais diversas), a utilização desses conceitos possui, para esse trabalho, significados equivalentes.
2.2. HISTÓRICO DA CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE TRA- BALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL
Do ponto de vista teórico, a construção do conceito de trabalho escravo contempo- râneo tem suas raízes na década de 1980, quando Esterci o relaciona com a peonagem. Para ela, o “aliciamento”, ou seja, o exercício da atividade laboral distante do local de origem dos trabalhadores, e a escravidão por dívida, também caracterizam o trabalho escravo contemporâneo.6 Referida autora observa que a peonagem não poderia ser considerada uma forma de trabalho tipicamente assalariada, pois ela possui uma forma de subordinação do trabalho “distinta do assalariamento tipicamente capitalista, consi- derando a instituição da dívida, a figura do intermediário e o contrato de remuneração por produção como elementos que compõem a relação”.7
Nota-se que o conceito de trabalho escravo expresso pela autora possui elemen- tos também presentes no artigo 149 do Código Penal Brasileiro, conforme se observou no item anterior. Já na década seguinte, outro autor se tornou referência no campo da construção teórica do conceito “trabalho escravo contemporâneo”. José de Souza Martins, assessor da Comissão Pastoral da Terra, entidade não governamental enga- jada no combate ao trabalho escravo no Brasil naquele momento, também parte da “peonagem” para construir o referido conceito. Para Martins, a peonagem representa continuidade da escravidão colonial, “marcada por extrema violência física contra os trabalhadores, em alta proporção, culminando com o assassinato daqueles que procu- ram fugir”.8
Moisés Silva critica a formulação teórica de Martins pelo fato de que ela considera a peonagem, e consequentemente o trabalho escravo contemporâneo, elementos con- tingenciadores da acumulação capitalista. Para Martins, havia uma contradição entre a utilização do trabalho escravo e a produção em série estabelecida pela revolução indus- trial. Estaria, portanto, o trabalho escravo, ligado apenas à produção agrícola, à lavoura e a formas de trabalho pré-capitalistas.9 Silva, por sua vez, não via contradição entre o capitalismo e a utilização de mão de obra escrava já que no período de maior utiliza- ção da escravidão contemporânea no Brasil, a década de 1970, “as empresas escravistas encontravam terreno amplamente favorável tanto no que diz respeito à infraestrutura, com a abertura de estradas, quanto no que diz respeito a subsídio e concessão de cré- dito”.10 Portanto, de acordo com essa crítica, a escravidão contemporânea se adequa e se adapta perfeitamente ao modo de produção capitalista, inclusive em sua faceta mais atual, informatizada, tecnológica, em série e em cadeias de fornecimento, não re- presentando, assim, obstáculo para a modernização do modo de produção capitalista.
Silva também adere outro elemento à análise de Martins. Para o primeiro, não era apenas a violência física que caracterizava a peonagem e, portanto, escravidão con- temporânea. Além dela, “a economia moral, que constrangia o trabalhador ao esforço de quitação da dívida, também funcionou como elemento imprescindível na estrutura do processo de peonagem”.11 Esse elemento da “quitação da dívida” é importante para a compreensão da escravidão contemporânea no Brasil, sendo prevista inclusive no caput do artigo 149 do Código Penal Brasileiro.
No início dos anos 2000, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) passou a compreender o trabalho escravo contemporâneo a partir da sua relação com a coerção, quer fosse ela física ou psicológica, e a consequente sujeição do trabalhador. Para referida Comis- são, a escravidão contemporânea contém “elementos que caracterizam o cerceamento da liberdade, seja por meio de mecanismos de endividamento, seja pelo uso da força (proprietários ou funcionários armados, ocorrência de assassinatos, espancamentos e práticas de intimidação)”.12
Em 2002, a Organização Internacional do Trabalho trouxe outra contribuição para a construção do conceito analisado. Segundo a OIT, trabalho escravo se relaciona obje- tivamente com o cerceamento da liberdade, que pode se dar das seguintes maneiras: servidão por dívida, retenção de documentos, dificuldade de acesso ao local e presença de guardas armados. Conforme a OIT, “essas características são frequentemente acom- panhadas de condições subumanas de vida e de trabalho e de absoluto desrespeito à dignidade de uma pessoa”.13 Tal conceito de trabalho escravo já se aproxima bastante do que veio a ser, um ano depois, o conceito previsto na letra da Lei do Código Penal Brasileiro.
2.3. A UTILIZAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO DURANTE A COLONIZAÇÃO BRASILEIRA, SEUS EFEITOS E A DISTINÇÃO ENTRE O TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO E O TRABALHO ESCRAVO COLONIAL
Ainda com relação ao conceito de “trabalho escravo contemporâneo”, é importan- te estabelecer uma diferença sucinta entre este e sua forma análoga estabelecida no Brasil durante o período colonial. Entre esses modelos de exploração extrema do tra- balho alheio existem certas semelhanças, e também uma relação de causa e efeito. O Brasil foi o último país do continente americano a abolir formalmente a escravidão de seu território e esse fenômeno, por certo, em três séculos de escravização, deixou mar- cas evidentes na sociedade brasileira, impactando a relação de trabalho nos anos que seguem a 1888, influenciando inclusive as relações sociais que definem a escravidão contemporânea.14
Os indígenas foram os primeiros a serem utilizados em trabalhos forçados pelos portugueses que se aproveitaram dessa prática já existente entre os grupos autóctones antes de sua chegada.15 A escravidão indígena conviveu com a escravidão de origem africana e passou a ser regulamentada no decorrer das décadas que se seguiram ao descobrimento. Tanto que, em 30 de julho de 1566, Mem de Sá publicou uma Lei que tratava da escravidão voluntária dos nativos, onde “os índios só poderiam vender-se a si mesmos em caso de extrema necessidade”.16 Entre os anos de 1755 e 1758, a escravidão indígena foi abolida no Brasil por ordem do Marquês de Pombal com a justificativa de que eram seres em “estado de feras” e, portanto, inaptos ao trabalho.17 Em 1755, a Lei foi implementada no Estado do Grão Pará e, três anos depois, em todo o território da colônia.18
A escravidão negra, contudo, perdurou até 13 de maio de 1888, quando da assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel. Os primeiros desembarques de negros africanos datam de meados do século XVI para trabalharem na lavoura de cana-de-açúcar.19 A lucratividade do empreendimento escravista demonstra-se pelos números. Entre os anos de 1576 a 1600, quarenta mil escravos foram trazidos da África para o Brasil; nos vinte e cinco anos seguintes, cento e cinquenta mil.20 Dos doze milhões de cativos que cruzaram o Atlântico, cinco milhões tinham como destino a colônia portuguesa, ou seja, entre todos os países das Américas, o Brasil foi o país cuja escravidão perdurou mais tempo e o destino que recebeu maior número de escravizados. Tudo isso fez com que a escravidão colonial impactasse fortemente o modelo que se seguiu à sua aboli- ção, em 1888, e perdurasse até os dias atuais, tendo inclusive, como um de seus efei- tos, a desigualdade social aguda, a miséria extrema e, por consequência, a escravidão contemporânea.
