Resumo: A adoção constitucional do Estado de Direito como um dos fundamentos do Estado brasileiro implica o reconhecimento dos princípios dele decorrentes como estruturantes de todo o ordenamento jurídico nacional. Além, de tais princípios derivam garantias que, por estarem consagradas no artigo 5º da Constituição Federal, recebem o status formal de direito fundamental, sendo a elas aplicável o princípio da máxima efetividade. Como alguns destes princípios são destinados a garantir direitos ao cidadão frente à atividade sancionatória do Estado, em razão do princípio da eficiência, reconhece-se a existência de um Núcleo Sancionatório Comum, do qual derivam princípios que se irradiam sobre toda a atividade punitiva estatal, estando entre eles o princípio da legalidade. Inexistindo diferenças ontológicas entre o ilícito administrativo e o ilícito penal, apenas formal, os princípios componentes do Núcleo Sancionatório Comum são igualmente aplicáveis ao Direito Penal e ao Direito Administrativo Sancionador. Deste modo, todos os corolários do princípio da legalidade regem também o Direito Disciplinar. Assim, conclui-se que o Regulamento Disciplinar do Exército é inconstitucional, em razão da inobservância dos princípios da taxatividade e da reserva legal, o que afeta o direito fundamental de ampla defesa, a legalidade e, por consequência, o Estado de Direito como um todo.
Palavras-chave:Regulamento Disciplinar do ExércitoRegulamento Disciplinar do Exército,Direito Administrativo SancionadorDireito Administrativo Sancionador,Direito DisciplinarDireito Disciplinar,Direitos fundamentaisDireitos fundamentais,Estado de DireitoEstado de Direito.
Abstract: The constitutional adoption of the Rule of Law as one of the fundamentals of the Brazilian state implies the recognition of its principles as structuring of the entire national legal system. Beyond, from all these principles derive guarantees that, for being set out in the fifth article of the Federal Constitution, receive the formal status of fundamental right, being applied to them the principle of maximum effectiveness. As some of these principles are intended to guarantee the citizen’s rights against the State’s sanctioning activity, because of the principle of maximum effectiveness application, it is recognized that there is a Common Sanctioning Core, from which derive all state punitive activity principles, being among them the principle of legality. Since there are no ontological differences between administrative and criminal infractions, but only formal, the component principles of Common Sanctioning Core are equally applied to Criminal Law and Sanctioning Administrative Law. Thus, all the corollaries of the principle of legality also rule Disciplinary Law. Thus, it is concluded that the Army Disciplinary Regulation is unconstitutional, due to the non-observance of the principles of taxation and legal reserve, which affects the fundamental right of ample defense, legality and, consequently, the Rule of Law as a whole.
Keywords: Army Disciplinary Regulation, Sanctioning Administrative Law, Disciplinary Law, Fundamental rights, Rule of law.
Artículos
As inconstitucionalidades do regulamento disciplinar do exército face aos princípios do Estado de Direito*
The unconstitutional of the army disciplinary regulation due to the rule of law
Recepción: 27 Junio 2020
Aprobación: 25 Octubre 2020
1. Introdução; 2. A identidade entre o ilícito administrativo e o penal; 3. A existência de um núcleo sancionatório comum; 4. Os efeitos do princípio da legalidade; 5. A inconstitucionalidade do regulamento disciplinar do exército; 6. Conclusão; 7. Referências.
O princípio da legalidade do Direito Penal, hodiernamente, consolidou-se como uma das principais garantias do cidadão contra a atuação estatal.1 Sua previsão encontra-se expressa não apenas nos códigos penais, mas, também, nos textos constitucionais de todos os Estados Democráticos de Direito.2
A Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, assentou o princípio da legalidade penal em seu artigo 5º, inciso XXXIX, asseverando que “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.3 Decorre, portanto, do princípio da legalidade, garantia que recebe o status formal de direito fundamental, por se encontrar disposta no catálogo do Título II da Carta Magna.4 Assim, à luz do artigo 5º, §1º, da Constituição Federal, cabe ao Poder Público garantir a imediata aplicação e a plena eficácia do princípio da legalidade, já que é incontestável o seu caráter de direito fundamental.5
Do princípio da legalidade penal extrai-se que não há crime sem que, antes de sua execução, haja uma lei o descrevendo, no mesmo sentido em que a pena não pode ser aplicada sem lei anterior que a compreenda. Além, exige-se que o tipo penal seja certo, taxativo. Então, é penalmente lícita toda e qualquer conduta que não esteja definida em lei penal incriminadora, cabendo apenas à lei, em sentido estrito, definir ilícitos penais e impor sanções penais, sendo este poder vedado às outras fontes do Direito.6
Conclui-se existir um direito fundamental do cidadão em saber aquilo o que pode fazer e o que não pode fazer, bem como as consequências jurídicas advindas da prática de uma conduta penalmente proibida. A previsibilidade da conduta está ligada à segurança jurídica e à vinculação dos juízes, impedindo a criação autoritária de crimes, regulando a aplicação da dosimetria e evitando decisões motivadas por convicções morais ou políticas.7 Trata-se de uma efetiva conquista da modernidade jurídica: a garantia de liberdade, a fim de coibir o exercício do poder arbitrário do Estado.8
O Direito disciplinar também possui viés garantista, devendo ser interpretado a partir de uma hermenêutica humanista.9 O Estado, por meio da Administração Pública, tem o poder-dever de apurar irregularidades relacionadas ao exercício de suas atividades, estabelecendo sanções aos responsáveis, se assim for necessário. Esta apuração deve ser realizada através de processo administrativo, valendo a máxima constitucional de que “não há pena sem processo”.10
Não há, no entanto, a expressa previsão constitucional de aplicação do princípio da legalidade do Direito penal ao Direito disciplinar, embora o ilícito penal e o ilícito administrativo sejam muito semelhantes. Ambos são comportamentos voluntários, violadores das normas de conduta que os contemplam e implicam sanção direta e imediata, diferenciando-se apenas formalmente, conforme o regime jurídico ao qual a sanção correspondente está subordinada.11
O Decreto nº. 4.346, de 26 de agosto de 2002, por sua vez, que não é lei em sentido formal, instituiu o Regulamento Disciplinar do Exército, que tem por finalidade especificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas às punições disciplinares, ao comportamento militar das praças, aos recursos e às recompensas aplicadas aos militares do Exército Brasileiro.12 O regulamento é, até mesmo, adotado por corporações policiais estaduais, como a Polícia Militar do Paraná.13
O referido regulamento disciplinar traz, em seu Anexo I, um rol de 113 transgressões disciplinares.14 Para tanto, vale-se de tipos “abertos”, pendentes de descrições completas daquilo que caracteriza as faltas administrativas, e acode-se de expressões jurídicas indeterminadas, que permitem à autoridade disciplinar um juízo axiológico para a configuração do tipo. A tipicidade da transgressão militar depende, portanto, de aspectos valorativos da autoridade administrativa competente.