Um dos efeitos dos três séculos de escravidão colonial no Brasil é a desigualdade de renda. Segundo dados do relatório da Organização Não Governamental OXFAM, pu- blicado em 2018, o Brasil está entre os dez países com maior desigualdade de renda do mundo.21 Tudo isso cria um terreno fértil para a prática escravista contemporânea no país. A intensa concentração de renda, resultado de três séculos de escravidão co- lonial, cria uma sociedade completamente desigual, com indivíduos miseráveis ao ponto de servirem de mão de obra extremamente barata, sendo submetidos às con- dições expressas no artigo 149 do Código Penal, qualificadoras do trabalho escravo contemporâneo.22
A fim de melhor construir o conceito de trabalho escravo contemporâneo com o qual se analisarão as questões objeto dessa investigação, interessa estabelecer um paralelo entre ele e a escravidão colonial. Segundo uma das maiores autoridades da atualidade a respeito do tema, Kevin Bales, sociólogo estadunidense, as principais di- ferenças entre a escravidão colonial e a contemporânea são as seguintes: na primeira, o indivíduo configurava-se como propriedade legal de seu senhor e, por esse motivo, tanto a aquisição da mão de obra quanto a manutenção dos escravos ficavam a cargo daqueles que os escravizavam; já na escravidão contemporânea, por outro lado, o in- vestimento para aquisição de mão de obra é quase zero, assim como para sua manu- tenção. Bales afirma que um escravo, em 1850, era tido como artigo caríssimo de alto investimento, que denotava distinção de classe.23
Entretanto, algumas características são coincidentes entre os modelos de ambos os períodos: ameaças, violência psicológica, coerção física, punições exemplares e, até assassinatos.24
2.4. AFINAL, COMO SE DEFINE “TRABALHO ESCRAVO CON- TEMPORÂNEO”?
Segundo a Anti Slavery Internacional (ASI), uma organização não governamental que atua na repressão de condições análogas a de escravidão em todo o mundo, a es- cravidão contemporânea é definida a partir dos seguintes elementos que a distinguem de outras formas de abuso a direitos fundamentais: trabalho forçado sob ameaça; con- trole ou exercício de propriedade por um empregador por meio de abuso mental ou físico, tratamento desumanizados e restrição ou limitação da liberdade.25
Para Girardi, a definição de escravidão contemporânea é o “trabalho forçado, por meio de abuso e opressão física ou psicológica; desumanização do trabalhador, tratado como um objeto, tendo ofendida sua dignidade humana; coação física ou restrições no direito de ir e vir”.26
Para Sento-Sé, o conceito de trabalho escravo contemporâneo se relaciona com a restrição à liberdade de locomoção, violação a garantias fundamentais (como situações de jornada exaustiva, de trabalho degradante, retenção de documentos, retenção do trabalhador no local de trabalho, dívida contraída em decorrência do contrato de tra- balho ou vigilância ostensiva).27 Nesse sentido, referido autor define o trabalho escravo contemporâneo como sendo:
[…] aquele em que o empregador sujeita o empregado a condições de trabalho degradantes, inclusive quanto ao meio ambiente em que irá realizar sua ativi- dade laboral, submetendo-o, em geral, a constrangimento físico e moral que vai desde a deformação do seu consentimento ao celebrar o vínculo emprega- tício, passando pela proibição imposta ao obreiro de resilir o vínculo quando bem entender, tudo motivado pelo interesse mesquinho de ampliar os lucros às custas da exploração do trabalhador.28
Diante das múltiplas possibilidades de definição do conceito de trabalho escravo contemporâneo e de suas características específicas que o distinguem do trabalho es- cravo colonial (apesar de ter sido fortemente impactado por ele), importa tecer mais algumas observações. De acordo com a discussão teórica que se tem travado em torno do tema, e com base na legislação que baliza a atuação do Estado brasileiro no com- bate a esse crime, considera-se escravidão contemporânea qualquer atividade laboral para a qual o trabalhador não tenha se apresentado voluntariamente ou que, durante o exercício da atividade, tenha toda ou parte de sua autonomia da vontade limitada em razão de elementos alheios à sua vontade, quer sejam: restrição à sua liberdade de locomoção por qualquer motivo, retenção de documentos, contração de dívida em razão da atividade laboral.
O conceito de escravidão contemporânea dotado neste artigo também se relacio- na com fatores que atentem contra a dignidade da pessoa humana, como condições degradantes de trabalho, ou que deteriorem a qualidade de vida como jornadas exaus- tivas e extenuantes. Além disso, se relaciona com mecanismos de produção de dívida dos trabalhadores, aliciamento e tráfico de pessoas, consequente isolamento geográfi- co e condições degradantes de trabalho.
Dessa forma, o conceito de trabalho escravo que se considera mais coerente, utili- zado neste artigo, coincide com aquele expresso no artigo 149 do Código Penal. Isso porque a letra da Lei é mais ampla até mesmo que as Convenções da OIT. A legislação brasileira adequa o conceito da OIT às particularidades nacionais. Ao abranger outras formas que não apenas o trabalho forçado ou a restrição à liberdade de locomoção, a Lei desconstruiu as noções coloniais de “escravo” e de “trabalho escravo”, que, apesar de não mais existirem, foram cristalizadas no imaginário nacional através do processo de escravidão colonial vigente até 1888. Esse conceito demonstra-se absolutamente contemporâneo ao inserir a jornada exaustiva como um elemento caracterizador do trabalho escravo contemporâneo.
Essa definição mais ampla de trabalho escravo contemporâneo, que se expressa na letra do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, também se adequa perfeitamente ao que estabelece a Constituição da República Federativa do Brasil, pois apresenta a submissão de trabalhadores a condições degradantes de trabalho como outro elemen- to caracterizador do trabalho escravo contemporâneo. Sendo assim, o artigo 149 do Código Penal caminha de mãos dadas com o princípio da dignidade da pessoa hu- mana, que possui previsão na Carta Maior, em seu artigo 1º, no inciso III. A dignidade da pessoa humana é reconhecida como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Nesse sentido, um conceito de trabalho escravo que seja coerente com os ditames da Constituição Brasileira deve transcender a identificação de trabalho escravo apenas com a restrição à liberdade de locomoção e com o trabalho forçado. Contempo- raneamente, trabalho escravo se apresenta de outras maneiras, como, por exemplo, a utilização da mão de obra alheia de forma a submeter o trabalhador a condições ofen- sivas à sua dignidade.
A ordem econômica, segundo prevê a Carta Magna, tem como um de seus pilares a valorização do trabalho humano, não havendo, assim, desenvolvimento econômico que dela prescinda. O trabalho não é, portanto, destituído de valor, seu custo não é zero. Pelo contrário, o trabalho deve ser valorado ao ponto de “garantir a todos uma existência digna, conforme os ditames da justiça social”, assim observado na Constitui- ção, em seu artigo 170. No inciso IV do mesmo artigo, está disposto que o valor social do trabalho é justaposto ao da livre iniciativa, ambos elevados à categoria de funda- mentos da República Federativa do Brasil. Portanto, atentar contra a valorização social do trabalho significa atentar contra um dos próprios fundamentos da República.
Diante disso, o conceito de trabalho escravo contemporâneo mais coerente com os pressupostos constitucionais é aquele expresso no Código Penal e que se define a partir de quatro elementos principais, tais como, trabalho forçado, restrição à liberdade de locomoção, violação à dignidade do trabalhador e prática de jornadas extenuantes de trabalho. Além dessas, tem-se as situações que se equiparam às condições de escra- vidão contemporânea, expressas no próprio artigo 149, § 1º, incisos I e II, quais sejam: cerceamento do uso de transporte ou retenção de documentos do trabalhador e ma- nutenção de vigilância ostensiva.
3. COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂ- NEO NO BRASIL
A política de combate ao trabalho escravo no Brasil nasceu a partir do reconheci- mento, por parte do Estado brasileiro, da existência dessa prática em seu território. Com isso, políticas de combate ao trabalho escravo puderam ser implementadas com o fim de enfrentá- lo. A condenação do Estado brasileiro pela OEA por descumprir a obriga- ção de proteger todos aqueles submetidos a condições de escravidão contemporânea representou um marco temporal importante, que deu início a atuação estatal com ob- jetivo de combater a referida violação.
Cabe ainda destacar questões fundamentais para a análise, quais sejam, a relação entre o trabalho escravo contemporâneo e seu cometimento em cadeias de produção, bem como sua relação com a terceirização. Esse fenômeno é inserido no contexto da reforma trabalhista, que flexibilizou os contratos, criando dificuldades para a responsa- bilização das grandes empresas por submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo. Além da terceirização, outros elementos que dificultaram o combate ao trabalho escravo contemporâneo serão abordados a seguir.
3.1 RECONHECIMENTO, POR PARTE DO ESTADO BRASILEIRO, DA EXISTÊNCIA DE TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO EM SEU TERRITÓRIO
Em 1995, o Estado brasileiro reconheceu, perante os organismos internacionais, especialmente a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização Interna- cional do Trabalho, a existência de “trabalho escravo contemporâneo” em seu ter- ritório.29 Foi um dos primeiros países a admitir esse fato, segundo a OIT.30 Isso se deu no curso do processo que se iniciou em 1994, por meio do qual o Brasil foi denunciado pela CPT e pela ONG Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) à OEA por não cumprir a obrigação de proteger todos aqueles submetidos a condições análogas à escravidão, permitindo sua permanência por omissão ou cumplicidade.
Trata-se do caso “Zé Pereira”, que ganhou repercussão mundial. Nascido na cidade de São Miguel do Araguaia, interior de Goiás, o ex escravo foi com o pai para o Pará aos oito anos de idade para trabalhar com ele na Fazenda Espírito Santo, em Sapucaia. Ten- do sido submetido a condições análogas às de escravidão, em dezembro de 1989, com 17 anos, tentou fugir na companhia de outro trabalhador, chamado de “Paraná”. Foram perseguidos pelos “capangas” da fazenda, que lhes atiraram pelas costas. O tiro atingiu um dos olhos de Zé Pereira e Paraná faleceu nessa emboscada. Zé Pereira, sangrando, fingiu-se de morto e os dois corpos foram deixados em uma fazenda vizinha. Depois de algum tempo, mesmo sangrando, o sobrevivente caminhou até a sede da fazenda para pedir socorro. Na capital do Estado, Belém, foi submetido a tratamento em um dos olhos, mas não conseguiu recuperar sua visão. Além disso, denunciou o caso à Polícia Federal, mas não obteve qualquer resposta efetiva do órgão. Foi convencido a levar o caso às ONGs que apresentaram denúncia à OEA em 1994.31
3.2 POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO NO BRASIL.
O reconhecimento, por parte do Estado brasileiro, perante as organizações inter- nacionais, quanto à existência de trabalho escravo em seu território, e a posterior al- teração legal prevista no Código Penal possibilitaram uma série de políticas públicas estatais orientadas no sentido de combater o trabalho escravo contemporâneo.
Em 1995, no mesmo ano em que o Brasil reconheceu a existência do trabalho escra- vo em seu território, foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) no âmbi- to do Ministério do Trabalho, objetivando executar políticas de repressão e fiscalização desta prática no país. O GEFM foi essencial para que a OIT reconhecesse o Brasil como referência mundial no combate à exploração da mão de obra escrava.33 De acordo com as Nações Unidas, o GEFM resgatou, entre 1995 e 2017, mais de 50 mil trabalhadores de condições análogas à de escravidão no Brasil.34 Os GEFM são apontados pela OIT como um dos principais instrumentos implementados pelo Brasil para combater o trabalho forçado.35
Ainda no decorrer do processo contra o Brasil na Comissão Interamericana de Di- reitos Humanos (CIDH) da OEA, o país se comprometeu a julgar e punir os responsá- veis, adotando medidas para prevenir outros casos, além de reparar financeiramente os danos causados a Zé Pereira. Quatorze anos depois de sua fuga, Zé Pereira recebeu do Estado brasileiro a primeira indenização paga a um cidadão por ter trabalhado em regime de escravidão contemporânea, no valor de R$ 52 mil.36
Outro importante instrumento voltado ao enfrentamento do trabalho escravo no Brasil é a chamada “lista”. Criada em 2003, mantida a partir de então pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e pela Secretaria de Direitos Humanos, tal instrumento funciona como uma base de dados pública que contém os nomes das empresas que utilizaram trabalho escravo, flagradas pela Auditoria-Fiscal Trabalhista. Ao final do pro- cesso administrativo que apura tal irregularidade, as empresas têm seus nomes publi- cados na lista (atualizada semestralmente) onde permanecem por dois anos. Trata-se de um mecanismo importante, inclusive, para que fornecedores e compradores pos- sam controlar os riscos de trabalho escravo em suas cadeias de fornecimento, além de contribuir com o grau de conscientização das empresas e o controle por parte da sociedade, de seu comprometimento e responsabilidade socioambiental. Além disso, funciona também como instrumento de aprimoramento das ações de compliance das grandes empresas.