O Regulamento Disciplinar do Exército, ainda, deixa de atribuir a cada tipo disciplinar sua respectiva sanção. Cabe à autoridade disciplinar, discricionariamente, classificar cada transgressão disciplinar e aplicar as punições disciplinares que lhe são cabíveis.15 Desta forma, questiona-se se o Regulamento Disciplinar do Exército está sujeito ao princípio da legalidade penal e se isso levaria a sua inconstitucionalidade.
De início, tomou-se como hipótese a efetivação submissão do Regulamento Disciplinar do Exército ao princípio da legalidade, uma vez que este é um dos corolários do Estado de Direito e irradia-se sobre todo o ordenamento pátrio. Consequentemente, somou-se à hipótese a inconstitucionalidade do referido regulamento disciplinar, face os elementos acima relacionados: não ser instituído por lei em sentido estrito, utilizarse de tipos “abertos” e não vincular diretamente o tipo disciplinar e à sua respectiva sanção (o que, por consequência poderia redundar em afronta à ampla defesa).
Para elucidação dos questionamentos realizados, desenvolveu-se pesquisa qualitativa, na qual a literatura jurídica e os dados coletados pelos pesquisadores, após sua interpretação hermenêutica, implicaram na produção de textual, revelando, portanto, suas visões do objeto estudado.16 Como ferramenta principal para a obtenção de fontes, utilizou-se a pesquisa bibliográfica, baseada na coleta de trabalhos científicos já realizados sobre o tema e que são de elevada importância acadêmica, sendo capazes de fornecer dados atuais e relevantes aos pesquisadores.17
A distinção entre o ilícito administrativo e o ilícito penal há tempos causa grandes debates entre os juristas. As principais visões doutrinárias desenvolvidas para discernir os ilícitos podem, sinteticamente, ser reduzidas a três correntes: qualitativa, quantitativa e formal.
Após a intensificação do intervencionismo estatal trazido com a criação do Estado Social, atribuída a Otto Von Bismarck no encerramento do século XIX,18 o Direito penal alemão passou por um processo de hipertrofia, que chegou a debilitar a prevenção geral, haja vista o reiterado uso da sanção penal e a consequente sobrecarga do sistema judicial. O mesmo desenvolvimento do sistema penal foi sentido na Itália.19 Assim, os dois países passaram a um processo de despenalização, que objetivava a retirada de ilícitos de menor importância da esfera penal, passando-os ao Direito administrativo. A doutrina alemã e a italiana do início do século XX sustentaram existir uma distinção qualitativa entre infrações penais e administrativas. Enquanto os crimes lesavam interesses valiosos a toda a sociedade, as infrações administrativas ofendiam, apenas, interesses de menor importância, que se confundiam com os interesses da própria Administração Pública.20
O jurista alemão James Goldschmidt, tido como expoente máximo da corrente qualitativa, em 1902, lecionou existir uma diferença material entre os ilícitos penais e administrativos. Enquanto o Direito penal encararia o cidadão como personalidade autônoma, como indivíduo, o Direito administrativo o trataria como membro da sociedade e, desta forma, obrigado a cooperar com a Administração Pública na busca do bem estar-social.21
Enquanto indivíduo, o particular teria sua esfera de liberdade delimitada pela ordem jurídica, constituindo esta esfera um bem jurídico.22 Os ilícitos penais seriam aqueles em que haveria a “insurreição de um portador de vontade contra a vontade geral”,23 ocasionando, assim, dano à esfera de poder de outro indivíduo e dano à vontade geral expressa no texto legal. Haveria, portanto, duas dimensões: uma formal e outra material, ofendidas simultaneamente através do descumprimento do preceito normativo e do dano ao objeto protegido.24 Em contrapartida, a não observância de obrigação positiva decorrente do convívio em sociedade se constituiria em conduta “antiadministrativa”, e não antijurídica.25 Em resumo, a ilicitude administrativa seria a omissão do agente perante o dever de auxiliar a Administração na consecução do bem público.26 Deste modo, a sanção aplicada não poderia ser penal, mas administrativa, sendo efetuada pela própria Administração Pública.
Percebe-se que, para Goldschmidt, haveria uma diferença de natureza entre os ilícitos, visto que o ilícito penal seria marcado pela oposição ao preceito normativo e pela ofensa ao bem jurídico, enquanto o ilícito administrativo seria desprovido de bem jurídico, bastando, para sua configuração, o não atendimento de uma exigência normativa. Marca-se a distinção, portanto, pela existência de um “prejuízo” em um e pela “ausência de benefício” no outro, respectivamente.27
Em síntese, para a corrente qualitativa, existe uma diferença substancial entre os ilícitos administrativos e penais. Por sua natureza, algumas condutas seriam próprias do Direito penal e outras seriam próprias do Direito administrativo. O ilícito administrativo seria uma conduta contrária ao bom funcionamento da Administração Pública, enquanto o ilícito penal seria uma conduta contrária aos interesses mais relevantes da sociedade.28
Na Espanha, porém, viveu-se fenômeno distinto. O advento do Estado Social não levou à hipertrofia do Direito penal, mas, sim, do Direito administrativo sancionador. Deste modo, a ideia de despenalização era estranha ao Direito espanhol, no qual a preocupação dos doutrinadores era reduzir a atividade sancionadora da Administração Pública. Deste modo, lá se desenvolveu com maior destaque a corrente quantitativa.29 Os adeptos da corrente quantitativa também distinguem o ilícito administrativo e o ilícito penal com base em um critério material, embora desconsiderem parâmetros qualitativos. Os ilícitos penais e administrativos seriam um mesmo fenômeno, diferenciando-se por um fator quantitativo: a gravidade da conduta. Assim, condutas mais graves receberiam uma sanção penal e a condutas menos graves uma sanção administrativa.