Segundo o artigo 41 do Decreto nº 8.420/2015, o “programa de integridade” (ou compliance) pode ser definido como o conjunto de políticas, diretrizes, mecanismos, procedimentos e normas internas de controle das empresas “com objetivo de detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos ilícitos praticados contra a administra- ção pública, nacional ou estrangeira”. Por esse motivo, a lista suja se apresenta como um importante mecanismo, em diversas frentes, tanto do ponto de vista da prevenção e repressão estatais, quanto como instrumento utilizado pelas próprias empresas a fim de evitar a ocorrência desse crime. Trata-se, portanto, de uma política bem-sucedida do Estado brasileiro.
A Proposta de Emenda Constitucional nº 81, aprovada em 2014 pelo Congresso Nacional, foi outra importante medida do Estado brasileiro no sentido de combater o trabalho escravo contemporâneo. É a chamada “PEC do Trabalho Escravo”, com a previ- são de expropriação do imóvel rural e urbano onde se flagrasse a prática desse crime. Apesar de carregar um conceito bastante estreito de trabalho escravo contemporâneo, por classificá-lo apenas como prática em que se observa restrição à liberdade de lo- comoção e trabalho forçado (não tendo previsto a caracterização de trabalho escravo contemporâneo por jornada exaustiva ou com condições degradantes de trabalho, como consta no artigo 184 do Código Penal Brasileiro), sua aprovação representou um avanço à época. Entretanto, em sua redação final, referida Emenda Constitucional (EC) incluiu dispositivo que autoriza a expropriação de propriedades rurais onde for consta- tada exploração de trabalho escravo, com consequente destinação fundiária à reforma agrária “na forma da Lei”. Isso fez com que não houvesse aplicação imediata da norma que passou a depender de regulamentação legal posterior, o que nunca houve.
A OIT Brasil financiou, a pedido da Secretaria de Direitos Humanos, em 2004, um estudo realizado por pesquisadores da ONG Repórter Brasil que identificou os setores afetados pelo trabalho escravo e as possíveis cadeias de fornecimento de cada setor. Com base na lista suja, construiu-se um mapeamento contendo 100 empregadores. Este documento revelou uma rede de 200 empresas nacionais e internacionais que se beneficiavam com produtos do trabalho escravo no Brasil. Com o resultado deste estudo em mãos, a OIT Brasil e o Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social lançaram, em parceria, em maio de 2005, o Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, comprometendo o setor empresarial a combater esta prática por meio de me- didas de controle das cadeias produtivas caracterizadas pela existência de fornecedo- res e compradores flagrados na prática de trabalho escravo. De acordo com o Instituto Pacto Nacional pela erradicação do trabalho escravo: “A punição econômica tem sido aliada efetiva na luta contra o trabalho escravo e decisiva para que o Brasil alcance re- sultados positivos no enfrentamento a esse problema”.37 A adesão do Banco Nacional para o Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e de outros bancos públicos e pri- vados tem sido considerada bastante positiva no sentido de restringir o financiamento de empresas que figurem na Lista Suja, assim como a adesão de grandes empresas que impõem restrições comerciais aos fornecedores flagrados na prática desse crime. Se- gundo o Comitê Gestor do Pacto, formado pela ONG Repórter Brasil, OIT, Instituto Ob- servatório Social e Instituto Ethos, em 2014, mais de 400 empresas já tinham aderido ao pacto, o que representava 35% do PIB brasileiro, além de funcionar como importante mecanismo de controle da prática desta violação na cadeia produtiva das empresas.38
3.3 RETROCESSOS E DIFICULDADES DO COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL
A despeito de todos os avanços na atuação do Estado brasileiro, como visto acima, no que se refere ao combate ao trabalho escravo, observa-se em 2014 um nítido ponto de inflexão dessas políticas. Até mesmo a OIT, que tecia elogios ao Brasil, passou a de- monstrar preocupação diante do novo cenário. Em 2017, o coordenador do programa de combate ao trabalho escravo da OIT no Brasil, Antônio Rosa, declarou que “o Brasil, a partir de hoje, deixa de ser referência no combate à escravidão que estava sendo na comunidade internacional”. Tal afirmativa se deu quando o Ministério do Trabalho editou um decreto que alterou o conceito de trabalho escravo, incluindo no rol de competências do ministro a inclusão de empresas na “lista suja”.39 Desde o fim de 2014, essa lista passou a sofrer diversos ataques do Poder Público quando o Supremo Tribu- nal Federal, em decisão liminar, impediu sua divulgação com base no fato de que ela teria sido instituída por portaria “carente de respaldo legal”. Sendo assim, os bancos públicos (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e Caixa Econômica Federal) suspenderam o veto de empréstimos a empresas que constavam na lista. Um dos instrumentos mais eficazes na repressão à exploração do trabalho escravo passou a perder sua importância.
A Portaria nº 1129, publicada pelo Ministério do Trabalho em 16 de outubro de 2017 com o pretexto de disciplinar as regras de concessão das parcelas do seguro-de- semprego aos trabalhadores resgatados de condições análogas às de escravo, trouxe um novo conceito de trabalho escravo contemporâneo, diferente daquele expresso no artigo 149 do Código Penal Brasileiro. Em seu artigo 1º, incisos I a III, referida portaria restringiu o conceito de escravidão contemporânea submetendo “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” à privação de liberdade ou consentimento da víti- ma, requisito este inexistente em Lei. Apesar de ter sido suspensa por liminar do STF em decisão da Ministra Rosa Weber, em sede da Ação Declaratória de Preceito Fundamental (ADPF 489), em 20 de outubro de 2017, a edição dessa Portaria demonstra a inclinação que o Estado Brasileiro passou a ter no que tange ao conceito de trabalho escravo.40
A edição dessa liminar causou reação contrária por parte da sociedade civil. Sin- dicatos, movimentos sociais, Ministério Público do Trabalho, e inclusive a OIT Brasil se posicionaram contra a portaria, a qual qualificaram como um retrocesso no combate ao trabalho escravo no Brasil. Segundo a OIT, a portaria implicaria enfraquecimento e limi- tação da inspeção trabalhista, da vulnerabilidade dos trabalhadores, além do “aumento do risco de que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU não sejam al- cançados no Brasil, no que se refere à erradicação do trabalho análogo ao de escravo”.41 Como resultado da ampla mobilização social contrária à Portaria nº 1129/2017, dois meses depois (dezembro/2017), o governo brasileiro recuou ao editar outro instrumen- to normativo, a Portaria nº 1293 do Ministério do Trabalho que, na forma da Lei, previa que os conceitos de jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho prescin-dem de restrição à liberdade de locomoção ou coação.
Outro elemento que revela retração na política de combate ao trabalho escravo no decorrer dos anos é a diminuição do número de equipes do grupo móvel de combate ao trabalho escravo, anteriormente vinculado ao Ministério do Trabalho. O GEFM foi instituído pela Portaria nº 265, de 06 de junho de 2002, demonstrando-se fundamental para que o Brasil fosse reconhecido como referência em políticas de combate ao traba- lho escravo. Em 2008, o GEFM era composto por nove equipes de fiscalização, mas em 2016 esse número já havia diminuído para quatro. Esses grupos foram os principais res- ponsáveis por mais de 4,5 mil ações realizadas entre 1995 e 2019, pelo resgate de 53,6 mil trabalhadores de condições análogas à de escravo e por mais de R$ 100 milhões de reais pagos a título de verbas rescisórias trabalhistas no mesmo período.42 Os impactos decorrentes da redução das equipes de fiscalização certamente representam riscos à política de combate ao trabalho escravo.
Com a extinção do Ministério do Trabalho pelo Governo Federal em 2019, as equi- pes do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, assim como o conjunto da SIT (Secretaria de Inspeção do Trabalho), passaram a ser vinculadas ao Ministério da Economia. A ex- tinção do Ministério do Trabalho e Emprego, responsável direto pelas políticas de com- bate ao trabalho escravo no âmbito do poder executivo também se apresenta como obstáculo à erradicação dessa prática no Brasil na medida em que significa, claramente, subordinação das referidas políticas aos interesses mercadológicos.
No mesmo sentido das manifestações da OIT caminha a crítica feita pela Organiza- ção das Nações Unidas por meio de sua relatora especial sobre escravidão contempo- rânea Urmila Bhoola, para quem é extremamente importante que o Brasil “tome ações decisivas agora para evitar o enfraquecimento das medidas anti escravidão que foram implementadas na última década, o que enfraquece a proteção das populações pobres e excluídas que são vulneráveis à escravidão”.43 A relatora também demonstrou preocu- pação com os cortes orçamentários da inspeção trabalhista que, segundo ela, desem- penha um papel fundamental na detecção de vítimas e na erradicação da escravidão.
3.4 A TERCEIRIZAÇÃO E O TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL
Entre essas medidas que, a partir de 2014, passam a representar obstáculos às polí- ticas de combate ao trabalho escravo no Brasil, uma ocupa uma posição especialmente importante: a terceirização.
Há uma relação umbilical entre a prática do trabalho escravo contemporâneo no Brasil e a utilização da mão de obra terceirizada. Com o passar dos anos, na mesma me- dida em que o capitalismo se tornava mais complexo e a globalização se intensificava na busca por maximização dos lucros, as empresas transnacionais passaram a organizar suas atividades produtivas ao redor do globo com base na subcontratação de mão de obra ou de serviços (a chamada de terceirização). Além da maximização dos lucros, as responsabilidades decorrentes da relação de trabalho também passaram a ser “terceirizadas” junto com os custos da produção.
A “flexibilização”, em suas diversas formas e em diversos setores, passou a ser a mar- ca da economia globalizada: vai da quebra das barreiras alfandegárias e da desregula- mentação dos capitais e dos mercados financeiros, atingindo até mesmo a rigidez nor- mativa dos contratos de trabalho. As duas crises do petróleo da década de 1970, que fizeram reduzir as taxas de acumulação, cooperaram para pressionar por um ambiente empresarial mais competitivo. Assim, “o grande capital passava a veicular a ideia de que a rigidez institucional dos contratos coletivos de trabalho e os gastos sociais do Estado impediam o livre funcionamento da economia”.44
No Brasil, apoiado em contexto político que avalizava o neoliberalismo, a terceiriza- ção se firmou nos anos 1990 como “principal mecanismo de redução dos custos do tra- balho por permitir que as empresas transferissem para terceiros as responsabilidades legais da contratação”.45 A terceirização representa queda salarial e piora das condições de trabalho de inúmeras categorias que, antes da implementação desse modelo, eram contratadas diretamente por empresas maiores, com maior capacidade econômica de garantir salários mais altos e melhores condições de trabalho protegidas por negocia- ções coletivas e sindicatos mais representativos. Também em decorrência de seu porte geralmente maior, as grandes empresas, na figura de contratantes diretas, contavam com maiores condições financeiras e capacidade de investimento em segurança e saú- de no trabalho.
Nesse sentido, a terceirização tem sido considerada um mecanismo de precarização do vínculo empregatício. Dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), com base em relatórios de fiscalização elaborados por Auditores Fiscais do Trabalho, comprovam maior incidência de submissão de trabalhadores a condições análogas à de escra- vo em atividades terceirizadas.46 Com base em relatórios de fiscalizações dos Audito- res-Fiscais do Trabalho, fornecidos pela Divisão para Erradicação do Trabalho Escravo (DETRAE), concluiu-se que 90% dos trabalhadores envolvidos nos dez maiores resgates entre os anos de 2010 e 2013 (quatro últimos anos anteriores àquele em que o dado foi levantado) eram trabalhadores terceirizados, conforme tabela abaixo.