A ligação entre a ilicitude penal e a administrativa seria nada mais que uma relação de intensidade. A infração administrativa representaria um ilícito com características penais, mas em menores proporções. Haveria no ilícito administrativo, em termos essenciais, o mesmo conteúdo do ilícito penal, porém mais suave.30 Os ilícitos administrativos também tutelariam bem jurídicos, porém aqueles de menor valor. Haveria uma menor censurabilidade do fato, muitas vezes realizado por comodidade, esquecimento ou descuido, levando a aplicação apenas de uma sanção administrativa, e não penal.31
Em resumo, para a teoria quantitativa, o ilícito penal e o ilícito administrativo não são fenômenos distintos. Não é possível classificar os ilícitos pela natureza da conduta, diferenciando aqueles que atentam contra os interesses do indivíduo daqueles que lesam interesses da própria Administração Pública. Nos dois casos os interesses tutelados são os mesmos, havendo diferença na gravidade da conduta apontada como ilícita.32Assim, esclarece-se o porquê do largo acolhimento da corrente quantitativa pelo Direito espanhol: afirmar que o ilícito administrativo é idêntico ao ilícito penal, diferenciando-os apenas em grau, enseja aplicar princípios do Direito penal ao Direito administrativo sancionador, freando a atividade punitiva da Administração.33
Ao seu turno, a linha doutrinária formal ganhou maior destaque na parte final do século XX e no início do século XXI. Esta critica as correntes anteriormente descritas, alegando que elas diferenciam os ilícitos administrativos e penais somente através de critérios metajurídicos, deixando de observar fundamentos no Direito positivo. Em ambas, a diferença seria estabelecida apenas pelo comportamento do infrator – diversidade dos interesses tutelados ou a gravidade da conduta delituosa – sem qualquer vinculação ao ordenamento jurídico.34
Aos formalistas, as experiências jurídicas vividas na Alemanha, Itália e Espanha demonstrariam que, apesar da clara adoção de um dos critérios materiais de distinção de ilícitos em cada um dos países, os legisladores acabaram os ignorando. Portanto, os critérios qualitativos e quantitativos serviriam meramente para orientar o legislador no momento de definir se determinada conduta será tida como ilícito penal ou administrativo, mas não o vinculam. O legislador gozaria de ampla liberdade, classificando os ilícitos através de uma política legislativa própria.35
No modelo de divisão de poderes estabelecido pelo Estado de Direito, o Poder Legislativo possui ampla e legítima discricionariedade no desempenho de suas funções, muito mais vasta do que a concedida aos Poderes Executivo e Judiciário. Cabe ao Legislativo, ainda que balizado por condicionantes políticas e jurídicas, conformar os limites do lícito e do ilícito. Para esta corrente, é possível ao legislador eleger as vias adequadas para tutelar as patologias sociais, sendo essa escolha de sua legítima discricionariedade, desde que respeitados os limites constitucionais.36
Assim, para os formalistas, ao jurista seria pertinente considerar o Direito positivo,37 pois “ao cientista do Direito não é dado afirmar como deve ser o Direito, mas tão-somente descrever o Direito, hic et nunc, em linguagem científica adequada”.38 Deste modo, para a corrente formal, o fator de discriminação entre os tipos de ilícito reside no regime jurídico, que determinará a sanção imposta e a função exercida pelo órgão aplicador.39
Os ilícitos penais, também chamados de infrações penais, processar-se-iam perante a autoridade judicial, no exercício da função jurisdicional, nas condições descritas no Código Penal e no Código de Processo Penal, levando a aplicação de uma sanção penal: a pena.40 A decisão final do órgão jurisdicional possuiria força de coisa julgada.41 Por sua vez, os ilícitos administrativos, conhecidos como infrações, seriam aqueles descritos em legislação não-penal, seriam apreciados pela autoridade administrativa em processo administrativo e culminariam na aplicação de uma sanção administrativa.42 Destaca-se que a autoridade administrativa pode pertencer ao Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário, bastando estar no exercício da função administrativa. Nestes ilícitos, a Administração Pública funcionaria como parte interessada na relação jurídica, possuindo a decisão administrativa caráter de estabilidade e presunção de legalidade.43
A corrente formal é aquela que mais influencia o pensamento jurídico brasileiro hodierno, a qual adota-se nesta obra como marco para a distinção entre os ilícitos administrativos e penais, por considerar que, de fato, ao jurista não há relevante importância na natureza das coisas, em causa residente em sua essência, visto que é possível que o legislador as disponha de diferentes formas, outorgando-lhe regime jurídico distinto.44 Tem-se que não cabe ao operador de direito tentar inovar os meios que lhe são postos pelo sistema jurídico, pois, no Estado de Direito, esta soberania é atribuída somente à lei.45
Assim, vale-se dos conceitos de Daniel Ferreira para entender o ilícito penal como o comportamento “voluntário, violador da norma de conduta que contempla, que, num processo regulado pelas leis processuais criminais, enseja a aplicação, no exercício da função jurisdicional, de uma consequência restritiva de direitos, também como ele prevista em lei formal, de caráter punitivo e repressivo”. Já a infração administrativa define-se como o comportamento “voluntário, violador da norma de conduta que o contempla, que enseja a aplicação, no exercício da função administrativa, de uma direta e imediata consequência jurídica, restritiva de direitos, de caráter repressivo”.46
Deste modo, o ilícito administrativo e o ilícito penal não apresentam diferenças ontológicas, distinguindo-se tão somente pelo sistema jurídico a eles dispostos, conforme decisão política do legislador. O mesmo critério formal deve ser utilizado para distinguir a pena da sanção administrativa.