Importante observar que esse levantamento levou em consideração os trabalha- dores terceirizados formais, ou seja, os trabalhadores resgatados referem-se àqueles com vínculo empregatício adequadamente formalizado entre os empregados e as empresas interpostas. Considerando que entre os trabalhadores terceirizados a ten- dência à informalidade seja ainda maior, o índice de 90% tende a ser superior em situa- ção de interposição de empresas, caso se incluíssem trabalhadores formais e informais. Observa-se também que entre esses resgates encontram-se desde empresas médias até transnacionais do ramo da mineração, da construção civil, do setor de produção de suco de laranja, fast foods, frigoríficos, multinacional produtora de fertilizantes, entre outras. Desta forma, os dados revelam que resta inequívoca a relação entre a prática do trabalho escravo contemporâneo e a utilização de mão de obra via interposição de empresas – a terceirização.
O mesmo levantamento fez um recorte no setor econômico que mais se destacou em número de trabalhadores resgatados da condição de escravidão contemporânea: o da construção civil, a fim de avaliar a incidência de terceirização nos resgates. Esse recorte foi considerado interessante, pois era naquele momento um dos setores eco- nômicos em maior expansão no país. O resultado foi o seguinte: em 2011, onze dos quatorze resgates na construção civil ocorreram com terceirização, enquanto em 2012, dos oito resgates nesse mesmo ramo de atividade, todos envolviam trabalhadores terceirizados.
Portanto, a constatação é a mesma. Resta inegável a relação entre a terceirização e o trabalho escravo contemporâneo. As empresas, tanto as grandes transnacionais ou multinacionais quanto as pequenas e médias, recorrem à terceirização como ferramen- ta para maximizar seus lucros e reduzir seus custos, expondo trabalhadores a condições degradantes de trabalho ou criando condições concretas para que isso ocorra ao longo de sua cadeia de fornecimento.
Em 2017, o Congresso Nacional Brasileiro aprovou a chamada “Reforma Trabalhista”. Uma das leis que compõem essa reforma é a Lei nº 13.429/2017 que “abre as porteiras” para a terceirização irrestrita da força de trabalho. A referida norma buscou ampliar as possibilidades de terceirização de mão de obra, já que sua aplicação era vedada, a par- tir de entendimento jurisprudencial, na atividade-fim das empresas. Antes de aprovada a referida reforma, a compreensão a respeito do escopo de aplicação da terceirização se dava a partir da proibição da terceirização nas chamadas “atividades-fim” das empresas. Esse entendimento jurisprudencial foi consolidado pela interpretação do artigo 455 da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), do artigo 94, II, da Lei nº 9.472/1997 (teleco- municações), do artigo 25 da Lei nº 8.987/1995 (regime de concessão e permissão), da Lei nº 6.019/1974 (trabalho temporário) e da Lei nº 7.102/1983 (vigilância bancá- ria). Diante disso, o Tribunal Superior do Trabalho editou a Súmula nº 331 que consi- derava expressamente irregular a terceirização da mão de obra na atividade-fim das empresas, formando vínculo entre o trabalhador e o tomador de serviços. O vínculo, entretanto, ficava afastado no caso de serviços de vigilância, conservação e limpeza, ou em atividade-meio da empresa (aquela que não é inerente ao seu objetivo principal), desde que inexistente a subordinação direta e a pessoalidade.
Sendo assim, a terceirização tanto das atividades-fim (aquelas que caracterizam o objetivo principal do empreendimento) quanto daquelas onde estão presentes a pes- soalidade e a subordinação direta restavam ilegais e implicavam vínculo entre o traba- lhador e o tomador de serviços. Era exatamente isso que previa a jurisprudência: pelo fato de ser considerada irregular, a terceirização, nos casos em que era vedada, fazia se estabelecer vínculo direto entre a tomadora de serviços e os trabalhadores.
A construção doutrinária analisava a terceirização da mesma maneira que fazia a jurisprudência trabalhista que, com base na Súmula nº 331 do TST, compreendia irre- gular a terceirização nos casos apresentados acima, considerando a possibilidade de transferência a terceiros apenas das “atividades reconhecidamente genéricas, secundá- rias, acessórias ou de suporte ao empreendimento, de forma a permitir que a empresa envide esforços e concentre atenção naquelas atividades centrais ou principais vertidas em seu objeto social”.47
A Súmula nº 331 previa, logo em seu item I, a ilegalidade da contratação de traba- lhadores por empresa interposta, salvo no caso de trabalho temporário. Ela também abria exceção para serviços de vigilância e limpeza, no item III, além das atividades meio, conforme observado anteriormente. No caso de irregularidade na contratação, referida Súmula sustentava o vínculo direto entre o trabalhador e o tomador de servi- ços, desconsiderando o vínculo entre eles e a empresa interposta, estabelecendo um limite à terceirização. Esse limite era importante porque impactava diretamente a res- ponsabilização das empresas de uma cadeia de fornecimento. Quando uma grande empresa terceirizava suas “atividades-fim”, ou quando havia qualquer irregularidade na contratação, como por exemplo, a existência de subordinação direta ou pessoalidade no vínculo entre a tomadora (empresa transnacional) e os trabalhadores, a terceirização era considerada ilícita e, por conseguinte, o vínculo era estabelecido entre os traba- lhadores e a empresa principal. Na medida em que a terceirização não encontra mais limites, impacta-se também esse mecanismo de responsabilização daquela empresa que terceiriza parte de sua produção.
Dessa maneira, a reforma trabalhista, e especificamente a Lei nº 13.429/2017, ao regulamentar a terceirização na atividade-fim, funciona como um verdadeiro obstáculo ao combate ao trabalho escravo no Brasil, visto que a referida Lei pode funcionar como aval do legislativo brasileiro para a proliferação de toda e qualquer forma de terceiriza- ção, dificultando a responsabilização da empresa principal da cadeia produtiva, bene- ficiária final do produto resultante da subcontratação de mão de obra e, consequente- mente, a que de fato controla a produção e que possui maior capacidade econômica para arcar com a responsabilização.
A reparação dos danos, tanto individuais quanto coletivos, causados pela submis- são de trabalhadores a condições análogas às de escravo, restam seriamente compro- metidas, considerando que o vínculo tende a ser estabelecido não mais com a grande empresa tomadora de serviços, mas com pequenas empresas fornecedoras de mão de obra, sem a mesma capacidade econômica de que dispõem as primeiras.
A responsabilização da pequena empresa terceirizada se apresenta inadequada. Primeiro, porque considerando o fluxo da cadeia de fornecimento, não é exatamente ela quem controla e dirige nem mesmo a sua própria produção. Além do mais, essas pequenas empresas, elos de uma cadeia de fornecimento, não possuem tanta estrutura ou capacidade econômica quanto as grandes empresas transnacionais para arcarem com os custos da mão de obra, do investimento em segurança e saúde do trabalho, pagamento das verbas rescisórias e multas decorrentes do resgate de trabalhadores de condições análogas às de escravo etc. A responsabilização feita às pequenas empresas, ao invés de recair sobre as beneficiárias finais, representa mais um aval para que as grandes empresas não mudem sua política de combate a violações aos direitos huma- nos, e continuem estabelecendo vínculos empresariais com organizações que não se comprometem com a prática do trabalho decente.
Além do mais, a responsabilização feita de forma inadequada pode fomentar o dumping social que, segundo Costa e Merheb, caracteriza-se como
[...] o aumento na lucratividade das empresas e na sua fatia de participação no mercado, em detrimento das garantias previstas na legislação trabalhista e dos valores sociais do trabalho. Ao contrário do dumping puro, para a configuração do dumping social não se torna necessário que as mercadorias sejam vendidas por preços inferiores ao de merca- do para que o ganho almejado seja atingido. Basta que os direitos trabalhistas deixem de ser observados em prol de um maior lucro da empresa.48
Os dados anteriormente analisados demonstraram a existência de relação íntima entre trabalho escravo e terceirização. Da mesma maneira, a prática de trabalho escravo contemporâneo também se relaciona fortemente com o dumping social.49 Portanto, não considerar a necessidade de responsabilizar as grandes empresas pela prática de trabalho escravo contemporâneo ao longo de suas cadeias de produção após a pro- mulgação da Lei nº 13.429/2017, além de representar violação ao princípio da vedação do retrocesso (já que as mesmas já vinham sendo responsabilizadas, com base na Sú- mula nº 331 do TST), significa também estímulo à prática do dumping social.
É o artigo 2º, §2º da Lei nº 13.429/2017 que traz a previsão de alteração das possibili- dades regulares de terceirização. O referido artigo dispõe que “não se configura vínculo empregatício entre os trabalhadores, ou sócios das empresas prestadoras de serviços, qualquer que seja o seu ramo, e a empresa contratante”.50 Acontece aqui um ponto de inflexão que impacta diretamente a possibilidade de responsabilização das empre- sas tomadoras de serviços, geralmente grandes empresas, beneficiárias finais de uma cadeia de fornecimento. Na medida em que, após a alteração legislativa, o vínculo não pode mais ser estabelecido entre as empresas tomadoras de serviço (transnacionais, multinacionais, beneficiárias finais da cadeia de fornecimento) e os trabalhadores, no caso de terceirização, ainda que da atividade- fim, o que ocorre é a transferência para pequenas empresas não apenas de parte da produção, mas também da responsabili- dade por violações a direitos ocorridas na relação entre essas empresas terceirizadas e os trabalhadores.
Essa alteração legislativa tende a pulverizar as cadeias de fornecimento e dificultar a responsabilização das empresas beneficiárias finais da produção e, consequentemente, aquelas que mais lucram, visto que o vínculo não se estabelece mais entre elas e os trabalhadores.
É exatamente isso que torna o tema tão atual, criando a necessidade urgente de de- bate para que se encontrem mecanismos de responsabilização das empresas da cadeia de fornecimento por submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo. O estímulo que a legislação brasileira passou a promover com a reforma trabalhista de 2017 ao autorizar a terceirização de qualquer atividade (seja ela a “atividade-meio” ou a “atividade-fim” da empresa) deveria vir acompanhado de mecanismos que pudessem barrar a utilização desta como ferramenta de violação aos direitos humanos no decor- rer da cadeia de fornecimento, e consequente impossibilidade de responsabilização das grandes empresas, aquelas que mais lucram, as beneficiárias finais do produto des- sas violações. Tais normatizações deveriam ter como objetivo evitar que a terceirização fosse um instrumento das grandes empresas para repassarem a responsabilização por violações dos direitos humanos às empresas menores. Aquelas empresas que mais lu- cram com a referida prática criminosa devem ser por elas responsabilizadas, até porque são estas que têm maior capacidade econômica para evitar tais violações.
Diante do princípio da vedação do retrocesso, não se pode conceber que as em- presas transnacionais, que já eram responsabilizadas antes da reforma, passem agora a não mais se responsabilizar por violações ocorridas em sua cadeia produtiva, pois princípio da vedação ao retrocesso é
[...] uma garantia constitucional implícita, decorrente do denominado bloco de cons- titucionalidade, tendo sua matriz axiológica nos princípios da segurança jurídica, da máxima efetividade dos direitos constitucionais e da dignidade da pessoa humana, mas se constitui em um princípio autônomo, com carga valorativa eficiente própria. Tal prin- cípio alude à ideia de que o estado após ter implementado um direito fundamental não pode retroceder, ou seja, não pode praticar algum ato que vulnere um direito que estava passível de fruição, sem que haja uma medida compensatória efetiva correspondente.51
A adequada responsabilização das empresas que violam os direitos humanos e submetem trabalhadores à condição análoga à de escravidão decorre do princípio da dignidade da pessoa humana. É direito de toda a sociedade, bem como dos trabalha- dores prejudicados pela conduta violadora da empresa, terem reparados seus danos materiais e morais, individuais e coletivos. A máxima efetividade dos direitos constitu- cionais se relaciona umbilicalmente com a eficiência no processo de responsabilização das transnacionais, tanto por seu aspecto repressivo, como também por seu aspecto preventivo.
O Princípio da Vedação do Retrocesso nasceu na França (efeito “cliquet”), quando o Conselho Constitucional reconheceu, em 1984, a impossibilidade de revogação de uma Lei que proteja as liberdades fundamentais, a menos que haja promulgação de outra com garantias equivalentes.52 Dessa maneira, segundo referido princípio, a me- nos que haja outros mecanismos suficientes para compensar a anulação de benefícios, considera-se inconstitucional qualquer medida tendente a revogar direitos sociais já re- gulamentados. No Brasil, o STF já se pronunciou diversas vezes a respeito do tema. Em 2000, o Ministro Sepúlveda Pertence admitiu, em seu voto, a inconstitucionalidade de lei nova que revogava a lei anterior necessária à eficácia plena de norma constitucional com fundamento no princípio da vedação do retrocesso social.53
Dessa maneira, considerando o princípio da vedação do retrocesso social, consi- derando a importância da adequada e eficiente responsabilização das empresas por submissão de trabalhadores à escravidão contemporânea, mecanismos devem ser en- contrados na legislação brasileira a fim de que essas empresas continuem a responder pelo cometimento de tal infração, tendo em vista que dela se beneficiam.