O ordenamento jurídico é composto por normas jurídicas, as quais se dividem em duas espécies: princípios e regras.47 A caracterização entre as duas espécies é temática que há tempos divide os doutrinadores, mas ganhou grande relevância atual após os estudos de Ronald Dworkin e Robert Alexy. Estes doutrinadores apontam diferenças qualitativas entre as normas jurídicas, as distinguindo através de um caráter lógico.48 A literatura jurídica brasileira, no entanto, ignora as distinções existentes entre os componentes e os autores, produzindo um resultado bastante peculiar.49 No Direito administrativo, por sua vez, na transição da década de 1980 para a de 1990, costumou-se utilizar outra distinção, mais convencional, que define os princípios como mandamentos nucleares. Ou seja, os princípios seriam normas fundamentais, elementos estruturantes do sistema jurídico, já as regras seriam a concretização dos princípios, recebendo caráter mais instrumental e menos fundamental.50
Esta última corrente, ainda que mais conservadora, parece ser a mais adequada para a presente análise, visto que se posiciona pela fundamentalidade constitucional dos princípios apontados. Estes princípios, em razão de sua primariedade, balizam a interpretação de toda a Constituição, condicionando a valoração e o sentido atribuídos às demais normas constitucionais. Agem como critérios interpretativos e integrativos do texto constitucional, permitindo que a regras constitucionais sejam costuradas umas às outras, formando um sistema.51 Nesta linha, são numerosas as tentativas de classificação dos princípios constitucionais. É comum a todas elas identificar uma categoria de princípios constitucionais que representam as premissas fundamentais adotadas pelo constituinte, as quais delineiam o perfil político e jurídico do Estado. Os princípios desta categoria encontram-se no ápice do sistema constitucional, sendo desenvolvidos por outros subprincípios constitucionais, deles decorrentes.52
Dentro desta categoria de princípios fundamentais encontra-se o Estado de Direito, estabelecido já no caput do artigo 1º da Constituição Federal de 1988. Trata-se de opção realizada pelo constituinte, que delineia e baseia a ordem constitucional brasileira, dando a ela contornos fundamentais e delimitando o desenvolvimento e aplicação das demais normas jurídicas, incluindo os demais princípios constitucionais.53
O Estado de Direito, mesmo em sua concepção liberal, pós-revolução francesa, tem como objetivo basilar garantir a aplicação do princípio da legalidade.54 Suas características principais são a submissão ao império da lei; a divisão de poderes entre executivo, legislativo e judiciário, estando todos submetidos ao controle jurisdicional; e a garantia de direitos individuais fundamentais.55 Do princípio do Estado de Direito derivam quatro subprincípios: o princípio da legalidade da Administração, o princípio da segurança jurídica, o princípio da proibição do excesso e o princípio da proteção jurídica e das garantias processuais.56
De modo genérico, o princípio da legalidade da Administração aponta a uma vinculação jurídico-constitucional do Poder Executivo à lei. Mais do que uma simples subordinação às normas constitucionais, o princípio enseja a expressa autorização em lei formal para a realização de qualquer ato da Administração no exercício da função administrativa.57 A inexistência de lei implica a negação da atividade administrativa.58 A submissão à lei, além do sentido formal, também ocorre no sentido material. As leis não podem adotar qualquer conteúdo, mas somente aqueles que dão efetividade aos valores constitucionais. O Estado de Direito é, portanto, submisso às leis editadas em conformidade com a Constituição.59
Já o princípio da segurança jurídica exige a previsibilidade da atuação estatal, evitando que o particular seja surpreendido pela arbitrariedade do Estado.60 O cidadão deve poder confiar que seus atos, bem como as decisões públicas que incidem sobre seus direitos, se praticados à luz das normas jurídicas vigentes, possuem efeitos jurídicos duradouros, previstos e calculados com base nas mesmas normas. Proíbe-se, assim, a existência de leis retroativas e a alteração da coisa julgada, além de estabelecer a tendência à irrevogabilidade de atos administrativos constitutivos de direitos. Quanto ao princípio da proibição do excesso, também chamado de princípio da proporcionalidade, tem-se que este impõe ao Estado moderação em seu agir, devendo existir proporcionalidade entre o ato praticado pelo Estado e a finalidade por ele buscada.61 Este, ainda, se desdobra no princípio da adequação, exigindo que a medida adotada para a persecução do interesse público seja apropriada ao fim que se destina;62 no princípio da necessidade, estabelecendo que, na atuação estatal, deve-se sempre buscar a menor onerosidade ao cidadão e ao bens envolvidos; e no princípio da proporcionalidade em sentido estrito, estipulando precisa proporção entre o resultado obtido e os meios de intervenção do Estado, promovendo necessariamente benefícios maiores que a própria atuação estatal.63
Destas ideias deduz-se a imperiosidade de um procedimento justo e adequado de acesso ao Direito. Trata-se da inafastabilidade da jurisdição, garantindo ao cidadão o acesso à via judiciária, observadas todas as garantias pertinentes ao devido processo legal, como a ampla defesa, o juiz natural e o contraditório.64 Tais princípios, por serem corolários do princípio do Estado de Direito, representam uma decisão estrutural do Estado brasileiro. Sendo princípios fundamentais, seus efeitos se irradiam sobre todo o ordenamento jurídico, incluindo, logicamente, o Direito administrativo sancionador e o Direito penal.65 Os princípios decorrentes do Estado de Direito possuem tamanha amplitude ético-jurídica que regem e orientam, de forma comum, toda a manifestação do poder punitivo estatal. Deles derivam legítimos mecanismos, que, à disposição do indivíduo, contém o exercício indevido do ius puniendi, sem os quais se retornaria ao arbítrio que antecedeu o próprio Estado de Direito.66
Como se não bastasse a simples opção do constituinte pelo Estado de Direito, de todos estes princípios derivam direitos fundamentais arrolados de forma expressa no artigo 5º da Constituição Federal. Do princípio da legalidade e de seus efeitos sobre o regime jurídico punitivo decorrem os incisos II, XXXIX e LXI, enquanto do princípio da segurança jurídica resulta o inciso XL. O inciso XLV, por sua vez, objetiva a aplicação do princípio da proibição do excesso, na mesma proporção que a proteção das garantias processuais e do acesso à proteção jurídica está sedimentada nos incisos XXXV, LIII, LIV e LV.67
É verdade que alguns dos dispositivos constitucionais apontados fazem referências a termos próprios do Direito penal, como “crime”, “pena” e “lei penal”. No entanto, não é possível dizer que eles não são aplicáveis ao Direito administrativo sancionador.68 Por estarem dispostos no catálogo do Título II da Carta Magna, atribui-se a estes direitos o status formal de direito fundamental.69 Deste modo, a eles é aplicável o princípio da máxima efetividade, do qual se tem que a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior intensidade lhe dê, mas que hoje é, sobretudo, invocado no âmbito dos direitos fundamentais.70 Assim, a interpretação dos dispositivos constitucionais indicados deve ser realizada da forma mais ampla possível, aumentando a intensidade das garantias protetivas oferecidas ao particular face ao poder punitivo estatal, criando à toda a sociedade o ininterrupto dever de efetivá-los em sua máxima potencialidade.71 Deste modo, é lógico que estes princípios também devem ser aplicados para proteger o particular da atividade sancionadora administrativa.72