Portanto, buscar instrumentos existentes na legislação, a despeito da reforma traba- lhista que amplia as possibilidades de terceirização, bem como a melhor forma de inter- pretação desses instrumentos para garantir a observância de princípios constitucionais (garantia à dignidade da pessoa humana e a valorização do trabalho), torna-se necessi- dade imperativa a fim de que o Estado Brasileiro caminhe no sentido da eliminação do trabalho escravo de seu território.
4. CONCLUSÃO
Desde que o Estado Brasileiro reconheceu, perante organizações internacionais das quais faz parte, a existência de trabalho escravo em seu território, tem ele buscado ela- borar políticas públicas de prevenção e repressão a essa prática, bem como alterações legislativas que impactaram significativamente a ocorrência dessa violação no país.
Resultado de uma ampla discussão a respeito do conceito mais adequado de tra- balho escravo contemporâneo que se iniciou na década de 1980 seguiu-se por mais de duas décadas, os elementos previstos no artigo 149 do código penal representam também tentativas do Estado Brasileiro de adequar sua legislação à necessidade de combater a submissão de trabalhadores a condições aviltantes a sua dignidade. A pre- visão expressa no artigo 149 do Código Penal Brasileiro adapta as definições de traba- lho escravo com as quais trabalham organizações internacionais diversas, das quais o Brasil faz parte, à realidade social brasileira. Está, portanto, em conformidade com essas convenções e acordos internacionais, ao mesmo tempo em que caminha de mãos da- das com previsões expressas na Constituição da República Federativa do Brasil.
O conceito de trabalho escravo, tipificado no Código Penal Brasileiro a partir da alte- ração promovida em 2003 em seu artigo 149, representou avanço do Estado Brasileiro no sentido de enfrentar a prática da escravidão contemporânea na medida em que possibilitou o resgate de mais de cinquenta mil trabalhadores de condições análogas às de escravo.
Entre outras ações estatais que caminharam no mesmo sentido, esse artigo identifi- cou a criação dos GEFM, os grupos especiais de fiscalização móvel, no interior do Minis- tério do Trabalho e Emprego, especializados em atendimento de inspeções voltados à repressão do combate ao trabalho escravo. A lista suja de empregadores flagrados pela Inspeção Trabalhista em situação de cometimento de submissão de trabalhadores à escravidão contemporânea, bem como a aprovação da “PEC do Trabalho Escravo” tam- bém representam exemplos de políticas que avançam no combate à referida violação.
Por outro lado, identificaram-se outras iniciativas que caminham no sentido oposto, na medida em que caracterizam obstáculo às políticas de enfrentamento a essa viola- ção. São elas: a edição da portaria 1129 do Ministério do Trabalho e Emprego, editada em Outubro de 2017, que, ao arrepio da lei, passa a submeter “jornada exaustiva” e “condições degradantes de trabalho” à privação de liberdade ou consentimento da ví- tima, restringindo o conceito de trabalho escravo. Além disso, a extinção do Ministério do Trabalho e a consequente vinculação da Secretaria de Inspeção do Trabalho ao Mi- nistério da Economia, bem como a diminuição do número de equipes do Grupo Móvel de combate ao trabalho escravo também são medidas que dificultam a supressão des- sa prática do território brasileiro.
Outra medida que caminha no sentido contrário do combate ao trabalho escravo é o estímulo à prática da terceirização trabalhista, especialmente quando ela se apre- senta sem que haja medidas de responsabilização pela prática de trabalho degradante em empresas terceirizadas. Como visto, há uma relação umbilical entre a utilização de mão de obra terceirizada e a prática da escravidão contemporânea. O Brasil, ao pro- mulgar a lei 13.429/2017, estimula a pulverização da cadeia produtiva ao estimular a terceirização como mecanismo de organização produtiva das empresas. Todavia, não se discutiu, durante esse processo, a necessidade de responsabilização das empresas da cadeia produtiva quando a violação se dá em vínculos outros, que não sejam os da grande empresa tomadora de serviços e os trabalhadores terceirizados, como fez a França ao aprovar, o devoir de vigilance, instituído pela lei 2017-399. Dessa forma, a lei 13429/2017, ao autorizar a terceirização da atividade-fim das empresas e estimular essa prática, ao mesmo tempo que prevê expressamente que não se forma vínculo entre o tomador de serviços e os empregados das empresas terceirizadas, ela torna sem efeito a Súmula 331 do TST que funcionava como baliza para a responsabilização das grandes empresas por violações a direitos humanos em sua cadeia de produção. Isso porque a referida Súmula trazia algumas hipóteses de vinculação dos empregados de empresas terceirizadas à própria empresa tomadora de serviços. Quando esse mecanismo de vin- culação previsto na Súmula 331 do TST passa a ser vedado pela lei 13.429 e quando a referida súmula perde sua eficácia, surge a necessidade de que se estabeleçam outros mecanismos de responsabilização das grandes empresas por violação a direitos huma- nos em sua cadeia de produção.
Portanto, o principal efeito que a promulgação lei que amplia a possibilidade de terceirização trabalhista causa sobre as políticas públicas de combate ao trabalho es- cravo é o seguinte. Ela dificulta a responsabilização das grandes empresas da cadeia de produção por submissão de trabalhadores a condições análogas às de escravo quando esta se dá no decorrer da cadeia produtiva. Tomando em conta o princípio da vedação do retrocesso, se antes da aprovação da Lei da terceirização, as empresas que mais lu- cravam com a violação dos direitos humanos já podiam ser responsabilizadas por essa prática, não se pode conceber, depois da aprovação da referida lei, tal impossibilidade. Diante dessa conclusão, para que a aprovação da lei 13429 não funcione como aval do legislativo para que se utilize a terceirização como instrumento de transferência de res- ponsabilidades quanto a princípios caros à Constituição da República, como o princípio da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho, mecanismos jurídicos devem ser encontrados na legislação brasileira a fim de que essas grandes empresas possam continuar a ser responsabilizadas por violações a direitos humanos em sua ca- deia de produção.
Referências
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Notas
Notas de autor