Ademais, lembra-se que, como outrora defendido, inexiste diferença material entre o ilícito penal e o ilícito administrativo, mas tão somente formal, em razão de classificação realizada pelo legislador, diante de sua opção político legislativa. Portanto, considerando que a classificação dos ilícitos é realizada pelo legislador ordinário, é correto que todas as garantias aplicadas a um sejam também aplicadas ao outro. Se assim não fosse, seria possível que uma conduta, ao invés de ser tipificada como infração penal, fosse tratada como ilícito administrativo apenas com o intuito de cessar garantias protetivas do indivíduo. Os efeitos das garantias constitucionais estariam subordinados a vontade do legislador infraconstitucional.73
A inexistência de diferenças ontológicas ou principiológicas entre os ilícitos leva a aplicação de uma mesmo ratio juris, na qual as limitações à aplicação do poder punitivo estatal são extraídas diretamente do princípio constitucional do Estado de Direito.74 A diversidade entre os regimes jurídicos aplicáveis ao ilícito administrativo e ao ilícito penal não significa que as garantias dos particulares possam ser ignoradas pelo simples fato da sanção ser aplicada pela Administração Pública no exercício da função administrativa, e não pelo Poder Judiciário operando a função jurisdicional.75
Os princípios constitucionais decorrentes do Estado de Direito devem proteger o particular frente o poder punitivo estatal independentemente do órgão ou da função exercida. Toda vez em que se encontrar o indivíduo perante o jus puniendi, desencadeia-se a aplicação dos princípios do regime jurídico punitivo,76 o qual se denomina “núcleo sancionatório comum”. O Direito penal e o Direito administrativo sancionador agem sobre direitos fundamentais do acusado, na perspectiva de submissão ao Estado de Direito. Há na Constituição um núcleo normativo, do qual emanam princípios comuns a toda atividade sancionatória, veiculando conteúdos mínimos obrigatórios.77 Considerando-se a Constituição como um todo orgânico, não é plausível aceitar que direitos fundamentais nela dispostos sejam compartimentalizados, possuindo efeitos somente sobre o Direito penal, e não sobre o Direito administrativo. O núcleo sancionatório comum decorre da simples adoção do constituinte pelo Estado de Direito, sendo até mesmo desnecessária sua previsão expressa no texto constitucional.78 Frisa-se, no entanto, que o reconhecimento de um núcleo jurídico sancionador não implica admitir a identidade entre o Direito penal e o Direito administrativo sancionador.79 Impende esclarecer, também, que não se trata da importação de princípios do Direito penal ao Direito administrativo sancionador. Refere-se, tão somente, ao reconhecimento de um mínimo regime jurídico sancionador, atinente à Teoria Geral do Direito, do qual se desprendem princípios de cogente aplicação. Deste modo, resta notória a observância do princípio da legalidade diante do cometimento de ilícitos penais e administrativos, cabendo ao Estado-juiz e ao Estado-administração apenas agir nos limites determinados pelo ordenamento jurídico.80
O princípio da legalidade é tido como a mais importante manifestação do Estado de Direito no Direito penal. Ainda, sua explícita natureza constitucional lhe outorga concretude inquestionável, característica faltante a certos princípios penais que são acolhidos pela Constituição apenas implicitamente.81
A Doutrina penalista reconhece que do princípio da legalidade derivam outros subprincípios. Parcela minoritária lista apenas três subprincípios do princípio da legalidade: reserva legal, taxatividade e irretroatividade; mas a classificação que possui maior aceitação entre os doutrinadores enumera mais um subprincípio da legalidade: a proibição do uso de analogia in malam partem.82
Do princípio da irretroatividade, determina-se que nullum crimem, nulla poena sine lege praevia. Desta forma, a lei penal não pode retroagir, sendo, portanto, necessário que a lei que tipifique determinada conduta como criminosa seja anterior ao fato criminoso.83 Proíbe-se, assim, a criação de tipos que alcancem fatos pretéritos, levando à condição de precedência da previsão abstrata à situação fática, o que também é chamado de anterioridade penal. Trata-se de garantia fixada pelo pensamento iluminista contra o ilimitado poder estatal de criação de regras de imputação de responsabilidade, resguardando a segurança jurídica.84
Faz exceção ao princípio da irretroatividade a lei penal posterior mais benéfica ao autor do delito. Como o princípio da legalidade tem por objetivo proteger o indivíduo da arbitrariedade estatal, a irretroatividade não deve atingir as normas mais favoráveis ao autor, visto que uma lei favorável não é abusiva. Por conseguinte, a lei penal não retroage, salvo se para beneficiar o réu.85
O princípio da reserva legal é identificado pelo enunciado nullum crimem, nulla poena sine lege scripta. Dele conclui-se que somente a lei escrita pode criar crimes e penas.86 Para tipificar conduta delituosa, porém, não basta que a norma seja escrita. É preciso que ela tenha nível de lei, emanada do Poder Legislativo no exercício de função típica, observado o devido processo legislativo. Desta ordem, exclui-se como fonte tipificadora de delitos e penas as normas emanadas do Poder Executivo, como Decretos e Medidas Provisórias, e do Poder Judiciário, como Portarias e Resoluções. Até mesmo às normas provenientes do próprio Poder Legislativo, mas que diferentes da lei em sentido estrito, como Resoluções e Decretos Legislativos, é vedado instituir pena e conduta criminosa.87 Em observância estrita aos mecanismos democráticos do Estado de Direito, a atividade legislativa penal é entregue somente ao Poder Legislativo, depositário da soberania popular.88
Tal princípio exclui, também, o costume como fonte de norma penal incriminadora, vedando a invocação do Direito consuetudinário para estabelecer penas e delitos.89 No entanto, o costume permanece a ter grande importância no Direito penal; a ele é possível socorrer-se para elucidar o conteúdo do tipo e para estabelecer causas supralegais de exclusão da ilicitude, de atenuação da pena ou da culpa.90
O princípio da proibição do uso de analogia in malam partem, reconhecido na assertiva nullum crimem, nulla poena sine lege stricta, traduz-se na proibição do uso da analogia na criação de delitos e na fundamentação ou agravamento de penas. Entende-se por analogia o emprego de norma, prevista para certa hipótese, a outro caso semelhante, mas distinto, ao qual o uso da norma não está disposto de forma específica.91 A analogia é uma das principais formas de integração do Direito, mas seu uso é vedado ao Direito penal nos casos em que incriminar ou agravar novas condutas, agindo em prejuízo do autor, ou seja, in malam partem.92 Sua utilização, ao estabelecer circunstâncias atenuantes e excludentes de responsabilidade, portanto in bonam parte, a favor do acusado, é, porém, possível, já que, como a retroatividade de lei penal benéfica ao réu, também não configura abusividade estatal.93
Por fim, o princípio da taxatividade traduz-se na expressão nullum crimem, nulla poena sine lege certa. Por ele assevera-se que a lei, ao definir um fato criminoso, deve valer-se de um tipo claro, estipulando qualidades essenciais e específicas da conduta humana, de modo a torna-lo elemento ímpar, inconfundível com as demais figuras típicas.94 Todas as leis penais precisam ser escritas da forma mais clara e exaustiva possível, de modo a garantir aos seus destinatários, o cidadão e o juiz, o seu conhecimento completo, evitando equívocos e garantindo a segurança jurídica.95 Por esta mesma razão, para assegurar que a lei penal possa desempenhar sua função pedagógica e motivar o comportamento humano, esta necessita ser redigida em linguagem facilmente acessível a todos, não só aos juristas.96
Para garantir a segurança jurídica, é necessário que, de antemão, determine-se quais condutas constituem delitos e quais não. Desta forma, evita-se que o cidadão seja colocado à mercê do ius puniendi estatal.97 O grau de determinação não deve apenas abranger o preceito primário do tipo penal, a descrição da conduta delituosa, mas abarcar, também, a cominação da sanção. Embora não necessite ser determinada, é imperioso que a sanção penal seja determinável dentro das chamadas margens penais, estabelecendo um parâmetro dentre o qual o juiz, observando as condições próprias do delito, deve graduar a pena. Igualmente, é imperativo que o intervalo existente entre o máximo e o mínimo da sanção não apresente amplitude exagerada. Não deve ser atribuído ao juiz, quando da individualização da pena, poder discricionário e ilimitado. Conforme destaca Raphael Santos, é preciso evitar o “self-service normativo.”98 A indeterminação, quando transpassa a descrição da conduta e alcança o preceito secundário do tipo, a cominação da sanção penal, resulta ainda mais grave. Conforme relata Paulo César Busato, “a incerteza da incriminação abre o espaço processual de obter uma sentença absolutória, a incerteza do castigo, não”.99
Diante de todo o exposto, percebe-se que o princípio da legalidade, base do Estado de Direito, é pilar de todo o Direito penal que aspire à segurança jurídica, compreendida esta pela previsibilidade da intervenção do poder punitivo do Estado e, em sua perspectiva subjetiva, pelo sentimento de segurança jurídica do indivíduo. Garante-se ao cidadão, assim, o prévio conhecimento dos crimes e das penas, bem como se impossibilita a submissão daquele à coerção penal distinta daquela prevista no texto legal.100 Sustenta-se, portanto, que todos os princípios decorrentes do princípio da legalidade acima descritos compõem o núcleo sancionatório comum, já que derivam diretamente da adoção pelo constituinte do Estado de Direito. Desta forma, sua aplicação não se resume ao Direito Penal, abarcando também o Direito administrativo sancionador.
Conforme leciona Egberto Maia Luz, as relações administrativas possuem ordens distintas: externa ou interna. Naquela há a relação do Estado com terceiro, estranho à Administração Pública, enquanto nesta o Estado relaciona-se com seus servidores, este considerados em seu mais amplo significado, englobando todas as categorias e funções, inclusive os militares e delegatários de serviço público.101 Em razão do Poder Disciplinar, derivado do Poder Hierárquico, a Administração Pública possui o poder-dever de apurar infrações administrativas cometidas por seus servidores e por todos aqueles sujeitos à disciplina administrativa.102 Trata-se de supremacia especial exercida pelo Estado sobre todos aqueles que se vinculam à Administração através de relações de qualquer natureza.103
O Direito administrativo disciplinar é o ramo do Direito administrativo destinado a apurar, decidir e regular as relações existentes entre o Estado e seus servidores, objetivando o respeito às leis e às normas que regulam as atividades funcionais.104 É, portanto, o Direito administrativo punitivo interno, que realiza a repressão disciplinar dos servidores públicos. As sanções aplicadas às demais pessoas relacionadas à Administração são reguladas pelo Direito administrativo punitivo externo. 105 O Direito administrativo disciplinar militar, por sua vez, contempla o estudo pormenorizado das relacoes mantidas entre a Administracao e seus servidores militares. 106
As relacoes juridicas estabeleidas pelo Estado e por seus servidores sao reguladas pelo "conjunto sistemático de substantvas normas definidoras de vedacoes, deveres, proibicoes, responsabilidades, transgressoes, garantias e recompensas, cuja observancia e aplicacao objetivam resguardar a normalidade, a eficiencia e a legalidade do desempenho funcional da administracao pública", o qual se denomina regime disciplinar.107 O regime disciplinar dos militares é definido em seus regulamentos disciplinares, diferenciando-se dos demais regimes principalmente em razão das sanções dispostas, já que contemplam sanções privativas de liberdade, próprias dos militares, em razão de sua condição jurídica especial,108 ressalvada a vedação da aplicação de medidas privativas de liberdade aos policiais e bombeiros militares, criada com o advento da Lei nº. 13.967, de 26 de dezembro de 2019.109 Cada Força, enquanto órgão singular, possui o seu próprio regulamento disciplinar, onde são delineadas as diferentes sanções disciplinares e os modos de aplicação.110
O Regulamento Disciplinar do Exército, aprovado pelo Decreto nº. 4.346, de 26 de agosto de 2002, tem como finalidade especificar as transgressões disciplinares e estabelecer normas relativas às punições disciplinares, ao comportamento militar das praças, aos recursos e às recompensas dos militares da ativa, na reserva remunerada e os reformados do Exército Brasileiro.111 Tal regulamento, ainda, é adotado por algumas corporações policiais, como a Polícia Militar do Paraná.112
Jorge César de Assis, perante a instituição do Regulamento Disciplinar do Exército por decreto presidencial, posiciona-se por sua constitucionalidade. O autor leciona que a Constituição Federal, em seu artigo 142, § 3º, inciso X, estabelece que a lei disporá sobre os deveres e direitos dos militares. Por sua vez, a Lei nº. 6.880, de 9 de dezembro de 1980, que institui o Estatuto dos Militares, em seu artigo 47, atribui aos regulamentos disciplinares a competência para especificar e classificar as transgressões disciplinares, estabelecendo as normas relativas à aplicação das sanções disciplinares. Assim, o Decreto nº. 4.346/2002 foi editado para regulamentar o artigo 47 da Lei nº. 6.880/1980, sendo, portanto, um decreto de execução, de competência exclusiva do Presidente da República e, por consequência, de acordo com a Constituição.113
O peculiar regime jurídico dos militares, consagrado constitucionalmente, é baseado na hierarquia e na disciplina, dos quais decorre um dever de obediência do subordinado a seu superior, estando o Presidente da República no ápice da estrutura hierárquica das Forças Armadas. Deste modo, para Assis, a leitura do artigo 5º, inciso LXI, da Constituição da República, que dispõe apenas sobre as sanções disciplinares privativas de liberdade, deve ser realizada de forma ampla, entendendo a lei em seu sentido lato, o que corrobora com a constitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército.114 Destaca-se que a análise sobre a constitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército, em face do artigo 5º, inciso LXI, da Constituição Federal, encontra-se, desde 11 de setembro de 2009, no Supremo Tribunal Federal, através do Recurso Extraordinário nº. 603116, que foi conhecido no regime de repercussão geral em 11 de fevereiro de 2014.115 Os autos encontram-se conclusos com o Relator, Ministro Dias Toffoli, desde 15 de outubro de 2018.116
No caso concreto, um militar do Exército Brasileiro interpôs, no ano de 2004, habeas corpus preventivo contra o Comandante da 6ª Brigada de Infantaria Blindada, em Santa Maria/RS, em razão da fixação de sanção restritiva de liberdade de detenção em processo administrativo disciplinar regido pelo Regulamento Disciplinar do Exército. O paciente, além de alegar a inconstitucionalidade do regulamento disciplinar, pleiteava o reconhecimento da prescrição punitiva da Administração Castrense. O juízo da 3ª Vara Federal de Santa Maria/RS apenas acolheu a preliminar de inconstitucionalidade do Decreto nº 4.346/2020 e tornou sem efeito a sanção fixada ao militar, considerando que se reserva à lei, em sentido estrito, dispor sobre a restrição de liberdade em infrações disciplinares.117
O paciente, irresignado com o não reconhecimento da prescrição punitiva, recorreu ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em recurso de Apelação conhecido pela Corte como Recurso em Sentido Estrito, reiterando as questões meritórias apresentadas em sua peça exordial. Em contrarrazões, a Advocacia-Geral da União requereu a reforma da decisão e a denegação da orden de habeas corpus. A Oitava Turma do referido Tribunal deixou de conhecer o recurso do paciente, bem como o pedido realizado pela Advocacia-Geral da União em suas contrarrazões, dando provimento parcial à remessa oficial e reconhecendo a não recepção do artigo 47 da Lei nº. 6.880/1980 pela Constituição Federal de 1988.118 Descontente, a União protocolizou Recurso Especial, não conhecido pelo Superior Tribunal de Justiça, e, na sequência, Recurso Extraordinário ao Supremo Tribunal Federal.
Conforme outrora explicitado, a adoção pelo constituinte do Estado de Direito leva ao reconhecimento de um Direito sancionatório comum, marcado pelo princípio da legalidade. Em razão do não reconhecimento de diferenças ontológicas entre o ilícito penal e o ilícito administrativo, resumindo-se a distinção aos regimes jurídicos dispostos pelo legislador, o princípio da legalidade deve ser igualmente aplicado a todas as facetas da atividade sancionatória do Estado.
Além do inciso XXXIX do artigo 5º da Constituição, socorre-se ao inciso II do mesmo dispositivo: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Como a criação de um ilícito administrativo implica a imposição de uma obrigação de fazer ou deixar de fazer algo, somente a lei formal pode criar ilícitos e sanções administrativas.119 Portanto, apenas o legislador pode tipificar conduta administrativamente ilícita e a ela culminar sanção, em observância ao enunciado nullum crimem, nulla poena sine lege scripta. Aos regulamentos disciplinares não é possível criar ilícitos administrativos e suas respectivas sanções, visto que tal matéria é reservada ao legislador; a eles cabe tão somente desenvolver as obrigações descritas na lei formal.120 Assim, percebe-se a inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército à luz do princípio da reserva legal, decorrente da legalidade.
Ainda, da leitura do Regulamento Disciplinar do Exército, verifica-se que este, em seu artigo 14, classifica como transgressão disciplinar toda a ação praticada pelo militar que for contrária a preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio e que seja ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, ou, ainda, aquela que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe. No artigo 15, o regulamento indica que as transgressões disciplinares são todas as condutas especificadas em seu Anexo I, que traz um rol contendo 113 tipos administrativos.121 Trata-se da tentativa de garantir também aos militares o direito da exata descrição dos ilícitos administrativos, salvaguardando a segurança jurídica através da lex certa.122 Todavia, chama a atenção alguns dos tipos descritos no Anexo I, como, por exemplo, “trabalhar mal, intencionalmente ou por falta de atenção, “portar-se de maneira inconveniente ou sem compostura”, e “frequentar lugares incompatíveis com o decoro da sociedade ou da classe”.123
No item nº. 19, é difícil precisar a amplitude do termo “trabalhar mal”. Irineu Ozires Cunha compreende o significado de trabalhar mal como “o serviço mal feito, com erros, com atrasos, com desrespeito às pessoas que precisam do trabalho do militar”.124 Porém, entende-se que o elemento objetivo do tipo – trabalhar mal intencionalmente ou por falta de atenção – é de grande indeterminação. Por exemplo, o militar que, no exercício de trabalho administrativo, carimba uma folha erroneamente está a trabalhar mal? E aquele que, durante o serviço de taifa, por equívoco, salga a comida demasiadamente? Percebe-se que é, portanto, concedida à autoridade disciplinar grande discricionariedade para conceituar o termo “trabalhar mal”.
Já no item nº. 40, qual é o exato conceito de “maneira inconveniente” ou “sem postura”? Irineu Ozires Cunha entende como sendo a conduta incômoda, desagradável ou que desrespeite as normas de etiqueta, principalmente em eventos sociais.125 Um erro de vestimenta para um baile implicaria a tipificação da conduta? Verifica-se, assim, que, novamente, o tipo prescreve conduta aberta, possibilitando que qualquer comportamento, à luz do entendimento da autoridade disciplinar, seja nele enquadrado.
Por fim, quais seriam os locais incompatíveis com o decoro da sociedade ou da classe descritos no item nº. 42? Para Cunha, são lugares em que a sociedade recrimina a frequência, pois neles há a ideia de imoralidade.126 Bares ou boates LGBT entrariam neste conceito, considerando o grande número de grupos preconceituosos existentes no Brasil? Ou a frequência a uma praia de nudismo, que contraria pressupostos morais de parcela significativa da sociedade? Deste modo, uma vez mais, é possibilitada à autoridade disciplinar, discricionariamente, definir os locais que por ela são incompatíveis com o decoro da sociedade ou da classe.
As perguntas acima podem parecer mera retórica ou exagero, mas a prática administrativa nesta seara demonstra que as controvérsias morais são mais comuns do que aparentam – e, muitas vezes, mesmo o conjunto de direitos fundamentais estabelecido na Constituição não é algo pacífico mesmo entre os magistrados. E além dos tipos apontados, vários outros, como os itens nº. 9, 13, 85 e 88, são marcados pela indeterminação, pois valem-se de expressões como “faltar com o respeito”, “convenções sociais”, “termos desrespeitosos”, “ética militar”, “pundonor militar” e “decoro da classe”, que são extremamente abstratas.
Importante parcela da doutrina leciona que o Direito disciplinar consagra a tipicidade relativa das transgressões disciplinares, permitindo certa margem de discrição ao detentor do poder hierárquico.127 Porém, perante o reconhecimento da existência de um núcleo sancionatório comum, vislumbra-se que o Direito disciplinar é regido, na realidade, pelo princípio da taxatividade, decorrente do princípio da legalidade.
Deste modo, não há como se admitir tipos administrativos vagos para definir condutas disciplinarmente ilícitas, fazendo-se imperiosa a sua descrição pormenorizada.128 A subsunção da conduta à norma não deve necessitar da complementação do tipo pela fundamentação da autoridade disciplinar.129 A responsabilização disciplinar em razão de conduta“não especificada” transforma o administrador em legislador, podendo este, de maneira livre e arbitrária, conformar os limites entre o proibido e o permitido.130 Deste modo, posiciona-se novamente pela inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército.
Ainda pela aplicação do princípio da taxatividade, posiciona-se, outra vez, pela inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército, haja vista não existir vinculação direta entre o ilícito administrativo e a sanção administrativa correspondente. Nos termos do artigo 21 do Regulamento Disciplinar do Exército, cabe à autoridade disciplinar competente classificar a transgressão disciplinar em leve, média ou grave, considerando a pessoa do transgressor, as causas que determinaram a transgressão, a natureza dos fatos e as consequências que dela possam advir. Além, devem ser ponderadas causas de justificação, circunstâncias atenuantes e circunstâncias agravantes, definidas nos artigos 18, 19 e 20, respectivamente.131 Às transgressões leves são aplicadas as sanções de advertência e impedimento disciplinar; às transgressões médias, repreensão e detenção disciplinar; e às punições graves, prisão disciplinar e o licenciamento ou exclusão a bem da disciplina. As sanções de detenção e prisão disciplinar não podem ultrapassar 30 dias, o impedimento, 10 dias.132 A única vinculação existente à autoridade disciplinar durante a classificação das transgressões disciplinares encontra-se disposta no artigo 22: “será sempre classificada como ‘grave’ a transgressão da disciplina que constituir ato que afete a honra pessoal, o pundonor militar ou o decoro da classe”.133 No entanto, as definições de honra pessoal, pundonor militar e decoro da classe, trazidas pelo artigo 6º, são, também, extremamente abstratas.
Quanto à dosimetria, o Regulamento apenas dispõe que, existindo circunstâncias atenuantes, a sanção disciplinar não pode atingir o limite máximo de cada classificação. Porém, se houver atenuantes e agravantes, a sanção será aplicada conforme preponderem essas ou aquelas. Além, as sanções não podem ser cumulativas, cabendo à conduta infracional apenas uma sanção.
Percebe-se, portanto, que a dosimetria depende exclusivamente da valoração discricionária da autoridade disciplinar. Ao militar, antes da prática de determinado ilícito administrativo, é impossível estipular, mesmo que grosseiramente, qual será a sanção a ele imposta. À mercê do juízo axiológico da autoridade disciplinar, pode, ao transgressor, ser imposta vasta gama de sanções, variando de uma simples advertência verbal a 30 dias de prisão disciplinar, ou, até mesmo, licenciamento ou exclusão a bem da disciplina.
Lembra-se que, para atender ao princípio da taxatividade, a norma deve, além de prever os elementos essenciais à configuração do ilícito administrativo, estipular a sanção que lhe corresponde. Implica dizer que a lei formal necessita dispor sobre a situação fática e sobre a consequência a ela atribuída.134 O ínterim entre o máximo e o mínimo da sanção não pode ser vasto, possibilitando à autoridade disciplinar, quando da dosimetria, poder discricionário ilimitado.135
Doutrinariamente, o Estado de Direito é marcado por quatro princípios capitais: legalidade da administração, segurança jurídica, proibição do excesso e proteção jurídica e das garantias processuais. A opção do constituinte por assegurar o Estado de Direito como um dos princípios fundamentais do Estado brasileiro faz com que tais princípios estruturem todo o ordenamento jurídico nacional, incluindo, logicamente, o Direito penal e o Direito administrativo sancionador.
Não bastasse a opção do constituinte pelo Estado de Direito, todos esses princípios se manifestam em direitos fundamentais expressamente arrolados no artigo 5º da Constituição Federal, sendo alguns dos dispositivos destinados, diretamente, a garantir direitos ao cidadão frente à atividade sancionatória do Estado. Assim, por serem direitos formalmente fundamentais, a eles é aplicável o princípio da máxima efetividade, garantindo sua maior incidência possível, notadamente a partir de uma perspectiva humanista.
Reconhece-se, deste modo, a existência de um núcleo constitucional comum a toda a atividade sancionatória do Estado, o qual rege comumente, através dos princípios derivados do Estado de Direito, toda a ação punitiva estatal e que aqui é nomeado de Núcleo Sancionatório Comum.
Inexistindo diferença ontológica entre o ilícito administrativo e o ilícito penal, distinguindo-se estes apenas formalmente, pelo sistema jurídico a eles disposto, conforme decisão política do legislador, defende-se que os princípios derivados do núcleo sancionatório comum sejam equitativamente aplicados ao Direito penal e ao Direito administrativo sancionador. Ambos são ramos do Direito que regulamentam o ius puniendi estatal, servindo como garantia protetiva ao indivíduo em face da atuação do Estado.
Assim, os princípios da reserva legal, taxatividade, irretroatividade e proibição do uso de analogia in malam parte, reconhecidamente aplicáveis ao Direito penal, devem também regular o Direito administrativo sancionador. Porém, não se deve concluir a identidade entre o Direito penal e o Direito administrativo sancionador, mas, apenas, o reconhecimento da existência de um núcleo constitucional comum aos dois ramos. Não se trata, também, da importação de princípios do Direito penal ao Direito administrativo sancionador. Tais princípios, por serem corolários do princípio da legalidade, decorrentes do Estado de Direito, compõe o núcleo sancionatório comum.
O Direito disciplinar, o Direito punitivo interno, também é regido pelo núcleo sancionatório comum, já que compõe o Direito administrativo sancionador. Por conseguinte, o Regulamento Disciplinar do Exército está sujeito ao princípio da legalidade.
Conclui-se, da análise à luz do princípio da legalidade, a inconstitucionalidade do Regulamento Disciplinar do Exército, haja vista que este manifestamente inobserva o princípio da reserva legal, por não ser instituído através de lei em sentido formal; e o princípio da taxatividade, por tipificar diversas condutas abertas e abstratas e deixar de vincular a conduta ilícita à sua respectiva sanção disciplinar.